Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Maria Veranir dos Santos Fonseca
Entrevistada por Marcia Trezza e Ana Zidanis
Recife, 08/03/2018
Realização: Museu da Pessoa
HTC_HV02_ Maria Veranir dos Santos Fonseca
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado e editado p...Continuar leitura
Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Maria Veranir dos Santos Fonseca
Entrevistada por Marcia Trezza e Ana Zidanis
Recife, 08/03/2018
Realização: Museu da Pessoa
HTC_HV02_ Maria Veranir dos Santos Fonseca
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Vera, a gente vai começar. Você, por favor, diga o seu nome completo, a cidade onde nasceu e a data.
R – Data do nascimento?
P/1 – É.
R – Meu nome é Maria Veranir dos Santos. Nasci na cidade de Carnaubais, Rio Grande do Norte, no ano de 1962.
P/1 – Que dia e mês?
R – No dia 17 de junho de 1962.
P/1 – Vera, que lembranças você tem, mais antigas, da sua infância? Aquelas primeiras memórias. O que você lembra?
R – Lembro, quando eu era criança, sempre o meu foco foi a escola, sempre era voltada para esse meio - a escola. E, na região em que nós morávamos, era muito difícil. Meu pai era um guerreiro, ele procurava sempre ir para uma cidade que tivesse escola, não é? E daí ele conseguiu. Morávamos na zona rural, zona de difícil acesso e nós chegamos no interiorzinho maior, e lá já tinha escola - chamava-se Grupo. Nós íamos para o Grupo e lá tinha a professora - era a dona Sousa, professora muito boa, eu aprendi muito com ela. E aí foi passando o tempo e nós fomos procurando os dias melhores, onde havia escolas melhores também, até chegar na Serra do Mel!
P/1 – Olha, então, antes de chegar na Serra do Mel... Você falou que o seu pai era um guerreiro.
R – Era.
P/1 – O que ele fazia?
R – Antes, ele era salineiro. Aliás, ele era salineiro, agricultor e pescador. Quando ele não estava na salina, estava pescando, estava no mato caçando, era uma prática que as pessoas antigamente tinham, de ir para o mato caçar. Assim eles diziam. E, durante o inverno, quando não tinha mais como trabalhar na salina, aí é onde ele ia mais para a pesca.
P/1 – E trabalhando na salina você tem alguma imagem dele? Ou falando sobre isso? Ou você chegou a ver ele trabalhando?
R – Nunca vi meu pai trabalhando, mas ele chegava do trabalho todo cortado do sal porque era todo braçal o trabalho dele, era levando aquele carro de mão – conhece? Trabalhando com pás para encher o que eles chamavam de barcaça, que é um tipo de embarcação bem grande. Então ele enchia o carro de mão e levava lá para aquela embarcação, e assim fazia de acordo com a maré: quando a maré estava seca, a embarcação estava lá embaixo e não tinha trabalho; aí, quando a maré enchia, que a embarcação suspendia, lá iam trabalhar. Era no horário da maré - podia ser à noite ou de dia. E assim ele levou uma boa parte da vida dele trabalhando na salina.
P/1 – Quer dizer, quando a maré estava mais baixa é que eles pegavam o sal?
R – Assim... Ficava trabalhando com o sal, porque a embarcação ficava lá embaixo, não tinha como ter acesso. Quando a maré enche, aí fica tudo igual, entendeu? Aí, depois que a salina foi mecanizada, trocou a mão de obra pelas máquinas; aí ele deixou de ser salineiro. Aí, ouvia falar que havia um projeto, que ia ser colonizado, justamente para aquelas pessoas que estavam saindo da salina. A salina não tinha mais trabalho manual, ou seja, mão de obra. E aí, o governo da época pensou num projeto que traria aqueles salineiros para tomar conta da agricultura. E assim foi feito. Quando meu pai veio lá, veio a pé, uma distância enorme, que eu não sei nem calcular mas é muito distante. Ele saía de manhãzinha, só chegava no outro dia, a pé, com a mochilinha nas costas, com rede, com água. Enfim, foram essas as dificuldades que ele enfrentou na época. Foi quando recebeu... Lá, chama-se lote... O lote, que era de cajueiro. As terras. E ele passou a ser agricultor nessa época.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Nós somos seis mulheres e dois homens.
P/1 – Vocês todos já tinham nascido nessa época?
R – Já tínhamos nascido. Aliás, só o Chagas, meu irmão, que também trabalhou comigo, foi nessa época que ele nasceu, na década de 70. Nesse momento ele estava um bebezinho, justamente no momento mais difícil é que ele foi nascer. Mas a gente já tinha se sobressaído daquelas dificuldades e ele estava vendo um momento em que as coisas estavam melhorando.
P/1 – E a sua mãe?
R – A minha mãe era do lar, uma pessoa que nunca foi à escola porque não tinha. Ela morava numa região de difícil acesso, era um interior tão interior que não tinha nada, a não ser uma casinha aqui, outra mais à frente, aquele povinho ali... Parecia aldeia.
P/1 – E como era a rotina de vocês? Entre irmãos na casa,
na convivência, como era o dia a dia?
R – No dia a dia era todo mundo em casa, não tinha saída a não ser ir para a escola. Aí, teve um momento lá na região, no tempo do plantio, em que meu pai levava todos nós para colher o feijão, o milho, para ir para o roçado com ele. A gente já era grandinha e tudo, aí levava. Mas depois da escola, depois que chegava da escola - nem chamava colégio, era escola mesmo - quando vinha da escola é que ia para o trabalho, junto com o meu pai.
P/1 – Vera, você disse que seu pai sempre se preocupou de vocês irem para a escola. E ele ganhou esse lote. E aí, tinha escola nessa época, lá perto?
R – Tinha no Porto do Mangue, lá tinha. Como eu já disse, chamava-se Grupo. Uma escolinha que só tinha uma sala de aula, era uma sala. Então, tinha o primeiro horário, daquelas criancinhas, e assim era o dia todo atendendo. Era um interior, não era uma cidadezinha - era um interior do município de Carnaubais. Carnaubais é a cidade e o Porto do Mangue era um município de Carnaubais.
P/1 – E por que se chamava Porto do Mangue?
R – É porque tem muito mangue lá na região. Lá é um porto, tem o rio, e o porto tem muito mangue, aquela plantação. Vocês não conhecem não, o mangue? Ah, pois é. Lá tem esse nome, porque porto... É que antes havia os navios que passavam para pegar o sal na salina, não é? E o mangue porque, na verdade, a vegetação de lá é só mangue, é o manguezal.
P/1 – E, nessa escola, você disse que tinha uma professora. Foi essa professora que te marcou?
R – Foi, foi.
P/1 – Por que você diz que era tão marcante?
R – Porque quando ela recebia o aluno lá, ela queria que ele aprendesse imediatamente, não tinha aquela questão de um aluno ir para a escola dela e não aprender. Aprendia. Tinha aquela questão também da palmatória. Eu nunca peguei palmatória não, da professora, porque eu sempre obedecia às regras na escola. E ela era bem assim, uma professora bem marcante mesmo, porque o aluno estava na aula dela para aprender, sabe?
P/1 – Isso foi bom para você?
R – Foi muito bom, foi muito bom. E, aliás, tem muita gente lá na minha cidade que fala nela: “Ah, minha melhor professora foi dona Souza!”. Inclusive, lá tem uma escola, a escola que o município construiu, com o nome dela.
P/1 – Ah, olha só!
R – É.
P/1 – E brincadeiras, vocês brincavam?
R – Muitas brincadeiras, muitas! Lembro-me da rua.
P/1 – Do que você gostava?
R – As brincadeiras de tica, de roda, cantando essas músicas. Hoje eu me lembro... Quando eu comecei a trabalhar na pré-escola também cantava essas musiquinhas. Enfim, era muito gostoso, era muito bom. Não tinha energia, viu? A energia que tinha lá era a lua, no tempo da lua. Mas a rua era toda no escuro, todo mundo com aquela lamparina que colocava querosene no pavio, e ali tudo acesinho e todo mundo brincando na rua, correndo. Muito bom.
P/1 – À noite mesmo?
R – À noite. Era assim o interior, mesmo. Não tinha calçamento na rua, era só na areia mesmo. Muito bom. Quando chovia, tomava banho de chuva nas bicas, dentro das lagoas, muito bom (risos). Era muito bom!
P/1 – E tinha alguma brincadeira preferida?
R – Brincadeira do anel (risos), passava o anel, tinha que descobrir onde estava o anel. Isso eu já era uma mocinha, doze, treze anos, brincadeiras marcantes.
P/1 – E a escola era perto ou mais longe?
R – Era perto, a escola era perto. O vilarejo era pequenininho, a escolinha naquele cantinho, todo mundo ali concentrado, praticamente naquele mesmo setor, sabe? Era bem pequenininho.
P/1 – E para ir a pé?
R – Era a pé mesmo, bem pequenininho.
P/1 – Não era longe.
R – Não, não, não.
P/1 – Aconteceu alguma coisa marcante na sua infância? Ou mesmo uma brincadeira, uma arte que vocês fizeram?
R – Não, quando a gente saía, tinha lá um rapaz que alugava bicicletas. Aí, meu pai não deixava. Mas a gente queria mesmo aprender e alugava umas bicicletas. O joelho era todo (risos) arranhado, chegava em casa, tinha que descer. Pronto, isso aí era uma coisa marcante. Quando a gente saía da escola, tinha o pátio e todo mundo ia brincar de bicicleta, aprender. E aí eu aprendi, ainda ando de bicicleta (risos).
P/1 – E quando começou a ficar mais mocinha tinha o passa anel. E aí, você fazia o quê quando começaram a crescer?
R – Quando nós começamos a crescer não tinha mais estudo, a escola era só de primeira à quarta séries. Então, terminou a quarta série manda lá para casa, e tchau! Então, começaram as preocupações, só tinha escola até a quarta série. Não era nem série, era quarto ano. E aí, meu pai procurou uma cidade que tivesse, pelo menos, escola para continuar. E assim foi feito, realizou o sonho dele. Porque ele também não tinha estudado, mas ele sabia ler e escrever. Ele era preocupado, e a preocupação dele era que nós todos participássemos da escola.
P/1 – E como foi? Porque ele trabalhava nesse lugar, nesse lote. Como foi feita essa mudança de um lugar para outro, atrás de escola?
R – Porque quando veio, já chegando na Serra do Mel... Porque só teve escola quando chegou na Serra do Mel. Lá no Porto do Mangue, como eu disse, era até aí. Aí já tinha a escola, cada uma vila. Porque lá é chamado de agrovila, não é? Eu até falei para a Ana que lá, a Serra do Mel é baseada no mapa do Brasil.
P/1 – Como assim?
R – Cada agrovila leva o nome de um estado brasileiro. Ela é do formato do mapa do Brasil, a Serra do Mel. Aí ficam desenhadas as vilas, de cinco em cinco quilômetros começa uma vila. Por exemplo, está aqui a Vila Rio Grande do Norte; aí para Vila Goiás, cinco quilômetros; a Vila Minas Gerais mais cinco, e assim vai aumentando. Dá trinta e cinco quilômetros da vila mais distante, entendeu?
P/1 – Então... Mas eu queria entender como foi se dando essa mudança. Porque o seu pai trabalhava naquele local, vocês viviam lá nesse lugar em que vocês brincavam...
R – Sim.
P/1 – E aí lá não tinha mais escola e vocês foram mudando. Mudaram de uma vez, direto para a Serra do Mel?
R – Foi, direto para a Serra do Mel.
P/1 – Entendi.
R – Foi ainda na década de 80. Mais para trás, como eu já tinha falado, quando meu pai morava no interiorzinho do interior, que lá não tinha escola, então ele partiu para essa cidade, que era Porto do Mangue, que só tinha até a quarta série. Aí, quando também não tinha mais, só tinha até a quarta série, ele já foi procurar outra cidade que tivesse.
P/1 – Ah, quer dizer que ele já tinha mudado uma vez.
R – Já.
P/1 – Para Porto do Mangue.
R – Eu esqueci de dizer. No início, onde nós morávamos - no interiorzinho. E lá tinha, talvez, oito, dez famílias. O pessoal vivia de criação de bodes e da mata, recursos que tiravam da mata mesmo. E plantio. Aí, quando eu saí desse interiorzinho já estava com sete anos e eu nunca tinha ido à escola. Eu me esqueci de contar esse detalhe... Nunca tinha ido. E a minha irmã mais velha também já estava com dez anos, e assim por diante ninguém tinha estudado. E eu me lembro - que meu pai contava também - nessa época, quando a gente morava nesse interior, tinha uma moça lá que sabia ler e escrever. Aí o meu pai juntou-se a outras pessoas lá... E nunca tinha ido à escola, ninguém sabia nem o que era, aí eles foram chamar essa moça para ensinar o bê-á-bá - ele dizia desse jeito: para ensinar o bê-á-bá à gente. E quando era tardezinha, ele levava todas nós, colocava um oleozinho no cabelo, fazia uma trança (risos) e levava para a casa dessa senhora, dessa mocinha também, para ensinar. Eu me lembro de que tinha uma carta que chamava-se Carta de ABC. Aí, ela dobrava e botava as mãos em cima da primeira letra, dizia: “Que letra é essa?” E a gente tinha que dizer que era a letra A. Aí quem dissesse, beleza; quem não dissesse, ia levar tipo assim um bolo na mão porque não tinha acertado. E era desse jeito. Mas não era um colégio, era uma pessoa que só sabia ler e escrever e estava repassando, mostrando aquelas letras.
P/1 – E você lembra se você conseguiu ler?
R – Consegui, consegui ler. Eu conseguia ler e dizia que letra era. Antes, ela já fazia uma leitura, dizia: “A”. Todo mundo: “A”. “B”. E aí por diante. Aí, quando ela fechava assim a cartilha, dizia: “Que letra é essa?” Aí tinha que dizer (risos).
P/1 – Vera, você lembra do seu pai falar alguma coisa sobre isso, que era tão importante estudar? O que ele falava? Você lembra?
R – Lembro. Eu lembro de que ele era preocupado. Ele dizia: “O que eu não tive na minha infância, ou seja, na minha vida, eu quero que vocês tenham. Porque eu só não estudei porque não tinha escola, e também não tinha nem roupa para vestir”. Juro, isso era o que o meu pai dizia. E muitas vezes, ele dizia: “Quando a gente ia para o mato, adentrar ao mato…”. Talvez caçar, como ele dizia... “Tirava a roupa do corpo, deixava pendurada lá em certo canto e ia nu para não rasgar as roupas”. Isso eram coisas que meus pais diziam, falavam muito isso para a gente. E também, como ele dizia que não tinha estudado, mas era muito inteligente. Papai sabia Matemática divinamente, conhecia a História do Brasil... Porque ele ouvia muito rádio, ouvia as coisas no rádio, falava bem. Escrevia, mas nunca frequentou uma escola, nunca!
P/1 – Então ele dava importância.
R – Dava, muita importância.
P/1 – E foi mudando para...
R – Eu aprendi com ele porque eu via que ele só cedia, só ia para um setor se tivesse escola. E aliás, no setor em que ele morava, os outros nem estavam aí e ele era o que mais incentivava: “Vamos procurar fulano de tal dos anzóis lá, em tal cidade, pedir um banco”. Um assento, um banco em que cabiam cinco, seis pessoas. E aí voltava e ficava uma mesa bem grande, eles mesmos faziam a mesa, não é? E deixava lá, durante a semana todinha. E essa pessoa não ganhava nada, somente porque ela já sabia e passava para os demais. Mas aí são coisas da minha infância, que eu me lembro bem vivas ainda na minha memória.
P/1 – Quando vocês estudaram até a quarta série, na Serra do Mel...
R – Não, no Porto do Mangue.
P/1 – Certo. E depois foram para Serra do Mel.
R – Fomos.
P/1 – E lá, como foi?
R – Chegou lá na Serra do Mel não era fácil, não é? Porque estava sendo colonizada. Chamava de colônia porque todo mundo levava esse nome. Era um projeto de colonização, aí chamava-se Colônia da Vila tal, da casa tal. E quando ele chegou lá, cada vila tinha um grupo escolar. E eu já estava no sexto ano, na sexta série quando cheguei lá. Aí, continuei estudando lá na Serra do Mel, terminei também lá na Serra do Mel. Que também não era fácil. Isso só na Vila. Aí, quando passou para o ensino médio, foi onde encontrou todas as dificuldades de estudo. E tinha também o colégio muito grande - ainda existe esse colégio bem grande - e não tinha o professor, certo? Professor tinha que vir de Mossoró, de outra cidade, e também não tinha transporte para esse professor vir. Era muito, muito difícil.
P/1 – Vera, eu ainda estou perguntando bastante da escola por conta de toda essa importância que seu pai dava, não é?
R – Muita.
P/1 – E ele, chegando na Serra do Mel, começou a trabalhar num novo...
R – No lote de cajueiro.
P/1 – De cajueiro.
R – É, lote de cajueiro. Ele plantava feijão, melancia... E o cajueiro, porque ele vai crescendo dia a dia, são cinco ou seis anos para poder produzir. Aí, enquanto esse cajueiro não estava produzindo, foi também um momento difícil porque ele vivia diretamente da agricultura e não tinha como tirar. A não ser no inverno, tirava os legumes, o feijão, o milho, a melancia.
P/1 – E como era a convivência de vocês ali, naquele momento?
Quando vocês chegaram, estabelecer... Que lembranças você tem?
R – Era novo. Era bom, também. Na época em que chegamos lá, não tinha energia, não tinha água encanada nas casas, tinha um chafariz lá e as pessoas iam buscar para trazer para as próprias casas, que também não foi fácil, não é? Mas aí a gente foi se adaptando e conseguiu. E hoje é uma cidade bem desenvolvida, bem para a frente, ganhou autonomia. Hoje é uma cidade mesmo, não é? Porque antes era dividida em quatro municípios, tinha quatro prefeitos lá na época.
P/1 – Então você viu todo o desenvolvimento?
R – Foi. Fui acompanhando quando eu cheguei lá. O início da cidade foi na década de 70 e eu cheguei lá em 1980. A partir de 1980 que eu acompanho essa história.
P/1 – E nunca mais você mudou de lá?
R – Nunca mais. Eu fui para uma cidade, quando saí de Porto do Mangue, mas estou lá e aqui, certo? Eu vou lá e venho para cá. Minha residência hoje é mesmo na Serra do Mel.
P/1 – Serra do Mel. Esse é o seu lugar.
R – É o meu lugar. Desde 1980.
P/1 – E você então foi para lá, já estava na sua juventude.
R – É, eu já estava com dezoito anos quando eu cheguei lá na Serra do Mel.
P/1 – E o que vocês faziam além da escola, para se divertir? Existia uma atividade?
R – Não, nada. Só em casa mesmo, só em casa ajudando mamãe a lavar a roupa, varrer a casa, o que também não era muita coisa, não é? Só isso. Não tinha nada para fazer.
P/1 – E saía? Fazia algum passeio? Ou ia à igreja?
R – Sim, a gente acompanhava também essa parte da igreja, que sempre tinha as missas, essas procissões, e a gente estava sempre presente. Papai não deixava a gente ir para festas. Mas quando chegava uma pessoa e pedia: “Deixa ela ir comigo e tal”, até que ele cedia um pouco. As festinhas ali, pequenininhas, coisa pouca.
P/1 – Como é que eram as festas lá?
R – Festa da igreja, por exemplo. Durante o dia, os festejos, aquelas coisas, procissão, a missa entre outras coisas, batizado. E, à noite, a festa dançante. Um rapaz... Ainda hoje ele toca lá (risos), ainda está tocando. Era só sanfona, pandeiro, só essas coisas. E hoje já é uma banda (risos).
P/1 – E você gostava de dançar?
R – Eu gostava, eu gostava. Dançava. Papai não gostava muito de deixar não. Não soltava muito não (risos).
P/1 – E tinha preparativos para ir para essas festas?
R – Tinha.
P/1 – Como é que era a roupa?
R – Todo mundo tinha que ter uma roupa nova. Se organizava para sair sempre com uma roupa nova, que nunca tinha usado, sabe?
P/1 – Você lembra de um momento inesquecível numa dessas festas?
R – Lembro muita coisa porque lá a gente encontrava todo mundo, passava a noite todinha na festa, todo mundo ficava ali. Muita coisa boa, lembro-me bastante.
P/1 – E teve algum namorado nessa época?
R – Tive sim (risos).
P/1 – Como foi o primeiro?
R – O primeiro aconteceu. Foi, não é? (risos)
P/1 – Mas como foi que aconteceu?
R – Eu nem sei bem (risos), sei que aconteceu. Os namoros de antigamente, escondidos, sem pai saber jamais, não é?
P/1 – E a mãe? A mãe deixava?
R – Deixava. Ela era mais de deixar escapulir as coisas (risos).
P/1 – Conta um pouco como era o namoro, a paquera. Para a gente conhecer.
R – Ah, era muito escondido, papai não queria não, porque dizia que o povo não tinha noção, e tal. Ele era meio durinho, não era muito de deixar a gente sair não. Lá, todo mundo tomava banho no rio, no porto e nós nunca tomamos banho, porque ele dizia: “Não, não presta não”. Nunca nem aprendi a nadar, porque ele não deixava. Ele não deixava a gente sair de casa.
P/1 – E como você conheceu o seu marido?
R – Lá na Serra do Mel.
P/1 – Foi nessa época?
R – Foi nessa época, quando eu cheguei lá na Serra, em 1980.
P/1 – Ah, foi logo.
R – Foi. Foi em 1987, por aí, não é? Eu casei nesse mesmo ano, 1987.
P/1 – E como foi esse encontro?
R – É porque as coisas chegam... Era uma vila pequena, a gente já sabia quem eram os rapazes e as moças. E aí começa, não é? Aqueles olhares (risos), os interesses, olha para um, olha para o outro, e aí pronto, a gente casou. Até hoje a gente vive casado.
P/1 – Vocês casaram no civil?
R – Foi, só no civil mesmo.
P/1 – Sei. Teve alguma comemoração?
R – Normal. Comemoração assim, vai ao Cartório, casa. Simples, casamento simples.
P/1 – E você tem filhos, Vera?
R – Tenho, tenho um casal. Todos os dois já são casados.
P/1 – São casados.
R – Tenho três netos.
P/1 – Olha! Diga o nome dos seus filhos.
R – Riana e Rian.
P/1 – E os netos?
R – Juan, Raí e Safira (risos).
P/1 – Que bonito!
R – Safira, a menininha. Ela tem dez meses, a mais novinha.
P/1 – Quando nasceram os netos, como foi?
R – Ah, foi a coisa também muito importante, também como os filhos. Não sei nem definir o filho. E neto, para mim, é um filho.
P/1 – Entendi. Então, Vera, vamos voltar para a escola, que foi tão importante na sua vida.
R – Sim.
P/1 – Depois dessa professora, aquela... Teve outra, outro que marcou você?
R – Outra professora?
P/1 – É.
R – Sim, teve outras professoras. Além de dona Sousa, teve outras que eu passei. Dona Maria Isaura, ela ainda hoje mora lá. E outra professora, chamada Bartira, ela já faleceu. Eram professoras que também marcaram, porque elas exigiam muito do aluno. Aquela professora que, chegando na sala, tinha que aprender. O importante para ela era dizer assim: “Pronto, aquela fulana ali já sabe ler porque fui eu que fiz ela ler, ensinei”. Ela tinha essa função. E ficava muito feliz quando dizia assim: “Olha, fulana já está soletrando, já está lendo”. Uma admiração.
P/1 – E você disse que aí, sim, terminou o oitavo ano, que era a quarta série. O ensino fundamental.
R – O ensino fundamental menor, que era no Porto do Mangue, era até a quarta, não é?
P/1 – Sim, mas depois vocês mudaram para poder fazer depois.
R – Sim.
P/1 – Então... E aí você disse que chegou no ensino médio e não tinha ensino médio.
R – Não tinha professor.
P/1 – Não tinha professor, então não acontecia. Aí, como vocês faziam?
R – Acontecia de forma... Eu estudava em Mossoró, num colégio em Mossoró, porque não tinha na Serra do Mel, professor. E daí foi se organizando, organizando até terminar os estudos. Aí foi quando eu fiz a faculdade e pronto, parei, não estudei mais. Mas aí eu me aposentei e fiquei assim, me acomodei.
P/1 – Calma! Tem muita história nesse pedaço (risos). Você estava dizendo da dificuldade dos professores irem, que não tinha professor.
R – É, não tinha não.
P/1 – E como era isso? Conte para nós.
R – A dificuldade de professores?
P/1 – Uhum.
R – Porque é assim... Lá na Serra do Mel, como eu já disse, era de cinco quilômetros uma vila. A Vila Centro é onde ficava a “escola mãe”, que eles chamavam. Escola mãe porque é a escola maior, lá tem do sexto ao nono, e o ensino médio. E as vilas, cada uma tem uma escola, que chamava de Grupo, mas agora já chamam colégio. E lá tem do primeiro ao quinto. Já o sexto vem para a Vila Mãe, para a Vila Centro, certo?
P/1 – Ah, entendi.
R – Hoje, não é? Porque antigamente não tinha. Antigamente, todo mundo dava um jeito de ir para a cidade mais próxima, que era Areia Branca, Mossoró, Assu, Carnaubais.
P/1 – E você disse que foi para Mossoró.
R – Eu fui para Mossoró.
P/1 – E como era ir para lá?
R – Eu ficava lá em Mossoró, eu ficava lá na casa de uma pessoa que eu não conhecia no passado, conheci naquele momento, e fiquei na casa dela até eu terminar o ano. Aí, quando foi no ano seguinte, eu vim para Serra do Mel e foi aí que eu recebi convite para ir trabalhar como professora da pré-escola.
P/1 – Mas você estava estudando ainda.
R – Estava estudando.
P/1 – Suas irmãs foram também?
R – Foram, mas elas não conseguiram. Elas casaram logo e não conseguiram. Delas todas... Elas não passaram nem do sexto, da quarta série, estacionaram ali. Só eu e meu irmão Chagas que fomos.
P/1 – O que fazia você não desistir?
R – Porque eu gostava muito. Gostava não, eu gosto muito de estudar, de ler, sabe? Aí eu tinha assim, sabe, essa vontade e partia para cima mesmo.
P/1 – Vera, você lembra assim de um sentimento quando você conquistava, passava de ano? Você lembra o que você sentia? Descreva aqui para a gente.
R – Eu ficava feliz. Eu tinha... Eu acho assim... Cada um tem uma vontade própria de querer ser, eu sempre queria ser. Tem gente que só quer ter. Eu digo:”Eu quero ser”. Aí, eu queria ser professora, tanto é que eu fiz uma escola na casa do meu pai, eu passei a dar aula particular, fui ensinar tipo uma aula de reforço - Português e Matemática. Isso, as criancinhas da pré-escola, da primeira série, da quarta série. Todo dia tinha aquelas horinhas da tarde. Eu
nem me lembro quanto me pagavam, se era dez reais... Não era nem real na época, era cruzado, uma coisa assim. Me pagavam cinco ou dez cruzados por mês para toda tarde dar aquela aula de reforço. E eu ainda não era professora. Foi a partir daí que foi surgindo a dificuldade de professor, e alguém indicou: “Tem aquela moça lá, daquela casa acolá, e ela é bem boazinha. Meu menino está indo para a aula de reforço, e tal”. Aí, fui chamada para uma seleção.
P/1 – Você era a moça boazinha?
R – Era (risos). Fui chamada para uma seleção para uma vaga. Aí eu fui, fui selecionada, pronto, aí fiquei até me aposentar.
P/1 – Mas que vaga era essa? Conte. Quem chamou?
R – Uma vaga de professor. Porque cada vila colonizada já vinha com uma escola e a casa para alocar o professor que viesse, se na vila não tivesse. Aí então, a direção tomava conhecimento. Ela saía sondando, sem ninguém saber. Eu soube dessa história depois. Ela sondava: “Procura saber”.... Por exemplo, quando eu ainda estudava lá na vila ela dizia para o professor: “Professor, tem algum aluno aí da Vila Alagoas?” Que era a vila em que eu morava. “Eu quero que você me diga quais são seus alunos que se comportam, que têm boas notas para poder você me indicar, porque eu quero colocar lá na vila para trabalhar a pré-escola”. O professor dava os nomes, não é? Aí vinha o chamado: “A diretora disse para você ir na casa dela”. Aí, era para justamente oferecer isso aí. Pronto. E foi a partir daí que eu me tornei uma professora efetiva, ao longo do tempo.
P/1 – E você estava estudando ainda?
R – Estava estudando, estava.
P/1 – Nessa época, você já estava fazendo magistério?
R – Eu estava terminando o oitavo ano, a oitava série. Daí foi quando eu parti para o ensino médio, eu fiz lá na Serra; em seguida, aí, pronto, eu parei. Terminei o ensino médio, foi na época em que eu me casei, tive filhos e deixei o estudo de lado.
P/1 – Mas continuou trabalhando.
R – Continuei trabalhando, trabalhando. Aí veio uma inscrição no vestibular, eu fiz e não passei. Meu pai: “Dê um tempo, dê um tempo”. Aí chega o Telecurso. Quando o Telecurso chegou, fomos trabalhar, fomos estudar, fomos assistir aula, fomos receber capacitações. E eu cada vez mais me empenhava, porque o meu alvo era estar dentro, estudando, vendo acontecer, não é? E quando eu parti mesmo para o Telecurso... Eu até disse à Ana que o meu referencial maior, lá na Serra do Mel, foi o Telecurso. Eu estudei tanto que, quando eu fiz o vestibular, passei (risos). Juro. O meu referencial foi o Telecurso, aprendi mesmo.
P/1 – Vera, conte mais detalhes. Você dava aula na sua casa para os alunos?
R – É, eu dava aula na minha casa para as criancinhas. Eram umas cinco crianças.
P/1 – E foi a primeira experiência.
R – Foi a primeira experiência.
P/1 – Como é que foi? Como é que você se sentiu ensinando? Teve algum aluno especial, de quem você até hoje lembra?
R – Todos. Quando eles me veem, ficam muito felizes: “Minha professora”. Quando me encontram não me chamam pelo nome, só me chamam de professora. “Essa foi a minha professora”. Quando eles me curtem na rede social, dizem: “A melhor professora que eu já tive”. É desse jeito. Esses elogios, eu fico muito feliz. Por isso que eu digo para mim: eu continuo na sala de aula porque eu estou sempre me encontrando com os ex-alunos e tendo essa satisfação imensa deles me dizerem isso.
P/1 – Você foi chamada, foi efetivada para dar aula. Conte como era esse trabalho. Porque você disse que era muito difícil, não é?
P/1 – Era.
P/1 – Você já estava nesse espaço, que era a escola da vila?
R – Era. Então... Quando eu recebi o chamado, aí tinha que ir para Mossoró, a cidade mais próxima, para receber as instruções de professor.
P/1 – Não era o Telecurso ainda.
R – Não era o Telecurso ainda. A equipe vinha de Natal e ia passar uma semana lá numa escola, o dia todinho trabalhando, recebendo as atividades, capacitando, não é? Porque a gente chamava “capacitando professor”. Passando tudo para quando a gente chegasse lá. Era musiquinha, era planejando, ensinando a ser professor, repassando a missão de professor, que era, na verdade, ser professora. Aí então, justamente o que eu queria era ser professora. Porque já que estava inventando de ser professora, não é? Foi quando eu comecei a receber essas instruções, fui gostando, e até hoje...
P/1 – Era para criança que você dava aula?
R – Era para criança da pré-escola, de seis, sete anos. Ainda ensinando as primeiras séries.
P/1 – E você teve algum momento, nesse início lá, que marcou muito?
R – Sim.
P/1 – Conte como foi.
R – Sim, porque as crianças aprenderam bastante. Aí, o retorno era quando os pais chegavam para mim e diziam assim: “Meu menino está lendo como ninguém, lendo bem, ah meu Deus, estou muito satisfeita porque ele está lendo. E ele é muito interessado para ir para a aula”. Sabe, aquela coisa, uma vila bem pequenininha, a vila, a comunidade bem pequenininha. Aí tem a escola lá oferecendo as coisas e eu trabalhava essa parte lúdica, cantando, teatro, tudo. Aí os alunos empolgavam. Todo mundo chamava a atenção, não é? E era uma aula bem produtiva nesse aspecto.
P/1 – Como o Telecurso chegou lá? Você já era professora? Já tinha essa formação lá em Mossoró? Estava fazendo o magistério ainda?
R – Não estava, estava parada. Quando o Telecurso chegou lá, eu estava parada. Estava só com o magistério.
P/1 – Mas já tinha feito o magistério.
R – Já tinha feito o magistério
P/1 – O que o Telecurso trouxe de diferente? Ele chegou e foi aí...
R – Foi aí onde eu cresci profissionalmente. Porque estava estacionada, tinha estudado com essas dificuldades todinhas e pronto, parei ali. Aí, quando o Telecurso chegou, chegou como um rolo compressor, foi chegando e aplainando as coisas. E a gente partiu para cima mesmo, para trabalhar. O primeiro momento foi assim, foi dado início na metade do ano e fomos primeiro para as aulas de reforço. Aqueles alunos que estavam com a escolaridade lá atrás, gente com dezesseis anos, com dezessete anos ainda na sexta série, no quinto, então aí, uma aula de reforço para eles. Passamos um período trabalhando só Português e Matemática. E quando terminava, esses alunos iam fazer uma avaliação para saber se realmente eles iam ingressar na segunda fase do Telecurso, que era da sétima e oitava. Porque a primeira era a quinta e a sexta e quem fosse aprovado naquele momento passava para a segunda fase. E assim aconteceu e foi um sucesso total.
P/1 – O que você acha que... Assim... o que fez sucesso? O que tinha ali no Telecurso que você acha que fez sucesso com os alunos?
R – Porque era um momento novo, uma coisa diferente. O aluno todo dia ia para aquela escola, só o professor ali, com aquele gizinho escrevendo, e aquelas conversinhas. Aí, quando o Telecurso chegou, com muita coisa nova, inclusive a aula, vídeo, a mídia, quem chegou lá, animou, deu aquele ânimo. E chamava o outro: ”A aula é boa, eu gostei, e lá tem uma televisão, a gente vê tudo, e tal”. E, realmente, foi um momento muito bom, muito marcante na educação da Serra do Mel.
P/1 – E como o Telecurso chegou lá? Você teve alguma influência aí? Como chegou lá?
R – Não tive diretamente porque foram os órgãos do tipo a Prefeitura, a Secretaria de Educação. Viram que podiam buscar uma alternativa para tirar aquela educação que estava lá parada, não é? E aí, foi solucionado. Aí, o diretor: “Vamos pensar em professores para cada vila”. Eu só sei que fui uma das escolhidas para ir trabalhar com o Telecurso. Era um desafio. “Aceita?” “Aceito sim, aceito”. Só tenho a dizer que foi muito bom, muito importante também.
P/1 – Eu li que quando você fala do Telecurso - eu li um pouquinho sobre a sua história - você diz que foi uma coisa tão importante, tão marcante... Você consegue descrever para nós o que o fazia tão diferente, além das aulas de vídeo?
R – Porque era uma questão... O aluno, na sala de aula era onde ele se juntava para produzir, todo mundo junto, porque tinha aquela missão. Não era uma aula assim... Um momento em que estava todo mundo buscando o individual. Não. O Telecurso tem aquela forma de juntar todo mundo assim indo buscar o mesmo objetivo, que era o aprendizado. E essa era a parte mais importante, eu acho. Porque a gente sabe que, nas escolas anteriores, todo mundo sentava ali no seu canto e se quisesse aprender, bem; se não quisesse, ficava só ali sentado, como se fosse uma ordem, uma cadeira aqui, outra mais na frente. Aí, o Telecurso, a recepção aberta, organizada, todo mundo participando, ninguém ficava atrás de ninguém, era todo mundo no círculo, isso era muito importante.
P/1 – A Serra do Mel, eu não conheço a história. Tinha alguma coisa a ver com assentamento?
R – Assentamento?
P/1 – Essas vilas, colônias como vocês chamavam, eram assentamentos, era um movimento de agricultores ou foi um programa de governo?
R – Foi um programa de governo. Projetado justamente para locar aqueles salineiros que ficaram desamparados, quer dizer, ficaram sem o trabalho e vieram para a Serra do Mel. Isso era uma forma de não deixar aquele povo parado. E o projeto, todo mundo ia tocar para frente, ia receber as terras, o lote com uma casa, e aí ia cuidar. Tudo pelo governo.
P/1 – O Telecurso, você acha que fazia uma conversa com essa situação? Teve alguma coisa a ver na hora de fazer o trabalho dos professores? Tinha essa realidade que você acabou de contar. Aí o Telecurso chega e eu estou querendo que você conte o que era essa emoção, por que mexia tanto.
R – Sim.
P/1 – Aí eu falei, lembrei de que era uma situação de uma vila de pessoas chegando, morando lá com toda essa dificuldade, e veio o Telecurso. Mexeu alguma coisa lá? Mexia com isso?
R – Mexeu. Foi marcante assim porque, como eu já disse, a Serra do Mel foi colonizada assim: todo dia vai chegando uma família, gente de todas as outras cidades e nunca ninguém tinha visto, pela primeira vez se encontrou. E cada um tinha uma cultura diferente, um modo de viver diferente. E aí a gente foi se juntando, se juntando e todo mundo foi se adaptando à mesma situação ali da Serra do Mel. E da mesma forma foi com o Telecurso. Foi novo, um espanto, muita gente se espantou. “Mas o que é o Telecurso?”. E até porque algumas pessoas já acompanhavam o Telecurso pela televisão, todo dia de manhã tinha aquilo ali. Foi ali que começou a sair a ideia de trazer aquela nova alternativa para poder dar resultados, que foi bom.
P/2 – Então a sua história foi que você precisou sair para ter o ensino médio, estudar o ensino médio fora, é isso? Em Mossoró? Na Serra do Mel já havia?
R – Não foi totalmente o ensino médio.
P/2 – O magistério.
R – Foi, o magistério.
P/2 – Mas as pessoas que estavam ainda na Serra do Mel tinham oportunidade de estudar ensino médio? As outras histórias das outras pessoas?
R – Tinham porque aqueles que tinham condições iam para a cidade vizinha, não é? Para Mossoró, para Areia Branca, para as outras cidades. E o que não tinha, permanecia ali até um dia o estudo chegar. E foi aí onde atrasou. As pessoas com dezesseis, com vinte anos ainda na quinta série. Porque não tinha. Aí a preocupação era essa, não é? Um monte de jovens, de moças e rapazes sem estudar, aí tinha lá uma escola enorme, uma escola muito grande, uma escola do ensino médio lá, do primeiro e segundo graus, parada lá por falta de quem? Então, vamos buscar as alternativas. E foi quando se pensou, eu já disse, no Telecurso.
P/1 – Você fez parte dessas pessoas que pensaram: “E vamos buscar lá o Telecurso”?
R – A gente diretamente numa equipe não, mas a gente ouvia rumores que tinha alguém articulando isso aí e tudo indicava que ia dar certo. E nós fomos nos preparar porque nós podíamos ser professores do projeto. E eu disse: “E eu estou aqui prontinha para ir mesmo”.
P/1 – Como era com seus colegas, sobre essa expectativa do Telecurso? O que eles falavam? Vocês conversavam?
R – Os meus colegas professores também ficaram satisfeitos porque uma questão era deixar também de se deslocar de uma vila para outra, não é? Por exemplo, a Vila Centro, a Vila Rio Grande do Norte... Quem morava ali, ficava ali. E quem não era dali, tinha que se deslocar, tinha que ter o transporte para ir para aquela outra vila, que ficava a cinco quilômetros. Aí desvanecia, as pessoas já não queriam ir, procuravam logo transferir ou morar na Serra do Mel, “porque aqui não vai dar para mim”.
P/1 – O Telecurso trouxe professores? Eu sei que, às vezes, ele não traz fisicamente, mas o Telecurso quando vem, aí começa a ter professor? A gente quer entender como funciona.
R – Tinha. Os professores já existiam lá, na Serra do Mel. Que eram justamente os professores das vilas. Mas, das vilas, quais eram os professores? Da primeira à quarta série.
P/1 – E com o Telecurso, o que aconteceu?
R – Aí essas pessoas foram convidadas para trabalhar porque já dominavam o conteúdo melhor. Por exemplo: “Você domina qual disciplina?” “Geografia”. “Ciências”. Aí vinha, pronto. Então, vamos ficar.
P/1 – Aí começou a ter até o oitavo ano?
R – Até o oitavo ano. Aí eram poucos os professores que tinham formação na área e os que tinham não eram da Serra do Mel, eram de Mossoró. Os da Serra do Mel eram bem pouquinhos. Quer dizer, não existia professor suficiente.
P/1 – Aí, como funcionava então o Telecurso? Explique para a gente porque isso, a gente está gravando essa história então eu estou insistindo nessas perguntas para você contar mesmo como é isso. De repente, acontece uma coisa que muda. Então, esses detalhes são importantes.
R – Foi importante porque assim... Como eu já disse, a escola mãe, não é? Quando o Telecurso chegou lá, cada um na vila ficou na sua, ninguém tinha que se deslocar. Só para o ensino médio, que era lá na Vila Centro. Então, da primeira à oitava séries, ou seja, de quinta à oitava série ele ficava na vila. Quando ele terminasse a oitava é que ele vinha, à noite, lá para o centro estudar na Vila Centro.
P/1 – Essa mudança é que foi mais, pelo que eu estou entendendo, que foi importante.
R – Muito importante.
P/1 – Quer dizer que não precisava ter o professor formado. Conta um pouco mais sobre isso. Isso é importante.
R – Não, porque a maioria dos professores lá eram pedagogos, não é? A questão era essa. Porque não tinha professor de Química, de Física, de Biologia, tinha de História, muito pouco - de um a dois professores. E assim por diante, não é? E para o Telecurso não exigia tanto porque era questão de um professor interdisciplinar, ele trabalhava essa parte aí. Por isso que eu digo: o professor tinha que se empenhar, porque ele não ia trabalhar só Geografia, só Português, ele trabalhava tudo ao mesmo tempo fazendo um projeto interdisciplinar. E aí era bom. Algumas pessoas se sentiram... “Eu não vou não. Eu não tenho coragem, eu não sou de estar nesse momento...”. Mas aí, o importante era que a gente recebia a informação, as capacitações e repassava da forma como recebia. E deu certo. Tanto deu certo que está lá todo mundo. Quem participou desse momento é gente lá que hoje é professor, que é enfermeiro, que é bancário e outros cargos eletivos, por exemplo.
P/1 – Quer dizer que esse jeito deu certo.
R – Deu certo. Deu certo por demais. Durou de sete a dez anos, mas esses anos todinhos ele foi muito bem aceito lá, muito bom para todos.
P/1 – Agora, o professor pode estranhar, não é? O professor dá aula de tudo. Então... eu sou formado nisso...
R – É.
P/1 – Você pode dizer para nós como funcionava? Por que dava certo? Como você defende a ideia?
R – A ideia eu defendo da seguinte forma: porque quando você estava trabalhando uma aula de Português e, de repente, naquela aula surgia uma questão de Matemática, partia também para a Matemática e ia resolver aquela questão. No meio daquela Matemática partia uma questão de Geografia, também ia trabalhar Geografia. E assim, de uma a gente tirava a outra, sabe? Aí, o medo das pessoas era não dar em aula. “Mas aí eu não sei”. Mas aí, não estamos aqui num processo de aprendizagem? Vamos aprendendo dessa forma. Por isso que o Telecurso foi bom, porque ele não se limitava a certo... Não tinha uma bitola, não se limitava. Ele abria o espaço, aí você ia aprendendo. E eu aprendi muito nessa parte aí.
P/1 – Se você pudesse falar o que você mais aprendeu...
R – Essa parte que eu mais aprendi no Telecurso? Tudo. Tudo eu aprendi. Eu não sabia trabalhar dessa forma, fazendo essa relação de disciplinas. E a partir daí, eu aprendi. Eu dominava a minha aula bem direitinho. Aula de Matemática, por exemplo, a gente ia trabalhar a Matemática do cotidiano, já que lá é um projeto agrícola, onde todo mundo vende feijão, vende castanha. Então, a gente ia pegar: “O seu pai vendeu quantos quilos de castanha hoje?” “Tantos quilos”. “A quanto?” Aí a gente partia para a Matemática, não é? E depois a gente formava textos; aí, todo dia uma aula diferente.
P/1 – E os alunos?
R – E os alunos também. É uma maravilha, muito bom.
P/1 – Por que você acha que eles gostavam? Que era uma maravilha?
R – Eles achavam bom porque era uma aula de produção. Pouco a gente pegava no giz, ia para o quadro. Todo mundo se produzia, juntava, basta chegar lá com o tema e, daquele tema ali, produzia o seu texto, cada um ia fazer a sua parte. Aí, no final, socializar. E um grupo ia discutir a opinião do outro. Quer dizer, uma aula de Matemática, aí todo mundo... Cada grupo produzia um assunto diferente, dentro daquele mesmo contexto.
P/1 – Você tem lembrança de algum aluno que falou alguma coisa nessas aulas que você lembra até hoje? Que comprova tudo isso que você está falando? Sabe, que você tenha dito: “Os alunos falavam isso, gostavam por causa disso”.
R – Eles achavam bons os conteúdos, as leituras que a gente tirava. Leitura do livro. Depois, nós íamos fazer encenação daquela leitura em forma de teatro. Aí eles gostavam mais dessa parte, que a gente partia para o concreto, mostrando a realidade.
P/1 – E você lembra de algum aluno que até hoje, quando você fala de Telecurso nessa época, ele vem à sua memória?
R – Eu me lembro de que havia uma aluna lá na minha vila, ela estava um pouco desestimulada. Mas aí eu a trouxe e dei ânimo bastante, mostrando como era. E hoje ela é uma professora. Assim... Ela fez o magistério e ela diz que agradece muito a mim por ter levado esse conhecimento até ela, ter aberto: “Você abriu a minha mente”. E são muitos alunos que me agradecem. No dia a dia lá eu recebo muitos elogios: “A melhor professora que eu tive”. Enfim, muitas outras coisas. E eu fico muito feliz.
P/1 – E nesse processo você teve companheiros, colegas, que também eram marcantes?
R – Bastante.
P/1 – Conta um pouco dessa convivência.
R – Porque é assim…. Quando existia uma dúvida… Porque ninguém sabe tudo, não é? Então a gente chegava... Essa aqui sabe mais de Matemática: “Fulana, me explica isso aqui”. E assim era com o Inglês, com a Geografia, com Ciências. Se ajudavam dessa forma, não é? Conhecia mais essa parte, juntava. E todo mundo saía sabendo a mesma coisa. Sempre a gente trabalhava assim, os professores também tinham essa meta, ninguém querer ser o sabichão, a sabichona, todo mundo tinha que sair num barco só. O importante era produzir na sala de aula e a satisfação vinha depois.
P/2 – E como é o processo de mobilização? Lá no início ainda, voltando um pouquinho para o início... Porque vocês, professores, sabiam do Telecurso, o Telecurso estava chegando, vocês foram convidados a participar da formação. E para levar essa proposta aos estudantes, como é que aconteceu?
R – Como eu já disse, eles se sentiram meio... Para enfrentar o novo, não é? Mas a gente começou a repassar, mostrando a importância e todos foram vendo que era por ali mesmo. Como, por exemplo, não retirar o horário de ele trabalhar no lote com o pai dele, não é? Porque o Telecurso tinha esse espaço. À noite... Já era para ser à noite, para quando ele chegasse da roça já cuidasse de ir para a aula assistir, participar. E, às vezes, a gente fazia passeios, ia visitar outras escolas, outras turmas de Telecurso, a gente levava: “Aqui são os alunos da Vila tal que vieram conhecer vocês”. E tinha aquela interatividade entre alunos. E aí foi bom.
P/2 – Mas vocês precisavam se organizar de maneira especial para poder explicar a proposta?
R – Sim, a gente fazia isso também. A gente organizava...
P/1 – Quem fazia isso?
R – Era a equipe, o professor com o coordenador, o apoio pedagógico todinho. Aí, vamos... Por exemplo, a vila em que eu morava era a Alagoas, vizinha à Vila Sergipe. Aí, vamos levar os alunos da Alagoas para Sergipe e depois trazer os da Sergipe para Alagoas? Aí, todo mundo passava a tarde lá brincando. Brincando assim, na sala de aula eu quero dizer. Apresentando trabalhos. Os próprios alunos formavam os grupos, se apresentavam e todo mundo aplaudia. Depois tinha uma merenda, um suco, uma foto, sabe? Era isso aí, era bem prazeroso.
P/1 – A média de idade deles qual era, nessa época em que vocês chamaram os alunos?
R – Desse primeiro momento? Tinha aluno com vinte, vinte e cinco anos, dezesseis…. Eram todos com a escolaridade atrasada.
P/1 – Pegava todas as idades.
R – Pegava todas as idades, bastava querer.
P/1 – Vocês chamavam de EJA, ou não? De Educação de Jovens e Adultos.
R – Não. Nós chamávamos Telecurso 2000. Hoje é quem está lá. A EJA, uns chamam
ÊJA, outros ÉJA, não é? E está funcionando lá ainda essa parte aí, essa modalidade.
P/1 – E você ainda ouve eles falarem em Telecurso?
R – É, eles trabalham a metodologia do Telecurso, só mudou o nome - de Telecurso para EJA. Mas a metodologia lá é a mesma, sempre fazendo essa mesma coisa. Porque quem aprendeu, aprendeu, a gente aprende e desaprende ao mesmo tempo, não é? Mas quem aprendeu, não desaprendeu (risos).
P/1 – Depois, você vai falar um pouquinho disso, como é que foi ficando. Mas a gente falou muito de você professora, você com os alunos. E quando chegou o povo - vou chamar assim (risos) - o pessoal lá do Telecurso? Como foi essa conversa com vocês? De que você lembra?
R – Quando eles chegaram lá, primeiro tiveram aquela conversa mostrando o que era o projeto, como ia ser, a reformulação no ensino, naquele momento. E foram repassando. Alguns professores, como eu disse, ficavam assim: “Ai, acho que não vou ficar não, porque eu estou vendo que vai ser muito difícil”. E os que desistiram se arrependeram, viu? Porque dizem: “Ah, se eu soubesse, teria engajado no Telecurso”. Quando passou a construir, trabalhar no Telecurso e as coisas foram melhorando. Aí, muita gente que ficou para trás hoje se arrepende de não ter vindo estudar, principalmente.
P/1 – O que você acha que foi muito importante... Tudo isso que aconteceu na formação de vocês?
R – Do Telecurso?
P/1 – É. Tem gente que desistiu, mas tem gente que encarou, esses ficaram. O que foi assim que valeu mesmo, que teve esse resultado na formação?
R – Assim... Porque as pessoas que estavam lá paradas há cinco, seis anos e hoje têm um grau na frente. Porque tudo hoje tem que ter ensino médio. Vai ter um processo seletivo, aí tem um mini concurso, mas tem que ter o ensino médio. Então, quem passou por esse momento, que concluiu o Telecurso, está lá “de boa”. Muita gente que já era empregado mesmo da cidade e estavam exigindo que concluísse para poder ter um aumento no salário, aquela questão dos adicionais, e tal. E foi estudar.
P/1 – Mas vocês, professores, como que o grupo que foi para lá... Quem era, quem foi para lá formar vocês?
R – As pessoas ou...
P/1 – Os coordenadores.
R – Os coordenadores eram de Natal e os professores, muitos foram daqui, do Rio...
P/1 – Como era o nome deles? Você lembra?
R – Os que eram aqui de Pernambuco, do Recife: Carlos Cordeiro, Lula - Luís Lula - Roberto, Paulo Roberto, Matilde, Edileusa. A Mara, ela também foi fazer várias oficinas lá com a gente, oficinas de teatro. E, do Rio, veio uma professora, uma orientadora chamada Estela. E Leni, parece. E tinha Tereza Farias, Vilma Rocha. Se eu esqueci o nome de alguém, não estou lembrando.
P/1 – E o que é que encantava você neles, nas coisas que eles faziam?
R – Cada vez que eles iam lá, levavam coisas novas, não é? E era justamente o que a gente... Quando diziam: “A equipe está vindo”, a gente já sabia que ia trazer muita coisa nova. E era mesmo. Trazia muita informação, muitos tipos de dinâmicas. Enfim, muita coisa boa, não é? Porque sempre era aquele processo. Para a gente não ficar na mesmice sempre tinha uma coisa nova, um objetivo diferente. E sempre deu certo. Aí foi indo, foi indo, foi indo, até... Foi assim... as pessoas também achavam que, como resgatou aquele povo que estava com aquela escolaridade lá para trás, e, quando já chegou, normalizou, aí eu ouvi alguns pais falando assim... Falando que, por exemplo, o filho dele estava saindo da quarta série com sete, oito anos. Aí já ia para o Telecurso, avançava muito, chegava muito novo no Telecurso. Aí, essas coisas foram acontecendo, achando que... Porque quando o Telecurso chegou lá não foi para resgatar aqueles alunos que estavam com a escolaridade lá atrás? Pronto, normalizou. Aí, para a frente, quem estava saindo da quinta série, do quarto ano, aí tinha que ir para Telecurso porque eram duas fases: a primeira fase, quinta e sexta e a segunda, sétima e oitava. Pronto. Terminava na oitava, aí já passava para o ensino médio. Chegava no ensino médio com dez, doze anos.
P/1 – E aí?
R – Aí eles achavam que eles estavam avançando demais.
P/1 – E o que aconteceu?
R – Aí o que aconteceu foi que foram tirando. Foi quando passou do quinto ao oitavo, passou do sexto ao nono. Aí teve uma reformulação nas diretrizes, aí pronto, foi quando o Telecurso não ficou mais no momento.
P/1 – Aí parou a proposta.
R – Foi. Reformulação.
P/1 – Mas o que eu entendi, os professores tiveram aquela formação. Alguma coisa que eles aprenderam, você falou um pouco. Mas eu queria que você contasse novamente a partir daí. Aquela metodologia, você acha que quem ficou, aplica?
R – Aplica. Aplica na EJA.
P/1 – Não, dos meninos que vão chegando na idade certa.
R – Sim, aplica. Porque os professores que receberam aquela capacitação ainda têm aquele manejo de sala de aula. Aquele aprendizado que eles tiveram e viram que era fácil de trabalhar, eles trabalham, muito embora seja na área deles. Por exemplo, a professora de Português, ela trabalha só o Português dela, ela não vai adentrar à aula de Matemática, muito embora entre uma questão de Matemática. Ela pode resolver, mas ela não vai dar ênfase, partir para a aula de Matemática.
P/1 – Agora, na EJA você diz que aplica a metodologia.
R – Aplica a metodologia. Isto é, os professores que receberam essa capacitação, entendeu? Aplicam. Muitos trabalham dessa forma.
P/1 – E o ensino médio acabou chegando lá com o Telecurso, ou não?
R – Ainda existe o ensino médio lá, mas, durante a noite, só na EJA. Aí, no vespertino é que tem primeiro, segundo e terceiro anos.
P/1 – Mas vocês executaram, na época, o Telecurso Ensino Médio?
R – Não, eu nunca trabalhei no ensino médio com o Telecurso porque já eram outros professores - a gente trabalhava de quinta à oitava. Aí, os outros professores do ensino médio é que iam para as áreas específicas, eu nunca trabalhei com ensino médio no Telecurso. E só um certo ano trabalhei com Arte, só com Arte nessa parte.
P/1 – Você?
R – Sim. Trabalhei no ensino médio.
P/1 – Então fala aí um pouquinho (risos).
R – Trabalhava a Arte normal, trabalhava conteúdo e todo mundo fazia... Mostrava o artista que tinha dentro de si, explorando essa questão da Arte - a arte cênica, a arte visual, sabe? Trabalhou essa questão aí. Não fui muito a fundo, também porque eu já estava saindo.
P/1 – E você falou que, por conta disso, você tinha feito magistério e estava parada. Fale um pouco agora dessa fase.
R – Sim. Quando eu fiz o magistério, eu fiquei só no magistério. Depois, quando eu voltei para estudar com o Telecurso, fui fazer o vestibular. E daí passei e continuei trabalhando na sala de aula com o Telecurso e fazendo a faculdade. Aí juntei esses dois momentos: Telecurso e faculdade. Menina, foi muito maravilhoso porque o que eu aprendia com os monitores, com os professores do Telecurso, aprendia também com os professores lá da faculdade, não é? Aí fui juntando os saberes, juntando e repassando. E a minha questão era estar estudando, estar sempre em sintonia para repassar tudo o que eu recebia, informação.
P/1 – Vera, você fez faculdade de quê?
R – De Pedagogia.
P/1 – Você consegue assim... Você falou que tentava reunir os saberes - o da universidade e o do Telecurso.
R – É.
P/1 – Você consegue dizer o que de tão especial do Telecurso você fazia nessa junção? O que você levava do Telecurso que era importante levar?
R – A experiência. A experiência do desenrolar das aulas na faculdade. E também trazia. O que eu aprendia lá, trazia. E juntava os dois saberes. Porque a gente recebia o conteúdo impresso, conteúdo em fitas e estudava duas vezes. Estava estudando aqui o conteúdo, aí depois ligava o vídeo e ia ver toda a informação que já tinha lido no livro. Enfim, juntava as coisas e, quando ia para a faculdade, já ia forçar mais. Enfim, eu vivi um momento só para estudar e repassar.
P/1 – Você já tinha casado?
R – Já tinha casado, já tinha dois filhos.
P/1 – E aí, como é que você fazia para conciliar tudo isso?
R – Eu me dedicava, na maioria do tempo, aos estudos. Só tinha uma folguinha no final de semana, mas durante a semana era assim, era arrochado mesmo.
P/2 – Quando você terminou a universidade ainda estava no Telecurso?
R – Foi, com certeza, dentro do Telecurso.
P/1 – Quanto tempo mais depois, que você terminou a faculdade?
R – O Telecurso começou em 1993, então eu comecei o Telecurso.... Eu entrei na faculdade em 1999, o Telecurso já estava indo quase para o final, mas ainda estava no meio. Mas era muito bom, eu acredito que se o Telecurso ainda estivesse lá, na Serra do Mel, estaria muito bom. Porque as coisas vieram se aperfeiçoando, mudou muita coisa, que a gente vê os projetos, como eu vi lá no Porto do Mangue, eu falei para ela, foi um projeto também... Só não tinha o nome Telecurso, mas era todo do Telecurso. Que era o Projeto Renascer, não é? O Projeto Conquista. Tudo do Telecurso. Metodologia, recursos de materiais, tudo. E eu também trabalhei um ano lá. Aí, o professor lá repassando, eu levei tudo o que eu tinha da Serra do Mel, levei para ele e bateu... O que ele já tinha recebido de informações para o projeto dele, bateu com o meu. Pronto! Aí, para ele... Os mesmos depoimentos que eu ouvia dos alunos, eu ouvi desses alunos do Porto do Mangue, que tinham não sei quantos anos que não estudavam. E, com esse Projeto Conquista, chegaram a concluir.
P/1 – O que é que os alunos diziam? Algumas coisas você já falou, mas o que eles diziam que fazia com que eles não abandonassem? Porque eles sempre abandonavam, não é? O que o aluno dizia, explicando por que nesse ele não abandonou?
R – Porque ele dava oportunidade, tinha o material para estudar em casa e, se não viesse hoje, levava o livro para casa. Mas, no dia em que viesse, tirava as dúvidas com o professor. Enfim, ele estava conciliando o trabalho com o estudo, aí ninguém ficava fora do contexto, sempre dentro, estudando. Tirava aquele momento da sala de aula. No tempo em que eu comecei a trabalhar, era à tarde, não é? E muitos iam trabalhar na roça com o pai e, ao meio-dia, tinham que estar em casa porque também não podia ficar com faltas, não é? Aí, quando não dava para vir de qualquer forma, não vinha. Mas o material estava lá com ele para ele estudar.
P/1 – Você trabalhou até que época? Você falou que se aposentou.
R – Até 2013.
P/1 – Aí já não estava mais...
R – Não estava mais.
P/1 – E você continuou em que momento? Em que série?
R – Trabalhando?
P/1 –
É, nessa época.
R – Nessa época eu fiquei na gestão da escola.
P/1 – E você fez um curso de gestão.
R – Fiz um curso de gestão.
P/1 – Então conta como é que foi.
R – Fiquei trabalhando na gestão da própria escola onde eu trabalhava, e pronto. O restante, até me aposentar, fiquei nesse movimento aí de gestão. Isso acompanhando os professores no planejamento, numa reunião pedagógica. Mas, sala de aula, não fui mais.
P/1 – E com toda a sua experiência, que você acabou de contar para a gente, como é que você usou isso - ou não usou (risos) - na gestão?
R – Eu repassava, eu sempre ensinava ou repassava para os meus colegas como tinha sido, como foi feito, como a minha parte tinha sido feita para poder, também eles, conseguir da mesma forma ter bons resultados. A turma começou, no início do ano, com vinte e cinco anos e foi terminar com vinte e um, com vinte e dois, sabe? Fazer com que aquela turma permanecesse sempre ali. Eu sempre levava essa parte para os meus colegas.
P/2 – Eu queria perguntar: hoje, então, Maria Veranir não está mais em sala de aula (risos), já não está na gestão escolar...
R – Estou não (risos).
P/2 – Mas o Telecurso ainda está, de alguma maneira, fazendo parte da sua vida? Na sua experiência com escola?
R – Eu sempre vejo, não é? Quando tem planejamento no Porto do Mangue, a gente leva a experiência vivida na Serra do Mel para aquele pessoal lá do apoio, e lá eles ficam felizes: “Ah, como é maravilhoso! Ah como é bom. Eu me lembro... Telecurso, eu também estudei o Telecurso”. Enfim, quando se fala em Telecurso todo mundo tem alguma coisa boa para contar, para dizer. O que o Telecurso fez na vida, nos estudos. Que avançou, que recuperou, que estava para trás.
P/1 – Vera, eu estava lendo o que você falou com a Ana. Você falou assim: “Depois, veio um tapete, parece que cobriu” (risos).
R – Foi.
P/1 – “E aí, precisa iluminar”. O que você quis dizer com isso?
R – Assim... Diante de tanta coisa boa que aconteceu naquele momento, aí as coisas... Parece que agora o tapete chegou lá e cobriu tudo, deixou tudo para trás. Não teve mais interesse, ninguém procurou mais investir naquela situação, resgatar a história do Telecurso. Porque ainda existem muitas coisas lá no arquivo - as fitas, a TV, tudo lá guardado. Vídeos. Mas acredito que nem funciona mais, não é? Com fungo, com mofo, essas coisas. Está tudo lá.
P/1 – O que seria essa luz? Poderia ser um holofote.
R – Que acendesse novamente. Como a educação estava lá no escuro, com o Telecurso acendeu. E ver se está... Porque agora tirou, então, se ainda viesse, com certeza a educação ia dar uma nova roupagem lá na cidade, não é? Porque ainda tem muita gente que não terminou. Casou, teve filhos, mas aí o Telecurso dava esse espaço para essa pessoa recuperar os estudos.
P/1 – Vou perguntar uma coisa, não sei se... Não é uma pergunta direta, mas veja se você consegue pensar aqui, com a gente, isso que você acabou de falar: estava desse jeito, aí veio o Telecurso e deu aquela... Tudo isso que você estava dizendo, esse ânimo.
R – Sim.
P/1 – Como você vê assim... O que acontece que aí volta tudo para baixo do tapete? Como que podia... Você foi gestora da escola, sabe como é que funcionam as coisas. O ensino das crianças não sei se está caminhando, mas para esses que desistem de estudar você consegue ver alguma coisa para o futuro? Não sei se foi clara a minha pergunta. Como é que tira o tapete e põe a luz? Com toda a sua experiência.
R – Usando o mesmo pensamento que criou essa situação do Telecurso. Todo mundo se juntando de novo e vendo aquele momento que havia sido muito importante ali e que alguém... Se juntasse a mesma equipe, as Secretarias, o governador, os órgãos responsáveis pela educação, se juntasse de novo e resgatasse, tudo voltaria a acontecer, acenderia novamente a luz. Como eu gosto sempre de dizer, a semente foi plantada, nasceu, agora está com os galhos todos quebrados. Está precisando de alguém ir podar, regar.
P/1 – E sem as pessoas irem lá, do Telecurso? Não vão mais porque já foram, já fizeram, já mostraram.
R – Sim.
P/1 –
Teria como? Sem eles irem lá?
R – Acontecer? Vai tudo depender da equipe da educação, não é? Juntar os chefes da educação, da Secretaria, chamar a Dired, enfim, se alguém buscar, com certeza acontece tudo de novo, é só querer.
P/1 – Tem pessoas ainda lá? Gente que tem a semente?
R – Sim, está lá. A qualquer hora essa semente pode, novamente… Ela, sendo regada, pode crescer, nascer e surgirem novas oportunidades. Eu acredito.
P/2 – Havia algum espacinho especial, dentro da escola, na tua época, que era destinado ao Telecurso?
R – Tinha.
P/2 – Conta para a gente.
R – Uma sala, que era o acervo do Telecurso. Tudo. Onde ficavam as fitas, as TVs, todo o material, a recepção organizava, só do Telecurso. Enfim, não existia outra modalidade, a não ser o Telecurso. Para onde você se virava, lá era Telecurso.
P/1 – E não só na sua escola.
R – Não, era na Serra toda, na Serra toda. E como era difícil, como eu já disse, tinha a Escola Centro e as vilas; cada uma tinha. Aí fizeram os polos para poder funcionar. São cinco polos, ficava só nas Vilas Centro, porque é de cinco em cinco uma vila. Vamos supor assim: cinco vilas, então, aqui no meio, ficava o polo. Então, esses alunos viriam para essa escola do meio. E assim funcionava. A dificuldade de transporte também era imensa. Então, a partir desses polos diminuiu também, porque ninguém se deslocava tantos quilômetros para vir para a Vila Centro. Essas coisas, que eram difíceis, se tornaram fáceis. Aí acabou-se. Quando ficou tudo fácil, acabou-se.
P/1 – Quer dizer, não é uma coisa só, não é?
R – Não.
P/1 – Você está contando que são vários...
R – É, são vários fatores mas que foram juntando, juntando e deu certo. Aí, quando deu certo, estava todo mundo já no topo. Aí foi descendo por conta disso, passou o tapete.
P/1 – E quem passa esse tapete? Como é que acontece?
R – As mudanças de governo. Acontecia mudança, esse governo instalou esse projeto, aí passaram-se quatro anos, depois novamente. Aí, quando mudou tudo, todo esse abaixo.
P/1 – Vera, a gente está quase terminando. Tem algum momento, de todo esse processo muito marcante, que você gostaria de comentar, ou com aluno, ou com seus colegas? Um marco mesmo, acontecimento?
R – O momento marcante que tinha era quando estava todo mundo, todos os professores juntos, a gente passava uma semana na Capital, lá em Natal, recebendo todas as capacitações possíveis. Então, era o momento de estudo bem avançado,
bem poderoso mesmo. Era o dia todinho, até à noite. A gente ficava hospedado em um hotel que tivesse um espaço para trabalhar o dia todo até cansar e só recebendo informações da legislação também; tinha a parte burocrática, a parte de secretaria, tudo. Tudo funcionava muito bem até um dia acontecer o pior, deixar de lado.
P/1 – E de quanto em quanto tempo haviam esses momentos?
R – Durante o ano eram duas vezes por ano, sabe? De noventa em noventa dias também acontecia. Quando vinha para a Capital, vinha para Natal, a equipe ia para a Serra do Mel, passava semanas lá também. Aí assim... Ninguém se deslocava quando eles achavam melhor trazer todo mundo para Natal, e depois, na próxima capacitação, nós íamos para lá para o professor não se cansar muito da viagem para Natal, tal; fazia também esse movimento para não ficar totalmente viajando. Viajavam as pessoas, os orientadores...
P/1 – Era importante eles irem para lá?
R – Era. Era bom porque ele ia viver lá a realidade nossa, não é? Ia vivenciar como vencer a Serra do Mel, ver como as coisas não funcionavam muito bem daquela forma. E ver que era difícil e tinha que ter marra e garra para estar lá dentro, não era para qualquer um. Mas aí, todos que se empenharam, os professores que se empenharam lá, todos saíram vitoriosos.
P/1 – Por que tinha que pegar?
R – Porque era assim... Era uma questão de muito envolvimento, a pessoa tinha que se doar mesmo, estudar muito, era uma questão de estudo. Por isso que eu digo: era uma questão de se doar, partir para cima e dar conta mesmo.
P/1 – Você se lembrou do seu pai em algum momento?
R – Eu lembrei bastante porque era o que ele mais queria, não é? Inclusive, ele faleceu há pouco tempo e ele me viu também nessa batalha. Ele via a gente, se sentia muito orgulhoso quando via esse movimento. Já chegou uma equipe, uma vez, lá na minha casa, gravou lá na minha casa mesmo, na casa dele, não é? Fizemos alguns vídeos lá na presença dele. Ele tinha fé (risos).
P/1 – E ele dizia o quê? Você lembra?
R – Ele dizia que estava satisfeito: “Olha, está vendo? Quem estudou está aí, quem não estudou fica aí vendo a história dos outros”. Aí ele dizia: “Quem tem história, conta. E quem não tem, conta a dos outros” (risos).
P/1 – Olha, essa frase é boa, hein?
R – É. Quem tem história, conta. Assim... Eu tenho história, então eu estou contando, não é? Aqueles que não têm, vamos escutar a minha? (risos). Ouvir. E era desse jeito.
PAUSA
P/1 – O Vitor vai fazer uma pergunta para você que, às vezes, é uma pergunta que fecha. Pode ser até que você repita algumas coisas, mas é mais para fechar tudo o que você falou.
R – Vamos embora, pode perguntar mais (risos). Eu não estou cansada, pode perguntar, Vitor.
P/3 – Tudo o que você falou é muito bonito, a história... A gente ficou quase uma hora e meia contando a sua trajetória. Se você fosse contar isso, essa coisa que você tem de criança, do seu pai te incentivar, e até esse momento em que o Telecurso chega e, como você falou, foi um rolo compressor, tudo, se você pudesse resumir essa história, essa parte que me interessa, eu gosto dos fatos, mas a emoção... Eu queria saber as coisas que você sentiu, sabe? Então, essa sede que você tinha e, depois do crescimento, da metodologia e aí quando chega. Eu queria que você contasse curtinho para mim, mas falando do seu sentimento, como você sentiu esse processo todo.
P/1 – Para concluir mesmo.
P/3 – Para fechar. Eu queria que você contasse a sua história para a gente encerrar com sentimento.
R – É, Vitor, eu quero dizer assim... Quando o Telecurso chegou, naquele momento eu me senti muito feliz de fazer parte dele, de ter recebido o convite, ter imediatamente aceito. E quando comecei a entrar no processo e vi que era tudo, eu já tinha aquela sede de estudar, e com o Telecurso era rico em estudos. Então eu adentrei mesmo e tive o imenso prazer de estar sempre nos conteúdos olhando, vendo fita, assistindo tudo, tudo o que se dizia a respeito do Telecurso. E fui recebendo, também, como eu já disse, as capacitações. E cada uma ia somando com a outra e eu me sentia muito feliz de saber que era um momento de muito conhecimento assim, muito, muito mesmo. E eu digo sempre que o referencial que deu ênfase para eu chegar numa faculdade foi o Telecurso. Estudei bastante, porque cobravam isso da gente, não é? “Você vai ser o...” - chamava-se monitor - “Você vai ser o monitor”. Eles diziam: “Monitor não é só para estar abrindo, botando o vídeo, ligando a televisão, essas coisas. Não, o monitor é para ser rico e receber aquelas informações. E ter, também, uma forma de repassar”. E aí eu fiz, dei conta do recado, me empenhei bastante e, se o Telecurso voltasse para lá, eu também voltaria para estar lá repassando o que eu aprendi para os colegas que chegassem naquele momento.
P/3 – A Márcia até perguntou... Você contou de um momento em que ficavam os professores juntos. Tem alguma história que aconteceu com você que foi marcante, que você fale: “Ah, uma vez teve um caso de um aluno”, ou alguma coisa assim? Uma história que aconteceu com você, que lhe marcou assim?
R – Eu não entendo.
P/1 – Que você destacaria. Porque você falou dos alunos e falou... Ou pode ser também do momento em que você estava fazendo a formação. Sempre foi bom, com os alunos sempre era muito produtivo, mas aquele momento, para você ilustrar para a gente, para você dar um exemplo.
P/3 – Isso, um exemplo. Se teve algum caso que você diga: “Ah, no caso x eu lembro que trabalhei assim com o aluno e foi bacana porque teve um resultado diferente”.
P/1 – Dá um exemplo disso que você fala, principalmente com o aluno.
R – Sim.
P/1 – Que aconteceu e que você falou: “Olha só, se fosse de outro jeito não ia sair assim não”. Você lembra? Não sei se você lembra.
R – Assim, lembrar de um resultado...
P/1 – Do momento. É, que apresente um resultado para você, de um aluno, com o uso da metodologia do Telecurso.
R – É assim... Eu ainda estou atrás de entender a pergunta.
P/1 – A gente pediu para você fazer uma síntese e você fez. Olha, foi isso, eu estudei, fui atrás, fiz faculdade. E agora a gente pediu para você... Se você lembra de algum momento lá, com os alunos, que mostra como era a metodologia do Telecurso. Um momento em que aconteceu uma coisa na sala de aula, inesquecível.
R – Os momentos que eu sempre registrei - e estão registrados na minha mente - é quando a gente fazia a socialização dos conteúdos, não é? Todo mundo tinha aquele empenho de apresentar e havia satisfação porque a gente percebia, quando aquele estava repassando, socializando o aprendizado, via que era todo mundo interessado em repassar uns para os outros. É como eu disse, nenhum lá estava querendo buscar sozinho, todo mundo estava buscando uma forma de sair todo mundo no mesmo barco. Enfim, entendido daquele momento. É isso?
P/1 – É. Era um aprendizado coletivo, não era a competição.
R – Justamente. Ninguém estava competindo ali em saber mais do que o outro, era o exemplo, era todo mundo estar em conjunto, no mesmo barco, todo mundo estava ali buscando uma única coisa, que era o conhecimento.
P/1 – Os alunos.
R – Os alunos.
P/1 – E os professores?
R – E os professores também. Os professores embargavam. Quer dizer, o professor era professor, não era dono do saber, estava ali aprendendo ao mesmo tempo, aprendia igual aos alunos. Eu era aluna e professora ao mesmo tempo, porque eu estava aprendendo como aluno e repassando o conhecimento a mais para o aluno. Mas eu não sabia mais do que ele, nem ele sabia mais do que eu. Quer dizer, estava em construção ali, aprendendo, todo mundo junto.
P/1 – E nesse barco aí, com vocês, professores, acontecia parecido? Dessa troca.
R – Entre os professores? É, a gente trocava... Tipo assim, como eu já disse, uns sabiam dominar o conteúdo melhor do que os outros. Aí, a gente já ia buscar com aquele e saía todo mundo sabendo. Mandaram uma questão de Matemática: “Fulano tem uma experiência maior nessa área, vamos procurá-lo?”. Aí ele repassava. Da mesma forma que ele tinha uma dificuldade na área de Português, a gente também repassava. E assim era o estudo, tinha uma semana lá que a gente tirava para estudar isso aí. Anotava os pontos e quando ia para o Centro, que se juntavam só os professores, aí tinha: “Fulano, me explica isso aqui”. Todo mundo saía sabendo alguma coisa, não era tão difícil não.
P/1 – Era um barco.
R – Era um barco. Com certeza, todo mundo estava num barco só.
P/1 – Fale de novo.
R – Era todo mundo num barco só. Havia professores que tinham medo e diziam: “Ai, eu não dou conta não”. Mas depois íamos fazendo um barco, procurando saber por que é que não aprende. Aí, quando chegava lá, realmente aprendia. Porque, como eu disse, o Telecurso insiste para que você aprenda, você vai para lá aprender, entendeu?
P/1 – Está ótimo! Muito bom.
R – Está certo?
P/1 – E daqui para a frente, você tem algum sonho?
R – Tenho. Assim... Eu já recebi várias propostas para trabalhar e até agora eu não fui. Do ano passado para cá eu não fui porque quero estar só assim mesmo. Meus amigos, quando chegam lá na Serra, ficam sempre procurando os trabalhos que eu já fiz, porque eu fiz um objeto de estudo, uma monografia sobre o projeto de colonização dentro da educação da Serra do Mel, dentro do projeto de educação. Aí eu faço muita pesquisa a respeito e muita gente, quando quer, quando tem assunto da faculdade, aí recorre a mim. Eu sempre acho bom, fico satisfeita de saber que as pessoas sabem que eu tenho aquele material, que eu fiz aquele estudo e que me empenhei tanto. E que eles têm como referencial também, não é? Chegam os alunos lá em casa: “Eu vim aqui porque a professora disse que a senhora tinha isso, tinha aquilo”. E eu digo: “E ela também não tem não? (risos). Porque também participou”. Porque eu fui uma pessoa que também organizei tudo. Tudo do Telecurso eu fiz a história, eu estou sempre em sintonia. Ainda tenho os livros todinhos lá em casa, as fitas, as coisas lá.
P/1 – Você registrou isso, está tudo organizado.
R – Está tudo organizado. As coisas com as quais eu trabalhava, não é? Que eu reproduzia para mim, quer dizer, está tudo lá no meu arquivo. Muitas coisas eu tenho guardadas.
P/1 – Quando os alunos vêm te procurar, eles são da universidade?
R – São da universidade, são do ensino médio. Porque, às vezes, vai fazer um projeto sobre a colonização, sobre a educação, aí eu tenho muitos arquivos, não é? Aí eles vão me pedir emprestado o material.
P/1 – Sobre essa história.
R – É, me chamam para também ir falar a respeito. Eu já fui. Inclusive, no ano passado, esse trabalho que já foi feito lá na Serra do Mel serviu de referencial para a Semana Pedagógica lá no Porto do Mangue, mostrando a experiência que nós tivemos. E os professores começaram: “Ah, é muito bacana”. Alguns até disseram: “Eu já estudei o Telecurso lá na minha vila. E era muito bom”. Eu nunca vi ninguém dar uma má nota ao Telecurso, todo mundo só tem o mesmo pensamento: era muito bom. Era muito bom. Foi muito bom mesmo. Eu que o diga. Eu digo que foi bom porque foi. Eu estava lá e vi tudo de perto. Eu assisti o início, o meio e o fim, eu vi tudo acontecer lá. Quando eu via que as coisas não estavam dando certo, eu ficava: “Ah, meu Deus”. Ficava desesperada, não é?
P/1 – No final?
R – Sim, quando não estava mais dando certo. Não, só tem uma turma do Telecurso esse ano, no próximo ano não vai ter mais, e não sei o quê, e tal. Tudo isso. Mas eu estava sempre... Mas não dependia de mim. Se dependesse, ainda estaria lá.
P/1 – Agora você divulga essa história.
R – Divulgo sim (risos). Eu fico...
P/1 – Como diz seu pai...
R – É. As minhas amigas até ficam: “Quem é do Telecurso, tanta coisa boa que aconteceu”. Mas não depende dos professores, não depende de nós, depende de um conjunto de pessoas: a Secretaria, as pessoas que têm cargos lá...
P/1 – Não é possível fazer um projeto independente.
R – É possível porque existe a demanda, existem os alunos. Acho que se chegasse alguém para fazer um novo projeto, como o Projeto Conquista que teve no Porto do Mangue, ia ter muita gente, porque tem muita gente lá com a escolaridade atrasada. Na verdade, como eu disse, naquela época, o Telecurso resgatou e preparou, está lá, hoje tem muita gente lá numa formação, um emprego, graças ao Telecurso. Muita gente agradece porque, realmente, a fonte maior de estudo que teve na Serra do Mel até hoje foi o Telecurso. Muito bom.
P/1 – Vera, a gente terminou. Você quer falar alguma coisa, registrar alguma coisa que a gente não perguntou? Sabe, uma coisa que eu não perguntei e ninguém aqui.
R – A respeito do Telecurso?
P/1 – Do que você quiser. Da sua vida, do Telecurso, alguma coisa que a gente não perguntou.
R – Eu queria saber assim, tipo fazendo até uma pergunta, se não teria... As pessoas que se envolveram no passado, se não voltariam a ter o mesmo pensamento, criando esse projeto lá na Serra do Mel de novo para a gente poder assistir agora. Eu estaria lá só para assistir esse momento. Se tivesse, seria muito bom.
P/1 – A mesma pergunta que eu fiz para você, não é? (risos). A pergunta que eu fiz foi no sentido de vocês fazerem autonomamente, sem precisar de alguém de fora.
R – Pois é, mas aí poderia fazer. Eu mesma estou preparadíssima para fazer acontecer, mas aí não depende da minha parte. Mas aí...
P/1 – Teria que ser uma política pública.
R – É, tinha que ter uma, principalmente a política pública poder encaminhar as coisas. Porque, na época, foi o prefeito de lá que teve esse pensamento. Chamou a secretária de educação e aí juntou as Secretarias e fizeram as parcerias. E deu certo. E se credenciar alguém a chegar, como da primeira vez, a fazer essa parceria, volta tudo a acontecer de novo. Eu acredito.
P/1 – No âmbito dessa discussão, das políticas de educação.
R – É verdade.
P/1 – E sobre isso, você quer falar mais alguma coisa? Uma experiência sua de vida para a gente fechar?
R – Sim. A minha experiência de vida foi boa enquanto durou esse momento, muito boa. Eu tive momentos importantes na educação, eu me dediquei bastante, estudei, estudei. Hoje, eu estou muito satisfeita porque sei que várias pessoas que passaram por mim... Posso até dizer, passaram por mim no momento da sala de aula... Fico muito feliz quando chego em certos cantos, que eu vejo sentados no balcão, sentados no birô, trabalhando num hospital, certo? A minha satisfação é imensa quando eu vejo esse povo que passou pelo meu momento também, no momento de aprendizagem. E fico feliz com isso (risos).
P/1 – E como foi contar a sua história? O que você achou de contar a sua história?
R – Achei importante, é o que eu quero contar. Já que eu não posso mais construir essa história, eu vou pelo menos contar a história, não é? (risos). Construir assim, nessa questão, que eu não estou mais na atividade da escola. Mas se acontecer de precisar, estou lá a todo momento, como tem acontecido, não é? Me chamam para participar de algum evento.
P/1 – Muito bom. E para nós foi um privilégio.
R – Foi?
P/1 – Eu aprendi bastante, conheci muita coisa. Obrigada.
R – Maravilha! Eu também fico feliz (risos).
P/1 – Vera, fale para a gente o tamanho, o que era a colônia. Você já falou, no começo, mas só para a gente fechar agora. O que foi essa colônia, por que ela existiu, o tanto de trabalhadores e a questão da plantação dos cajus. E aí, quantos alunos vocês tinham, não é?
R – Sim. Eu vou ver se... Com relação à colônia, porque quando foi... Foi baseado na história do Brasil, essa colonização. Já que levava o nome dos estados brasileiros, aí passou a ter o nome de colonização. A partir daí foi que se iniciou o projeto de colonização da Serra do Mel, na década de 70. E aí já existiam aulas para todos, de forma fragmentada. Alguns iam para as cidades vizinhas, até um dia se juntarem e trazerem uma solução para a educação. E viram essa situação, que foi a tele-educação à distância.
P/1 – Quantos trabalhadores saíram das salinas e foram para essa colônia?
R – Foram mais de mil famílias que vieram nesse momento da colonização. E cada família tinha os filhos, foi construindo e surgindo a necessidade de professores. E foram se formando as escolas, trazendo professores das cidades, até então chegar ao Telecurso.
P/1 – Que você já contou o que solucionou, não é? Porque os professores não tinham formação, mas o Telecurso vem como uma outra alternativa, isso você contou.
R – É verdade.
P/1 – A demanda era de quantos alunos do ensino fundamental?
R – Aproximadamente quinhentos. Mais de quinhentos alunos, isso para o fundamental - da quinta à oitava. E para o ensino médio existiam também, aproximadamente, duzentos alunos, cento e alguma coisa de alunos.
P/1 – Que estavam sem aula?
R – Que estavam sem aula durante esse período todinho. Eles tinham aula, mas de uma forma que não tinha mais para onde... Que era difícil, não tinha transporte, não tinha professores. Aí, com essa nova alternativa todos vieram para a escola.
P/1 – E no começo vinha a equipe do Telecurso formar vocês, vocês iam para Natal. E depois de quanto tempo mudou, e como foi essa mudança? Para acontecer a formação das pessoas.
R – Sim, então... Como eu já tinha falado anteriormente, quando todos os professores... Não, no primeiro momento do Telecurso os professores receberam inúmeras capacitações, formação de professores. Aí foi formando, formando e quando estavam todos preparados surgiu um novo número de professores, mas aí não foi mais o pessoal da Fundação que veio passar essas informações, ou seja, capacitar esses professores. Os professores que já tinham recebido essa capacitação, essas informações - uma delas sou eu - nós formamos uma equipe de cinco pessoas e fizemos uma nova, quer dizer, formamos uma nova turma de professores. Teve como capacitadores os professores que tinham recebido... Eu me perdi! Dá para reformar?
P/3 – Claro!
R – Assim... Eu estou querendo dizer que os professores que receberam as capacitações anteriores dos mestres da educação que vinham da Fundação Roberto Marinho, foi o que formou esse primeiro momento. Aí, quando partiu para novos professores e que surgiram novos alunos, novas salas de aula, a gente ficou por conta dos professores, do pessoal já da casa, que já estavam totalmente preparados. Aí houve uma nova formação, em que não precisou vir mais ninguém da Fundação, ninguém da Secretaria lá de Natal. Lá, na própria escola, já havia pessoas suficientes para capacitar outros professores, e assim aconteceu.
P/1 – E você disse que era uma equipe de umas seis pessoas.
R – Eram uma seis pessoas. Aí tinham as áreas. Nas áreas de Matemática, de Português e do Apoio Pedagógico.
P/1 – E você foi uma dessas pessoas.
R – Eu fui uma das pessoas que capacitou professores também.
P/1 – Você fazia que área na formação dos professores?
R – Dos professores? Da área pedagógica, todo envolvimento pedagógico, daquela parte que se diz da Pedagogia.
P/1 – Como é que você se saiu nessa experiência?
PAUSA
P/1 – E como você se saiu nessa tarefa, nessa nova tarefa?
R – Eu me senti muito responsável naquele momento, total responsabilidade, mas preparada. Porque eu tinha recebido muitas capacitações e me sentia segura em repassar o conteúdo. E foi um momento muito bom, muito importante para os novos professores, que eram alunos e passaram a ser professores e receberam essa capacitação de outros professores. Enfim, nós somos... Na época, era um conjunto de pessoas que estavam todas repassando conhecimento um para o outro, porque o importante da história não era ninguém querer se sobressair. Enfim, todo mundo ia estar no mesmo barco (risos).
P/1 – Vera, aluno virou professor?
R – Aluno virou professor.
P/1 – Aluno do ensino médio ou até do...
R – Da quinta à oitava série.
P/1 –
Adultos?
R – Sim. E os professores viraram capacitadores (risos). Aluno virou e professor virou capacitador. Enfim, todo mundo envolvido numa nova metodologia, não é? Porque essa parte aí da metodologia foi que funcionou. Todo mundo diferente, num contingente diferente de pessoas, da mesma cidade, aprendendo coisas diferenciadas, num mesmo momento.
P/1 – Diferenciadas?
R – Sim, diferenciadas. O que eu quero dizer? Cada um contava a sua cultura, a sua história - que veio lá da sua cidade e juntava no dia a dia, ali na sala; cada um tinha uma história diferente para contar e construir, não é? Construir a mesma história, ouvindo todo mundo.
P/1 – E você falou que se sentiu segura. Vocês tiveram uma formação específica para fazer a formação dos outros? Uma orientação?
R – Não, diretamente não. E, durante o período em que a gente esteve envolvido no Telecurso, nós nos sentíamos bem preparados para poder repassar. Foi isso que o pessoal da Secretaria disse: “Já que vocês, que são pioneiros...” - diziam assim - “Vocês agora estão preparados para tocar o barco para a frente. Quando precisar da gente é mais para esse tipo de situação, vamos partir para outra porque essa parte aí vocês já estão dominando”. E assim foi feito.
P/1 – Você lembra quem era o secretário de educação nesse momento?
R – Da época, me lembro. Era Marcos Guerra o nome dele. E a subsecretária era Lurdinha Guerra. E ela foi uma das pessoas que se envolveu muito na educação da Serra do Mel.
P/1 – E quando formavam esses professores, o que eles falavam?
R – Os professores ficavam satisfeitos porque estavam ali recebendo aquela capacitação e se sentiam seguros ao ver que nós tínhamos também recebido essa capacitação e tínhamos essa responsabilidade total de repassar para eles.
P/1 – Você lembra de alguém, em algum momento? Alguma situação em que isso ficou muito evidente? Como a gente falou da outra vez, algum exemplo que mostra?
R – Os que receberam a capacitação se sentiram seguros também. Estavam munidos de informações e se sentiam seguros. Qualquer coisa, qualquer dúvida, eles recorriam à gente. Era dessa forma.
P/1 – Você lembra de algum momento assim que você até... Sabe aquele que grava na memória assim? De um momento em que você estava ali formando os outros professores que... Ou te emocionou por algum motivo?
R – Nesse momento, é como eu disse, eu me sentia muito feliz de saber que o que eu tinha aprendido estava também repassando, e alguém estava aprendendo através do meu conhecimento. Sempre assim, nesse mesmo pensamento.
P/1 – E formaram uma rede.
R – Sim, com certeza.
P/1 – Além do barco!
R – Além do barco! (risos)
P/1 – Muito bom! Obrigada, mais uma vez, Vera!
R – Nada, eu é que agradeço.
FINAL DA ENTREVISTARecolher