Programa Conte Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Fernanda Gomes de Almeida
Entrevistada por Bruna Oliveira
São Paulo, 27/09/2023
Entrevista n.º: PCSH_HV1412
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Fernanda, pra começar eu queria que você dissesse seu...Continuar leitura
Programa Conte Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Fernanda Gomes de Almeida
Entrevistada por Bruna Oliveira
São Paulo, 27/09/2023
Entrevista n.º: PCSH_HV1412
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Fernanda, pra começar eu queria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento?
R – Eu sou Fernanda Gomes de Almeida, nasci no dia 03/05/1988, em São Paulo.
P/1 – E qual a primeira lembrança que você tem da infância?
R – Olha, eu tenho pouquíssimas lembranças da infância, pra mim é como se ela tivesse sido apaga literalmente da minha memória. Lá em casa a gente costuma dizer que… as pessoas que vão lá em casa tem muita lembrança da creche, da pré-escola, do primeiro ano da escola. Eu não tenho! Eu acho que eu tenho dos 12 anos pra frente. E eu acho que ela foi apagada de maneira proposital, porque eu acho que não foi muito bom!
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Minha mãe se chama Berenice Gomes Barbosa e meu pai é Amaury Almeida de Jesus Junior.
P/1 – E como você descreveria eles?
R – Olha, o meu pai, pra mim, é uma incógnita, porque ele faleceu eu tinha dois anos, então eu não lembro absolutamente nada sobre ele. E aí é muito curioso, que eu gosto muito de samba e meu pai era sambista, ele tocava instrumentos, eu também toco, percussão. E aí quando eu tô numa roda de samba que eu vejo um negão magro e alto eu fico procurando meu pai nessas pessoas, nesses caras assim. Então eu imagino que ele seja um negão alto, muito bonito, com a pele muito reluzente. Minha mãe era uma mulher branca, faleceu quando eu tinha dezessete anos. E a gente era muito parceira em muitas coisas, ela era de Touro, eu também sou taurina, então a gente tinha as mesmas manias. Ela era viciada em limpeza e eu também sou. Eu fiz um documentário caseiro na pandemia, chamado Perfume de Cândida, em homenagem a ela, porque o cheiro da minha mãe para mim era um perfume de cândida, era o cheiro de cândida, de limpeza, de espaço limpo. Talvez hoje eu já não seja tão limpa quanto ela, mas algum tempo eu fui. E era uma mulher muito bonita, que também gostava de samba, que também gostava de samba rock, de música, ela era muito divertida, Mas ela, na década de 1990, ela contraiu o vírus da Aids e aí, naquela época, acho que isso era muito pouco conversado, e aí ela foi caindo em depressão e faleceu muito jovem.
P/1 – E com que ele trabalhava?
R – Minha mãe era empregada doméstica.
P/1 – E como eles se conheceram, você sabe?
R – Eu não sei! Aí que foda! Nunca pensei em perguntar para minha mãe qual que foi a dos dois, assim. Mas acho que foi algum baile, festa por aí, que a minha mãe era muito festeira. Meu pai também era muito festeiro, ele era mais jovem do que ela, ela era mais velha. Então eu sinto que eles se conhecerem em alguma festa por aí.
P/1 – Você teve irmãos, tem irmãos?
R – Eu tive três irmãos, o Felipe, mais velho, que faleceu faz 8 anos. E o Franklin que é o caçulinha da família.
P/1 – Você é a do meio?
R – Eu sou a do meio! Eu falo assim com essa cara que eu sou a filha do meio, porque é muito difícil ser a filha do meio, é muito estranho ser a filha do meio. Mas eu sou a filha do meio. Agora mais velha, né.
P/1 – E você chegou a conhecer seus avós?
R – Ah sim! Sim! A minha avó materna terminou de criar a gente, com a doença da minha mãe ela assumiu esses cuidados maternos, mas desde antes, a gente sempre morou no mesmo quintal, então minha avó é minha referência de mãe, de mulher. Minha avó Maria ainda viva, dona do meu coração e da minha vida. A minha companheira costuma dizer que tudo que a minha avó fala, eu obedeço em prontidão. E é verdade, ainda que eu não concorde, porque eu sempre fico pensando que ela tem poucos anos de vida, então eu quero viver com ela o máximo que eu puder. Meu avô paterno faleceu há pouco tempo, há poucos dias, aliás materno. E os meus avós paternos também faleceram este ano. Este ano foi o ano de perder os meus avós, minha avó paterna, meu avô paterno e o meu avô materno. E eu fui criada por todos, convive com todos durante muito tempo, meu filho teve bisavô e bisavó durante muito tempo.
P/1 – Você chegou a perguntar para eles… você sabe a origem deles, de onde eles
vieram? Se eles são de São Paulo, vieram para cá?
R – Olha, minha avó materna e meu avô, são primos de primeiro grau, eles são de Cafelândia do interior de São Paulo, são da mesma família, então eles se conheceram ali naquele contexto de roça e tal. Minha avó se casou muito novinha com ele e depois vieram para a cidade, pra capital. E os meus avós paternos também são do interior de São Paulo, de Assis, se conheceram por lá. Minha avó mais nova, meu avô mais velho, os meus avós paternos são pretos, a minha avó é filha de uma mulher livre, que a avó foi escravizada, mas nasceu livre, filha de uma mulher livre. E eles se conheceram nesses contextos assim, de roça, de cidade do interior.
P/1 – E quando você pensa na sua infância, sei que você não tem muitas lembranças, mas tem algum cheiro, alguma comida, ou alguma data comemorativa que lembra essa época?
R – Sim! Pensando na minha avó paterna, o cheiro de laranja, porque ela tinha um pé de laranja no quintal. O quintal da minha avó Ilda era cheio de plantas, até pouco tempo atrás era cheio de plantas. Pé de laranja, de abacate, de mamão, de muitas coisas, então esse cheiro de plantas e de frutas me lembra a minha avó Ilda. A minha avó Maria e a minha mãe, tem o cheiro de cândida, que me remete a ela. Mas a minha avó Maria, a comida que me remete a ela é arroz, feijão e ovo, ela não come muita carne, ela come mais ovo e frango, então arroz feijão e ovo bem molinho, fresquinho, me lembra a minha avó. E minha mãe um bolo de chocolate, acho que o cheiro do bolo de chocolate me lembra ela, porque uma vez o meu irmão, ele passou mal, o mais velho, teve um ataque epilético e foi para o hospital, e aí quando ele voltou do hospital, tinha um bolo de chocolate que ela fez para ele e ninguém podia colocar a mão nesse bolo de chocolate, porque era para ele. E era um bolo de chocolate muito gostoso, a gente tinha que esperar ele chegar do hospital para comer o bolo de chocolate, então isso me lembra minha mãe, o bolo de chocolate e a cândida, lembra a minha família.
P/1 – Você sabe por que você chama Fernanda?
R – Sei! Já contei essa história algumas vezes, inclusive aqui no museu. Meu nome era para se chamar Bertini, a minha mãe gostava de nome super diferente. Por exemplo, meu irmão mais novo ia chamar Francolino, e aí veio alguém e falou: não, você tá doido, ele vai sofrer na escola, vamos colocar um nome parecido. Aí ficou Franklin. E o meu era para se chamar Bertini. E aí um belo de um dia, um amigo do meu pai chegou em casa falando que conheceu uma gata, que ela era muito bonita, que ela era uma preta muito bonita e que o nome dela era da Fernanda. E aí meu pai falou: então pronto! Vai se chamar Fernanda. E aí minha mãe dizia que eu não sabia se a gata era do cara mesmo, do amigo deles, ou se era dele. Se era uma amante, alguma coisa do tipo. E aí meu nome é Fernanda por conta do amigo do meu pai, ou por conta da amante dele.
P/1 – Fernanda, te contaram como foi a data do seu nascimento, o dia que você nasceu?
R – Não! Não sei absolutamente.
P/1 – E como era a casa que você morou durante a infância, Você lembra?
R – Lembro! Minha avó mora lá até hoje. Nós moramos numa viela, no Jardim Rebouças, que há pouco tempo foi asfaltada, antes era de barro mesmo. E aí o cheiro da minha infância, inclusive, é o cheiro desse barro. Porque a minha mãe era viciada em limpeza, então ela lavava a viela. Imagina o pessoal lavando a viela de barro? Ela lavava. Então tinha sempre cheiro de terra molhada. E aí era numa viela, a gente morava no meio da viela, cerca de madeira, arame. Também faz pouco tempo que fizeram muro lá, mudaram. Era cerca de madeira, arame. E a minha infância todinha foi nessa viela brincando com as crianças que moravam na viela, que moravam na rua de cima, que moravam na rua de baixo. Meus irmãos soltando pipa da viela, porque era uma viela que era um pouco íngreme, então na parte alta a galera ficava lá soltando pipa. Eu gostava muito de jogar bola, então na rua de baixo tinha um campinho, a gente jogava muita bola ali, futebol. Eu era do futebol, jogava futebol ali com os meninos. Eu estava sempre andando com os meninos, minhas amizades maiores eram os meninos, porque os meninos gostavam de coisas que eu gostava, futebol, pipa, essas brincadeiras que as meninas não curtiam muito.
P/1 – Eu ia perguntar exatamente isso. Quais eram as suas brincadeiras favoritas na época?
R – Olha, com os meninos era futebol, bolinha de gude e pipa. Com as meninas, era pula-elástico, que ficava pulando elástico, cruzando as pernas e tal. Gostava bastante.
P/1 – E tem alguma memória, assim… eu sei que você falou que não tem muitas memórias. Mas tem alguma coisa que você lembra com carinho da sua infância, ou não?
R – Com carinho na minha infância? Olha, eu acho que o que eu lembro com carinho da minha infância, era a questão da nossa alimentação, a gente passou muita dificuldade financeira, minha mãe era empregada doméstica, ela ficou doente, então foi muito difícil. Mas eu lembro que ela sempre se preocupava em trazer coisas gostosas para a gente comer, da casa de alguma patroa, ou passava no mercado e comprava, ainda que faltasse no dia seguinte. Eu tenho uma memória afetiva que é a pinha, aquela fruta pinha, que é super cara, né? É cara! E a minha mãe ela gostava muito de pinha, então vez ou outra, ela comprava, tipo, sei lá, quatro pinhas, uma para cada um de nós pra gente poder comer, porque ela gostava muito. Então, a memória que eu tenho é essa de comida, sabe, do tipo, nós somos pobres, mas eu não quero que falte a comida na mesa, independente de que comida seja, nunca faltou. Acho que faltou uma mistura, faltou um pão, mas fome a gente nunca passou. E isso foi um esforço muito grande da minha mãe, uma mulher sozinha, porque criar três filhos. Com uma doença horrível, na época, que hoje a gente tá num outro lugar, pensando no HIV, mas naquela época era um tabu, minha mãe não falava para ninguém, era um segredo nosso, da nossa família. Mas ela foi emagrecendo, foi definhando, foi morrendo aos pouquinhos e ainda assim ela trabalhava, no último mês de vida dela ela trabalhou, fez faxina. E fez uma grande compra para gente, enfim, ficar ali se sustentando até ela voltar do hospital. E ela nunca mais voltou. E aí essa memória, assim, de comida, mexe muito comigo. E eu acho que eu sou um pouco que nem ela, eu me preocupo muito com comida, meu dinheiro é tudo para comer, vamos comer! Vamos num restaurante comer, vamos comprar comida, comida, comida, comida, comida, comida, comida. Eu acho que ela me deixou isso e é uma memória boa.
P/1 – Eu queria saber se quando você era pequena, não precisa ser tão pequena, mas assim, durante a sua infância, adolescência, se você tinha sonhos de ter alguma profissão em específico, de ser alguma coisa? Ou não passava isso pela sua cabeça?
R – Passava! Eu queria ser policial… já quis ser policial, já quis ser psicóloga, já quis ser professora. Mas o meu grande sonho de infância era ser atriz da Globo. E aí tinha um lance, porque a minha avó não deixava a gente assistir a Globo, lá em casa não podia, era só o SBT. Minha avó é uma pessoa política e ela dizia: a Globo apoiou a ditadura. A gente não podia assistir a Globo. E aí eu assistia escondido. Então eu tinha um sonho de ser atriz da Globo, era meu grande sonho. Eu já quis ser várias coisas.
P/1 – E me conta qual é a primeira lembrança que você tem da escola?
R – Menina, a escola é um lugar que eu não gosto muito, assim, de lembrar. Primeiro porque era longe da minha casa, não tinha, não tem, na verdade não tem escola no bairro aqui, que eu nasci e cresci. A escola era no bairro vizinho, no Jardim das Palmas. E aí era uma ladeira enorme para voltar para casa, então era muito cansativo ir para escola. Isso já era uma coisa. E eu gostava de ir para escola para poder jogar bola, para poder interagir com as meninas, com os meninos e tal, mas nunca foi muito interessada em estudar. Durante muito tempo eu nunca fui interessado em estudar, mas eu nunca tirei nota baixa, eu era aquela aluna regular, não era ruim, não era boa. Mas não era 100% boa, tipo destaque e tal. Até que na quinta série, eu acho, chegou uma professora nova na escola, professora Vivian, lembro o nome dela até hoje. Eu acho que eu fui apaixonada por ela, eu acho. E aí ela chegou na escola e ela era professora de matemática, eu odiava matemática. E aquela mulher despertou em mim naquele tempo um gosto, assim, peculiar por matemática, de repente eu virei, tipo, nossa, a fodona de matemática. Ela fazia uns desafios muito legais, tipo, se você acertar tantas questões, eu te dou tantos bombons. Eu te levo não sei para onde. Assim! E aí foi uma época que eu gostei muito da escola, porque ela conseguia me incentivar a gostar de matemática. Isso foi até a oitava série. E aí ao mesmo tempo, enquanto eu estava ali gostando de matemática… Eu sempre fui uma menina preta e gorda, então na escola sofria muita… sofri durante um tempo na verdade, racismo, gordofobia, entre outras coisas. E eu me tornei uma pessoa violenta. E aí para poder me proteger desse lance do racismo e da gordofobia, comecei a bater nas pessoas, brigava muito na escola, muito, com homem, com mulher, com menina, com qualquer pessoa, para poder me defender deste lugar violento. E aí eu acho que isso foi me afastando da escola. Saí da escola na oitava série e não voltei mais. Não voltei mais a estudar, aliás, voltei, mas fiquei um tempão. Não fiz ensino médio regular, fiz um ensino médio aí, aquele lá, “volte a estudar e complete seu ensino em 60 dias.” Sabe? Aí você pagava R$500,00 e aí você pegava o diploma. E aí eu me formei no ensino médio assim, porque a escola era um lugar completamente violento pra mim. Eu acho que foi me afastando desse espaço. E é essa memória que eu tenho da escola. Mas ao mesmo tempo também eu me diverti muito, eu fiz várias coisas na escola, joguei bola, fumei maconha. Ixi, foi muito bom! E foi muito ruim também!
P/1 – E você estava contando que você saiu da escola. E como foi a sua adolescência? O que você fazia para se divertir?
R – Samba! Samba e pagode, minha vida é samba e pagode, eu não gosto de mais nada a não ser samba e pagode. Brincadeira! Um pouquinho eu to zuando, mas eu sempre gostei muito de samba, desde os 13 anos eu vou para o rolê, desde os 13 anos. Minha mãe era muito doente, então ela tinha força para me bater, para correr atrás de mim, para poder falar não vai para os lugares. Então eu ia, aí quando eu chegava ela brigava, eu dormia e acabou. Então, desde os 13 anos eu vou para samba, eu gosto muito de rua, essa cultura de rua, de ficar na porta, no portão de casa conversando com as amigas. Meu portão lá na minha viela sempre foi cheio de gente assim, tipo muitas amigas, muitos amigos, minha mãe era muito receptiva, minhas amigas dormiam em casa, então a minha adolescência foi assim, tipo no portão de casa, na rua, curtindo, brincando, correndo da polícia, correndo dos pé de pato, dos bandidos, porque era um bairro periférico, então a gente viu várias pessoas morrerem. Eu tenho uma memória da adolescência que é a Copa do Japão, aí lembra que era de madrugada a Copa do Japão. E aí eu lembro que foi a primeira vez que a minha mãe falou, assim: não, pode ficar na rua de madrugada, porque todo mundo vai tá, é a Copa, não sei o quê. E aí num dos jogos, eu não lembro, era Brasil contra quem, mas num dos jogos, eu lembro que a gente estava indo na casa de alguma amiga assistir esse jogo e a gente ouviu alguns tiros, muitos tiros na verdade. E aí passou cinco minutos, outra amiga subiu correndo, dizendo: mataram o fulano de tal, que era o irmão da nossa amiga. Na Copa do Mundo, tipo de madrugada e tal. Então a minha adolescência foi essa coisa, de tipo se divertir no portão de casa, fica ali brincando, correndo, salada mista, verdade ou desafio, tiro, sabe? Mataram um cara na padaria. Mataram fulano não sei aonde. Década de 1990 foi assim, Zona Sul, eu acho que a gente viveu uma década de terror ao mesmo tempo que era muito gostoso tá na rua vivenciando as infâncias e adolescência era também muito perigoso viver a rua, mas eu vivia a rua. E aí para além disso eu comecei a dar rolê muito cedo, Clube da Cidade, Sambarilove. Samba rock e samba sempre foram as minhas diversões. E também trabalhar e trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, desde a adolescência.
P/1 – Você começou a trabalhar depois que você saiu da escola ou antes?
R – Antes! Antes, eu vendia bala de coco, tinha um cara que morava lá perto de casa que ele fazia uns potinhos assim de bala de coco e aí ele recrutava os adolescentes que era mais espertinhos para poder vender para ele. Eu vendia bem!
P/1 – E você sabe o que você fez com o primeiro salário que você recebeu?
R – Comi! Com certeza eu comi. Eu acho que antes da bala de coco, teve o sanduíche da minha tia, que ela mandava a gente vender também. E aí a primeira vez que eu saí para vender sanduíche para ela, era tipo 10 sanduíches, eu comi cinco. Voltei com o dinheiro de 5, dizendo a ela que os outros cinco eu vendi fiado, que eles iam pagar no outro dia. Nunca recebeu, né, obviamente. Mas eu sempre, sempre comendo, sempre comendo. Dava para a minha mãe, a metade do dinheiro e comia o resto.
P/1 – Como você se sentiu a primeira vez que você foi numa roda de samba? Se você lembra.
R – Olha, eu não sei se eu lembro a primeira vez, que eu acho que eu vivi a infância em roda de samba, o bairro que eu morei, que eu cresci, me criei, é muito cultural deste berço do Samba, do Pagode, então todo bar tem um, dois, ou três bêbados tocando um tambor, um pandeiro, um tamborim. Então era muito natural a gente tá em roda de samba. Mas hoje, pensando hoje na minha vida adulta, eu sempre me emociono, eu acho que o samba é poesia pura, né. Lá em casa eu falo, eu não gosto de Sarau, porque o Sarau não tem pandeiro, muitas vezes não tem tamborim, não tem tantan, não tem rebolo, não tem nada. E o samba para mim é essa poesia acústica, sabe, cantada, percussiva e eu sempre fico muito emocionada, muito emocionada. Então acho que desde criança eu ficava muito emocionada. Eu já sofria de amor antes de ter amor, porque o samba é isso, é cantar os amores.
P/1 – Eu queria saber se durante a adolescência, mudou alguma coisa na sua vida?
R – Se na adolescência mudou alguma coisa? Da infância para adolescência?
P/1 – É!
R – Ah total! Eu acho que sim, eu perdi a minha mãe com 17 anos. E quando ela faleceu, eu lembro que escutei uma história da minha avó com a outra avó, dizendo: e agora, como é que a gente vai fazer com essas crianças? São três. Quem vai ficar com quem, não sei o que. Aí eu lembro que a minha avó paterna, falou: eu posso ficar com o Felipe, que ele é tranquilo, não sei o quê. O Franklin tinha pai. E a Fernanda? A Fernanda é terrível! A Fernanda é terrível, a Fernanda é muito rolezeira, muito encrenqueira, muito briguenta. E aí eu lembro que eu escutei essa conversa, eu tava, sei lá, no quarto, elas estavam na cozinha. E eu pensei: “Poxa, o que vão fazer comigo?” Eu acho que ali virou uma chave em mim, eu tive que ficar adulta imediatamente. Eu já era uma adolescente adulta, porque eu já trabalhava, fazia várias coisas para ganhar dinheiro, eu lavava roupa para amigos, limpava a casa dos outros, era babá. Fazia qualquer coisa para ganhar dinheiro, mas eu tinha que mudar meu jeito de viver. E aí foi a partir dessa conversa que eu escutei atrás da porta, que eu decidi viver minha vida sozinha. Eu saí de casa com 17 anos. Minha mãe faleceu em dezembro, em fevereiro eu já estava morando fora, porque eu não queria dar trabalho para ninguém. Então eu acho que eu fiquei adulta com 17 anos, a partir da morte da minha mãe. Acho que isso foi o que mudou.
P/1 – E como foi esse momento de morar sozinha? Você já falou que você já tinha crescido, mas como foi esse novo momento para você?
R – Olha, eu acho que foi foi muito louco, foi muito bom, porque eu fui aprendendo várias coisas sozinha, mas ao mesmo tempo foi muito perigoso também. Eu com 16 anos conheci o pai do meu filho, ele não era uma pessoa legal. Eu não tinha… apesar de ter avós que estava ali comigo e tal, eu não tinha uma referência feminina para me dizer: olha, você é muito jovem, essa cara é muito velho! Acho que não combina muitas coisas, acho que pode ser uma relação abusiva e tal, não sei o quê. Eu não tinha pessoas para me aconselhar, para me colocar no caminho certo. Tive que aprender tudo sozinha, tocar. Então, foi muito bom morar sozinha, me descobri sozinha e depois casar logo em seguida. Mas ao mesmo tempo foi muito ruim, porque eu passei dificuldades, eu não tive o que comer durante várias vezes, eu morei com amigas, minhas amigas meteram o louco, porque elas eram preguiçosas e eu não. Então foi muito difícil. Eu não gostaria que o meu filho saísse de casa com 17 anos. A não ser, que sei lá, ele fosse para uma moradia estudantil, sabe? Fazer faculdade, ou algo do tipo. Mas do jeito que foi comigo eu não desejo pra ninguém.
P/1 – E foi nesse momento que você foi mãe?
R – Não! Magina! Mas foi a partir deste momento que a minha mãe faleceu, e aí eu fiquei pensando, pô, eu tô sozinha nesse mundo, minha família… É engraçado que a minha família é muito pequena, minha avó teve poucos filhos, minha mãe teve poucos filhos. E aí a ideia na minha cabeça era, preciso arrumar um filho para poder ter alguém que saia de dentro de mim, que seja parte da minha vida e também que substitua esse amor que minha mãe levou embora. E não é verdade, né gente! Cada amor é um amor, ele não substituiu nada, pelo contrário, foi outro amor que cresceu dentro de mim. Mas foi nessa época que eu pensei, eu quero arrumar um filho! Eu acho que foi por isso que eu casei com um homem, para poder arrumar esse filho, tanto que esse filho nasceu, eu sai fora!
P/1 – E como foi a perda, o luto da sua mãe?
R – Menina, você sabe que eu não tive tempo para pensar no luto, quando eu tinha 17 anos. Eu passei a viver o luto da minha mãe agora na pandemia, porque a mãe da minha companheira faleceu na pandemia, e aí a gente não tinha o que fazer, a gente estava dentro de casa trancada durante a pandemia, ela vivendo o luto dela, que foi uma um momento muito difícil, ela era muito parceira da mãe dela, muito amiga, era só elas duas, assim. E aí acompanhando o luto dela, eu comecei a viver o meu, mesmo depois de 17 anos de morte da minha mãe. Eu não tinha elaborado o luto ainda. E foi naquele momento que começou a surgir em mim essa sensação, de tipo, porra, mano, perdi minha mãe, perdi meu irmão mais velho também. Mortes muito difíceis, porque eu acho que, sei lá, se você morre de, sei lá, um infarto fulminante, ou qualquer outra coisa que não seja algo tão marcante como overdose e HIV. O meu irmão faleceu de overdose e a minha mãe de HIV. Eu acho que é mais difícil. Então eu comecei a elaborar o luto agora na pandemia, quando a pandemia chegou. E aí eu sofri! Eu sofri, eu caí acho que numa ligeira depressão e foi muito difícil. Acho que foi a energia pandemica também.
P/1 – E como seguiu sua vida depois? Você contou que estava casada, né. E como que foi esse momento, você já estava trabalhando, com o que que você trabalhava?
R – Quando eu casei com o pai do meu filho? Então, eu conheci ele, eu era novinha, eu tinha 16 anos, ele tinha, sei lá, 28. E eu não queria me casar, mas como todas as minhas amigas já namoravam, já tinha alguém para chamar de ser. Eu falei: ah, vou ficar com esse cara! E a gente ficou junto acho que uns 8 anos. E um tempão. Foi bom durante um tempo. Apesar de eu me identificar e dizer eu sou lésbica e eu não gosto muito de homem, eu tenho uma questão com homem. O pai do meu filho, ele foi uma pessoa, que num dado momento ele me fez bem. Ele foi muito zoado, muito escroto, mas ele me fez bem, ele tipo, sei lá, me apresentou o centro da cidade, tem comidas que eu como assim, tipo, sei lá, tempurá, foi ele que me apresentou. Acarajé, eu amo acarajé, foi ele que me apresentou. A Praça da República, a Galeria do Rock, coisas que eu gosto em São Paulo, tipo, Vale do Anhangabaú, foi ele que me apresentou. A gente fez muita coisa junto, a gente viajou muito junto, ele me apresentou o Rio de Janeiro, Sergipe, enfim. Então foi legal até um dado momento, mas ele tinha questões com drogas, não qualquer tipo de drogas, porque eu também tenho, todo mundo deve ter, fuma, bebe, sei lá! Mas ele tinha questões sérias com drogas e foi me fazendo muito mal. E aí eu também fui percebendo que ele era uma pessoa que eu gostava como companhia física, não afetiva e sexual. Ele era uma pessoa, tipo um amigo que eu gostava, me divertia e tal, mas eu não era apaixonada loucamente por ele, nem amava loucamente ele. Era, tipo, não tem ninguém, vai você, vamos lá construir isso juntos. E aí eu me separei… Eu me entendi lésbica eu estava grávida, com poucos meses de gravidez, não sabia que estava grávida. E aí depois veio a notícia, eu tô grávida. E aí tô grávida e também gosto de mulher, o que que eu faço com essa informação? Então eu fui tocando o casamento, fui ficando com ele mesmo assim. E quando o meu filho nasceu, logo um pouco depois, eu me separei, eu praticamente fugi de casa. Um belo de um dia, a noite, de madrugada, peguei minhas coisas e fui para a casa da minha avó. E aí me separei dele. Foi muito difícil a separação, ele me perseguiu, ele… Eu sofri tentativa de lesbocidio duas vezes, ele tentou me matar duas vezes na porta da minha casa, uma vez na frente do meu filho. Foi muito difícil, porque enquanto eu não tinha me assumido, saido do armário e dito eu sou lésbica, estava tudo ok. Eu não estava com ninguém, ele achava que eu não estava com ninguém, achava que a gente poderia voltar ainda. Mas aí depois que eu sai literalmente do armário e assumi uma pessoa. O Mundo caiu, era como se eu tivesse ferindo o ego dele. “Como assim? Você separa de mim e ainda fica com uma mulher?” E aí foi muito difícil, porque a minha familia não me apoiou inicialmente, achava que ele estava certo. “Pô, como você faz isso com esse cara que gosta de você, que tanto te ajudou, que tanto te protegeu.” Mas ninguém sabia da minha história com ele, eu e ele diretamente. Enfim, ele faleceu faz quatro anos, cinco anos, sei lá! E só depois da morte dele eu tive paz. Ele teve que morrer para me deixar em paz. Não fui eu que matei, eu prometo! Eu juro! Não fui eu! Mas ele morreu e enfim, eu tive paz só depois disso. É triste, né, porque eu não queria que ele morresse para me deixar em paz, mas isso teve que acontecer, infelizmente.
P/1 – Você estava contando que ele te apresentou o Centro. Eu queria saber como era? Antes você só se divertia na Zona Sul?
R – Sim! Antes eu só me divertia na Zona Sul, mas tinha dois lugares do centro que eu ia, que era o Sambarylove, que era ali no Bexiga e o Clube da Cidade que era na Barra Funda. E aí eu pegava o ônibus lá na Estrada do Campo Limpo, ia até a Barra Funda, ou até o Bexiga, Mas o centro mesmo, assim, sei lá, rodar o Centro Velho, Praça da República, Vale do Anhangabaú, que era o meu lugar preferido da cidade. Eu nunca tinha ido, eu nunca tinha conhecido e ele fez uma expedição comigo no centro da cidade e foi muito legal! Eu lembro da sensação de tipo, sei lá, de estar conhecendo a cidade. Eu acho que quem tem pais e avós mais velhos, que moram na periferia, sempre falava: olha, estamos indo na cidade. Não era o centro da cidade. Estamos indo na cidade. É como se o São Luiz, ou Campo Limpo, fosse interior, né? Estamos indo na cidade. Eu sempre pensava: pô, eu quero ir na cidade. Nunca fui na cidade. A Paulista era cidade, o Centro Velho era a cidade, a República era a cidade. Então para mim conhecer a cidade foi muito importante, com 16 anos, dar um rolê ali na galeria do rock. E a galeria do rock naquela época era muito preta também, tinha a galera do break, do black charme. Foi muito gostoso. Foi muito legal!
P/1 – E nessa época, logo depois, passou um tempo, você acabou engravidando. Eu queria saber como foi a maternidade?
R – Olha, eu sempre quis engravidar, foi algo planejado, tentei durante muitos anos, sei lá, dos meus 17 anos até os 22 tentando engravidar, não conseguia. Quando eu desisti aconteceu. E aí foi tudo muito romântico, a gravidez, porque eu queria muito aquele filho, eu sonhei muito, eu queria muito, muito, muito. Ele já tinha nome, ele ia chamar Ronald, mas na hora a gente mudou, minha família me abraçou, meus tios, minha tias, a minha avó que ficou meio assim, porque a minha avó ela é uma pessoa política e feminista e ela falava assim:
sério que você engravidou com 22 anos? Não acredito, você vai acabar com a sua vida. Foi isso! Eu falei: avó não fala isso, uma criança, não sei o que. E ela estava completamente certa, porque não tem a ver com a criança, tem a ver com o tempo destinado a maternidade que é muito dura. E aí o Rian nasceu, em 8 de outubro de 2010, a gravidez foi um pouquinho conturbada porque eu tenho diabetes, pressão alta, então foi uma gravidez de risco, eu fiquei muito tempo internada no hospital, ia para o hospital, ficava no hospital. Então quando começou essa essa questão de ficar internada, já começou me dar uma bad, já comecei a ficar meio triste, meio pá, mas fui tocando. E aí o Ryan nasceu, ele ficou um tempo internado e tal. Quando ele voltou para casa, eu acho que pelo fato dele ter ficado internado e ficado um pouco longe de mim, eu só podia ver ele pelo vídeo e tal. Eu acho que a gente demorou para criar uma conexão, e aí o Ryan era um bebê chorão, até hoje ele chora. Ele tem 13 anos e ele é bem chorão e ele chorava muito, ele chorava muito e ele chorava de um lado, eu chorava de outro. E aí com dois meses eu falava: eu não quero mais ser mãe. E aí eu fiquei um tempo na casa da minha avó e ela falava: uai, você não escolheu ser mãe? Você não quis ser mãe? Agora você vai ter que tocar isso. E ela não era aquela pessoa que pegava o neném no colo para acalmar. Ela falava, assim: você tem que pegar, você tem que fazer isso, você, você, você. E aí eu acho que eu desenvolvi uma depressão pós-parto e eu tive que tocar depressão com ele, não tinha como eu passar ele para outra pessoa, eu não tinha minha mãe, minha avó já estava mais velha, ela não queria um B.O de um neném para ela cuidar, ela estava me incentivando a ficar com ele, tipo, você tem que resolver, tem que ficar aí. Então foi muito difícil, o primeiro ano do Ryan foi muito difícil, eu chorei demais, eu chorei demais, eu não queria mais ter filho, ficava pensando, e agora o que eu vou fazer? Mas ao mesmo tempo, a vida do Ryan me fez voltar a estudar, foi a partir do nascimento do Ryan que eu fiquei pensando, poxa eu quero que meu filho seja uma pessoa muito foda na vida, quero que ele cresça, quero que ele estude e eu quero que ele seja foda, mas como é que eu vou querer tudo isso para ele, sendo que eu só tenho a oitava série, eu preciso fazer alguma coisa. E aí foi quando eu resolvi voltar a estudar, ele estava com um ano e meio, dois. Pensei em voltar a estudar por conta do Ryan. Aí eu fui tocando, eu saí de casa, separei do pai do Ryan, fui morar perto da minha avó e eu falei para ela que eu queria voltar a estudar. E ela sempre quis que a gente estudasse, ela falou: eu cuido dele pra você, ele já tá maior, eu cuido dele e você pode voltar a estudar. Eu já tinha feito aquele lance lá do diploma, me organizado lá no “Volte a estudar em 60 dias”. E aí eu entrei num cursinho, minha avó super me apoiando. E aí entrei na universidade a partir do nascimento do Ryan, quanto ele me impulsionou. E é óbvio que a universidade me afastou dele durante 4 anos, porque eu tive que, enfim, atravessar a cidade inteira para poder estudar. Então eu quase não via o Ryan dia de semana, via ele mais final de semana, minha avó que ficou tocando os cuidados nesse tempo, junto com o pai dele também, que apesar de todas as questões, era uma pessoa que cuidava do filho. E aí foi isso. E aí eu tenho o Ryan de 13 anos, que tá na adolescência, acho que é a parte que eu me sinto mais desafiada e adolescência, porque eles estão nessa fase de desafiar a gente também, de descobrir as coisas e tal. Mas o Ryan é um menino bom, esportista, gosta de futebol, de pipa e bicicleta. Ele foi diagnosticado com TDAH e é muito louco, porque eu nunca gostei da escola, sempre achei a escola violenta, e aí foi a partir de algumas violências no aprendizado do Ryan que a gente descobriu o TDAH, tem sido um grande desafio para toda a família, para mim, para ele, pra Ale, pra Júlia. A escola não é atrativa, a escola não dá suporte para o Ryan, ele já passou por três escolas e agora ele tá na quarta escola e essa escola tem sido menos pior do que as outras. E aí a gente sofre junto com ele, porque ele finge não sofrer, a gente sabe que ele sofre, mas eu sofro bastante, tenho vontade de ir na escola e de quebrar tudo, de gritar, de fazer um barraco. Mas é a escola que ele tem se identificado, que ele tem curtido e tal. Arrumou amigos, o que era difícil antes. Então agora a gente está melhor, mas antes estava difícil, a adolescência.
P/1 – Eu queria saber… você estava contando que foi durante a gravidez do seu filho que você descobriu que gostava de mulheres. Como foi esse momento?
R – Menina, eu fui numa festa, aqui na Vila Madalena inclusive, com uma amiga, umas amigas na verdade. Tinha uma amiga que eu achava muito interessante, mas eu não sabia que eu achava ela interessante a partir de desejos. Aí quando eu cheguei nessa festa, era um sarau erotico, na NossaCasa Confraria, quando eu cheguei nessa festa, estava todo mundo pelado, meu, eu falei: caralho, que negócio estranho, todo mundo pelado, as muletas com a teta para fora, os caras só de de cueca e tal, não sei o quê. Já me impressionei neste momento. E aí, você tá… na época eu bebia, toma uma, toma outra, toma uma, toma outra. Uma amiga minha me beijou, ela era muito minha amiga, ela me beijou. E eu falei: nossa, que legal! Já estava apaixonada por ela, a partir daquele beijo, porque sapatão é assim, é um dia para se apaixonar, no outro você pede em namoro, no terceiro você já aluga casa. E eu me apaixonei por ela naquele instante, mas ela não, ela estava acostumada no rolê, tipo beijar as pessoas e tal. E aí foi neste momento. E aí passou, sei lá, acho que umas três semanas, nada da menstruação vir, nada da menstruação vir, fui fazer o teste, eu estava grávida.
P/1 – E você conhecia outras pessoas LGBT no bairro, como que era?
R – Sim, sim! Na escola tinha… as meninas do futebol na escola, boa parte delas eram lésbicas, não assumidas, tanto que tipo, sei lá, duas das minhas amigas na escola que eram lésbicas, a Elaine e a Vânia namoraram com dois gays. Tipo, elas lésbicas e os cara gays, tipo, “ah, tô namorando!” Mas era uma sapatona e um gay. Mas tinha muitas referências, no meu bairro tinha mulheres mais velhas, inclusive. Tipo a Lucinha que era a tia da perua. Ela não dizia para mim, “eu sou sapatona, eu sou lésbica, mas ela era inteiramente lésbica e ela morava com uma amiga. Depois mais velho eu descobri que a amiga era esposa. A Déia, a mesma coisa, a Deia, tipo, mano, sapatão de tudo assim, nunca disse sou sapatão, mas vezes ou outra tinha um buchicho na quebrada, tipo, “se viu a Déia, tal mulher saiu da casa, tal mulher saiu da casa dela.” E aí virei adulta e fiquei amiga dela, e aí é isso, a Déia e 100% sapatão. A gente tem uma referências, né? Lá em casa frequentava muitas pessoas LGBT, minha mãe era amiga de travesti, de sapatona, de gay. Tanto que eu sempre falo, nunca tive um tabu para poder pensar essas questões de gênero ou de sexualidade, eu só não fui incentivada a ser sapatona, mas na minha casa circulava muitas pessoas LGBT, tipo a Tânia, a
ngela. Sobre tudo travestis de quebrada que frequentava minha casa, que foi, tipo, as principais auxiliadoras da minha mãe enquando ela teve doente, porque eram amigas dela. Então, tipo, essa questão de gênero, de pá, eu não sei o que é travesti, eu não sei o que é pessoa trans, pra mim nunca aconteceu, porque eu sempre soube, porque circulava ali na minha casa o tempo todo. Gislene era minha referência sapatão, que era casada com uma mulher, que eu não lembro o nome, mas era a mãe da Priscila. A Priscila estudava comigo e a gente se chamava de prima, não era prima, mas falava que era prima. Então a Gislaine era a referência sapatão. Eu tinha várias referências sapatão.
P/1 – E nessa época que você teve o seu filho, separou e começou a estudar, você estava trabalhando nessa época?
R – Estava trabalhando. Eu trabalhava no estacionamento da Universidade São Judas, ali na Vital Brasil, fiquei lá acho que durante uns oito anos, estava trabalhando lá.
P/1 – E como que foi o momento de voltar para os cursinhos e depois voltar para a faculdade. Como foi esse momento?
R – Então, esse lance do cursinho, ele é muito legal essa história, porque eu sempre acho que a educação, tipo, eu ter entrado, voltado a estudar, foi o que me libertou, que me tirou do armário. Porque eu fiz um cursinho em Santo Amaro, e aí era todo mundo de quebrado e tal, o cursinho era baratinho, acho que era R$ 180,00, todo mundo de quebrada. E tinha várias lésbicas, bissexuais, viado, tinha de tudo, de tudo. Eu acho que não tinha pessoas trans, mas tinha gay, sapatão, veado, bissexual, tinha de tudo. E aí foi um mundo muito novo para mim, porque eu vivia com essa galera dentro de casa quando era criança, mas ao mesmo tempo, assim, eles podem ser, você não pode ser. E aí eu já tinha beijado e tal, a mina lá, tinha curiosidade e tal. E aí o cursinho foi me trazendo esses debates, sobre questões LGBTs, sobre questão racial. Eu sou uma pessoa visivelmente negra. E eu acho que eu não sabia que eu era uma pessoa visivelmente negra, porque eu vivi numa família branca, minha mãe era branca, meu irmão Franklin, ele tem os olhos claros, tipo, é uma outra relação. Então esse debate racial para mim ainda era distante, então foi a partir do cursinho que eu me aproximei mais do debate racial, das pessoas LGBTs e saí de vez do armário. Aí cheguei na PUC, depois do cursinho cheguei na PUC. A PUC era um mundo muito confuso para mim, eu costumo dizer que eu nunca vi tanta droga na minha vida igual eu vi na universidade. Isso é muito interessante, dizer isso, porque acho que a burguesia pensa que a quebrada, que a favela é o arsenal de drogas e não é né, é a universidade que é, é os boy que que gira essa droga toda em São Paulo. E aí foi muito interessante para mim viver a universidade porque lá também era quase igual ao cursinho, mas lá eu discuti questões de… sei lá, disseminar as questões de droga, pensar as questões LGBTs, me aprofundar mais um debate racial. Então foi muito importante para mim, foi um espaço muito doloroso também, porque é um espaço racista, completamente classista. Eu era… tinha uma sala com 35 pessoas, cinco pessoas eram pretas, cinco pessoas pretas bolsistas, tinha outros bolsistas brancos lá, mas negros eram cinco pessoas. Então eu me via num lugar muito diferente, muito diferente mesmo. Mas foi importante, foi importante pra mim viver o cursinho, viver a PUC e estar agora vivendo o mestrado.
P/1 –
E por que você escolheu Serviço Social?
R – Então, eu queria Pedagogia. “Ah, vou entrar na faculdade e fazer Pedagogia.” Aí fiz a prova da USP, fui para a segunda fase, na segunda fase não passei. Aí fui fazer cursinho de novo, fiz três anos de cursinho, hein! E aí no terceiro ano de cursinho, um professor meu chamado James, de Geografia, maravilhoso, falou assim: “Fernanda, você já ouviu falar nesse curso aqui, Serviço Social?”. Aí falei: “Serviço Social?” Ele falou: “Trabalha com direitos, eu acho que essa graduação discute bastante a questão racial, tem um pouca a ver com história, acho que você vai gostar.” Aí eu fui dar uma pesquisada, e aí eu me interessei. E aí no terceiro ano de cursinho eu prestei Pedagogia novamente, não passei. E também para Serviço Social na [Universidade] Federal da Bahia e na PUC, e aí rolou nos dois, aí fiquei na PUC mesmo.
P/1 – Uma coisa que eu esqueci de perguntar quando você estava contando das festas que você se divertir lá na zona sul e também na Barra Funda e no Bixiga. Eu queria saber se tinha alguma festa nessa época LBGT que você frequentava?
R – Não, não tinha! Ah, eu acho que existia, mas eu não tinha acesso, porque eu acho que as minhas relações também eram heterossexuais. Quando eu falo a minha casa era cheia de gente LGBT, era as amizades da minha mãe, pessoas mais velhas e tal. Mas as minhas relações na infância e na adolescência, era heterosexual. Hoje, depois de muitos anos, a gente vê que tipo, fulano é gay, ciclano é sapatão, beltrano fez a transição, é mulher trans e tal. Mas naquela época as minhas relações eram totalmente heterossexuais. A gente frequentava festas pretas, porque o Sambarylove era uma festa preta, o Clube da Cidade era uma festa preta, o Milenium era uma festa preta, o samba é preto. Mas, não, não tinha! Eu pelo menos não frequentava.
P/1 – E quando você entra na PUC… como foi essa entrada, esse momento na PUC? Você falou um pouco, mas eu queria saber como foi passar esses quatro anos lá? E também se tinha algum professor, ou alguma professora que fez parte dessa caminhada de uma maneira positiva para você?
R – Olha, a minha primeira impressão que eu tive na PUC, foi muito ruim. Eu lembro que o primeiro dia que eu estive na PUC, foi o dia de trote, essas coisas dos calouros e tal. E aí o meu curso era de manhã, mas esse dia eu fiquei muito empolgada, querendo conhecer a universidade e tal, fiquei até a noite. E aí à noite a gente foi para um bar, que era do outro lado da rua da PUC, o Paraty, super conhecido. E aí estava lá no bar e tal, não sei o quê, conversa vai, conversa vem e tal. A rua estava lotada de gente. Isso eu nunca vou esquecer, a rua lotada de gente, daqui a pouco vira assim a esquina, três viaturas, a minha primeira impressão foi correr. Na hora que chegou 3 viatura, eu pensei, nossa, vai moiá aqui, o baile vai dar até tiro, sei lá! A minha primeira impressão foi correr. Na hora que eu fui correr, a minha amiga, uma pessoa que estava lá, não era amiga, sei lá, conhecida. Me grudou pela camisa, “onde você vai?” Eu falei: vou correr! E ela falou, assim: não, fica tranquila! E aí, eu tenho essa lembrança, porque uma menina, uma loira que estava lá no bar, a viatura passou e ficou um pouco parada, assim, na frente do bar, atrapalhando a movimentação das pessoas, era primeiro dia de aula. A menina pegou a mão dela e bateu em cima do capô do carro da polícia e falou para eles saírem dali, porque eles estavam atrapalhando, tá fazendo o quê aqui? Não sei o que. Eu fiquei, assim, chocada! Fiquei pensando, gente, que pessoa corajosa. Até o momento eu não tinha uma ideia construída, concreta, sobre privilégios de raça e classe. Eu sabia que ela era privilegiada, mas eu não entendia ainda esse processo. Depois de um tempo, eu falei: mano, a mina bateu na viatura. Se eu fizesse isso, em qualquer lugar, ou na PUC, ou lá no Jardim São Luiz, ou no Jardim Rebouças, que é onde eu cresci e me criei no Campo Limpo. Ou eu levava um tiro, ou eu seria presa por desacato, ou os caras ia forjar 1 Kg de drogas em mim. Isso é uma certeza que eu tive. Então aquele dia me impressionou bastante. E depois desse dia eu nunca mais voltei no bar. Raramente eu ia no bar, porque nesse dia tinha dois moleques com uma mobilete ali na rua da PUC e aí chamaram a polícia não para a zona que estava lá, pra galera usando um monte de droga e tal, não sei o quê. Chamaram a polícia para esses dois moleque que estava lá de mobilete. E aí eu inclusive os policias levaram os moleques. Enfim, foi um rolo. E depois desse dia eu nunca mais voltei para o bar da PUC. E aí durante esses quatro anos foi muito difícil a minha presença na universidade, porque eu estava anos luz atrasada dos outros colegas de classe, não tinha feito ensino médio de maneira regular, o meu curso era muito conteudista, questões históricas sobre ditadura, entre outras coisas, história do Brasil, história do fulano de tal, do ciclano de tal, filosofia, sociologia. O primeiro ano foi enlouquecedor para mim, mas rolou, consegui tocar, as professoras diziam que eu precisava fazer reforço escolar. E isso mexia muito comigo, porque isso me diminuia como pessoa. Eu briguei com várias delas, eu fiz inimizade com diversas delas, com todas praticamente. Então, eu não tinha uma relação com elas boa, eu não era chamada para poder fazer iniciação científica, todo mundo foi chamado, eu não fui! Eu e quatro pessoas não fomos chamados. Eu não era elogiada com os meus seminários que eu apresentava, tipo, tinha uma questão racial muito forte, durante os meus quatro anos na universidade. Até que em 2018 aconteceu que uma das professoras sofreu um acidente, eu acho, e aí entrou uma substituta. E a substituta era preta, o nome dela é Márcia, Márcia Eurico, que inclusive é minha parceira até hoje. E aí ela entrou na universidade e ela deu um outro sentido pra graduação, ela deu um outro sentido para o serviço social. Ela me fez acreditar que, tipo, mano, eu precisava me formar e que na nossa categoria ali de assistente social, precisavam de pessoas como eu, uma mulher preta que tem vivências práticas do que é questão de classe, de raça, na vida. Porque as professoras da PUC, elas são assistente social, mas não imagina o que é viver a pobreza, o que é viver o racismo, entre outras coisas. Então, a Márcia foi a pessoa que marcou na minha história, ela foi a profissional que trouxe bibliografias negras, que trabalhou Carolina Maria de Jesus, na Angela Davis e os próprios artigos dela que são maravilhosos. Então a Márcia foi a pessoa que falou, assim, “não, tá ruim, mas isso vai acabar! Você tem que terminar e tal.” E foi maravilhoso a presença dela lá, inclusive, até na saída dela foi um tumulto, porque a gente enquanto estudante fizemos um movimento chamado, “Márcia fica!” Ocupamos a universidade, trancamos a PUC, a PUC acho que ficou quatro dias sem ter aula, porque a gente estava exigindo a presença dela ali, como professora titular. O que foi negado no começo. Aí ela ganhou, acho que uma disciplina no RI, inclusive. A disciplina dela lotou, teve mais de 100 inscritos, foi a disciplina que mais lotou durante aquele ano na PUC. Mas ainda assim, naquele momento ela não ficou como professora titular na universidade. E aí ela volta agora, em 2023, como professora titular da pós-graduação. Participou do concurso, passou, porque agora a PUC tem cotas raciais para professores. E até 2024 eles têm uma obrigação de ter X pessoas pretas no quadro de professores. A Márcia volta agora como professora titular da pós-graduação. Incrível, maravilhosa, inclusive eu tô lá disciplina dela, fazendo a disciplina dela lá. Porque ela foi a pessoa que incentivou as pessoas negras do Serviço Social a não desistir. Tipo, é ruim, é zoada, é racista, mas vamos lá, vai dar certo!
P/1 – E nessa época que você começou a estagiar com Serviço Social ou não?
R – Eu comecei o meu estágio com serviço social em 2017, num lugar que eu já trabalhava, eu fui agente SUAS de 2015 a 2017 no CRAS Sé, trabalhando com pessoas, famílias em vulnerabilidade, e aí lé mesmo eu fiz o meu estágio de 2017 a 2018.
P/1 – E como foi esse início da atuação dentro do serviço social? Na verdade, eu queria saber se você começou a atuar no serviço social e como foi esse início?
R – Meu, eu terminei a graduação em 2018, em dezembro, em 2019, em janeiro eu já estava trabalhando como Assistente social, lá na zona sul. Inclusive até hoje eu trabalho no meu bairro, lá na zona sul, num serviço chamado NPJ, que era o Núcleo de Proteção Jurídico Social e Apoio Psicológico. Que atendia a região Jardim São Luiz, Jardim
ngela, a famílias, mulheres em situação de violência criança e adolescente também em situação de violência, idoso, tudo quanto era violência a gente atendia lá. Foi o meu primeiro trabalho, eu acho que foi ali que eu… O estágio foi importante para mim, trabalhar no centro foi importante para mim. Mas ali foi que eu aprendi literalmente a ser uma Assistente Social, anti racistas, anti classista. E eu fiquei 4 anos lá.
P/1 – E nesse momento eu queria saber se você já tinha começado… Assim, eu sei que a sua família tem uma tradição, você tá contando que a sua avó já era feminista, mas se tinha alguma militância política que em algum momento você desenvolveu?
R – Então, apesar de enxergar minha avó como feminista, ela nem conhece essa palavra, eu que digo que ela é feminista e que ela é política, porque ela é petista e tal, “vou votar no Lula, não sei o quê, fora bolsonaro!” Mas eu acho que desde o cursinho, desde quando eu conheci o professor James, que ele me apresentou o coletivo preto da USP, eu comecei a me inteirar um pouco mais na militância, no ativismo e tal. Mas foi em 2016, a partir da morte da Luana Barbosa, do assassinato da Luana Barbosa, que eu me entreguei e me coloquei literalmente como uma ativa lésbica, como uma militante lésbica. Pensando na morte da Luana Barbosa. Luana Barbosa era uma mulher preta, lésbica, sapatona, mãe, de quebrada e ela foi assassinada pela policia, ela foi espancada, por ser mulher, ela foi espancada levantando a camisa, provando que era mulher, por três policiais na luz do dia, tipo, 5:00 da tarde. Aí foi a partir deste assassinato que eu me vi militante, me vi como militante. E aí quando eu entrei lá no_______, eu já era militante. Meu TCC é sobre Luana Barbosa, a minha pesquisa no mestrado é sobre lésbicas negras, então desde 2015, 16 eu tô neste corre aí.
P/1 – E como foi o começo da Coletiva? Eu sei que tem um coletivo, como foi a organização, o encontro com as outras mulheres?
R – Então, a organização da coletiva, nasce também a partir da morte da Luana Barbosa, nós éramos um grupo de trabalho dentro da caminhada de lésbicas e bissexuais de São Paulo, desde 2015. A caminhada é um coletivo majoritariamente branco e a gente tinha um grupo preto dentro dessa caminhada. E aí eu lembro que a gente estava numa reunião na Paulista, sei lá, no MASP se eu não me engano, a Luana já tinha sido espancada no dia 8 de abril, e aí era dia 13, a gente estava nessa reunião, e aí de repente veio a notícia, a Luana acabou de falecer no hospital. A gente não conhecia a Luana, a gente conhecia essa história a partir de uma notícia de jornal. Mas era como se a Luana fosse uma de nós, assim, era como se ela fosse minha amiga de infância. Eu acho que por conta das características dela ser muito parecidas com a minha e com de outras mulheres que estavam ali, preta, de quebrada, mãe, sapatona e tal. Eu acho que isso mexeu muito com a gente, a ponto da gente pensar, meu, a gente precisa se fortalecer, tá mais junto, fazer coisas que valorizem a memória da Luana, fazer coisas que acolham outras mulheres. Foi a partir deste luto que a gente começou a traçar a luta.
P/1 – Fernanda e como você começou a atuar com a atriz?
R – Desde pequena, como eu falei antes, meu sonho era ser atriz da Globo, então tudo que era cursinho de teatro que tinha na quebrada, eu me inscrevia. E aí, eu já tinha o Ryan, acho que o Ryan tinha uns 4 anos… Eu estava na universidade? Tava! Eu já tinha entrado na PUC. Surgiu um curso de teatro lá no céu Casa Blanca, que é Jardim São Luiz também, lá onde que eu moro, com a companhia Pequeno Teatro de Torneado, uma companhia grande e tal. Tá mais famosinha hoje em dia. E aí eu me inscrevi nesse curso e entrei nesse curso. E aí eu lembro que no curso o professor falava, assim: mas você já faz teatro? Eu falava: faço! “Você já fazia em algum lugar?” “Já!” Fiquei inventando história, para ele poder me chamar para poder entrar em algum teatro dele. E aí fui ali fazendo teatro, fazendo teatro, aí um belo dia, ele falou assim para mim, “olha, tem um papel da Rute, que a fulana vai deixar, porque a fulana tá grávida. Você quer assumir esse papel? Você consegue decorar texto rápido?” Falei: consigo! Imagina, não conseguia. E era tipo um mês para decorar as falas e tal. Menina, eu fui, fui tentando, fui tentando, fui tentando e não consegui. Eu acho que uma semana antes da gente estreiar com “Pétala e fúria”, eu consegui decorar as falas da Rute. Isso em 2015, eu acho! 15, 16, não sei! E desde lá eu nunca mais parei de fazer pequenas peças. Fiquei dois anos em cartaz com “Pétala e fúria”. E agora a gente tá em cartaz com, “Cavalos Pretos são imensos”, que discute a questão de encanceramento de mulheres que gostam de mulheres. A gente fez Centro Cultural de São Paulo, a gente fez RD e agora a gente está no SESC Taubaté.
P/1 – Tem alguma peça, ou um dia de apresentação que tenha sido marcante para você?
R – Eu acho que a estreia de Pétal e Fúria foi muito marcante para mim, porque foi no teatro Parlapatões, ali na rua Roosevelt e teatro pago, as pessoas geralmente não costumam ir, nunca é muito cheio. E nesse dia estava lotado o Parlapatões. Foi muito importante para mim me ver ali no palco e enfim, fazer tudo certinho e não errar e tal. Isso foi muito bom. E eu acho que também a estreia do Cavalo Pretos são imensos, pra mim também foi muito importante, porque Os cavalos pretos também conta a história da Luana Barbosa. E aí tá numa peça que discorre sobre Luana, para mim é muito importante.
P/1 – E quando você começa a se organizar com outras mulheres, era lá na zona sul, né, o coletivo?
R – De lésbicas?
P/1 – É.
R – Não!
P/1 – Não?
R – Não! Eu acho que a periferia ainda tem um déficit de… Apesar de estar caminhando em passos mais largos, sobre questões LGBT, eu acho que durante muito tempo LGBTs viveu o centro da cidade, não a periferia. Porque isso, a gente vive ali as questões de vulnerabilidade, mas as questões de gênero e sexualidade ainda é discutido em passos mais devagar, mais lento. Tem avançado, mas passos lentos. E aí a gente foi vivenciar primeiro o centro da cidade, todos são de periferia. Nós éramos nove, todas de periferias, mas era tudo feito no centro da cidade. Agora, depois de muito anos, a gente tem ocupado o Bloco do Beco, outros espaços na quebrada, para discutir questões de lésbicas, mas antes era mais difícil.
P/1 – Entendi! E eu queria perguntar para você sobre… isso é uma coisa que eu sabia já de muito tempo, mas eu queria saber como que foi e se você quer falar disso também, da Sarrada no Brejo?
R –
A Sarrada no Brejo é a menina dos meus olhos. Eu gosto muito da Sarrada, ela foi criada e essa história é muito legal… A Sarrada no Brejo, ela foi criada um pouco antes da Coletiva, nós éramos os gts lá da caminhada de lesbicas e bissexual e todo ano a caminhada faz uma festa para arrecadar dinheiro, para poder sair com a caminhada na rua. E esse ano não foi diferente, se eu não me engano foi 2015, que a sarrada foi criada. E aí estávamos lá, vamos fazer uma festa, vamos fazer uma festa para poder arrecadar dinheiro, qual o nome da festa? Qual o nome da festa? Aí alguém falou: tem que ter o nome Brejo, porque nós é sapatono, a maioria é sapatona e não sei o quê. Vai ter o nome Brejo. Mas só Brejo? Vai ter que ter alguma coisa além de Brejo. E aí a Ane, que era uma pessoa que fazia parte da nossa coletiva, ela falou, assim: olha, a onda do momento nas quebrada tudo é a Sarrada, Sarrada no Ar. Que é a dança. “A onda do momento! E tem que ter alguma coisa a ver com isso!” E aí ficou pronto, Sarrada no Brejo. Tá! E aí a primeira festa aconteceu aqui na Vila Madalena, numa balada que é subindo a rua do cemitério, eu não lembro mais o nome. Eu sei que a gente divulgou essa festa, mulher! No dia, a fila dobrava o quarteirão assim. Olha, se eu tiver mentindo, que aconteça qualquer coisa comigo. Eu acho que tinha umas mil pessoas na fila, mulheres. Mil mulheres na fila. Era 8:00 da noite, a fila só crescendo, crescendo, crescendo. A casa ia abrir as 22h, então o pessoal chegou para o esquenta. E estava um dia muito ensolarado, o dia fez muito sol, a noite estava muito quente, muito quente. E a gente lá na expectativa, com a fila grande, vai ser massa! Vai ser da hora! E não sei o quê e piriri, pororó. Daqui a pouco, quando deu 22 horas, a gente abriu a casa. Abrimos a casa, as primeiras 50 pessoas foram entrando. Menina, quando a gente pensa que não, caiu uma chuva, que o mundo parecia que ia acabar. A chuva caiu. E a chuva começou a cair, a gente, “vamos gente entrando para dentro e tal.” Daqui a pouco o teto da casa de show caiu! O teto caiu! A nossa sorte é que tinha, tipo, sei lá, 60 pessoas dentro da casa e a parte que o teto caiu, naquele momento não tinha ninguém, que era tipo um camarote. E aí naquele momento não tinha ninguém. Mas aí teto caiu, a casa começou a alagar, a casa começou a alagar, a água veio, tipo, sei lá, na minha canela. E a gente não sabia o que fazer, tipo chorando, chorando horrores. Mil pessoas na fila para entrar, a intenção sempre foi arrecadar uma grana para poder, tipo, não só sair com a caminhada na rua, mas também contribuir com outras mulheres que mandavam mensagem pra gente dizendo, tipo, “olha, eu não tenho como pagar meu aluguel hoje, eu não tem como comer, me ajuda, por favor!” E aí nesse dia a casa encheu de água, o teto caiu, foi desesperador. Mas sapatão é uma coisa, fia, que só existe assim, para poder trazer alegria pra gente e felicidade. As mulheres não desistiram de curtir a night. E aí tinha um posto desativado perto ali da balada, todo mundo foi para esse posto desativado, pegou um pandeiro, uma alfaia e ficou ali tocando coco, samba, dançando até 5 horas da manhã. E foi assim que nasceu a Sarrada no Brejo. E aí depois ela foi vindo, se desvinculou da caminhada, porque a gente teve um racha também. Se desvinculou da caminhada. E aí ela foi surgindo assim com a Coletiva, nessa perspectiva de levantar uma grana, para poder custear algumas coisas de umas mulheres que não tinham… de umas mulheres que inclusive como eu, não tinha condições de se sustentar, que faltava comida, faltava pagar conta de água, entre outras coisas. Durante muito tempo a sarrada foi fonte de renda de diversas mulheres. E tem uma coisa importante também, a única festa de São Paulo que tem uma creche, é a Sarrada no Brejo. A gente fazia creche, de madrugada, geralmente próximo da festa, tipo, sei lá, se fosse aqui a festa, na rua ali na esquina, a gente arrumava alguém que morava ali, que cedia o apartamento, ou a casa, para a gente poder fazer essa creche, para as mulheres que são mães curtirem a festa numa boa, enquanto seus filhos eram bem cuidados em outro lugar. E é por isso que eu falo que é a menina dos meus olhos, eu gosto muito!
P/2 – Eu queria perguntar, voltar a parte da atriz. Você como atriz já sofreu lesbofobia, gordofobia?
R – Eu acho que lesbofobia não, porque esses dois grupos de teatro que eu me vinculei durante esse tempo, são grupos LGBTs, esse de agora, do Cavalos Pretos são Imensos, a maioria das mulheres são lésbicas e bissexuais. Aliás, todas são lésbicas é bissexuais, não tem nenhuma hétero. Então lesbofobia, não, mas gordofobia, sim! Gordofobia, sim! Eu desafio bastante o meu corpo e eu acho que as pessoas veem um corpo gordo limitado. Tipo, você não pode correr, você não pode cantar e dançar, você não pode fazer isso. E aí eu tenho que estar o tempo todo provando que eu posso, que eu consigo fazer tal coisa, independente do meu corpo. Gordofobia muito mais. Lesbofobianós eu acho que eu não tenho memória não, mas gordofobia, sim!
P/1 – Eu queria saber… você falou que teve um racha, mas eu queria saber se você ainda participa da Caminhada Lesbi ou como foi sua participação?
R – Participo porque eu não tenho vergonha na minha cara. As minhas companheiras de coletivo elas constroem mais distantemente. Eu participo, porque eu gosto muito da vida política de lésbica e bissexuais. E eu me recuso a abrir mão de espaços que é destinados a mulheres, só porque as pessoas são majoritariamente brancas. Eu disputou espaço mesmo, eu acho que a caminhada é um movimento importante na cidade. Eu, sei lá, o meu filho tem 13 anos, há 12 anos eu me vejo como uma pessoa lésbica e eu fui numa única única parada gay em São Paulo, não vou no domingo na parada gay! Me recuso! Eu acho que é importante para algumas pessoas, mas ao mesmo tempo eu fico pensando que é um carnaval a céu aberto, que não discute política de proteção nem nada. E a caminhada é um outro movimento, a gente discute visibilidade, existência, participação política, trabalho, entre outras coisas. Não é que nem a parada gay. Então, ainda sou da caminhada, várias tretas, várias confusões, brigo mesmo, discuto mesmo. Este ano eu estava no mude, vou ser aconselhadora, vou equilibrar aqui as relações. Mas eu ainda sou da caminhada. É muito difícil, eu sempre falo que é muito difícil a gente construir politicamente com pessoas brancas. E a gente não fala de qualquer pessoa branca, eu acho que tem a galera branca de quebrada, que é o branco de quebrada que tem a mesma vivência que nós, talvez não racial, mas de classe, então é outra coisa. E tem os brancos da ponte para lá, que é boa parte dessa galera da caminhada. Da ponte pra lá. A vivência lesbica de uma mulher
branca, não é mesma vivência lesbica de uma mulher preta. A vivência bissexual ou trans de uma mulher branca, não é a mesma de uma pessoa preta. E aí eu acho que as pessoas ainda tem muita dificuldade de entender quais que são seus papéis e seus lugares de privilégio mesmo, no mundo e no direito à cidade. Então pensando neste lugar de direito a cidade, eu não abro mão de construir a Caminhada Biolesbica, dos bisexuais de São Paulo.
P/1 – E como foi o início quando você entrou na caminhada?
R – Foi um choque! Foi um choque! Porque quando eu entrei na caminhada, foi em 2015. E aí essas minha branca, assim e tal. E aí eu não to falando mal não, eu to falando mesmo do lugar de branquitude. Elas estavam tentando discutir periferia. E aí a gente entra, sendo da periferia, vendo essas pessoas que não era da periferia, tentando construir, ou discutir periferia. Foi muito engraçado, porque o racismo, ele é muito sutil às vezes. E quando você, tipo, sei lá, tem gente que é racista num lugar assim, que acha que a gente é intocável, que não pode dizer nada para gente, que a gente não… sei lá, “não vamos fazer a reunião em tal lugar porque a pessoa não tem dinheiro de condução para chegar. Aí, não vamos falar isso para tal pessoa, porque a pessoa é preta e ela pode se sentir ofendida. Ah…” Sabe? Tipo, não pergunta, não trata a gente como gente, como relações comuns. E aí eu acho que no começo da caminhada pra mim, foi muito chocante isso, não ser tratada como uma pessoa. Tem até a minha professora Marta, ela trabalha com história oral, e ela fala: e a gente é pessoa? E aí eu me sentia assim, sabe, no começo. A gente é pessoa? Mas aí depois eu fui dizendo para elas, “eu sou pessoa!” E aí eu vou discutir com você a altura, fia! Me trate como uma pessoa! Fui introduzindo assim…
Não eu, mas com outras mulheres lésbicas, pretas e bissexuais pretas, ocupando nossos lugares nesse lugar da caminhada. Algumas pessoas desistiram e saíram fora, por conta de questões de raça e de classe também. Eu e uma meia dúzia estamos lá ainda, brigando.
P/1 – E como começou a sua atuação aqui no Museu da Pessoa, como foi esse encontro?
R – Menina, foi uma coisa, assim, bem aleatória. A Ane mandou em algum lugar, não lembro, um curso de formação para formadores, eu acho. Não lembro! Em história oral. Acho que foi a Ane que mandou! Ela não mandou direto pra mim, mandou no grupo que a gente tem lá, de mulheres feministas da Zona Sul. Eu me inscrevi, porque eu tinha lido que o Museu da Pessoa trabalhava com história oral. E a minha metodologia de trabalho na universidade é com história oral. Eu falei: ah, vou fazer esse curso aí! E aí eu fiz o curso, e aí foi isso! Passou um tempão, assim, um tempão, a Sônia me mandou um e-mail, dizendo: oi Fernanda, tudo bom? Você fez o curso com nós… Eu acho que eu fiz os dois cursos. “Você fez um curso com a gente, não sei o quê, não sei o que… Você tem interesse de participar de um projeto tal?” Na época eu estava toda enrolada, com vários trabalhos. Eu falei: tenho! Vamos lá! Tipo, não dá para dispensar trabalho assim. “Eu tenho!” E aí foi isso, através de um curso que a Ane mandou para fazer, aí a Sonia depois chamou eu e a Stephanie, não lembro da Stephanie no curso. E aí a gente foi tocando o curso de História Digital com adolescentes. Meu, a gente começou na pandemia, foi uma loucura! Que bagulho louco! Complicadíssimo! Eu ainda tinha muita dificuldade de trabalhar online. Eu já trabalhava com formação, minha companheira ela tem uma empresa que chama Radiação, formações e assessoria, a gente trabalha junto, às vezes. Mas nunca online, nunca a distância. E aí, tipo, estava dando formação de história digital para alunos de 15 anos, lá em Criciúma. Numa sala com 20 pessoas, tipo, foi assim, muito difícil, mas aconteceu. E aí depois de Criciúma, começou a voltar as coisas presenciais. E aí a gente pegou a primeira presencial na ETEC ali em Santana e foi muito legal fazer a formação de história digital, com jovens e adultos também, que na ETEC tinha adultos. Presencial foi um diferencial, eu adorei. E aí agora teve a última, esse semestre que passou, que foi na ETEC Albert Einsten, também presencial. Polêmico demais foi a formação, porque, sei lá, jovens acabando de acabar a pandemia, presencial, jovens discutindo gênero, discutindo questão de raça, discutindo, meu, essa escola que é boa ou não é, misturado com histórias digitais, histórias de vida. Foi assim, uma loucura. Mas foi maravilhoso!
P/1 – Tem alguma história que tenha sido marcante?
R – Ah tem! Essa última formação na ETEC Albertine Einsten, todas as histórias foram muito marcantes, a ponto da professora dizer, “não quero que essas histórias vá para o ar.” Porque os alunos eles estavam com uma necessidade de falar, e aí a partir do ciclo de Histórias de Vida, eles trouxeram questões de violência dentro da família, questões LGBTs, pessoas contando suas histórias no vídeo, saindo do armário, dizendo: mãe eu sou gay. Sabe? Foi muito louco. Mas tem uma história em particular de uma menina, não sei se eu posso falar o nome? De uma menina de 16 anos, que contou a história da violência doméstica que a mãe sofria e do rompimento que ela teve que ter com o pai, que ela amava muito. Porque ele era o cara que violentava a mãe. E aí todo dia ela trazia um fragmento diferente, para os nossos encontros. Eu acho que nem sempre a gente consegue separar o pessoal do profissional, eu acho que com essa pessoa eu não consegui, eu me senti muito tocada com a história dela, muito tocada mesmo. A gente tinha um grupo no WhatsApp, então às vezes ela me chamava no particular para poder contar algumas histórias também, tipo, fora do lance do Museu. E eu acho que essa história mexeu muito comigo. Teve várias histórias e muitas histórias de violência. E aí os alunos queriam dizer, queriam contar sua história e a professora deu uma barrada, falou: não! Não vai, não vai sair no museu essas história, porque são histórias complicadas, vocês estão expondo demais a vida de vocês e não sei o que, não sei o que lá. Teve uma confusãozinha ali, uma confusãozona na verdade. Porque eu dizia para ela que era história deles. Por que que eu tinha que dizer a eles quais histórias contar? Se a história de vida é livre. “Minha história de vida!” E aí teve uma confusãozinha. Eu tive um atrito com a professora por conta disso. Eu falei para ela, “olha, eu entendo o que você tá dizendo, mas ainda assim eu entendo a necessidade deles falarem.” E aí no outro grupo, na multiplicação, teve uma outra metodologia para não ter tanta exposição nas histórias de vida. A metodologia foi: traga um objeto seu que você goste e conte a história sobre esse objeto. Ah, saco! Gostava mais da outra.
P/1 – E como foi esse ingresso na pós-graduação? O que te motivou?
R – Eu acho que o que me motivou ir para a pós graduação, foi a possibilidade de dar continuidade a uma pesquisa que eu já tinha há muitos anos, que é sobre lésbicas e Luana Barbosa, desde do TCC e eu queria que isso tivesse continuidade. Mas a minha companheira, a Ale, é muito estudiosa, ela é muito nerd, ela é muito nerd, tipo, muito nerd. E aí ela gosta muito de ler, gosta muito de estudar, ela saíu do mestrado, tipo, ela estava no mestrado, antes de terminar o mestrado, tipo, no dia que ela defendeu, dois dias antes teve a notícia que ela passou no doutorado. Então, tipo, muito assim, seguido uma da outra. Então ela vai incentivando muita a gente lá de casa. Ela foi um grande incentivo, mas eu acho que essa minha necessidade de pensar lésbidades pretas e infelizmente uma pesquisa sem um apoio acadêmico, ela não é muito valorizada no Brasil. Então eu fiquei pensando nessa valorização mesmo da pesquisa de lésbicas. Que existe, eu não sou pioneira nisso, mas que ainda assim, na minha percepção muito reduzida. Sobretudo de lésbicas negras. Então a ideia foi, tipo, sei lá, meio que dar continuidade a pesquisa de lesbianidades negras.
P/1 – E como você conheceu a sua companheira? Você quer contar?
R – Sim! Ela é da zona sul também. A zona sul é um território muito potente de mulheres, de mulheres feministas sobretudo. E aí ela era de um grupo chamado Periferia… Ela é de um grupo chamado “Periferia segue sangrando”. De um grupo o qual eu também faço parte, agora, lá do Jardim São Luís. E aí no 8 de março de 2015, eu a vi num ato que a gente fez junto, na frente do terminal Jardim
ngela. Eu lembro que ela tinha um cabelo vermelho, agora não é mais. Mas tinha o cabelo vermelho, estava com uma blusa preta e uma saia de onça e umas unhas enormes. E pode ver que as minhas unhas elas são curtas, porque eu sou lésbica. E aí eu falei: hum, que mulher bonita! Mas nossa, que unhas grandes. Fiquei pensando. Mas fiquei muito pensando, assim, que mulher bonita e que unha grande. E passou. Ela namorava, eu também namorava na época e tal. Passou. E aí a gente foi fazendo coisa juntas, ali no “Periferia segue sangrando”, na zona sul, indo para os mesmo lugares, mesmos bares. Até que um dia rolou uns beijinhos. E aí a gente tá casadas já a 5 anos.
P/1 – E como é a família de vocês hoje em dia? O Ryan tá junto com vocês? Como que é?
R – Nós somos quatro, lá em casa. Eu a Ale, a Júlia. A Júlia tem 18 anos, ela é sobrinha da Ale. E aí quando a mãe da Ale faleceu, a Júlia morava com a mãe da Ale, ela veio morar com a gente. Ou seja, eu tenho 2 adolescentes, a Júlia de 18, que dá menos trabalho e o Ryan de 13, só Deus para ter misericórdia da minha vida. Mas a gente vive bem, nós somos uma família que vive bem. Nós nos damos bem, a gente se ama. O Ryan e a Júlia são parceiros, cúmplices, inclusive. Logo tem um atrito ou outro, isso é comum em todas as famílias, de irmãos e tal. Eles não se chamam de irmãos, não. A Júlia também não me chama de mãe, o Ryan também não chama a Ale de mãe, cada um sabe o seu lugar na família. O Ryan sabe que a Ale é madrasta dele e que ela tem também cuidados e responsabilidades sobre ele. A Ale divide comigo a maternidade integralmente, integralmente, tanto na parte financeira, como na parte pessoal e emocional, questões de saúde. A gente se divide Inclusive a partir das dificuldades, tipo, sei lá, eu não suporto levar o Ryan no hospital, no médico, porque ele chora e eu choro também. Então ela é mais forte, ela leva. Na escola, na reunião, sou eu que vou. Então a gente tem divisão integral do Ryan. A Júlia já tá mais adulta, tem 18 anos, tem coisas que ela toca sozinha, mas a gente também dá uma força pra Júlia ainda. A Júlia tá fazendo moda no Senac, que ela é da moda. A Ale da educação. E o Ryan tá no ensino fundamental ainda.
P/1 – E o seu trabalho atual, como é? Você quer falar um pouco dele?
R – Bom, eu trabalho num serviço chamado SEAS, que é um serviço especializado da assistencia social, que atende pessoas em situação de rua e criança e adolescente que pratica o trabalho infantil, que tá em situação de trabalho infantil. Sou coordenadora do serviço, nós somos uma equipe de 15 pessoas, se eu não me engano. 8 orientadores, uma assistente social, uma psicóloga e eu na coordenação, mas duas administrativas. A gente trabalha literalmente na rua, atendendo pessoas na rua, abordando pessoas que estão em situação de rua para poder pensar este movimento de deixar as ruas, de como que você fortalece esses vínculos familiares, para a pessoa deixar de estar nas ruas, ou até mesmo de encaminhar para centro de acolhida, para CAE, para SEA. E as crianças que estão em trabalho infantil, a gente vem dialogando bastante com as famílias, a gente faz atividades sócioeducativas com as crianças, passeios, entre outra coisas. Eu tô um ano nesse serviço, saí do NPJ, e aí entrei nesse serviço para ser coordenadora. É um serviço que me traz muitos desafios, porque é de domingo a domingo, das 8 às 10:00 da noite, então se você é a coordenadora você tem que estar disponível no telefone o tempo todo. Eu saio do trabalho, tipo, sei lá, às 18:00 e eu sempre respondo mensagem, sempre tem alguma coisa pra mim fazer. Mas eu gosto! Eu gosto da minha profissão, eu gosto desse serviço. Eu sou completamente crítica ao estado, acho que o estado é falha, a prefeitura de São Paulo está falida, o prefeito não presta, o secretário pior ainda. Mas existem profissionais na ponta que trabalham diretamente com essa população, que faz a diferença. Infelizmente eu trabalho para o Estado, mesmo não concordando com isso, eles que pagam o meu salário. Mas eu procuro fazer um serviço diferenciado na quebrada, porque a ideia desse serviço, se você for pensar nele de maneira governamental, é você expulsar essa população de rua dos territórios, para os moradores de bem não tá vendo essa galera, que tem questões também com saúde e tal. E aí a minha ideia, completamente diferente da prefeitura e que essas pessoas são desse território, tem família aqui, tem mãe, tem filho, ou mesmo se não tiver ninguém, ainda assim são desse território. Como que eu faço para poder inserir eles novamente, com dignidade, nesse território, sem ter que expulsá-los daqui. Como eu faço para poder convencer uma família de que seu filho estando em serviço infantil no farol é um serviço de risco, ele pode ser atropelado, ele pode ser abusado sexualmente por adultos, várias coisas podem acontecer. Mas ao mesmo tempo, ele também leva o sustento para casa, de uma casa que não tem comida. Como que eu vou convencer essa mãe? Dizer: não deixe seu filho sair para rua para o trabalho infantil, se não tem comida no prato dela? E aí a gente tem que fazer outras outras coisas por trás, porque a prefeitura não dá conta, não quer dar conta, porque dinheiro a gente deve ter em algum lugar.
P/1 – E é lá na Zona Sul?
R – Zona Sul, Jardim São Luís e
ngela, fica a 15 minutos da minha casa o meu serviço, dá pra ir… andando, eu não vou, que eu tenho preguiça, mas de ônibus é rapidinho, de carro é rapidinho, muito rapidinho.
P/1 – E o que você faz no seu dia a dia? Como é o seu dia a dia?
R – Minha rotina? Olha, eu acordo às 6:30 da manhã, porque o Ryan já acorda sozinho para ir para escola, mas ele sempre esquece de tomar o remédio, ele não gosta, então eu acordo 6:30 para poder dá o remédio para ele. Ele toma um remédio lá do TDH, então tem que dar. Acordo 6:30, dou uma enrolada na cama às vezes, às oito, ou nove, depende do dia, eu entro no trabalho e não tem hora para sair, mas geralmente é às 18 horas. Entro no trabalho, no trabalho eu resolvo questões financeiras, prestações de contas, treta na equipe, várias coisas. Faço box na segunda, lá no Jardim São Luiz também, comecei faz pouco tempo. Dependendo do dia, eu tenho ensaio do teatro, da peça Cavalo Preto São Imensos. De sexta-feira tem oficina de percussão no Bloco do Beco, eu toco na bateria do Bloco do Beco faz alguns anos, então vez ou outra eu tô lá no ensaio. No demais eu vou para casa, faço comida e viro a pessoa doméstica, junto com a Ale, porque é isso! Essa rotina de casa, trabalho e algumas coisas de lazer. Eu faço uma disciplina também de sexta na PUC e na USP eu não faço mais disciplina e estou prestes a defender o meu mestrado. E é isso! E às vezes, quando os projetos estão aí, de segunda eu me disponibilizo para o Museu.
P/1 – Eu queria saber se tem alguma história marcante da Coletiva ou da Caminhada que você queira contar? Ou até da sarrada?
R – Uma história marcante da Coletiva? Meu, eu acho que uma história marcante da Coletiva. Em 2019, as audiências de instrução do caso Luana Barbosa começaram a acontecer lá em Ribeirão Preto. E a gente tem contato direto com a família e com o advogado e o advogado dizia, assim: olha, eu acho que é importante o movimento social participar das audiências, nem que seja na porta. Porque é uma pressão popular e a juíza entende isso como, preciso fazer alguma coisa. Então a gente fazia vaquinha e fretava ônibus para sair daqui até Ribeirão Preto, para poder participar dessas audiências. Só que teve uma situação… Foi em 2019? Não lembro qual ano. Teve uma situação, que não teve como fretar o ônibus e foi só quatro pessoas, foi eu, a Alice, a advogado Dina Alves e uma outra pessoa que eu não me lembro qual que era. E eu lembro que o lance da morte da Marielle tinha estourado e a gente estava com muito medo, estava muito triste, pensando em diversas coisas. E aí eu lembro que a gente foi pra audiência, assistimos a audiência e aí saímos da audiência. Nesse dia, quem levou o movimento foram os policiais, eles levaram, tipo, mano, mais de 30 policiais pra frente do fórum, tinha muita gente, muita gente. E a gente ficou super cabreira, um monte de policial, a gente aqui, super perigoso. Ribeirão Preto é uma cidade de coronéis, de policiais, é muito perigoso Ribeirão Preto, para população civil mesmo. E aí a gente ficou bem preocupada em sair do fórum. Chamamos o Uber, saímos do fórum, no carro, quando estava chegando perto da rodoviária, uma moto veio com tudo na lateral do nosso carro e começou a bater no vidro. E nesse momento, eu até me arrepio. Neste momento a gente pensou, mano, fudeu, vai acontecer alguma coisa, foi desesperador. E aí o cara começou a bater no vidro, começou a bater no vidro e a gente não queria abrir, com medo sei lá. E aí ele colocou a mão aqui, porque ele ia pegar alguma coisa, acho que era o celular. E aí nessa hora, tipo, eu falei: mano, já era, a gente vai morrer aqui agora. E aí ele falou: abre o vidro. Aí o cara foi, o motorista abriu. A gente falando pra ele não abrir, o motorista abriu o vidro, ele falou: meu, a porta tá aberta, vocês vão cair. Não era nada! A porta estava aberta, a gente ia cair. Mas a pressão era tão grande, desse lance de fórum, de polícia, de morte da Luana, assassinato da Marielle, sabe? Que a gente ficou com medo mesmo de existir naquele lugar e ser assassinada por estar reivindicando justiça pro caso Luana Barbosa. Acho que foi um momento bem marcante, que a gente chorou depois. Tipo, sabe, estamos nos sentindo perseguidas entre outras coisas e tal.
P/1 – A gente já tá indo para as perguntas finais. A primeira delas é uma pergunta que eu tô fazendo para todo mundo, por conta dessa questão das migrações também, aqui dentro de São Paulo, de pessoas que vem para cá para se assumir, para sair do armário. E você ficou na quebrada o tempo todo, não saiu do Jardim Rebouças, do Jardim São Luiz, sempre teve na zona sul. Queria saber se você considera São Paulo e principalmente a zona sul, acolhedora para pessoas LGBT?
R – É não, flor! Não é! Nem a zona sul, nem São Paulo, nem nada. Eu fiquei morando na zona sul, mas a minha lesbinidade vivia no centro, né! Sinceramente eu não sei nem se eu pego na mão da minha mulher na quebrada. A Alessandra ela é mais despojado, ela é mais livre do que eu, ela não tem problema de ser bissexual, não tem problema de estar casada com uma mulher. Eu também não tenho, mas eu tenho medos que ela não tem. Não sei se ela não tem, mas que ela, tipo, não quer viver. Então eu não acho que é tranquilo não, ser uma pessoa LGBT, nem na zona sul, nem em São Paulo, nem em lugar nenhum. E a questão do território periférico é, eu vou viver a minha lesbinidade no centro, porque lá ninguém me conhece. A questão do bairro é, tem a minha vó, tem
o meu irmão, tem os meus tios, eu não quero que eles passem vergonha. Isso o pensamento lá atrás, tá! Eu não sou uma vergonha. Mas naquele momento, quando eu me descobri, eu fiquei pensando muito isso. Tipo, vou viver isso em outro lugar, na Paulista, porque por mais que a pessoa leva uma lâmpada na cabeça, ainda assim ela anda de mão dada lá, ela beija na boca lá. Na minha quebrada eu não me sinto segura, isso há muitos anos atrás. Hoje eu vivencio a quebrada como uma pessoa lésbica, casada, normal, vou no baile com a minh companheira, vou no samba, vou na Adega do Baguinho, para qualquer lugar com ela, sem problemas. Mas ainda assim, às vezes, eu me sinto insegura. Tipo, se eu vou no shopping, eu não fico beijando na boca dela na escada rolante, entendeu? Tipo, eu ando de mão dada porque a Alessandra faz questão, ela pega na minha mão, tipo, “a gente vai existir, a gente vai viver!” Mas eu não acho que é um espaço seguro não.
P/1 – E o que é importante para você hoje?
R –
Pra mim hoje? Olha, eu acho que para mim hoje, o mais importante para mim, já aconteceu, que é construir uma família, uma família de lésbicas, a partir da lesbinidade, é ter o que comer, é ter onde morar, é poder oferecer para as minhas crianças e adolescentes, o que eu não tive, que é cuidado. E não tive porque a minha mãe não queria dar. Não tive porque não tinha tempo. Que é cuidado, que é lazer, que é amor, que é viver uma vida tranquila. E eu não tô dizendo, tipo, não tem problemas. A gente não tem nem casa, a gente mora de aluguel, tem um monte de problemas. Mas as minhas crianças de casa vivem com tranquilidade e pra mim minha família ter tranquilidade para viver e existir, é o que eu mais quero.
P/1 – E quais são os seus sonhos hoje?
R – Eu continuo querendo ser atriz da Globo. É verdade isso!
Acho que eu continuo… eu quero, meu sonho é tocar a minha carreira de atriz mesmo, porque eu gosto muito de ser assistente social, mas trabalhar com desgraça, às vezes, cansa a gente. Eu quero ter uma carreira acadêmica também. E eu quero que a Júlia e o Ryan, realizem todos os sonhos da vida deles.
P/1 – E qual legado você deixa para o futuro?
R – Legado que eu deixo para o futuro? Eu fico pensando a partir da minha pesquisa de mestrado, acho que esse é o legado que eu quero deixar, pensar sobre lesbinidades negras possiveis, pensar lesbinidades a partir do afeto. É esse o legado que eu quero deixar. Porque, nós da Coletiva e Sarrada no Brejo, a gente tem uma atividade que chama Brejo da Madrugada. E o Brejo da Madrugada fala muito sobre amor e cuidado, uma com a outra. E eu quero muito, muito que as mulheres pretas se amem. Para existir, a gente tem que se amar. Acho que esse é o legado. Não que eu me ame, mas estamos no processo.
P/1 – Como é o Brejo da Madrugada?
R – Ele acontece uma vez no ano, porque é muito difícil, tem que ter dinheiro para comprar comida, várias coisas. No Bloco do Beco geralmente, lá na no São Luiz. E a gente passa a madrugada se cuidando, tem escalda pés, tem roda de conversa, tem massagem, tem comida, tem música. É um espaço que a gente não vai falar das nossas… aliás, vai colocar as nossas dores, mas a partir de uma outra perspectiva, a do cuidado.
P/1 – Você contou… você estava falando do escalda pés, eu lembrei disso, você falou que você é do Candomblé. Aí eu queria saber se a religião sempre teve presente na sua vida, ou que momento você encontrou?
R – A religião sempre teve presente, toda vida. O meu avô paterno era pai santo, meu tio também. A casa em que minha avó e meu avô moravam, foi um terreiro, então sempre esteve presente. Mas como eu fui criada pela minha família materna, a minha mãe era mais da Umbanda, então tinha essas duas coisas, tinha o Candomblé, tinha a Umbanda e também tinha a parte católica, porque eu também sou crismada, fiz primeira comunhão, tudo bonitinho. Então sempre esteve presente. Mas faz sete anos que eu me iniciei no Candomblé. Mas nunca foi um tabu pra mim, nem na minha casa, sempre achei muito maravilhoso, muito encantador. Eu acho que a minha família deixou a gente crescer para poder escolher, tipo, vai fazer santo, não vai fazer santo. E é isso! Hoje eu sou de uma casa que fica no Embu das Artes, chamado Ile Axe Bonim, nasci no Ile____, em Guaianazes, agora eu tô lá no Embu das Artes. Tenho mãe de santo que a Cláudia de Oiâ e pai de santo que a Adriano ______. E eu acho que era tudo que eu precisava na vida, mãe e pai, porque foi o que eu perdi, mãe e pai. E eu fui fazer santo depois que a minha mãe morreu.
P/1 – A gente tá chegando ao fim, eu só tenho mais 2 perguntas. Eu queria saber se você quer contar alguma história que eu não perguntei, ou deixar alguma mensagem? Esse momento é bem livre.
R – Meu, eu acho… eu não sei se eu quero contar uma história, mas a mensagem que eu quero deixar, é: eu acho que hoje em dia, porque ser LGBT, não é tudo tão maravilhoso______ Esses corpos dissidentes, eles também tem muitos atritos entre eles. Existe uma disputa LGBT, de narrativas LGBTs na cidade de São Paulo, no Brasil e no mundo, muito grande. E eu quero deixar o recado que as disputas são importante. Eu não preciso concordar com você, concordar com uma pessoa gay, com uma pessoa trans, com uma pessoa bissexual, para respeitar a resistência dela. Eu acho que a gente vai descordar por muitas vezes e o importante que a gente tem que pensar é respeitar as narrativas e as existências das pessoas, eu acho que a gente vem perdendo isso, por conta dessa disputa, quem sofre mais? Quem é que mais sofre no mundo? As mulheres, os homens, as pessoas LGBTs, as pessoas negras, as pessoas indígenas, quem é que mais sofre no mundo? Eu acho que o tempo que a gente perde pensando em quem sofre mais, a gente poderia estar lutando, discutindo outras coisas, como é que a gente controi a luta juntos. Por isso que eu falo que eu não abro mão da caminhada, porque ainda que elas sejam racistas, boa parte delas, eu acho que é possível construir a luta junto, porque elas também são lésbica, então tem coisas em comuns comigo, do mesmo jeito que outras pessoas. Durante muito tempo eu odiei vários homens, mas eu tenho um filho homem. Eu nasci de um homem, meu pai me fez lá com a minha mãe. E o meu sonho era conhecer ele na vida adulta. Eu tenho dois irmãos homens. Meu irmão, o mais novo, ele quase morreu da pandemia, ele ficou 30 dias entubado e eu jurava que ele ia morrer. E ele lá com o olho fechado, quando eu tive oportunidade de ver ele, eu disse: eu te amo tanto que você nem sabe. E aí a gente fica nessa disputa e a gente esquece de amar as pessoas. E aí fico pensando nisso, a gente pode ter disputa de narrativas, mas a gente tem que pensar que a vida do outro também importa. Acho que é isso!
P/1 – Como foi contar a sua história hoje para o Museu da Pessoa?
R – Olha, pensando que eu também trabalho com história oral, que eu entrevisto as meninas da Coletiva no centro, eu acho que cada vez que eu conto a minha história, eu conto de um jeito. E não que tenha mentiras no meio disso. Mas eu acho que é muito legal contar história de vida várias vezes, porque cada dia você tem um olhar para si mesmo. E aí eu fiquei pensando que hoje eu tive um olhar diferente para mim e foi mais generoso.
P/1 – Em nome do Museu da Pessoa a gente agradece a sua entrevista, em meu nome também, em nome do Alisson, a gente agradece muito, Fernanda. Obrigada!
R – Obrigada! Adorei gente!
[Fim da Entrevista]Recolher