Conte Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Carolina Iara Ramos de Oliveira
Entrevistada por Bruna Oliveira
São Paulo, 26 de setembro de 2023.
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1417
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:23) P/1 - Carol, pra começar eu queria que você me dissesse, o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Bem, eu sou a Carolina Iara Ramos de Oliveira, nasci no dia 31 de dezembro de 1992. Sou natural aqui de São Paulo, no bairro da Vila Matilde.
(0:45) P/1 - E qual é a sua primeira lembrança da infância?
R - Primeira lembrança da infância? Eu cresci numa casa em Itaquera, que tinha… Tinha plantações, tinha um terreno, um quintal com árvores, enfim.
Minha primeira lembrança, quando vem… [Sou] eu pequena, subindo em pé de amora, para pegar amora, e a minha avó - Dona Altina é o nome dela - ela indo lá atrás de mim, gritando assim: “Vamos comer, vamos almoçar. Sai de cima da árvore.” Ela, com avental de cozinha, uma senhora negra de pele clara.
Outro fragmento é a imagem da minha mãe chegando do trabalho e eu brincando com as minhas coisas. Sempre fui bagunceira, espalhava muita coisa e quando ela estava perto de chegar, eu pegava os brinquedos, escondia, pra ela achar que tava tudo arrumado, que não tinha...
Essas são lembranças bem primárias. Quando fala de infância, vem essas cenas na cabeça.
(2:17) P/1 - E você quer contar o nome da sua mãe, do seu pai?
R - Sim, minha mãe é a Giza - Maria da Giza, mas todo mundo chama ela de Giza. Meu pai não me criou, então sou filha de mãe solo. A partir dos sete anos de idade comecei a ter um padrasto, que é o Rodolfo, que eu tenho relações até hoje, mas eu tenho essa consciência que minha mãe foi mãe solo durante sete anos.
Bem, a figura paterna foi uma coisa que eu tive que resolver em terapia depois. Não é uma coisa muito boa a minha memória, mas a figura, digamos, da minha mãe e a...
Continuar leituraConte Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Carolina Iara Ramos de Oliveira
Entrevistada por Bruna Oliveira
São Paulo, 26 de setembro de 2023.
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1417
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:23) P/1 - Carol, pra começar eu queria que você me dissesse, o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Bem, eu sou a Carolina Iara Ramos de Oliveira, nasci no dia 31 de dezembro de 1992. Sou natural aqui de São Paulo, no bairro da Vila Matilde.
(0:45) P/1 - E qual é a sua primeira lembrança da infância?
R - Primeira lembrança da infância? Eu cresci numa casa em Itaquera, que tinha… Tinha plantações, tinha um terreno, um quintal com árvores, enfim.
Minha primeira lembrança, quando vem… [Sou] eu pequena, subindo em pé de amora, para pegar amora, e a minha avó - Dona Altina é o nome dela - ela indo lá atrás de mim, gritando assim: “Vamos comer, vamos almoçar. Sai de cima da árvore.” Ela, com avental de cozinha, uma senhora negra de pele clara.
Outro fragmento é a imagem da minha mãe chegando do trabalho e eu brincando com as minhas coisas. Sempre fui bagunceira, espalhava muita coisa e quando ela estava perto de chegar, eu pegava os brinquedos, escondia, pra ela achar que tava tudo arrumado, que não tinha...
Essas são lembranças bem primárias. Quando fala de infância, vem essas cenas na cabeça.
(2:17) P/1 - E você quer contar o nome da sua mãe, do seu pai?
R - Sim, minha mãe é a Giza - Maria da Giza, mas todo mundo chama ela de Giza. Meu pai não me criou, então sou filha de mãe solo. A partir dos sete anos de idade comecei a ter um padrasto, que é o Rodolfo, que eu tenho relações até hoje, mas eu tenho essa consciência que minha mãe foi mãe solo durante sete anos.
Bem, a figura paterna foi uma coisa que eu tive que resolver em terapia depois. Não é uma coisa muito boa a minha memória, mas a figura, digamos, da minha mãe e a figura da minha avó foram e são figuras muito fortes até hoje pra eu me construir enquanto sujeito. Isso foi muito importante.
(3:27) P/1 - Você quer contar um pouco de como você descreveria sua mãe? E o que que ela fazia?
R - A minha mãe é uma técnica de enfermagem aposentada. Ela é ativista também. Na época, ela era do movimento, entrou no movimento de moradia junto com meu padrasto para conseguir uma casa.
Nesse período, a gente mudou de bairro, a gente saiu de Itaquera e foi para São Mateus, para a Fazenda da Juta, e esse período foi importante pra ela, tanto [por] conseguir estudar enfermagem, conseguir estudar, enfim, ter uma profissão… Antes ela era promotora de vendas, depois ela virou técnica de enfermagem.
Ela se motivou, segundo ela relata, a fazer enfermagem por causa de mim, porque eu nasci intersexo. Eu nasci com aspectos biológicos dos dois sexos, o que na época era chamado de hermafrodita, e a minha mãe não entendia desse assunto. Na época, o protocolo era escolher o sexo da criança quando ela nascia, sem ter uma explicação adequada para a família, sem ter uma explicação complexa da situação, e fazer cirurgia pra esconder um dos sexos e escolher o outro. No meu caso eles escolheram o sexo masculino e quiseram esconder o sexo feminino, e ela foi fazer enfermagem para tentar entender a situação.
Eles fizeram cirurgias em mim quando eu nasci, aos seis anos e aos doze anos, e ela, enfim, a partir dos [meus] doze anos, começou a compreender e questionar toda essa questão dos protocolos da época, aí ela interrompe o meu vínculo com essas equipes médicas pra que eu não passe por mais nenhuma cirurgia, nenhuma, nenhum procedimento a mais do que eu já tinha passado até naquele momento.
Eu descreveria a minha mãe como uma grande pesquisadora, como uma grande ativista, como a responsável pela eleição da primeira parlamentar intersexo das Américas, que sou eu, porque de fato ela pode não ter um título acadêmico, mas ela fez de tudo pra conseguir descobrir coisas que até então eram negadas pra ela, e conseguir também [me] proteger da forma que ela conseguia de uma coisa completamente estrutural.
De fato, acho que se não fosse a minha mãe, eu não teria a vida que eu tenho hoje, não teria também o destino que eu tenho hoje, porque, veja só, uma pessoa intersexo depois vira uma pessoa trans, a facilidade de o caminho não ser o caminho do trabalho formal… O caminho do parlamento é a regra; na verdade, eu sou uma exceção.
Eu acho que a produção da minha exceção diz muito de quem foi, de quem é a Giza, de quem é a minha mãe. Acho que é isso.
(7:42) P/1 - Você quer contar um pouco da sua relação com a sua avó?
R - Sim, a minha avó, ela era… Ela já faleceu, ela faleceu aos 84 anos, em 2016.
A minha avó era uma pessoa do interior paulista, ali da região de Ourinhos, sudoeste paulista. Ela migrou para a capital com o meu avô, o primeiro marido dela, o avô que eu não conheci. Ela migra para cá e aqui, nos anos cinquenta, mais ou menos, ela se constitui, consegue construir a casa que é a casa que eu moro até hoje, e consegue também se vincular ao bairro ali de Itaquera.
Ela era uma figura religiosa, era da obra da piedade da igreja, da congregação cristã, muito conservadora, muito. Eu lembro muito dela me levando nas obras sociais da igreja, fazendo as coisas da igreja, de obra social, então, ela tinha muito… Muitas coisas vinculadas à segurança alimentar, alimentar as pessoas, distribuição de roupas e coisas nesse gênero.
O segundo marido dela, meu avô, o Valfrido, é um sambista da Nenê de Vila Matilde, então era um casal bem interessante, porque ele era um sambista do candomblé, baiano, e a minha avó, uma senhora, uma serva de Deus, evangélica. Os dois meio que [eram] lideranças do bairro, cada um a seu modo: ela, como exemplo de caridade, era muito conhecida por isso no bairro, e ele, como o cara que tinha contato com os presidentes de escola de samba, que tinha contato com alguns políticos, fazia cabo eleitoral de político; meu avô arranjava coisas lá pro bairro também, então essa coisa da política já estava um pouco na minha família, de outro modo.
Mas meus avós, acho que eles foram as primeiras pessoas - eu [era] adolescentezinha ainda - a falarem assim: “Você leva jeito pra política, né?” E eu falo: “Não quero, não sou política. Quero ser professora, quero ser escritora.” E a minha avó falava: “Uai, mas tudo isso também é fazer política.” Então, eu percebo que eles foram uma escola para mim até hoje no bairro. Eu não sou a deputada, não sou a Carolina; eu sou a filha da Giza, eu sou a neta da Altina, a neta do Valfrido. As pessoas me conhecem por causa deles, uma referência no bairro, então eu acho que isso colaborou muito para eu desenvolver essa coisa da... A própria coisa da oratória, de conversar com as pessoas, das pessoas me conhecerem.
Foi muito interessante, mas ela tinha suas contradições. Como eu disse, ela era conservadora. Ela teve uma dificuldade muito grande com a família, teve que enfrentar a família por causa de mim, porque a família questionava muito ela e a minha mãe por eu ser intersexo; tinha aquela dúvida na família: ela é menina ou não é menina? O que é isso?
Tinha tios mais conservadores, mais machistas, que faziam xingamentos mesmo em alguns eventos sociais da família, e eu lembro muito bem que a minha avó, dentro do conservadorismo dela, dentro do léxico, da gramática que ela utilizava, toda cristã, e trazendo versículo bíblico etc, ela enfrentava eles e me protegia.
Eu lembro que aos oito anos de idade, ela foi a primeira pessoa a sentar comigo no sofá lá da sala e falar pra mim: “Olha, vamos conversar sobre banheiro”, que é um assunto até hoje, né? “Você pode sofrer violência dentro de banheiro, você sabia disso?” Eu não sabia ela me explicou que mesmo eu sendo criança, mesmo sendo pequena, alguns homens iam querer passar a mão em mim, poderia acontecer isso, e que eu teria dificuldade ir ao banheiro, de saber qual banheiro eu poderia usar. Ela falou: “Independente do que acontecer, você pode contar as coisas pra mim.”
Eu cresci com um porto seguro da minha avó e a minha mãe também, ratificando muito, também falando sobre esses assuntos. Um porto seguro que evitou, por exemplo, de sofrer assédios, sofrer violência sexual muito pequena. De fato, foi valiosíssimo esse conselho que ela me deu na hora de eu ter que negociar na escola, que foi um setor muito difícil, qual banheiro eu ia usar e conseguir apelar para professores, para a direção da escola, ajuda para a utilização de banheiro e para também pedir ajuda no caso de algum menino ou alguma pessoa da escola ficar me perseguindo, ficar querendo agredir, alguma coisa nesse sentido.
Eu diria que a minha avó... Ela era uma figura da igreja, mas uma figura contraditória da igreja. Ela não era, digamos assim, muito… Ela era suportada pelos líderes da igreja, porque eles achavam que ela era muito rebelde pra ser da igreja, mas ao mesmo tempo ela era muito querida e muito respeitada, então ela estava lá, dentro da comunidade eclesial. E [era] lulista, lulista roxa. Eu acho que se ela estivesse viva, ela estaria fazendo campanha para o Lula agora em 2022, sem sombra de dúvida.
Acho que a família se constitui muito disso. Acho que eu sou um pouco continuidade dela. Ela sai empregada doméstica do interior paulista, vem para cá e consegue passar pra filha, [pra ela] ter uma formação, de ser técnica de enfermagem, e consegue produzir uma neta vereadora e depois deputada. Acho que é um contínuo da família, essa coisa de ter mulheres fortes.
(15:45) P/1 - E você tem irmãos?
R - Tenho, eu tenho um irmão com dezesseis anos e uma irmã de 22, que já é mãe, então já tenho uma sobrinha de dez meses. A irmã é a Camila e o irmão é o Gabriel, [que] tem dezesseis anos. Ele tem espectro autista e epilepsia e a minha irmã já é mãe, então a gente tem uma relação bem... Bem agarrados. Eu sou a mais velha, por parte de mãe eu sou a mais velha, e eles têm uma irmã mais velha por parte de pai, que é a filha do meu padrasto, a Aline.
A gente faz um bom trio de irmãos, mas é complicado, porque a minha relação, por exemplo, com... Com a minha irmã é de irmã mesmo, aquelas que brigam, uma implica com a outra; com o meu irmão, que é muito mais novo que eu, já é quase tia e sobrinho, quase. É outra relação.
(17:05) P/1 - E quando você pensa na sua infância, tem algum cheiro, alguma comida, alguma data comemorativa que você lembre com carinho?
R - Olha, eu como muito até hoje purê de batata, purê de batata com molho de tomate, salsicha, porque era a comida que tinha. Lembro que a minha avó fazia muito isso, e a senhora que ajudava a cuidar de mim enquanto a minha mãe trabalhava, a irmã Rosália, também fazia muito purê de batata, polenta também. Mas o purê de batata, eu confesso que é a minha preferência. Coloco purê de batata em tudo - além do cachorro quente paulista, que o povo fala tanto que a gente coloca, porque o verdadeiro cachorro quente é com purê de batata, o resto é coisa inventada.
Em tudo que você puder imaginar, eu coloco purê de batata. Outra coisa também é o cuscuz com ovo, ensinado pelo meu avô. Essa parte baiana - o segundo marido da minha avó era baiano -, toda essa culinária baiana eu consumo muito, como muito.
Meu café da manhã não é pão com manteiga, é cuscuz. Já deixo o cuscuz pronto para o outro dia, para [quando] acordar já ter o cuscuz pronto.
Um sabor especial também é o pudim de leite e o nhoque, que aí é uma coisa mais vinculada à minha avó mesmo, que ela fazia. Quando eu estou com saudade dela, vou comer essas coisas.
(19:03) P/1 - Quando você era pequena, o que você gostava de brincar?
R - Ah, era tanta coisa! Eu brincava muito de boneca, adorava boneca. Tinha uma boneca desse tamanho da Xuxa; o povo falava que ela matava os outros, eu adorava essa história! Às vezes eu fazia uma cena de terror, ela matando os outros, mas também tinha a coisa tradicional, de casinha e tal, com as bonecas, mas eu gostava muito de carrinho também.
Como era uma coisa assim, ninguém sabia direito o gênero que eu era, mas estava lá registrada como menino, então o povo ia dando um brinquedo pra brincar e eu ia misturando os gêneros. Eu lembro que tinha uma coleção de carrinhos e coleção de Lego também -, tinha lego de madeira, lego de plástico, adorava montar cidades. Lembro que eu mandava em tudo na cidade, eu já estava treinando [para] ser mandatário, ser parlamentar. Olha lá, [com] três, quatro anos de idade eu já tava construindo cidade, mandando em todo mundo, já. [Era uma] maravilha, eu adorava fazer isso, construir coisas e fazer cidadezinhas, ficar lá com as bonecas e também trazer algumas coleguinhas, meninas principalmente, mas não só, e da mesma idade, pequenos, pra brincar junto.
Eu brincava muito disso. Brincava muito de escolinha, adorava ser professora.
(PAUSA)
(20:52) P/1 - Você estava me falando dessas brincadeiras, que você brincava de boneca e aí você não tinha terminado.
R - Era isso, eu brincava de boneca, brincava de carrinho, brincava de construir cidades, brincava de escolinha, trazia as crianças vizinhas, mais chegadas, mais amigas pra brincar em casa. Brincava muito em casa, no quintal, porque a minha casa tem quintal até hoje, e também brincava na rua um pouco, então, tenho uma memória. de não ter sido uma criança trancada. Eu brinquei na rua, caí muito, brinquei aquelas brincadeiras meio suicidas que a gente tinha, de descer a ladeira com carrinho de rolimã, sem juízo nenhum; fiz muito isso. Pular corda, brincar de pega-pega, esconde-esconde, tudo que você puder imaginar eu brinquei.
Brinquei muito quando era criança, apesar de ter tido os períodos das cirurgias que eu fiquei... Cada cirurgia demorava quase um ano para me recuperar; foram três grandes cirurgias. Apesar disso, nos outros momentos que eu não estava envolvida nessas recuperações pós-operatórias, eu de fato tinha uma vida nas brincadeiras muito ativa.
A partir de uma certa idade, também começou um pouco do bullying entre as próprias crianças, mas também eu acabava... Uma forma de lidar com a supressão na infância e na pré-adolescência era levar pela brincadeira e incorporar mesmo. “Ah, vocês estão me chamando de mulherzinha? Eu sou mulherzinha mesmo! Estão me chamando de viadinho? Sou viadinho mesmo!” Comecei a lidar com isso dessa forma, mas hoje eu sei que, mesmo tendo conseguido lidar, isso não deixou de ser uma violência. Mas das brincadeiras eu tenho boas memórias.
(23:19) P/1 - E na escola, como é que foi esse período?
R - A escola acho que foi o lugar mais difícil para lidar com a infância. Acho que a escola só começou a melhorar um pouco para mim a partir daquilo que na época a gente chamava de sexta série - hoje é sétimo ano, porque... Ou é quinto, sei lá, perdi, mas enfim, naquele momento, na infância mesmo, foi muito difícil porque eu tinha muitas dificuldades para o uso do banheiro, era muito criança, então sofria indo para a escola.
Não é um registro de memória muito bom que eu tenho, não, da infância na escola. Eu lembro que teve episódio, por exemplo, na escola, de eu... Logo depois de eu fazer a cirurgia aos seis anos, a segunda cirurgia, a genital, eu fiquei com um laudo que eu não posso - até hoje eu não posso - segurar a urina durante muito tempo. Eu não consigo, na verdade, então tenho que ir ao banheiro quando dá vontade, tenho que caçar logo um jeito de ir ao banheiro.
Eu tinha uma professora, no primeiro ano, logo quando eu fiz a cirurgia, na primeira série, uma professora maravilhosa; depois mudou a professora, no segundo ano, e veio uma professora muito conservadora e que achava um absurdo me tratar [de modo] diferenciado, de ter essas coisas diferenciadas pra mim na escola. Ela não me deixou ir ao banheiro quando eu pedi e eu fiz urina na sala, eu lembro muito dessa cena. Imagina, foi uma humilhação enorme.
Minha mãe foi na escola, brigou com a professora, entrou com reclamação, de tal modo que até transferiram a professora depois.
[Teve] vários episódios também, de eu ter que me defender mesmo, batendo em outras pessoas, para pararem de roubar meu lanche, pararem de me xingar, então o primeiro ciclo do ensino fundamental foi muito ruim, foi horrível, e hoje eu nomeio bem: os outros campos da minha vida fora da escola nesse período foram bons, a escola foi um inferno.
A partir do quinto para o sexto ano, que dei uma crescida, comecei a me enturmar mais com o pessoal, comecei a ter amizades com as pessoas ditas perigosas da escola, com as meninas, com alguns meninos também que ou eram muito levados, ou já eram vinculados ao crime na periferia de São Paulo. Isso fez com que eu arranjasse uma forma das pessoas não folgarem mais comigo, isso foi importante, e a partir dali a escola teve outro lugar, então eu lembro que a adolescência já foi uma coisa da escola ser um lugar bom, um lugar [de] conseguir fazer coisas artísticas, conseguir fazer coletivos artísticos.
A gente fez um coletivo que existe até hoje lá na Fazenda da Juta, que é o coletivo Periferia Preta, e a gente fez um festival de artistas periféricos, negros, de diversos âmbitos - do rap, do funk, do hip-hop. Isso foi muito legal naquele momento. E também de reunir as outras LGBTs, não só da escola, mas do bairro. Acho que por ser um bairro feito pelo movimento de moradia, da gente ser uma geração que é filha de pessoas que iam em reuniões, que iam em assembleias de movimento social, que fizeram ocupação de terra, construíram as próprias casas - as casas lá no bairro foram construídas através do mutirão da casa própria, que foi um movimento que aconteceu no final dos anos 80 aqui em São Paulo, nas gestões Covas e Erundina - acho que esse registro passou da geração passada, da geração da minha mãe, do meu padrasto, da minha avó, para nós.
A gente já tinha casa, o que a gente queria? O resto, é aquela coisa, tem fome não só de comida, mas de arte, de ser quem é.
Acho que foi muito importante a adolescência nesse período. Tem dois registros da escola: o registro da infância, como um lugar de muito sofrimento, muita violência, e o registro da adolescência como um lugar, um polo de coisas, acontecendo um lugar de resistência. Um lugar de reunir pessoas, de fazer política, na verdade. Hoje dá pra perceber que ali já era um lugar que estava fazendo política. Foi bastante interessante, esses processos todos.
(29:26) P/1 - Nessa época você sonhava com uma profissão específica? Você tinha sonhos para o futuro, ou não era uma coisa que passava pela sua cabeça ainda?
R - Eu sempre quis ser escritora, pequenininha eu já falava isso. E eu escrevia, já, eu lembro que com nove para dez anos eu peguei uma história infantil, transcrevi aquela história e mudei o final. Foi minha primeira experiência.
Eu brincava muito de ser professora, então as pessoas já viam: “Quer ser professora também”. Eu fui sendo alimentada, digamos assim.
Quando eu chego na adolescência, algumas professoras de português e de literatura, elas… Ana Lúcia, por exemplo, Ana Lucia Polideri, elas começaram a me incentivar muito para que eu escrevesse, então, ao invés... Eu já tinha um certo domínio a mais de gramática, por exemplo, então elas passavam muito rapidamente essas disciplinas, essas matérias para mim. Eu fazia o que tinha que fazer para que elas ficassem mais tempo comigo pra outras coisas, pra ensinar literatura.
Eu lembro que eu li muito Machado de Assis, li muito o Castro Alves, Lima Barreto. Elas me davam esses livros, davam um pouco de literatura. O Gabriel Garcia Marques, o Zé Saramago… Adolescente, já lendo essas literaturas. Eu adorava, devorava os livros, e ia escrevendo também.
Tinha alguns contos que elas colocavam na minha mão, falavam: “Vai, escreve outro fim e essa vai ser sua nota.” Eu fazia isso, então eu fui desenvolvendo essa coisa da escrita.
Fui para o teatro. Com quatorze para quinze anos, entrei num projeto que estava tendo no CEU Sapopemba, de teatro e dança contemporânea. Fiz teatro, fiz três anos e pouco, então também desenvolvi mais essa parte da oratória, de falar - atuação não, sou péssima em atuar. Acabou que no fim, no último ano de teatro eu estava escrevendo as peças, ajudando a escrever as peças, não estava mais atuando. Não sou boa de atuar, não gosto de atuar, não nasci para ser atriz, mas eu acabo atuando de outra forma, porque o parlamento não deixa de ser um palco, um palco em que sua voz está ali, ecoando, e você está representando milhares de pessoas, então, acho que me preparou bem.
Não sabia o que eu ia fazer da vida. Queria ser escritora, queria ser professora, mas acho que recebi uma preparação muito boa ali.
É engraçado, eu consegui me manter na escola porque a minha mãe também começou… Depois do episódio com a professora horrorosa, ela começou a ser parte do conselho da escola, de APM [Associação de Pais e Mestres], essas coisas, então ela começou a ser muito presente no ambiente escolar. E também o meu esforço e a minha participação em coisas coletivas, projetos, fizeram com que eu permanecesse nesses espaços, mesmo fazendo a transição de gênero - comecei a minha primeira transição de gênero aos quatorze anos - e então resistir a esse processo de preconceito dentro da escola, dentro desses espaços.
[Tem] também a questão da prostituição, porque eu entro na prostituição com quinze anos, e ali foi um momento assim: o que você vai fazer? Você vai sair da escola, você vai conseguir se manter na escola? Isso foi muito forte naquele período, mas eu consegui me manter em diferentes espaços naquele momento
(34:42) P/1 - Eu ia te perguntar se você conhecia outras pessoas LGBT naquele momento.
R - Ah, sim, com certeza. Aquele período era um período de efervescência ali no bairro, de efervescência LGBT, então tinha um... Tem um bar até hoje lá, que inclusive é colocado como um bar muito antigo das LGBTs aqui em São Paulo, que é o Guinga’s Bar, que fica perto do Largo de São Mateus. Tem até uma plaquinha lá que fala que ele tem muitos anos. A gente se reunia nesse bar, a gente ia pra esse bar LGBT que é bem no centro de São Mateus.
Tinha uma outra balada na época chamada Disturbia, não existe mais essa balada. As LGBTs do bairro e de outros bairros da Zona Leste, até de outras cidades perto iam para esses polos LGBTs. E também, naquele momento, tinha um encontro de segunda-feira das LGBTs, toda segunda-feira no Shopping Tatuapé. [Por] alguns anos isso permaneceu. Isso era o quê? 2007, 2008, 2009.
Eu fui me inteirando e participando desses espaços de sociabilidade LGBT a partir do momento que eu fui transacionando também, então veja: eu me vi diante de um corpo, quando fiz doze anos, que foi se desenhando naturalmente para o feminino. O que me disseram? “Quando você fizer doze para treze anos, vai começar a crescer barba, sua voz vai começar a engrossar, você vai começar a ter maior massa muscular etc.” E foi o contrário que aconteceu: minha voz afinou, comecei a ganhar cintura, quadril, começou a crescer um pouco de seio e então aquilo me assustou. Aí eu comecei a questionar todos os processos que eu tinha passado, até então, de intersexualidade, só que eu não tinha informação sobre intersexo - se não tem informação até hoje sobre intersexo, você imagina naquela época.
A única identidade que eu consegui me apegar e que eu olhava para aquelas pessoas e considerava elas mais próximas de mim foram as travestis do bairro, que faziam prostituição, e as travestis que eu conhecia nesses espaços de sociabilidade que eu contei. A partir daí que eu considero que foi o pulo, que eu me montei, como a gente fala, pela primeira vez. Vi que eu me sentia… Que eu ficava muito bonita montada, com cabelo, com maquiagem e tudo mais, e quis ficar assim, 24 horas por dia. Comecei a ficar, comecei a ir para a escola, comecei a... Teve enfrentamento em casa, óbvio.
Também teve essa passagem na prostituição, porque uma das minhas amigas, a Fernanda, foi expulsa de casa. Lembro que a gente pegou as coisas dela, eu e uma outra amiga, e nós ficamos perambulando pelo bairro sem saber o que fazer, sem saber para onde levá-la. O único lugar que a gente tinha para que ela fosse acolhida era a casa das cafetinas na época, das travestis, e ela foi acolhida pela cafetinagem, mas é isso, você precisa pagar a pensão que você está morando, e você paga como? Você paga fazendo programa.
A partir disso, se é verdade que eu não fui expulsa de casa, pelo contrário, é verdade também que eu não tinha dinheiro para fazer aquilo que eu queria. A minha família, além de não ter condições, também não ia dar dinheiro para eu comprar roupa, comprar peruca, comprar hormônio, comprar uma série de coisas que eram necessárias para mim naquele momento, aí eu fui para a prostituição, com quinze anos.
Foi um período bem complicado, bem complexo, porque ao mesmo tempo que eu tinha ali a sociabilidade, a potência de estar me relacionando com iguais e de ter uma série de aprendizados com as outras travestis, com o mundo da prostituição também, eu só tinha quinze anos, então era uma criança, praticamente.
Passar por tudo que eu passei dos quinze aos dezoito anos é o que hoje eu leio como uma situação de exploração, exploração sexual, mas naquele momento eu não tinha essa leitura. Eu achava que eu estava decidindo as coisas, sendo que na verdade não, estava sendo aliciada mesmo. Hoje eu tenho essa leitura, mas... Foi bom eu não ter saído da escola, foi bom eu não ter desistido dos cursos técnicos que eu fazia - eu fazia dois cursos técnicos também, um de informática e outro de gestão de pequena empresa, eu fazia na ETEC Sapopemba e fazia ensino médio. Estudava o dia inteiro e três vezes na semana, mais pro fim de semana, eu fazia programa. Dormir pra quê? Nunca... Até hoje eu não durmo, praticamente.
Essa rotina muito acelerada, eu acho que é um marco da minha personalidade, da minha vida inteira. Tempo livre é uma coisa que eu não tenho.
Esse período acho que foi bastante complexo, bastante difícil; uma adolescência bastante conturbada, com várias violências. Eu lembro de uma situação de correr na [Rua] Augusta, completamente desesperada, correndo de um grupo de neonazistas que queriam me trucidar, me bater. Fui salva por um dos meus clientes da rua, que estava lá como segurança de uma balada. Ele viu, me puxou pelo braço, me colocou pra dentro e me salvou desses neonazistas.
São várias situações que eu fui passando ali, naquela adolescência, que foram me moldando também como eu sou hoje. Talvez eu não tivesse esse molejo, essa esperteza que eu tenho, se eu não tivesse passado por tudo que eu acabei passando.
(42:25) P/1 - Em que momento você decide parar a prostituição?
R - Na verdade, eu fui ‘interrompida’ da prostituição. A minha mãe descobriu e eu tinha quase dezoito anos. Foi aquele escândalo, né? Para além dela descobrir, eu já estava sendo extorquida pela cafetina, estavam sendo criadas dívidas que, na verdade, eu não tinha contraído, o que é uma prática comum, infelizmente. Não são de todas as cafetinas, tem cafetina que não tem essas práticas mas aquela tinha. Por mais que seja ilegal até hoje, no Brasil, tem cafetina que tem práticas mais justas; ela não [tinha].
A minha mãe descobriu e foi tirar satisfações com ela. Minha mãe não quis saber, minha mãe é muito brava, então ela pegou uma peixeira e foi lá falar com a mulher, nesse nível. A partir disso, eu parei de ir no ponto de prostituição, fiquei focada em conseguir um emprego, mas não consigo, porque naquele momento não existia nenhum tipo de política pública, ou projeto, nada de conscientização para as empresas contratarem travestis e transexuais. Eu passava nos processos seletivos, até na entrevista já cheguei a passar né, pela boa aparência, não sei o que, mas chegava na hora dos documentos e falavam: “Não, a gente não vai contratar uma travesti”. Já teve vez de ouvir isso explicitamente e já teve vez de simplesmente: “Ah, você não faz o perfil da empresa”, aquela conversa.
Eu começo a ficar desesperada, porque não estava nem fazendo programa, nem nada, e começo a entrar num processo de bastante adoecimento mesmo, psíquico, mental. Começo a buscar empregos que me aceitariam como gay e não como travesti, e aí começa um processo que a gente chama de destransição, que é um processo de voltar para o armário para conseguir coisas. Tem gente que faz isso pela religião, tem gente que faz isso por outros motivos; eu fiz pela busca por emprego.
Foi um período bem complicado, muito sofrido. Consegui um emprego no Hospital Santa Marcelina, onde a minha mãe trabalhava, consegui passar nos processos seletivos para ser assistente administrativa, na época, [em] janeiro de 2011. Fiquei lá três anos, três anos se passaram, e eu lá, fingindo que era só gay. Lembro que na época eu já tinha um pouco de seio e aí eu colocava uma faixa para apertar, disfarçar o seio.
Em 2013 eu faço um concurso da prefeitura, passo, e aí vou para a Secretaria Municipal de Saúde, fico mais dois anos - não, mais três anos, ainda destransicionada. Depois que eu passo do estágio probatório, eu começo a questionar de novo por que eu estava sofrendo tanto, não sendo quem eu era, e aí eu retomo o processo de transição de gênero a partir disso, já como servidora pública.
(47:10) P/1 - Mas você, dentro de você, você sabia o que era?
R - Dentro de mim eu sempre soube, não foi uma questão assim... Algumas pessoas, de fato, começam a duvidar quando entram no processo de destransição. Tem até uma blogueira famosa agora, a Cati Lares, que destransicionou e virou toda uma polêmica. Tem pessoas que de fato querem não ser, por questões religiosas, principalmente, mas eu sabia que eu... Eu sabia que eu não era, que aquilo era completamente uma persona, um fingimento para eu conseguir me manter empregada, me manter viva e me manter longe da prostituição, eu tinha essa noção. Tanto tinha essa noção, que durante esse período que eu fiquei destransicionada, eu evitei ao máximo ter relações, ter namoros, porque... Eu tive grandes amores e namoros na época da adolescência e depois que eu transicionei de novo, [mas] nesse período destransicionada eu evitava muito porque dizia pra mim mesma: “Eu não estou sendo quem eu sou, então se alguém se apaixonar por mim, não vai ser por mim.” Eu tinha essa questão, mas depois de transicionar de novo, isso ficou... Ficou pra trás.
(48:41) P/1 - E como seguiu a sua... Eu queria saber um pouco da sua trajetória na graduação. Em que momento você começou a estudar na faculdade? Como foi esse período?
R - Foi meio concomitante. A partir do momento que eu passo no trabalho, minha mãe fala: ‘Olha, você precisa de uma faculdade.” Eu estava tão desanimada, não queria fazer nada, mas tinha que estudar, aí fui olhar o catálogo de cursos, bem desinteressada. Falei: “Ah, mãe, pode ser Letras, pode ser Sociologia.” Aí a minha mãe, categórica: “E se não der dinheiro, você vai morrer de fome?”
Olhei Artes Gráficas. Falei: “Vou fazer isso aqui.” Fiz Artes Gráficas, escolhi assim, na baciada.
Gostei do curso, não gostei do mercado de trabalho do curso. Achei horroroso, predatório, sem direitos trabalhistas, mas aprendi muito nessa graduação. Foram três anos de graduação que eu fiz numa universidade privada e aprendi muito. Gostava mais das partes teóricas, História da Arte, Teoria da Comunicação etc; Estética, eu adorava.
Fiz algumas residências artísticas na época também. Fiz na Bahia, fiz em Portugal. Foi bastante interessante esse período, é muita coisa, né? Fiz muita coisa, mas eu me formei. Eu olhava e falava: “Vou fazer o que com isso aqui? Vou fazer nada com isso aqui. O que eu vou fazer?”
Peguei alguns projetos de embalagens, de revistas, de identidades visuais de empresa, jornal, capa de livro… Adorava fazer capa de livro, design editorial era a parte que eu mais gostava, só que eu não tinha paciência nenhuma para os clientes. Eu queria mandar todo mundo saber a merda, puta gente chata, não sabe de nada. Mandam um documento no Word safado, no WordArt, querendo descredibilizar todo o seu trabalho, seu trampo, uma desvalorização completa da sua arte. Eu falei: “Não nasci para isso. Prefiro atender lá no hospital um monte de gente fodida do que lidar com esse tipo de gente aqui.”
Fui desestimulando das artes gráficas. Ao mesmo tempo, estava trabalhando no Hospital Santa Marcelina, estudando para o concurso da prefeitura e trabalhando numa UBS com vítimas de violência. Ali eu fui desenvolvendo um trabalho muito interessante junto com a Secretaria de Saúde e na época a Secretaria de Direitos Humanos, de instalação dos núcleos de prevenção à violência nas unidades de saúde. Comecei a participar desses grupos de trabalho, a fazer uma série de atividades pra estruturar o atendimento de pessoas em situação de violência na cidade de São Paulo. Era a gestão Kassab, depois a gestão Haddad e eu estava nessa, meio que ali... Sobrevivendo às gestões diferentes e fazendo um trabalho interessante.
Quando eu passo no concurso da prefeitura, eu já estou nesse ramo, já estou nesse setor, e vou para esse setor, só que em hospital, no Hospital Municipal do Tatuapé, no qual eu sou lotada até hoje. Meu cargo está lá, só estou afastada, estou licenciada para cumprir mandato eletivo, mas ainda sou concursada lá. Fui trabalhar na Comissão de Vítimas de Violência do Hospital, então eu trabalhava no atendimento a essas vítimas, no encaminhamento delas para outros serviços e até mesmo para aborto legal no caso de estupro. Fazia também todo o controle das notificações compulsórias, não só de violência, mas também de acidentes e tudo mais, e outras doenças vinculadas à violência, ou o que a gente chama na saúde de causas externas, que são agressões, quedas, acidentes - causas de adoecimento que não são causadas pelo próprio corpo são causas externas. Fui me especializando nesse assunto e juntando a minha militância, que eu já tinha lá no ramo cultural, LGBT, do bairro, com o movimento de direitos humanos e o movimento feminista mais central, mais da classe média paulistana. Acho que isso foi me encaminhando e fazendo eu meio que me desvencilhar mesmo das artes gráficas e ir para outros ramos.
Eu sempre amei Sociologia e fiquei com muita dúvida se eu fazia Sociologia ou Serviço Social. Lembro que a minha mãe virou pra mim e falou: “Olha, você já vai pra segunda formação. Por que você não faz aquilo que de fato você gosta? Você já tem profissão, você já é servidora pública, pode não ganhar bem, mas é uma coisa estável. Por que não?” Decidi fazer Sociologia, fui para a Fundação Escola de Sociologia e Política.
Tinha descoberto que vivia com HIV logo após tomar posse do meu cargo na prefeitura. Em 2014, mais ou menos, foi quando eu descobri o HIV. Começo a participar dos movimentos de ONGs relacionados ao HIV-AIDS. Comecei aqui na Vila Mariana, com o Grupo de Incentivo à Vida, o GIV, e o grupo Pela Vidda, que é ali na Vila Buarque. Esses grupos me direcionaram a fazer parte da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV, da qual eu fiz parte da coordenação durante alguns anos, e fazer alguns coletivos também relacionados à saúde de pessoas LGBTQIA+, HIV, AIDS e luta antimanicomial. O coletivo Loka de Efavirenz, por exemplo, é um coletivo que tem até hoje, que eu ajudei a fundar, relacionado às pautas da AIDS e da luta antimanicomial, da questão da saúde mental.
Fui atuando em diversas frentes muito potentes, muito importantes e fui ganhando um certo reconhecimento dos movimentos sociais, um certo reconhecimento das áreas também, dessas áreas de estudo. Um reconhecimento, inclusive, honoris causa, digamos assim. Fui estudando e fui indo para Ciências Sociais para estudar essas questões, principalmente relacionado à saúde, HIV, que é o ramo de pesquisa que eu fui tomando.
(57:02) P/1 - Eu ia te perguntar exatamente sobre militância. Você contou que [isso] vem da sua família e depois, até onde você chegou, eu queria saber se tem algum momento em que você se apropria disso, ou foi um caminho natural mesmo, pra você.
R - Não sei, eu acho que as coisas foram acontecendo, sabe? Desde adolescente eu percebi que era muita coisa pra eu lidar e que eu não ia conseguir lidar sozinha, então eu acho que fui indo para os caminhos da militância e de me juntar com pessoas meio que para sobreviver, mesmo. Foi assim com o HIV, por exemplo; quando eu tenho o diagnóstico do HIV, e eu falo: “Meu, o que que eu faço agora? Já sou uma travesti que está aqui escondida pra conseguir me manter empregada e ainda eu recebo um diagnóstico de HIV?” Eu fiquei bem desesperada e fui em busca dos grupos, em busca de acolhimento.
Acho que foi sempre uma forma de canalizar a minha dor, o ativismo. Penso que fui indo em diversas frentes porque meu corpo suscitava essas diversas frentes, minha existência era sobre isso também, então... Acho que foi meio uma coisa automática, sim, por conta desse registro de ter visto a minha avó, meu avô fazendo isso também. Imagina, a minha avó era aquela pessoa que eu vi tirar a blusa dela e dar pra outra pessoa em situação de rua, era uma pessoa que... É que no protestantismo não pode falar que era quase uma santa, uma freira - não pode, eles ficam bravos -, mas ela tinha esse arquétipo, e eu acho que essa coisa missionária, uma dedicação, uma abnegação, então esse exemplo estava ali, muito forte. Fora o exemplo da minha mãe, de trabalhar, de fazer as coisas, mas a minha mãe era o contrário da minha avó, porque ao mesmo tempo que a minha avó era muito conservadora, a minha mãe já era muito libertária e é muito libertária, então as duas se engalfinhavam na minha criação, porque uma queria me levar para a igreja e a minha mãe me levava para o samba com meu avô, então ficava ali aquela disputa entre a família do que seria o meu destino.
Acho que foi muito saudável eu ter esse ambiente de disputa, esse ambiente de diversidade, porque aí eu tinha ali um cardápio de opções para a vida, que me fez, quando adulta, conseguir deslanchar no ativismo e em diversos âmbitos, em diversas searas. Acho que foi bem legal.
Pra vida política institucional, aí sim teve um momento ali de... Não diria de ruptura, mas de salto. Acho que foi em 2017 quando eu começo a nomear todo o processo que eu passei de cirurgias e tudo mais na infância, que eu descubro a palavra intersexo e descubro os ativistas intersexo em 2017. É um momento que eu já estou decidida e já começando a transicionar novamente, indo atrás de mudança de documentos e tudo. Conheço esses ativistas e começo a ler sobre intersexualidade, sobre hermafroditismo, tudo relacionado a isso, e eu acho que aí começa um outro capítulo.
Eu tinha há uns dois anos… Antes disso eu tinha me filiado ao Partido Socialismo e Liberdade, o PSOL, mas aí eu começo a partir de então a me... A dar mais importância para a institucionalidade. Eu ajudo a fundar a Associação Brasileira Intersexo, eu entro na Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a ANTRA, começo ali a dar importância pra esse campo, e começo também a trabalhar como assessora, em 2018, da candidatura ao Senado do PSOL naquela eleição, com a Sílvia Ferraro. Depois que a gente termina aquela eleição, ela própria, junto com a corrente partidária da qual faço parte até hoje - a Resistência do PSOL, o nome da corrente interna - me convidam para fazer um projeto coletivo de candidatura. A princípio eu relutei, falei não, mas eu sou uma pessoa dos bastidores da articulação, da escrita, e eles me convencem que não, que já estava na hora de eu sair dos bastidores e ir para a linha de frente, e foi o que a gente fez.
Fomos eleitas em 2020 como vereadoras da cidade, pela bancada feminista, e reeleitas em 2022, com mais de 259 mil votos.
(1:03:58) P/1 - Eu queria saber como foi. O que você sentiu no momento da eleição, quando vocês foram eleitas pela primeira vez?
R - Eu achava que eu não ia ser eleita, né? A gente sempre se boicota e eu achava que não ia ser eleita, mas quando a gente recebeu o resultado… Era pandemia, imagina, eu tava de máscara, aquela coisa toda. Eu lembro que chorei muito e liguei para minha mãe, falando: “Você tem uma filha vereadora.”
Foi muito impactante, porque ao mesmo tempo que tinha toda a alegria de ter chegado muito longe, uma série de coisas, a primeira da família a ser vereadora, a primeira da família a ter mestrado, uma série de coisas que eu sou a primeira dentro da família... Só que vem a responsabilidade também, então também veio um choque, de falar: “E agora? Eu sou a vereadora dessa cidade. O que a gente faz com isso?” Porque não é qualquer cidade, é uma cidade muito complexa, a maior cidade daqui, desse continente. É muito complicado.
Veio todo esse desafio e logo depois que eu fui eleita veio uma série de ameaças por via digital, ameaças à minha vida, assédios e uma série de coisas, de ataques a mim e a outras parlamentares, trans, negras, mas principalmente trans. Logo no primeiro mês de mandato eu sofri um amedrontamento, um atentado na minha casa; jogaram morteiros, bombas na minha casa, com dizeres horrorosos, então tive que mudar de casa durante um período, ficar escondida. Isso também foi bastante difícil, uma coisa traumática, também. Ao mesmo tempo você alcança um espaço de poder e tem a reação de ódio por você ter alcançado esse espaço de poder, ou seja, muita gente se agrada, mas muita gente se desagrada de ter uma mulher como eu nesse espaço, uma mulher intersexo, travesti, negra, vivendo com HIV, então, muitas... Muitos focos de ódio pra mim, então eu também tive que lidar com tudo isso, contando com uma rede de proteção, contando com a família, com a comunidade do candomblé.
Eu sou muito religiosa, já faz alguns anos que eu tô dentro do candomblé. Já fiz seis anos de santo agora, logo mais eu faço a minha obrigação de sete anos pra virar adulta no candomblé, virar ebomi, como a gente chama, e os orixás me deram muita força, a comunidade do candomblé me deram muita força também pra eu passar por essas situações de uma forma menos dolorosa. A minha mãe de santo, a Claudia Rosa de Oiá, também me deu um fortalecimento muito grande, junto com o movimento de mulheres negras do axé, enfim, toda essa força do candomblé paulista, mas não só, do candomblé baiano também, porque a nossa casa é vinculada ao Recôncavo Baiano, então isso me deu muita força para conseguir ficar viva, não ter ímpetos de nada, pensamentos suicidas e tal. Isso foi muito importante para mim.
A gente faz um mandato na capital, que eu considero que foi um mandato muito potente de cinco mulheres, e depois, em 2022, nós já vamos com um projeto para sermos deputadas estaduais, só com mulheres negras, num mandato coletivo. A gente vira um grande fenômeno político no país, somos a candidatura feminina para deputadas estaduais mais votadas do país, então… Sei lá, tem a horrorosa da Carla Zambelli, depois vem a gente, entendeu? Acho que isso é de uma potência muito grande.
(1:09:18) P/1 - Carol, e como você começou a se organizar politicamente na ABRAI? Eu queria saber um pouco dessa época também, você contou um pouco já, mas eu queria saber com mais detalhes.
R - Claro. Acho que pra eu falar da minha organização política eu tenho que falar um pouco do PSOL. Eu me organizei no PSOL de 2014 para 2015, quando comecei a tomar posse do meu cargo público. Conheci dois ativistas, na época do PSTU, que queriam me levar para a esquerda, e eu fui simpatizante do PSTU naquele período, mas naquele momento eu discordei do PSTU com relação à eleição da Dilma com o Aécio. Eles defendiam na época o voto nulo à eleição e eu achava muito equivocada aquela linha, porque eu considerava que o Aécio e a Dilma não eram a mesma coisa, apesar de, enfim… De terem ali suas vinculações à burguesia. Não considerava aquela linha mais correta e acabo me aproximando mais do PSOL. Votei naquela época na Luciana Genro, no primeiro turno, e depois, no segundo, na Dilma, e fiquei ali, em busca… Aí esse ativista, o Lee Flores, que trabalhava comigo no hospital, rompeu com o PSTU em 2015 e fundaram um grupinho dentro do PSOL, chamado Nova Organização Socialista, e me chamaram. “Vou ver o que é isso aí.”
Eu fui e não saí mais, porque depois, em 2016, teve o golpe da Dilma, e eu já estava nessas articulações, já comecei a ter um reconhecimento enquanto alguém interno do Partido PSOL em algumas instâncias partidárias. Teve o golpe e logo em seguida um agrupamento muito maior que também rompeu com o PSTU, veio para o PSOL e se juntou a nós, formando a organização que eu faço parte hoje, que é a Resistência do PSOL.
A partir de então eu começo a crescer dentro da estrutura partidária, hierarquicamente, então comecei a ocupar cargos na Comissão de Ética dessa corrente, comecei a ser uma dirigente partidária, bem lá no modelo trotskista, socialista.
Nesse período, em que eu estava transicionando novamente, comecei a estudar sobre a questão intersexo e conheci os ativistas… A Dionne Freitas, o Amiel Vieira, a Thaís Emília e a Raquel Rocha, que eram ativistas já daquele momento, e o Dr. Walter Mastelaro, da OAB. Conheci esse grupo de ativistas que estavam pavimentando, querendo construir uma associação intersexo, e que já estavam fazendo trabalhos há algum tempo. Eu me juntei. falei: “Isso aqui é interessante”. Não quis nem saber. “É mais uma pauta que eu vou abraçar.” Já estava no movimento de AIDS, já estava coordenando coisas no movimento de AIDS, já estava no movimento feminista, me enfrentando com... Imagina essa coisa que agora virou famosa, de conservador na porta de hospital com plaquinha contra o aborto, tentando sequestrar a criança que foi estuprada para ela não abortar, em vez de ir atrás do estuprador, na inversão de valores… Isso eu já estava enfrentando lá atrás em 2013, 2012. Já tinha essa coisa no movimento feminista, já tinha um trabalho, por causa disso também, com mães negras, principalmente, mas não só, que perderam filhos pra polícia, que tiveram filhos assassinatos, então também tinha essa vinculação. Tenho até hoje, por exemplo, [vínculo] com a Mães de Maio, Mães da Leste - inclusive, a Mãe Debora é uma pessoa maravilhosa da Mães de Maio, e já tinha também essa coisa com o movimento trans. Falei: “Por que não mais um, porque não o movimento intersexo também?” E aí a gente fundou a Associação Brasileira Intersexo do zero. Fizemos toda a documentação, colocamos a Thais Emília, que era a mãe do Jacob, que foi um menino intersexo que teve todos os seus direitos violados, não quiseram dar a certidão de nascimento pra ele… Ela empreendeu uma luta pra dar direitos pra essa criança e ela se notabilizou por isso, ganhou legitimidade diante de nós por conta disso. E essa criança acaba morrendo depois, porque tinha cardiopatia e as equipes médicas só queriam saber da parte sexual, de cuidar da parte intersexo dessa criança. Negligenciaram a cardiopatia e essa criança acabou morrendo, então é um símbolo, tanto que no dia 26 de setembro foi aprovado um projeto meu aqui na Câmara Municipal, foi aprovado o dia de conscientização contra a mutilação infantil, porque dia 26 de setembro é o aniversário do Jacob e a gente conseguiu aprovar - está no calendário municipal, então.
Isso fez com que eu me integrasse muito no nascimento desse movimento intersexo formalizado no país e me fez ser uma das fundadoras, ganhar uma notoriedade grande dentro de todas as outras letras da sigla, fazendo essa comunicação, porque ao mesmo tempo que eu sou intersexo, eu também sou bissexual, também tenho esse diálogo com as outras letras. Também fiz e faço parte, por exemplo, da Caminhada Lésbica e Bissexual, ajudei a organizar em alguns anos, então tenho uma vinculação muito forte com as outras letras. Acho que isso ajudou também nesse processo, junto com o movimento de AIDS, de me solidificar como uma liderança LGBTQIA+ de São Paulo. Isso consolidou também a ser política depois, ser parlamentar.
(1:17:38) P/1 - Eu queria te perguntar, eu tenho perguntado para as pessoas se São Paulo é uma cidade acolhedora.
R - Não, não é. (risos) Nem um pouco.
(1:17:50) P/1 - Essa tem sido a resposta, mas eu queria saber de você, como parlamentar, como é ser parlamentar dentro dessa cidade que não é acolhedora para pessoas LGBTQIAPN+.
R - Não, não é acolhedora pra ninguém, amor!
(1:18:11) P/1 - Quais são os desafios que você enfrenta e as suas vitórias também?
R - Ai, ai. As pessoas devem falar: “Gente, ela foi vereadora, deputada por essa cidade e tá falando que ela não é acolhedora.” Mas não é mesmo, vou fazer o quê, vou mentir? Eu acho que São Paulo não é acolhedora pra ninguém, ela é hostil, mas é onde as pessoas… É o polo, é a capital real do país. As pessoas, meus amigos de Brasília ficam muito bravos comigo, com essa minha paulistanidade. Eu não sei como eles me aguentam também, porque a gente que é de São Paulo tem uma arrogância, não adianta, e é de fato isso, né? Eu falo: “Olha, vocês estão aqui com o Distrito Federal muito bonito, muito artificial, mas as ordens de verdade da burguesia vêm de São Paulo”, e a Faria Lima tá aqui, né? A Wall Street brasileira, a Wall Street latino-americana. A Bolsa latino-americana, a nossa Nasdaq é aqui, pro bem e pro mal. Por isso que é uma cidade que não é acolhedora, porque é uma cidade onde está a disputa política, a disputa econômica, a disputa de narrativa. Ela é o centro dessa disputa, e não tem como o centro dessas disputas ser um lugar de paz, ser um lugar acolhedor. Não vai ser, porque é o lugar onde a pancadaria vai acontecer, como a minha avó falava, onde o rebuceteio vai rolar, entendeu?
Não é à toa que essa cidade foi produzida, inclusive, para isso. Milhares de pessoas foram trazidas de diversos lugares do Brasil, do norte e nordeste, principalmente, mas também de outros lugares do mundo para construir esse monstro gigantesco, essa metrópole, para urbanizar esse país, então isso aqui tem que ser aproveitado como o instrumento que é, esse instrumento de disputa. Nós, dos setores oprimidos, mulheres, LGBTQIA+, negras e negros, pessoas em situação de vulnerabilidade, a classe trabalhadora em si, nós temos essa cidade como a capital que ela é e como palco dessas disputas, e dentro disso nós conseguimos fazer vida nessa cidade, construir vidas nessa cidade, construir narrativas, construir histórias, construir amores, construir cores.
São Paulo consegue não ser acolhedora, mas consegue tornar possível vidas inclusive que em outros lugares não é possível. Muita gente migra pra São Paulo para conseguir se assumir aqui, LGBTs do país inteiro migram pra cá para conseguir se assumir aqui, mesmo aqui sendo hostil, ou seja, é a cidade, eu diria, da possibilidade; não é que ela é acolhedora, ela é da possibilidade, porque ela é da disputa, então você consegue fazer disputa e consegue ser nessa cidade.
Eu acho que aquele poema do Drummond, A Rosa do Asfalto… Ela é o poema de São Paulo, porque ela é bonita, apesar de brotar do asfalto; é a rosa do povo. Acho fenomenal aquele poema, acho que representa muito a cidade de São Paulo.
Eu sei que não teria a visibilidade que eu tenho nacionalmente e não teria o poder de influência que eu tenho hoje no governo Lula, em Brasília, por exemplo, de pautar a questão intersexo com o ONU, com o Ministério etc… Eu não teria, sem sombra de dúvida, esse nível de influência se eu não fosse alguém, uma parlamentar do Estado de São Paulo da capital. A gente sabe que existe também esse poder de São Paulo em nível nacional, mais do que em outras cidades. É a cidade mais rica do país, é a cidade mais poderosa do país, é o maior PIB da América Latina, segundo maior PIB do hemisfério sul, só perdendo para a cidade lá da Austrália, a ricona lá, então a gente tem que aproveitar isso. Não é possível que a gente não aproveite isso.
Eu estou aqui para hackear essas coisas todas com essa mistura de Brasil que colocaram no meu corpo, essa mistura de São Paulo lá do interior, quase Mato Grosso do Sul, com Bahia; me enfiaram aqui nessa cidade, e eu tô aí, fazendo, refazendo, ressignificando, colorindo, e eu acho que é superlegal. Um beijo pra São Paulo, essa aquariana doida, porque a gente não pode esquecer o signo da cidade de São Paulo, que é Aquário, então é sobre [isso].
(1:23:59) P/1 - Carol, qual legado você deixa para o futuro?
R - Eu acho que eu deixo um legado pras pessoas trans do país, enquanto sendo uma das cinco deputadas trans do país, de que é possível outras narrativas, outras disputas. Eu deixo um legado pras pessoas intersexo, nessa coisa da luta contra a mutilação genital, que a gente está alcançando modificações. Eu já consigo vislumbrar tão logo que essa prática seja extinta daqui uns anos. É um legado que eu estou construindo pra essas próximas gerações, é um legado pra quem vier depois no movimento LGBTQIA+ como um todo, dessa seara política, dessa seara dos movimentos estarem mais fáceis. Eu já tenho um legado no meu bairro, hoje em dia na Fazenda da Juta é muito mais fácil ser LGBT do que na minha época, embora ainda tenha violência, embora ainda tenha preconceito, embora ainda tenha uma série de coisas que precisam mudar, mas não é a mesma coisa, porque nós nos enfrentamos lá atrás, negociando com crime organizado, inclusive, pra fazer coisas no bairro, conseguir fazer uma série de coisas que também pudesse ser negociadas com a igreja. Veja só, a gente conseguiu tornar mais fácil a vida de uma geração seguinte. Hoje as pessoas estão se assumindo lá mais novas, ou elas estão já tendo uma outra perspectiva enquanto pessoa trans, por exemplo, que não seja aos quinze anos de idade estar num ponto de prostituição, como eu estive.
O legado que eu deixo é que pessoas que são ali parecidas comigo não passem aquilo que eu passei. Acho que isso já está acontecendo e me alegra, da mesma forma que eu ouço de Jovanna Baby, pioneira na luta trans no Brasil… Estive com ela agora, no último encontro da Antra, no Espírito Santo, e ela fala: “Você e as outras eleitas são sonhos que a gente teve em 79, e vocês estão aqui fazendo, eu vivi pra ver esse sonho.” Ela deixou o legado, eu sou o legado dessas mais velhas, da Jovanna Baby, da Thaís Azevedo aqui, presidenta do Grupo Pela Vidda, com 73 anos, travesti negra. Eu sou legado delas e vou ter outros legados.
A gente tem muito costume entre as travestis de ter filhas. Eu já tenho as minhas filhas travestis, tenho umas cinco filhas travestis, e elas também vão ser meu legado, já estou criando elas também pro mundo.
(1:27:25) P/1 - Eu tenho só mais duas perguntas, já está chegando ao fim. A primeira é: qual o seu maior sonho?
R - O meu maior sonho… Eu tenho tanto sonho, eu sonho muito, viu?
O meu maior sonho mesmo é acabar com a mutilação genital, isso é a minha grande coisa, mas eu tenho alguns sonhos pessoais também. Eu estou num processo de maturação, por exemplo, da minha maternidade. Um dos meus grandes projetos nos próximos anos [é], para além das travestis, que já são minhas filhas adotadas, também ter uma criança mesmo, fazer fertilização in vitro. Essas coisas todas de reprodução, de direito reprodutivo, também são uma pauta, outra pauta que eu vou.
(1:28:30) P/1 - A última pergunta que eu queria saber é: como foi contar um pouco da sua história hoje no Museu da Pessoa?
R - Ah, foi bem legal. Ainda tem muita coisa que eu não consegui contar né, não consegui mergulhar. A própria parte da bissexualidade, mesmo eu sempre… São tantas coisas pra falar que eu acabo não conseguindo mergulhar nisso, nas relações amorosas que eu tive, seja com travestis, seja com homens cisgêneros, seja com homens trans. O tempo sempre é muito curto, mas eu acho excelente ter essa oportunidade.
Poderia falar aqui também sobre não-monogamia, algo também que faz parte da minha personalidade, faz parte do meu jeito de ser e não conseguir falar de relações abertas… Mas eu fico muito contente e acho que é muito bom ter esse registro das pessoas que constroem o movimento LGBTQIA+ e ter isso falado em primeira pessoa, como antropóloga.
Eu acho muito importante isso, da gente ter esse registro da história oral pra posteridade. Tem um quentinho no coração de que o que a gente tá fazendo agora não vai ser esquecido tão logo pelas próximas gerações, então isso é bastante importante.
Eu fico muito feliz quando me chamam para fazer coisas no sentido do registro histórico, no sentido… Tem muita gente agora também pesquisando, então já sou tema de dissertação, de tese, de pesquisa, de homenagens. E é muito legal também que seja enquanto a gente está viva, não seja uma coisa… Eu não quero ser uma Lélia González, que só teve o seu reconhecimento depois de morta na academia. Acho que esses ciclos dos nossos ancestrais… Alguns a gente repete, como honrar esses ancestrais, mas outros a gente tem que superar, e eu acho que essa invisibilidade de mulheres negras e de mulheres LGBTQIA+ a gente tem que superar.
(1:31:17) P/1 - Em nome do Museu da Pessoa, em meu nome, em nome do Alisson, a gente agradece muito, Carol. Muito obrigada.
R - Obrigada!
P/1 - Que lindo!
Recolher