P - Então dona Maria, a primeira coisa é boa tarde, a gente aqui do Museu da Pessoa agradece muito a presença da senhora. A gente começa as nossas entrevistas sempre pedindo pra pessoa falar o nome completo, o local em que nasceu e a data de nascimento?
R - Eu moro em Osasco, e nasci no dia 10 de setembro de 1952, em Várzea Alegre, no Ceará.
P - O nome completo da senhora?
R - Maria Sabino.
P - Fala pra gente agora o nome dos pais da senhora pra gente deixar registrado aqui?
R - Meu pai chamava José Monteiro da Silva e minha mãe chamava Maria Lucy Rodrigues da Silva.
P - Os dois eram cearenses também?
R - Sim.
P - Você sabe o nome dos seus avós?
R - Meu avô chamava José Sabino também e meu avô, por parte de minha mãe, chamava Antônio Rodrigues da Silva.
P - Dona Maria conta pra gente um pouco a história do seu pai, o que seu pai fazia lá no Ceará? Qual era a atividade dele?
R - Ah, ele trabalhava na roça, trabalhava assim... Por lá chama “fazer cana”, chama engenho... Ele era caldeireiro, ele trabalhava na gamela, ele que fazia rapadura, fazia aquelas batidas e o pessoal chamava ele de caldeireiro.
P - Explica pra gente que não conhece como que é a atividade de um caldeireiro?
R - Ele mexe aquela cana, aquele mel e que tiver pronto, ele põe numa forma e faz aquelas batidas, faz aqueles alfininhos e pega a cana e mela a cana de alfininho põe na gamela, aí depois você tira aquela cana e puxa, aí faz aqueles cachos de alfininho. É o que a gente fazia lá, era muito gostoso.
P - E a mãe da senhora o que ela fazia?
R - A minha mãe trabalhava na roça também, ela trabalhava com rendas, ela fazia redes, fazia varanda, trabalhava na roça também depois que ela fazia aquela varanda, à noite ela ia trabalhar, trabalhava até seis horas da noite, até de tardezinha. Porque lá o sol é muito bom, você trabalha até a hora que você quiser, oito horas da noite, qualquer hora que você quiser vir embora você...
Continuar leituraP - Então dona Maria, a primeira coisa é boa tarde, a gente aqui do Museu da Pessoa agradece muito a presença da senhora. A gente começa as nossas entrevistas sempre pedindo pra pessoa falar o nome completo, o local em que nasceu e a data de nascimento?
R - Eu moro em Osasco, e nasci no dia 10 de setembro de 1952, em Várzea Alegre, no Ceará.
P - O nome completo da senhora?
R - Maria Sabino.
P - Fala pra gente agora o nome dos pais da senhora pra gente deixar registrado aqui?
R - Meu pai chamava José Monteiro da Silva e minha mãe chamava Maria Lucy Rodrigues da Silva.
P - Os dois eram cearenses também?
R - Sim.
P - Você sabe o nome dos seus avós?
R - Meu avô chamava José Sabino também e meu avô, por parte de minha mãe, chamava Antônio Rodrigues da Silva.
P - Dona Maria conta pra gente um pouco a história do seu pai, o que seu pai fazia lá no Ceará? Qual era a atividade dele?
R - Ah, ele trabalhava na roça, trabalhava assim... Por lá chama “fazer cana”, chama engenho... Ele era caldeireiro, ele trabalhava na gamela, ele que fazia rapadura, fazia aquelas batidas e o pessoal chamava ele de caldeireiro.
P - Explica pra gente que não conhece como que é a atividade de um caldeireiro?
R - Ele mexe aquela cana, aquele mel e que tiver pronto, ele põe numa forma e faz aquelas batidas, faz aqueles alfininhos e pega a cana e mela a cana de alfininho põe na gamela, aí depois você tira aquela cana e puxa, aí faz aqueles cachos de alfininho. É o que a gente fazia lá, era muito gostoso.
P - E a mãe da senhora o que ela fazia?
R - A minha mãe trabalhava na roça também, ela trabalhava com rendas, ela fazia redes, fazia varanda, trabalhava na roça também depois que ela fazia aquela varanda, à noite ela ia trabalhar, trabalhava até seis horas da noite, até de tardezinha. Porque lá o sol é muito bom, você trabalha até a hora que você quiser, oito horas da noite, qualquer hora que você quiser vir embora você vem...
P - E o que é fazer varanda?
R - Fazer varanda? Elas põem na parede e você vai fazendo aquelas varandas, aquelas rendas bonitas que você põe na rede e fica a coisa mais linda. Ela fazia só pra nós mesmo, só pra casa mesmo.
P - Entendi fazer varanda é fazer aquelas redes?
R - É, aquelas redes, depois ia pro tecido e depois que tivesse pronta a gente ia buscar a rede.
P - E a senhora sabe como o pai da senhora conheceu a mãe da senhora? Como que os dois se encontraram?
R - Não sei como eles se encontraram não, isso eu já não sei, acho que no lugar que eles moravam no Ceará. A madrasta dela é de Brasília, a minha avó morreu e ela se casou com outro rapaz... Quer dizer, ela era enteada, então ela morava em Brasília... Ela escrevia, porque nesse tempo não tinha telefone, era só por carta, que ela queria muito uma de nós. Então só tinha duas irmãs e eu como era caçula, ela falava: “ah, Luci manda a Maria lá pra casa pra ficar comigo, eu tenho cuidado com ela”. Como morava um vizinho dela lá em Brasília, ele ia pra lá de vez em quando. Ele foi lá e disse que ela pagou a passagem pra ele me levar, pra minha mãe mandar uma de nós, aí eu fui, eu falei: “ah ta bom, então eu vou”. Aí eu fui e morei cinco meses em Brasília.
P - Calma dona Maria, nós vamos chegar lá. A senhora então não sabe como seus pais se conheceram, eles estavam ali perto, acabaram se cruzando, né?
R - Isso aí eu não conheço, porque eu não era nem nascida.
P - Esses mistérios da vida, né? E a senhora tem irmãos?
R - Tenho.
P - Fale dos seus irmãos, quantos irmãos a senhora tem?
R - Aqui mesmo em São Paulo tem o Cícero Monteiro da Silva, tem o meu irmão Francisco de Assis Monteiro e tem a minha irmã que está no Helena Maria, ela está doente também. Chama Maria Socorro e o resto está lá no Ceará.
P - Esses três estão aqui em São Paulo?
R - Estão aqui em São Paulo.
P - Eles são mais velhos ou mais novos que a senhora?
R - Não, esse Francisco de Assis é o caçula.
P - Os outros são mais velhos que a senhora?
R - Essa minha irmã que está no Helena Maria é a mais velha de todas, tem o Antônio que está em Várzea Alegre, no Ceará, ele é o mais velho, eu nem sei quantos anos ele tem, deve estar com uns 50 por aí, porque eu estou com 55.
P - Ele é mais velho que a senhora, 50 e tantos, né?
R - E tem mais irmãos lá no Ceará?
R - Tem, tem Raimundo... Não, morreu o Raimundo e só tem o Zé, meu irmão, e esse Antônio.
P - Então são dois irmãos lá no Ceará e três irmãos aqui em São Paulo?
R - Tenho outra irmã que chama Francisca.
P - Lá no Ceará também? A senhora tem seis irmãos vivos?
R - É.
P - E faleceu um, né? E qual é a colocação da senhora entre os irmãos? A senhora é a segunda mais nova? Terceira? Como é que é?
R - É eu sou a mais nova de todos.
P - Mas aí tem aquele caçula que mora aqui... Ele é mais novo que a senhora?
R - O Francisco de Assis mora.
P - Ele é o mais novo de todos?
R - Dos homens, ele é o mais novo.
P - Ah, dos homens, mas a senhora é a mais nova de todos?
R - É, eu sou a caçula.
P - Entendi. Dona Maria, vamos voltar no tempo agora lá atrás, bem lá atrás mesmo... Conta o que a senhora consegue se lembrar da sua casa lá da infância assim quando a senhora era bem pequenininha? Como é que era a sua casa? A rua onde a senhora morava?
R - Era rua de barro. Eram essas casinhas antigas, não era igual aqui, que é tudo de cerâmica, era tudo rebocado de barro, era de telha, e quando chovia molhava, era diferente daqui. Lá é muito diferente daqui.
P - Então, conta pra gente como que é, só pra gente tentar imaginar assim, visualizar a casa da senhora lá de antigamente?
R - A casa? Ah, então, era casa de barro mesmo, era dois cômodos e às vezes o pessoal fazia aquelas camas de palha de banana, aqueles colchões. Antigamente fazia aqueles colchões de folha de banana, folha de bananeira. Colocava na cama ali e a gente dormia na rede. Esse pessoal que passa vendendo, mas só que as redes daqui são muito diferente daquelas do Ceará.
P - Como é que são as redes lá?
R - Do Ceará é uma coisa mais linda, nossa Eu tenho até uma rede que meu irmão trouxe pra mim, mas eu vou armar onde? Não tenho onde armar.
P - Mas a casa da senhora tinha dois cômodos, então era de barro...
R - Era de barro, fogão à lenha, as panelas de barro, não tinha as panelas daqui, que tem agora, de pressão, panela de alumínio. Agora é muito chique, né?
P - Mas a senhora tinha muitos vizinhos? Na rua eram poucas casas?
R - Era bastante vizinho, tinha a minha madrinha... Eu era muito danada... A minha menina, eu acho que ela não chega ao rastro do que eu era, ela é calminha, ela não esquenta. Às vezes meu pai chegava do serviço, porque ele trabalhava na moagem e sempre vinha a cavalo, aí amarrou o cavalo e foi comer debaixo de um alpendre, nesse tempo era casa de alpendre... Ele chegou amarrou o cavalo, mas pra quê? Eu e minha irmã. A Francisca, que está no Ceará, ela chegou e falou: “Maria, vamos montar no cavalo do pai? Papai está quietinho, está almoçando”. Eu falei: “Tá bom”. Ah, meu filho daí ela montou no cavalo e minha mãe estava de resguardo... Tinha a comadre dela, que era minha vizinha... Aí, ela falando: “Tchau, comadre, eu vou passear”, zoando, né? E ela: “Tá bom”. Meu filho, e eu não te conto? Eu meti o relho nesse cavalo e esse cavalo saiu virado e desembestou, não tinha ninguém que pegasse esse cavalo. Aí a minha mãe depois falou – antigamente eles falavam: “Maria, tira esse menino da estrada, porque já vem o cavaleiro”. Eles falavam assim, e o cavaleiro era ela mesma. Aí, veio o meu patrão, o filho do meu patrão, e esse cavalo numa correria, eu falei: “Vai cair, bem feito, você mandou eu meter a chibata e eu meti a chibata”. Aí, o filho do meu patrão falou: “Francisca, você é louca, o que tá acontecendo? Você quer morrer?” Aí foi que ele de lá pra cá, ele pegou no relho do cavalo e conseguiu parar o cavalo, né? Aí ela caiu e quebrou a perna e aí? E o medo de chegar em casa, né? Aí ele falava: “Maria, pelo amor de Deus, o que eu faço?” A minha avó, nesse tempo era viva, aí falou: “Maria, chama a Francisca” – o nome dela é Francisca – “Maria chama a Francisca que tua mãe tá chamando”. Eu digo: “Ih, e agora? Bateu na porta errada, agora sujou mesmo, vou ter que contar, né?” E falou: “Maria tu não conta...” – porque eles falavam que qualquer coisinha quebrava a dieta. Aí mamãe falou assim: “Maria, cadê tua irmã? Cadê Francisca?” Eu falei: “Ah, mamãe, a senhora não adivinha...” “Pelo amor de Deus, Maria, você é louca, conta mesmo, porque eu sei que você é danada mesmo”. “Ah, mãe, Tica caiu do cavalo”. “Maria, pelo amor de Deus, você é louca”. Eu falei: “Não, mãe, mas ela tá bem, não esquenta a cabeça não, porque ela tá bem”. E aí a minha irmã chega mancando, sem poder andar, com a perna quebrada. Aí minha avó veio acudir e falou: “Eu sabia que o desembesto que estava esse cavalo era você e arrumação da tua irmã, porque vocês não têm o que fazer”. Aí meu pai levantou, ele sentiu falta do cavalo, porque ele já ia trabalhar de volta, né? Ele falou: “Maria, cadê o cavalo?” Eu falei: “Pai, o senhor nem imagina... Francisca caiu do cavalo e está deitada e não pode nem fazer nada”. Aí ele falou: “Eu vou dar uma surra em vocês... Olha, dessa vez eu não vou bater em vocês, mas de uma próxima vez que eu chegar e vocês pegarem esse cavalo, vocês vão levar uma surra tão grande que vocês vão passar três dias de cama”. E ela bem caladinha, né? Eu era muito danada. Aí passou e ele foi de volta, saiu e foi trabalhar. “Olha, eu tô avisando, eu vou chegar e se vocês pegarem nesse cavalo eu vou deixar só pra vocês verem”. Eu falei: “Tá bom pai, imagina eu não vou pegar em cavalo não, pra quê?” Eu não caí mesmo, não fui eu que caí, foi ela que caiu, ela mandou eu meter a chibata, eu tangi no cavalo e o cavalo desembestou”. Aí ele saiu e quando a minha irmã já tinha ficado boa, já tinha sarado, estava saradona, ele chegou, aí e falou assim: “Eu vou amarrar esse cavalo...” Eu chego a estar doida pra andar no cavalo, aí eu chamei minha irmã e falei: “Vamos lá, vamos”? Ela falou: “Você é louca Deus me livre, eu não sou doida, vai você”. Eu falei: “Eu vou mesmo”. Aí montei no cavalo do meu pai e saí e cadê o cavalo? Eu fui dar uma voltinha, mas cadê que eu caí? “Eu não sou boba, você é que é besta, né?”“Agora eu vou meter a chibata pra você aprender, bala trocada... Eu vou pagar com a mesma moeda”. Eu falei: “Pode fazer”. Eu dei uma volta no cavalo e voltei, amarrei o cavalo, aí meu pai chegou, eu falei: “Ah, pai, eu fui só ali dar uma voltinha, eu tava com vontade mesmo, eu dei só uma voltinha mesmo e tá aí o seu cavalo”. Ele falou: “Vocês não têm jeito mesmo, né?” Em outra vez, foi minha irmã, a gente jogava baralho, essa minha irmã que está no Helena Maria e essa minha irmã que está no Ceará. Aí, estavam todas jogando dominó, baralho, todo mundo jogando e eu parada, sem fazer nada. Aí minha mãe falou assim: “Maria, ponha o feijão no fogo que eu vou ali e já venho”. Eu falei: “O quê? Eu não vou não, mãe, as meninas estão todas lá, mais os machos, e a senhora vai mandar eu? Eu não vou não”. Ah, meu filho pra quê? A minha mãe pegou um martelo picando na minha boca e foi sangue pra todo lado.
P - Deu uma martelada na boca da senhora?
R - Foi, pra nunca mais... Ela falou: “tô fazendo isso aí pra nunca mais você me responder”. Aí, meu filho, eu saí e a casa da minha madrinha era vizinha, né? Aí eu corri pra casa da minha madrinha e ela falou: “Que foi isso?” “Foi minha mãe que mandou um martelo na minha boca”. Ela foi lá e falou: “Mas comadre Luci, você é louca, você é doida, você quer matar a menina?” “Olha, comadre, é pra nunca mais ela fazer isso”. E nunca mais eu fiz isso. Eu era assim, meu filho. Lá não era igual aqui, que você fala com filho e o filho sai com quatro pedras na mão, respondendo aos pais e às mães... Lá não. Lá, se os pais da gente estivessem conversando com uma pessoa, se você atravessar no meio, ele já olha com cara feia e quando sai aquela visita, ele manda o relho.
P - Dona Maria, além de andar a cavalo o que a senhora e seus irmãos faziam naquela época? Do que a senhora brincava?
R - Eu brincava de boneca, bonequinha de barro, nesse tempo não tinha boneca, nós brincávamos de boneca de barro, aquelas bonequinhas desse tamanhinho, nós pegávamos e brincávamos. Aí ia cozinhar, pegava aquele arroz e ia cozinhar e brincar de boneca debaixo do pé de árvore. Era assim, não tinha boneca, não tinha outra coisa...
P - A senhora era amiga das suas irmãs?
R - Era. Só que eu era muito danada, né? Eu brigava muito também.
P - Então a senhora brincava e brigava com eles?
R - Brincava e brigava, era assim: a gente ia buscar água, eu batia nela, quebrava a vasilha na cabeça dela.
P - Da sua irmã?
R - Ixi Eu sou besta? Não, filho, eu brigava mesmo.
P - A senhora se lembra da primeira vez que viu televisão?
R - A primeira vez que eu vi? Como assim?
P - Que viu televisão?
R - Não lembro. Televisão no Ceará não tinha, era só lamparina... O pessoal chamava de lamparina, o luar da lua. Lá não tinha esse tempo de luz não... Nós pegávamos água na cabeça. E de noite, pra acender luz, não tinha luz não, acendia era com lamparina mesmo, era essas coisas mesmo. Agora é que tem, antigamente não tinha, não. Olha, eu tive cinco filhos, mas eu lavava fralda e essas coisas... Agora tem fralda, tem mordomia, tem muita mordomia, eu criei meus cinco filhos, mas eu nunca comprei uma fralda descartável.
P - Calma que nós vamos chegar lá nos filhos da senhora. E nessa época lá que não tinha luz, era tudo lampião, vocês deviam ouvir muitas histórias naquela época, né? O povo contava história? O pai da senhora?
R - Contava história de lobisomem, né?
P - Então tinha alguma história lá da sua região, uma história de assombração? Ou outras?
R - Eles contavam que existia lobisomem, né? Mas eu acho que não acredito não. Eu não vou acreditar em lobisomem não. Dizem que se os filhos nascessem e fossem pagãos, e se dormisse com a luz apagada, o lobisomem vinha pegar... Dizem que lobisomem era tipo um cachorro e de noite ele virava gente. De dia era gente e de noite ele virava cachorro. Será que era verdade? Eu não acredito, você acredita?
P - Ah, não sei não, viu?
R - Nem eu.
P - E a senhora foi pra escola? Quando a senhora foi pra escola?
R - Frequentei, mas na escola eu só ia pra brincar mesmo.
P - Como que era? A escola era longe da sua casa?
R - Não, era pertinho, não era muito longe não.
P - A senhora ia a pé?
R - Era pertinho.
P - O que a senhora se lembra da escola?
R - Eu me lembro do bê-á-bá, as letras eu conhecia tudinho, as letras eu conheço tudo, só não sei juntar, mas eu sei das letras tudinho, eu conheço todas as letras. Eu venho pra São Paulo sozinha, pego o ônibus, e não sei ler.
P - Mas a senhora lembra como era a escola? De alguma professora? Dos seus colegas de escola? Como é que era? Conta pra gente? Tenta se lembrar como é que era?
R - A escola? Ah, a escola não era igual a essa nossa, né? Era uma escolinha mixuruca, não era carteira, era só cadeira mesmo, não eram aquelas carteiras que existem aqui na escola, só mesmo aquelas cadeiras que você sentava só isso.
P - Era perto da casa da senhora?
R - Era perto, não era muito longe não, era perto sim, mas o pessoal às vezes ia só pra brincar, não ia pra estudar, só pra zoar.
P - Só pra zoar? E aí a senhora ficou quanto tempo na escola?
R - Não fiquei muito tempo não.
P - Mais de um ano?
R - Por aí.
P - Por que a senhora saiu da escola?
R - Sei lá, não sei não, era pouco interesse também, né? Eu vim aqui pra São Paulo também, cheguei aqui e fui trabalhar também.
P - Mas a senhora era novinha lá naquela época ainda na escola do Ceará, né?
R - Era.
P - Aí a senhora começou a trabalhar cedo?
R - Eu trabalhava na roça, tinha uma preguiça...
P - Conta pra gente?
R - Ixi Eu tinha preguiça de ir pra roça, porque eu pegava a enxada e meu pai falava: “Vamos todo mundo pra roça”. Era cedinho, eu pegava a enxada e chegava a poeira levantar. “Ah, não vou trabalhar mais não, eu vou embora pra casa”. Aí, eu vinha pra casa e meu pai ficava lá trabalhando mais os outros, eu vinha pra casa, não vou mentir, eu nunca gostei de roça, não. Agora, se você falar assim: “Maria, tem uma faxina ali, você topa fazer?” É comigo mesmo. Eu limpo e se precisar eu faço a faxina, ganhar dinheiro é comigo mesmo.
P - Mas o pai da senhora não ficava bravo, porque a senhora não queria trabalhar na roça?
R - Ele batia.
P - Batia?
R - Batia.
P - Mas como era o trabalho na roça? Conta direitinho pra gente? O que tinha que fazer?
R - Tinha que plantar arroz, plantar aquelas covinhas de arroz, né? Aí, depois, quando tivesse nascido, você ia limpar, tirar o matinho que tinha e limpar e ficava bonitinho. Só que mais era plantar, né? Mas plantar eu nunca gostei, não, era debaixo de chuva, era seca...
P - A senhora já estava crescidinha nessa época?
R - Tava.
P - Quantos anos que a senhora tinha?
R - Nem lembro, mas devia ter uns 12 ou 13 anos, por aí.
P - E as amigas? A senhora começou a fazer amigas?
R - Eu tinha muitas amigas, as minhas primas também, eu andava mais com elas, eu ia pras festas com elas, aí tinha uma coroa lá, né? Aí, tinha um rapazinho, era primo, aí tinha uma coroa, porque o menino tinha quantos anos? Uns 18, por aí, os dois primos, e ela, uma coroa, você acha que um rapaz ia querer uma coroa? Não ia, você queria?
P - Mas a prima da senhora é que era coroa?
R - Não, é a vizinha, outra vizinha. E aí tinha as festas lá, e as festas eram boas. E ela falando comigo e com a minha prima – essa minha prima está em Brasília agora. Ela falava: “Maria, eu vou pra festa, vou encontrar com o Valdemir...” Valdemir era o cara que ela ia namorar, porque ela estava com interesse de namorar com ele, né? Aí, fui eu e a minha prima, porque ele andava com o primo dele, esse Valdemir andava com o Gilson, os dois eram primos, e eu com a minha prima... Nós éramos quatro primos, eu com ela e ele com o outro. Aí chegamos na festa toda chique, nós íamos pra festa até a pé...
P - Você tinha quantos anos mais ou menos nessa época?
R - Não sei se eu tinha uns 18, era por aí. Aí, nós chegamos lá e os primeiros que nós avistamos foram eles, esses dois rapazes, esses dois primos... Aí nós falamos: “Valdemir, a tua namorada vem aí”. E ele falou: “Que namorada? Minha namorada é você”. Aí nós saímos, eu com ele e a minha prima com o primo dele. Quando essa coroa chegou lá, só faltou comer eu crua... Ela xingava, xingava, eu não estava nem aí. Eu falei: “Aí, Valdemir, tudo por sua causa... Agora vai namorar com ela, porque eu não quero rolo pro meu lado não”. E ele falou: “Quê? Eu não quero ela, eu quero é você”. Eu falei: “Então vamos, vamos passear...” Aí nós saímos, eu com ele e a minha prima com o primo dele. Ixi Ela ficava mordida. E quando vinha embora, quando a festa tava ficando boa, meu pai chamava pra ir embora, pra vir embora pra casa. Não deixava, não... Nós ficávamos com uma raiva tão grande... A minha vizinha falava assim: “Não, compadre, deixa ela aí. Quando elas forem, eu me responsabilizo por elas, pode deixar, eu levo elas”. “Não, comadre, ela vai embora é agora”. E você que falasse alguma coisa pra você ver. Nós vínhamos caladinhas, quietinhas pra casa. Aí vinha eu com o namorado, né? Eu vinha com o namorado, eu ia deixar ele na festa e vir embora? Eu falava: “Se quiser, vem comigo”. Ele falava: “Eu vou”. “Então vamos, você vai ficar?” “Não, eu vou”. E o da minha prima, o outro, também, eu falava: “Se vocês quiserem ficar, ficam. Eu já estou com raiva mesmo, não estou nem aí”. “Eu vou”. Íamos nós na frente e meu pai atrás. Aí dali a pouco vinha a menina, a coroa que estava interessada nele, vinha resmungando, resmungando mesmo, não estava nem aí. Passou por nós que parecia uma... Aí meu pai virou pra mim e falou assim: “Maria...” – porque ele escutou ela falar alguma coisa comigo – “Maria, o que é que – o nome dela era Maria também –a Maria está falando aí?” Eu falei: “Ah, pai, não esquenta não, é bobeira dela, ela está ficando louca”. Aí ele falou: “Eu não quero briga não, você sabe, né, Maria?” Aí eu falei: “Não, pai, o negócio é o seguinte: eu vou abrir o jogo com você... Ela quer namorar o Valdemir e o Valdemir não quer, então eu não sou culpada, eu não tenho culpa, entendeu?” Ele falou: “Então, Valdemir, eu não quero minha filha nesse rolo, hein?” Ele falou: “Não, senhor José, não esquenta a cabeça não, eu quero ela e acabou, não esquenta a cabeça, não”. Eu era danada, eu era danada demais, eu não estava nem aí.
P - Eu fiquei sabendo que a senhora ia a bailes escondido do pai da senhora, é verdade?
R - Ia.
P - Como é que era isso, da senhora sair escondido?
R - Ele dormia e a gente se mandava... Esse pessoal da roça às vezes vai deitar, está cansadinho, né? Aí nós saíamos, nós íamos lá pra Várzea Alegre, pro Ceará, pras festas de lá.
P - Ah, era porque a senhora morava na roça?
R - É na roça, mas na cidade tinha festa.
P - E essas festas que a senhora ia era lá em Várzea Alegre?
R - Era Várzea Alegre.
P - E que mais de amigos que a senhora tinha, sem ser a prima da senhora?
R - Amigo?
P - Amigo, amiga? A senhora saía dessas festas com quem? A senhora se lembra de alguém?
R - Só com as minhas primas, mesmo, e minhas irmãs, só. Eu não era chegada a muitas amigas não, porque o meu negócio era: foi amigo, foi..
P - O Valdemir então foi o primeiro namorado da senhora?
R - Não, foi nada.
P - Esse que a senhora estava falando, que tinha a história da coroa e ele também, não foi o primeiro namorado?
R - Não.
P - Como é que foi o primeiro namorado?
R - Eu namorei tanto.
P - E o primeiro namorado como é que foi?
R - O primeiro namorado? O primeiro namorado meu pai não queria nem ver, não queria nem sonhar, mas eu namorava... Imagina, eu gostava dele e ele gostava de mim.
P - Como é que ele chamava?
R - Ele chamava Francisco.
P - E como a senhora o conheceu?
R - Eu conheci na festa, lá onde ele morava, tinha festa lá perto de onde ele morava, uma festona da hora... Eu ia e não estava nem aí. Quando eu via que meu pai estava vendo, eu dava uma disfarçada, jogava ele pra lá e ia conversar com minhas colegas... Era assim, ele nunca desconfiava. Ele só falava: “Maria, você está namorando aquele cara, né?” Eu falei: “Ih pai, a gente não pode nem conversar? Eu vou ficar de mal com o rapaz? Você ia ficar de mal? Não ia, né?”
P - Por que o pai da senhora não gostava dele?
R - Não sei, esse povo da roça é assim. Quando ele vai com a cara da pessoa, foi, mas se ele não vai com a cara, nem com reza de mulher velha, ele abre o jogo. Agora, o que a minha irmã casou, ele gostou. Agora o Antônio, o Antônio ele conheceu...
P - Espera aí, vamos falar do Antônio então, o Antônio é o marido da senhora, né? Como a senhora conheceu o marido da senhora? Foi há muito tempo atrás?
R - Não, eu conheci o Antônio em São Miguel Paulista.
P - Ah, então foi mais recente? Nós vamos chegar lá. A senhora ficou lá em Várzea Alegre até quantos anos?
R - Até uns 20, por aí, porque eu vim embora pro sítio e do sítio eu vim pra Brasília e de Brasília eu vim pra Santo André e de Santo André eu vim aqui pra São Paulo e fiquei...
P - Então conta pra gente como a senhora saiu do Ceará e foi parar em Brasília? Por que a senhora fez essa viagem? Essa mudança?
R - É porque minha avó morava em Brasília, ela morreu já faleceu, já tem um ano que ela morreu. Porque é assim: ela é madrasta da minha mãe. Então, minha mãe considerava ela como mãe, a gente chamava ela de vó, todos os meus irmãos chamavam ela de vó... E ela morava lá em Taguatinga, nossa Era muito bom lá.
P - Quando a senhora saiu do Ceará pra Taguatinga foi com a família inteira da senhora?
R - Não, fui só eu, eu fui sozinha, porque ela já mandou um moço pra trazer eu de lá pra cá, entendeu? O moço morava lá perto, era conhecido, vizinho da gente.
P - A senhora lembra o dia da mudança? Como é que foi? O dia que a senhora se mudou?
R - Ixi Foi uma despedida danada... Todo mundo chorando.
P - Conta pra gente como que foi?
R - Minha mãe fez uma festa pra mim. Vieram minhas amigas, meus primos, comemorar porque eu ia embora pra Brasília e foram até no carro, a minha despedida, até na hora que eu fui embora, eles ficaram ali... Foi bom demais, deu muita saudade, mas foi bom, eu gostei. Eu passei cinco meses lá.
P - A senhora saiu de lá de carro pra Brasília?
R - De carro próprio do Ceará pra Brasília, porque ele tinha carro próprio mesmo... Esse moço que morava em Brasília, os pais dele moravam lá no Ceará e como ele ficava só de viagem pra lá e pra cá, então ela [a avó] aproveitou a oportunidade pra me levar. Ela já tinha pagado pra ele a passagem, pra me levar. Ele foi lá e conversou com a minha mãe e ela viva escrevendo era direto. Aí eu fui. Depois cheguei lá, tinha uma vizinha dela precisando de uma empregada doméstica pra trabalhar, aí minha avó falou assim: “Maria, você quer ir?” Eu falei assim: “Ah vó, eu vou tentar, se eu não gostar eu venho embora”. Ela falou: “Então vai”. Era em Ceilândia.
P - Mas quando a senhora veio de carona lá do Ceará foi quanto tempo de viagem? A senhora lembra? Deve ter sido complicada a viagem...
R - Não foi muito tempo não, foram uns três dias, porque de Ceará pra Brasília não é muito longe não.
P - Foi tranquila a viagem?
R - Foi, foi sossegado, gostoso.
P - E a senhora lembra o que a senhora sentiu quando viu Brasília pela primeira vez? Uma cidade grande, as luzes da cidade?
R - Ixi A gente sente assim... Sei lá, porque a gente está acostumada na roça, e ver aquela claridão... Aquela coisa mais linda... Porque Brasília é muito bonita é linda, lá não tem nenhuma ladeira, lá é tudo plano. É muito bom, nossa Eu passei cinco meses, morei cinco meses lá, mas eu gostei de lá, é muito bom. Só que depois que eu vim de lá, eu não voltei mais.
P - Mas aí a senhora chegou lá e a sua avó fez a maior festa quando a senhora chegou?
R - Foi, porque eu era muito trabalhadeira, eu levantava cedinho, eu ia ajudar ela. Porque ela trabalhava no restaurante e eu ia ajudar ela, ajudava ela no restaurante, vinha pra casa e fazia almoço pra ela, limpava a casa, fazia tudo... Porque ela tinha uma moça lá, mas era o mesmo que não ter, ela era preguiçosa. Aí eu fazia. Aí depois que nós almoçávamos, nós voltávamos pro restaurante e nós ficávamos até a noite, eu ia passar aquelas toalhas do restaurante, daquelas mesas... Eu passava tudo, costurava, até costurava com ela, pregava alguma coisa, porque ela tinha máquina, overloque... Aí, de vez em quando, eu ia embainhar as toalhas do restaurante pra ajudar ela. Eu ajudei muito ela, eu gostei de lá, é muito bom lá.
P - E a senhora ficou só cinco meses lá em Brasília?
R - Eu morei cinco meses só.
P - A senhora tinha uns 20 anos nessa época?
R - Tinha. Aí de lá eu vim pra Santo André.
P - Mas por que a senhora ficou tão pouco tempo lá em Brasília? Só cinco meses?
R - Porque eu quis.
P - A senhora quis sair de lá?
R - Foi.
P - Por que a senhora quis sair de lá?
R - Por que eu vim pra casa da colega dela... Eu fiquei dois anos lá em Santo André.
P - Colega de quem?
R - Da minha avó.
P - Ah, a senhora descobriu que a sua avó tinha uma colega que morava aqui em Santo André?
R - É, ela foi lá e eu fui trabalhar pra ela, essa daí eu gostei, da colega da minha avó. Aí eu fui e fiquei lá, só que lá era muito longe da minha família, toda vez que eu queria vir pra cá, eu tinha que ligar pra firma que o marido da minha prima trabalhava, em São Mateus...
P - Espera aí, vamos chegar nesse ponto, porque eu não estou entendendo. A senhora estava lá em Brasília e aí conheceu a amiga da sua avó?
R - A minha avó já conhecia.
P - Como é que chamava a amiga da sua avó?
R - Márcia.
P - E a Márcia morava aqui em Santo André?
R - Isso.
P - Aí a Márcia te chamou pra trabalhar pra ela?
R - A mãe dessa Márcia mora em Brasília, os pais dela moravam em Brasília.
P - Entendi. Aí a Márcia te chamou lá em Brasília pra vir trabalhar com ela aqui em Santo André? E aí a senhora falou assim: “vou embora pra São Paulo”?
R - Foi. Aí eu vim pra Santo André.
P - A senhora era novinha?
R - Era, eu passei dois anos lá.
P - A senhora trabalhava na casa da Márcia?
R - Ela estudava e ela tinha duas crianças... Aí eu ficava cuidando da casa, das duas crianças dela, a mãe dela tinha casa em Bertioga, na praia, e todo final de semana nós íamos pra praia.
P - O que a senhora achou de Santo André quando a senhora chegou?
R - Eu gostei muito de lá, era muito bom lá.
P - Como era Santo André naquela época?
R - Uma cidade muito bonita, eu gostei muito é uma cidade muito linda, plana, muito bonita. Eu gostei mesmo, eu passei dois anos lá, então eu gostei de lá.
P - O que tinha de melhor em Santo André?
R - De melhor? Ah, pra mim não fez diferença nenhuma, porque o meu negócio era trabalhar.
P - E a senhora trabalhava na casa da Márcia?
R - Sim, eu dormia lá... Eu morava...
P - Como é que era o quarto da senhora?
R - Era bonitinho, tinha cama, tinha televisão, tinha tudo.
P - Tinha televisão no quarto da senhora?
R - Tinha. Nessa japonesa também tinha.
P - Lá na casa da Márcia, no seu quartinho... E o que a senhora via na televisão nessa época?
R - Ah, eu via tanta coisa bonita que eu nunca tinha visto na minha vida: filme, novela, porque eu sempre gostei de novela.
P - A primeira vez que você viu televisão foi aqui em Santo André ou em Brasília?
R - Em Brasília eu já tinha visto, em Brasília tinha televisão na casa da minha avó.
P - E aqui em Santo André, quando a senhora estava de folga, o que a senhora gostava de fazer?
R - Nós íamos pra praia.
P - Na folga?
R - Não, na folga não, porque eu morava lá, né?
P - Mas não tinha um dia de folga que a senhora pudesse sair e fazer o que quisesse?
R - Eu só saía com eles, eu não saía sozinha, eu não conhecia ninguém... As únicas pessoas que eu conhecia eram eles. Eles gostavam muito de jogar baralho e ia pra São Paulo jogar baralho, ia passear com as crianças, aonde ela ia, eu ia também.
P - Ia pra praia também?
R - Eu ficava sexta, sábado e no domingo à noite nós voltávamos pra Santo André.
P - E o que a senhora fazia na praia?
R - Tomava banho de praia.
P - Tomava banho de praia junto com a patroa?
R - É lógico. Mas às vezes ela ficava... Porque a mãe dela tinha casa lá, né? Quando ela não podia, eu ia com as crianças pra lá, era pertinho... Bertioga é muito bom, a praia de Bertioga é muito boa.
P - E por que a senhora saiu da casa da Márcia dois anos depois?
R - Eu saí da casa dela porque a família da minha mãe era aqui em São Paulo. Então, era muito difícil, pra mim, vir pra cá... Eu tinha que ligar pro marido da minha prima, ele vinha me buscar... Eu ficava muito chateada. Aí, como minha mãe tinha um irmão, que chama Inácio, o João, marido da minha prima, falou: “Oh, Inácio, vamos buscar a Maria pra cá”. Aí ele falou: “Eu vou buscar, sim”. Aí eu liguei pra ele e falei que podia vir. Eu já tinha falado com a Márcia... “Ah, Maria, mas você vai embora mesmo”. Eu digo: “Vou, fazer o quê? É a maior dificuldade pra vir pra cá, pra ver minha família, que mora tudo em São Paulo”. Aí, ela falou: “Fazer o quê, né?” Aí, quando foi no domingo, meu tio chegou de carro...
P - Dona Maria, a senhora estava falando o seguinte: a senhora morava em Santo André trabalhando e morando lá com a Márcia? Mas já tinha gente da sua família que morava em São Paulo, não é isso?
R - A família da minha mãe estava toda em São Paulo, Santo Amaro, Brasília.
P - O irmão da sua mãe morava em Santo Amaro, aqui em São Paulo... Mas já tinha irmão ou irmã sua que morava aqui?
R - Não.
P - Era o tio da senhora que morava aqui? E como foi isso? Ele foi buscar a senhora?
R - O meu tio? Foi.
P - Conta pra gente?
R - Ele foi buscar e chegando lá a minha patroa saiu e falou: “Maria, tem um parente seu, seu tio, está aí fora, ele veio te buscar?” Eu falei: “Veio, Márcia, infelizmente ele veio me buscar”. E ela falou: “Maria, mas você vai me deixar mesmo”? Eu falei: “Fazer o quê?” Aí, ele explicou pra ela o seguinte: “a família dela é toda de São Paulo e ir pra lá é a maior dificuldade, sacrifício, tem que ligar pro meu sobrinho pra ele ir buscar... Então, fica muito difícil pra ela, aí eu vim buscar”. Aí ela falou: “Então tudo bem”. Ela fez acordo, nesse tempo eu nem sei quanto era, se era cruzeiro, eu não estava lembrando nem de dinheiro, né? Aí, ela falou: “Tudo bem, infelizmente... Ela é uma pessoa muito boa, eu a considero aqui como uma filha, não como uma empregada, mas infelizmente vocês querem isso, fazer o que, né?” Aí ele falou: “Então, Maria...” Eu arrumei minhas malas e despedi dela e nós viemos aqui pra São Paulo, pra casa da minha tia. Ela mora na Vila Iolanda, a minha tia.
P - Então a senhora mudou pra casa da tia da senhora?
R - Sim, a minha tia mora em Vila Iolanda.
P - Ela já morava lá naquela época?
R - Já. Meus tios todos, a minha madrinha em Santo Amaro, o irmão da minha mãe morava em Santo Amaro, a família da minha mãe é em Santo Amaro, Brasília...
P - E aí quando a senhora saiu, o seu tio foi buscar a senhora, a senhora estava doidinha pra vir embora pra São Paulo?
R - Tava, porque é gostoso ficar com os parentes, né? Com a família da gente. Aí eu vim e chegamos lá de tarde na casa da minha tia, aí tinha uma japonesa, colega da minha tia, que tinha uma padaria na Vila Iolanda pertinho... Aí fui lá, comprar pão com a minha prima, a Marly, e ela falou assim: “Oh, Marly, essa menina é sua prima?” Ela falou: “É”. E ela falou: “Ela não quer trabalhar?” Aí ela falou: “Ela acabou de chegar de um...” – a japonesa chamava Doroti – “Dona Dorothy, ela chegou agora de outro emprego, ela veio de Santo André...” Aí ela me chamou e falou: “Você topa trabalhar comigo?” Eu falei: “Topo, eu estou a fim de trabalhar mesmo”. Aí ela me levou na casa dela, eu fui conhecer, era em Jaguaré, pegava o ônibus, descia na Vila Iara, era o ponto final da Vila Iara. Aí ela me levou de carro, eu fui lá, conheci a casa dela, ela tinha duas moças e dois meninos e o marido, chama Carlos, eu falei assim: “Tá bom, eu venho”. Aí, quando foi na segunda-feira, eu fui lá e mandei o barco pra frente.
P - Na casa da japonesa?
R - Na casa da japonesa, nós morávamos na Vila Iolanda... Aí trabalhei e ela gostou, a primeira vez ela gostou e eu falei: “A senhora fala logo se gostou ou não gostou, porque eu já estou dando linha”. Ela falou: “Não, Maria, eu adorei, eu gostei, porque aqui eu coloquei uma menina e não deu certo, porque ela começou a roubar, começou a sumir as coisas...” Eu falei: “Mas comigo não tem nada disso, eu quero trabalhar e quero que a senhora goste do meu serviço e a senhora fala a verdade, porque quando eu tenho que falar, eu falo a verdade...” Ela falou: “Tudo bem”. Aí ela combinou: “Todo final de semana você vem pra casa da sua tia”, porque a padaria era na Vila Iolanda e minha tia morava na Vila Iolanda. O marido dela é muito legal, todos eram legais... Aí eu tinha o meu quartinho, ela já me deu meu quartinho com cama, televisão... Quando eram quatro horas da manhã, o marido dela vinha pra padaria... Aí ele ia me chamar, eu me arrumava e ia pra casa da minha tia. Ele ia pra padaria e eu ia pra casa da minha tia.
P - Isso no final de semana, né?
R - É, na sexta-feira. Aí eu vinha pra casa da minha tia, tinha o meu irmão que morava no Km 18, ele era solteiro e nesse tempo ele trabalhava na White Martins...
P - Ah, então seu irmão já estava aqui em São Paulo?
R - Sim, meu irmão já estava aqui em São Paulo já.
P - E morava com seu tio também?
R - Não, ele morava sozinho no 18, ele morava num quartinho sozinho.
P - Agora, a Doroti, onde a senhora trabalhava, era no Jaguaré?
R - Sim. Só que ela não tinha casa, ela morava de aluguel.
P - Tudo bem, ela morava de aluguel, mas a senhora morava junto com ela, né?
R - Eu morava com ela, eu morava lá direto, era só final de semana que eu vinha embora, da sexta-feira em diante eu já vinha pra cá.
P - E Vila Iolanda é perto de Osasco?
R - É Osasco. Vila Iolanda... Tem Vila Iara, já ouviu falar na Vila Iara? Então, tem a Vila Iara, tem a Vila Iolanda... Vila Iara é o ponto final dos ônibus, o ponto final de Vila Iara é lá.
P - Então já é Osasco, não é São Paulo, né?
R - Já é Osasco, não é São Paulo, é Osasco.
P - Entendi. E a senhora trabalhou muito tempo com a Dorothy?
R - Ixi Trabalhei mais de dois anos, depois fui pro Ceará...
P - Espera aí, a senhora trabalhou mais de dois anos e o que a senhora gostava de fazer com o dinheiro que a senhora ganhava?
R - Ah, eu mandava pro meu pai, eu comprava roupa, um pouquinho eu comprava... Comprava roupa, mandava pro meu pai, eu mandava dinheiro pros meus pais, mas só que eu nunca juntei... Juntar dinheiro pra quê? Eu mandava pro meu pai, que ele estava precisando, né? Ele tava precisando mais do que eu.
P - E a senhora ficou uns quatro ou cinco anos aqui em São Paulo, Brasília, depois a Márcia, depois a Dorothy sem ir pro Ceará? Sem visitar seus pais?
R - Meu pai é que vinha aqui, quando eu estava na Márcia, em Santo André, o meu pai veio passear lá.
P - Sua mãe, não?
R - Minha mãe não, nunca veio.
P - Então a senhora ficou morrendo de saudade da sua mãe?
R - Sim. Ela morreu, a minha mãe, morreu e eu nem vi, o meu pai eu ainda vi, porque eu estava trabalhando lá na Dejofran, no hospital, lá no Regional. Aí ele ligou, falando que queria me ver. Aí eu fiz um acordo com o meu patrão... Com a minha chefe, pra ir lá. Eu fiz um acordo com ela e ela falou: “Olha, Maria tudo bem, você vai visitar seu pai...” O chefe dela era senhor Antônio, e ela falou: “O senhor Antônio vai vir aí e eu vou conversar com ele, explicar tudo direitinho pra ele, aí você arruma sua viagem e não precisa você vir mais...” Aí eu fui ver meu pai.
P - Mas isso foi depois da Doroti? A senhora ficou dois anos lá na Dorothy?
R - É.
P - E a senhora saiu de lá depois de dois anos?
R - Saí, porque eu arrumei o Antônio, porque se não eu estava até hoje, meu filho.
P - Então você vai contar essa história, porque essa história deve ser chique demais. Como foi isso? A senhora trabalhava na casa da japonesa e final de semana a senhora ia pra casa de seu tio lá na Vila Iolanda em Osasco, não é isso? E como é que nessa história toda... A senhora tinha uns 25 anos mais ou menos nessa época?
R - Por aí, né?
P - E como é que a senhora conheceu o marido da senhora nessa vida?
R - Porque a minha irmã veio aqui pra São Paulo e o marido da minha irmã, o tio dele, mora em São Miguel Paulista. Aí eu fui lá, ver minha irmã, eu fui mais meu irmão Cícero. Eu fui lá em São Miguel com meu irmão, visitar minha irmã, e cheguei lá e encontrei o Antônio. Aí começamos a namorar e em seguida fiquei grávida do Anderson, o meu menino, aí pronto...
P - Mas onde a senhora encontrou o Antônio lá em São Miguel Paulista?
R - Porque ele morava sozinho, ele morava num cômodo sozinho. Fui lá visitar ele e nesse visitar começamos namorar e aí já fiquei grávida do meu menino mais velho, que é o Anderson.
P - Mas o seu cunhado que morava em São Miguel Paulista conhecia o Antônio?
R - Conhecia. Eu só fiquei por isso, né? O tio do meu cunhado conhecia ele e tudo, ele era solteiro.
P - A senhora lembra a primeira vez que encontrou o Antônio?
R - Eu encontrei ele na casa dele, aí começamos a namorar, né?
P - Mas conta pra mim como foi esse dia? Alguém te levou e falou: “Oh, dona Maria, eu vou te apresentar um rapaz aqui...” Como é que foi?
R - Não, a primeira vez que ele me viu, ele já ficou todo assanhado, todo enxerido.
P - Como é que foi isso? Conta pra nós?
R - Aí nós começamos a namorar, eu fui na casa dele, dormi na casa dele e foi isso que aconteceu.
P - Ele foi todo enxerido?
R - Todo enxerido pro meu lado...
P - E o que ele falava? Você lembra?
R - Ele falava: “Essa aqui agora é minha”, você sabe, né? Pelo jeito dele você sabe, né? Aí eu fiquei grávida do Anderson. Aí eu falei pra ele: “Olha, Antônio se você não quiser assumir pode deixar que eu mesma assumo, eu trabalho, eu cuido do meu menino, agora dar ele pra ninguém, eu não dou, não”. O meu japonesinho eu não dou pra ninguém, ele parece um japonesinho, o Anderson, meu menino.
P - Mas a senhora tinha quantos anos? Nessa época quando a senhora engravidou?
R - Acho que eu tinha uns 25, não acho que 23 anos por aí, quando eu tive o Anderson por aí, porque o Anderson está com 25.
P - E a senhora namorava o Antônio? E como era namorar, ele ia visitar a senhora no Jaguaré?
R - Ela ia pra Vila Iolanda, ele ia no 18, porque meu irmão trabalhava e ficava ele e meu irmão, ele ia lá em Jaguaré.
P - E a senhora casou?
R - Eu nunca casei não.
P - Mas como a senhora decidiu ir morar junto com o Antônio?
R - Ah, eu já era maior, então eu segui minha vida, o meu irmão também aprovou, não falou nada, só falou assim: “Você que sabe, você já é de maior, então você é quem sabe o que você quer da sua vida”.
P - Aí logo depois que a senhora conheceu o senhor Antônio, a senhora pediu demissão na japonesa?
R - Não, ainda fiquei bastante tempo, ela me deu o enxoval do Anderson todinho, ela queria que eu voltasse... Quando eu estava grávida do Anderson, ela queria que eu voltasse pra lá... Aí eu falei: “Ah, não”. Então ela falou: “você vem aqui que eu vou dar o enxoval do menino todinho”. Aí ela me deu o enxoval do menino todinho, eu fui lá só buscar, ela me deu o enxoval do Anderson todinho, do meu menino mais velho.
P - Mas antes do Anderson nascer, a senhora já tinha pedido demissão?
R - Já, já tinha saído de lá.
P - A senhora saiu de lá e foi morar onde?
R - Eu fui ficar com meu irmão.
P - Seu irmão morava onde?
R - No 18.
P - 18? O que é 18? É uma rua?
R - É um bairro que chama KM 18.
P - É um bairro de onde? De Osasco?
R - É.
P - Aí a senhora foi morar com seu irmão lá em Osasco, mas e o Antônio, ele estava lá em São Miguel Paulista?
R - Ele vinha de São Miguel Paulista pra casa do meu irmão.
P - Era longe, hein? Como é que a senhora fazia pra ir do 18 lá pra são Miguel Paulista?
R - Eu ia com meu irmão.
P - Mas ia como? De carro?
R - De ônibus.
P - Era muito ônibus que tinha que pegar?
R - Não, não era muito não, pega acho que um direto... Acho que não pega nem trem, pega direto pra lá, eu não lembro mais, mas pega sim porque daqui pra São Bernardo você vai até Osasco e de Osasco você toma o ônibus e de Osasco você pega o ônibus direto que vai pra São Bernardo.
P - E de São Bernardo pra são Miguel Paulista?
R - Não, eu tô falando assim que tem pra São Bernardo e pra São Miguel Paulista, tem ônibus direto também.
P - Direto?
R - Tem. Eu canso de ir porque a minha prima mora em São Bernardo, aí eu vou lá, vou pra casa da minha sobrinha... Eu pego o ônibus direto e chego lá na rodoviária e ela vem me buscar. Ela vem pegar a gente com o marido dela, ele tem carro e vem pegar a gente.
P - Mas aí nessa época que a senhora ficou morando com o seu irmão em Osasco, a senhora não trabalhou não? A senhora estava grávida, né?
R - Eu estava grávida, eu não trabalhei, não. Depois que eu comecei a trabalhar.
P - Como é que era a cidade nessa época?
R - Onde?
P - Osasco, São Paulo, essa região toda aqui, a senhora lembra? Era muito movimentado? Como é que era?
R - Era muito movimentado... Uma cidade, sei lá, muito violenta, né?
P - O que a senhora lembra assim da cidade? Das imagens da cidade? A senhora se lembra de alguma coisa?
R - Não.
P - O que era diferente de hoje?
R - Diferente naquela época? Acho que diferente eram muitas coisas... O pessoal, a violência também, porque naquela época não tinha muita violência, mas hoje aqui é o que você vê, mais é violência, um querendo comer o outro, matar, eu achei muito estranho.
P - Antes era menos ou mais?
R - Era menos, era muito menos.
P - Onde a senhora morava lá em Osasco era asfaltado?
R - Era.
P - Tinha muito prédio? As casas eram baixinhas?
R - Não, era uma cidadezinha plana, bonitinha lá onde eu morava, era muito plano... Tinha muito movimento, mas tinha menos que aqui.
P - Mas aí a senhora teve o filho da senhora morando lá na casa do seu irmão?
R - Foi.
P - Aí quando a senhora resolveu ir morar junto com o Antônio?
R - Não, eu já estava com o Antônio, eu já tinha ido morar com ele já.
P - Então a senhora ficou um tempinho com o irmão da senhora e depois foi morar com seu marido?
R - Foi, lá em Osasco.
P - Então seu marido veio de São Miguel Paulista pra Osasco?
R - Foi. Ele veio de mudança.
P - Ele trabalhava onde lá em São Miguel Paulista?
R - O Antônio, eu acho que nem lembro, acho que ele trabalhava na Vila Mariana, parece que ele trabalhava de ajudante.
P - Aí quando o filho de vocês ia nascer, ele veio de mala e cuia aqui pra Osasco?
R - Foi.
P - Aí onde vocês foram morar?
R - Cipava.
P - Já foram morar lá no bairro onde a senhora mora até hoje?
R - Eu moro até hoje.
P - E como a senhora arrumou a casa lá?
R - O terreno é da prefeitura, aí nós fizemos casa, eu fiz três cômodos, tem um banheiro... Tem mais no fundo, do outro lado, pra construir também.
P - Ah, a senhora ganhou o terreno da prefeitura?
R - É. Aí eu trabalhei, né? O meu menino também ajudou a fazer.
P - Mas aí o filho da senhora tinha nascido e era novinho, bem pequeninho?
P - O Anderson era.
P - Aí o Antônio veio lá de São Miguel pra Osasco, não é isso?
R - Ele já morava comigo já.
P - Não, a senhora morava com o irmão da senhora em Osasco, aí o filho da senhora ia nascer o Antônio veio lá de São Miguel e mudou pra Osasco, não é isso? Aí vocês foram atrás de uma casa?
R - Nós fomos atrás.
P - Mas ele morou um tempinho com o irmão da senhora?
R - Morou bastante tempo.
P - Aí nasceu o filho e como é que foi ter filho? O que você achou de ser mãe?
R - Foi legal, né? Eu sempre cuidei dos filhos das minhas irmãs, né? Eu era muito apegada com criança, eu sempre cuidei dos meus sobrinhos desde pequeninos e graças a Deus foi muito bom, parto normal, correu muito bem, todos cinco... Eu tive cinco. Tudo normal.
P - Certo, aí, nesse meio tempo, o Anderson crescendo, a senhora e o senhor Antônio conseguiram o terreno da prefeitura?
R - Foi.
P - Quem construiu a casa?
R - Ele, eu, meu menino.
P - Foi um mutirão?
R - Foi, mas agora está bonitinho, lá agora está plano... Lá antigamente era só barraco, mas agora está bonito, agora lá tem asfalto, tudo bonito, tem três cômodos, banheiro, sala, cozinha e do corredor pra cima tem que construir mais...
P - E aí, quando a senhora voltou a trabalhar depois disso? Como é que a senhora voltou a trabalhar?
R - Como assim, depois?
P - Porque a senhora estava grávida sem trabalhar, né? Como é que a senhora voltou a trabalhar?
R - Eu voltei a trabalhar, eu trabalhava em casa de família por enquanto e depois eu trabalhei na prefeitura, depois trabalhei no Regional, que era uma firma chamada Dejofran, a primeira... Trabalhei no shopping.
P - Tudo como auxiliar de limpeza?
R - Auxiliar de limpeza, eu trabalhei quatro meses no shopping...
P - No shopping? A senhora gostou de trabalhar no shopping de Osasco?
R - Gostei. Só que ele caiu uma vez... Nesse tempo que ele caiu, eu estava no Ceará, eu estava trabalhando, mas só que todo dia que eu ia trabalhar lá na Dejofran, no hospital, eu passava lá, porque eu tinha muita amiga lá...
P - No shopping?
R - É. Nesse dia eu tinha ido tirar um documento. Aí, quando eu voltei do ônibus, só ouvi o comentário do pessoal falando: “Ih, o shopping caiu”. E eu digo: “Tá vendo, se eu tivesse passado por lá...” Parece que eu estava adivinhando, né?
P - Mas nisso o Anderson já estava maiorzinho?
R - Tava, o Anderson estava grande.
P - A senhora teve mais filhos sem ser ele?
R - Tive.
P - Quantos filhos a senhora teve?
R - Cinco.
P - Cinco filhos? Tudo casada com o Antônio? A senhora nunca mais separou do Antônio?
R - Nós separamos, nós somos separados, só que a gente é amigo, né? A gente é separado, só que a gente é amigo.
P - Ah, o Antônio não é marido da senhora mais não?
R - Não, é amigo, né? Ele é pai dos meus filhos, é meu amigo, né?
P - Ah, então eu quero saber essa história mesmo? Então a senhora mudou lá pra Rua Cazuza com o Antônio e com o Anderson novinho, começou a trabalhar como auxiliar de limpeza nesses lugares aí... E desde que a senhora tinha ido pra Brasília, a senhora nunca mais tinha ido pro Ceará?
R - Não.
P - A mãe da senhora já tinha morrido nessa época?
R - Já. Já tinha morrido. Só tinha meu pai, só.
P - E como a senhora ficou sabendo que a mãe da senhora tinha morrido?
R - Porque o meu irmão ligava, o Antônio trabalhava de segurança lá no Quitaúna, lá em Osasco, aí eles ligaram pra firma dele, onde ele trabalhava, e eu fiquei sabendo. Eu ia pra lá com o Anderson novinho, lá onde ele trabalhava. Aí eles ligaram lá do serviço do Antônio lá pro Ceará. Aí eu fiquei sabendo que ela tinha morrido, parece que eu estava grávida do William, do outro meu menino, porque são quatro homens e a menina que chama Welineide.
P - Como é que chama?
R - Welineide.
P - Fala o nome dos cinco filhos, do mais velho pro mais novo?
R - Anderson...
P - Quantos anos ele tem?
R - O Anderson tem 25, o Wilson de 24, o William de 23, o Welison vai fazer 22 no dia primeiro de abril, o Welison nasceu no dia da mentira, o que está na Nova Zelândia, você sabe que ele está lá, né?
P - Não, a senhora vai contar pra gente isso daqui a pouco. Mas e aí? Tem a caçulinha mulher, né?
R - Tem a Welineide, que já fez 19 anos.
P - Mas aí voltando no tempo aqui, a senhora ficou sabendo que a mãe da senhora tinha morrido e ficou com vontade de ir lá pro Ceará?
R - Não fiquei, porque eu estava esperando neném, eu nem podia ir, porque estava grávida do menino, né? Eu estava quase pra ganhar, aí nem dava pra eu ir... E cadê grana? Se tivesse grana eu ia de avião, né?
P - E nessa época a senhora trabalhava no hospital ou no shopping?
R - Nessa época eu acho que não trabalhava não.
P - Era só o Antônio que trabalhava?
R - Era só ele que trabalhava... Depois eu trabalhei, depois que eles foram crescendo...
P - Depois que os meninos todos cresceram, né?
R - Aí que eu fui trabalhar.
P - E nesses anos todos como auxiliar de limpeza, tem alguma história assim que te marcou? Uma colega? Um patrão? Alguém que a senhora viu? Alguma história importante na vida da senhora que a senhora lembra até hoje? Triste ou engraçada?
R - Não, eu lembro assim... Porque a minha patroa gostava muito de mim, eles gostavam muito de mim e eu sempre fazia as coisas direitinho... Nossa Tudo... Na hora do meu almoço, ela mandava eu sair, às vezes, fora do horário, ela mandava eu sair pra comprar um negócio pra ela, mas a turma falava que ela puxava muito o meu saco... Eu falava: “Não, não é puxar o meu saco, é porque eu trabalho direitinho”. Se a pessoa trabalha direitinho logo os patrões vão gostar dela.
P - Mas que lugar era esse?
R - Era no shopping. Era muito legal, na hora do meu almoço, tinha um restaurante em frente, aí a minha patroa falava: “Maria, vai lá lavar a louça...” Eu ganhava um dinheirinho, né? Eu limpava a cozinha pra mulher lá do restaurante, depois eu voltava e não trabalhava mais, se estava na hora da minha janta, eu ia, ela não deixava eu ir trabalhar... Era muito legal.
P - E aí quando a senhora chegava em casa o Antônio estava em casa?
R - Estava.
P - O que vocês faziam? O que vocês gostavam de fazer quando estava descansando?
R - Ah, eu ia dormir, né? Eu ia dormir, chegava cansada do serviço e ele bebia uns gorozinhos a mais... Ixi, ele bebia demais... Agora ele parou, né? Eu já tinha os meus meninos, eu chegava e fazia as coisas e quando ele chegava estava tudo pronto.
P - E seus meninos novinhos ficavam onde quando a senhora ia trabalhar?
R - Não, eles já estavam grandes, já estavam grandinhos, eles ficavam em casa e na escola... Meus meninos nunca deram trabalho.
P - E depois de quantos anos a senhora voltou pro Ceará? Depois de ter vindo aqui pra São Paulo?
R - Tem bastante tempo que eu fui... Meu pai... Eu fui visitar ele, ele estava doente ainda, eu fui e passei um mês, porque o meu patrão me deu um mês pra ficar lá... Aí eu cheguei lá e fiquei com ele e ele perguntando, ele perguntou dos meninos, tudinho, porque o pai deles batia muito nos meninos e ele falava assim: “e o Antônio, bate nos meninos ainda?” Eu digo: “Não, pai, só de vez em quando...” Aí, depois eu vim embora, já passou meu tempo, passei um mês e pouco lá... Aí eu falei: “Vou embora, porque tenho que voltar pra trabalhar”. Daí eu já liguei pro meu patrão, pra minha patroa, dona Edna, e ela falou assim: “Olha, Maria quando você chegar, o Antônio...” que era o patrão, o chefe, “o Antônio está sabendo que você voltou e já está trabalhando, qualquer coisa você...” Pra você ver como ela era tão legal “qualquer coisa você não fala nada”. Aí eu falei: “tudo bem, dona Edna”. Aí eu liguei pra ela e falei: “Dona Edna, quando a senhora quer que eu volte a trabalhar?” Ela falou: “Maria, descanse uma pouquinho e depois você vai”. Aí eu cheguei e passou um mês mais ou menos eu recebi a notícia que ele tinha morrido, o meu pai.
P - Mas espera aí, quando a senhora voltou lá pro Ceará, depois de muitos anos fora, como foi a sensação de voltar pra casa de novo?
R - Ah, foi muito triste, porque você deixar seu pai ali sozinho, o pessoal da gente tudo ali, que a gente gosta, é uma coisa triste, mas você tem que fazer... É triste, mas você tem que vir pra casa, deixar tudo lá e vir embora, né?
P - Eu sei, mas não é quando a senhora saiu de lá pra vir pra cá de novo, foi quando a senhora saiu aqui de São Paulo e voltou lá pro Ceará pra visitar o seu pai? Visitar a sua cidade natal? O seu povo? Como é que foi essa sensação de retornar pro Ceará depois de muitos anos?
R - Ah, foi muito bom, eu nem acreditava... O pessoal falava que não acreditava. Você vai pra casa de um, vai pra casa de outro e você não tem nem tempo de ir pra casa de um, porque você chega da casa de um, o outro chega e chama você, e então eu sou uma pessoa só para aquele monte de gente, que tem muito tempo que você não vê. Olha, eu fui pra Juazeiro, pra casa do filho do meu patrão, porque de Várzea Alegre pra Juazeiro é um dia de viagem... Aí eu fui lá, dormi lá na casa do filho do meu patrão, que morava no Ceará... O meu pai trabalhava com ele, o filho do meu patrão... Nossa ele é uma pessoa muito... Ixi Quando nós viemos embora ele veio me trazer na rodoviária, ele tinha carro e foi muito bom, foi muito legal.
P - E o que tinha mudado em Várzea Alegre nesses anos todos que a senhora ficou fora? O que a senhora percebeu que tinha mudado?
R - Aquele pessoal antigo que morava... Porque quando eu saí de lá eu deixei o pessoal tudo, aquele pessoal de sempre, de antigamente e foi se acabando tudo, não tinha mais aquele pessoal que você saiu e você deixou, já são outras pessoas, muitos morreram... Aqueles que você deixou antigamente já morreram... Morreu muita gente que você deixou e não são mais aquelas pessoas que você saiu e deixou, já são outras pessoas, entendeu?
P - E a cidade cresceu nesses anos?
R - Ah, cresceu, porque vai chegando mais gente e vai crescendo cada vez mais, quanto mais você sai, mais eles vão crescendo e vão chegando mais gente pra morar, mais moradia... Aí ficam aquelas mesmas pessoas.
P - E o que a senhora conversou com seu pai nesse mês que ele estava lá?
R - Eu conversei tanto, ele conversava tanto, só que ele ia conversar, mas ele tocava muito violão, fazia festa, ele fazia bailes com o violão, lá em casa o único que ainda aprendeu a tocar violão foi o William, meu menino, foi o único que puxou o meu pai.
P - Aí a senhora ficou um mês lá, matando a saudade?
R - Foi.
P - E aí teve que voltar pra cá?
R - Tive. Aí depois aqui eu soube da notícia que ele tinha falecido, fazer o quê? Não podia mais ir, né?
P - A senhora nunca mais voltou lá?
R - Nunca mais eu voltei.
P - A senhora voltou e foi trabalhar... A senhora estava trabalhando onde? Era essa patroa legal sua que deixou a senhora viajar e tudo, era patroa de onde? Do shopping? Ou do Hospital?
R - Do hospital, a dona Edna, ela era uma chefe muito boa.
P - E os filhos da senhora? Nessa época os filhos da senhora já estavam crescidinhos, né?
R - Já, já estavam todos grandes.
P - O que cada um fazia? Fala pra gente? Do mais velho para o mais novo, o que cada um fazia?
R - Em casa?
P - O mais velho estava com quantos anos nessa época?
R - O Anderson está com 25.
P - Não, isso é hoje, mas quando a senhora voltou do Ceará, quantos anos ele tinha?
R - Ele tinha uns dez por aí, uns 10 ou 12 anos.
P - Então eram todos meninões?
R - Eram pequenininhos, eu só levei a Neidinha.
P - A mais novinha foi com você?
R - A Neidinha tinha sete anos, ela foi comigo, eu deixei o William, o Wilson e o Anderson e o Welison, eu deixei os quatro e levei a outra, eles ficaram com o pai deles, mas eles ligavam pra mim sempre, falando que estavam bem.
P - Mas aí a senhora voltou e foi trabalhar no hospital, a senhora trabalhou quanto tempo lá?
R - Eu trabalhei sete anos, só que eu estou na Caixa, né?
P - Aí depois a senhora saiu de lá e foi receber pensão é isso? O último lugar que a senhora trabalhou foi no hospital?
R - Foi. Agora eu estou na Caixa, por causa de problema de coluna... Então eu saí da firma, aí eu fui lá no escritório da firma e eles falaram assim: “Ah, então você vai pra Caixa, vai ao médico...” Me deu o papel pra ir lá no INSS, aí eu fui, passei no médico, e estou até hoje na Caixa...
P - Aí a senhora saiu do hospital... E nessa época a senhora ainda era casada com o Antônio?
R - Eu estava com ele ainda...
P - Aí os filhos estavam bem mais crescidinhos, né?
R - Já estavam todos grandinhos, já.
P - Então me conta, nessa época, o que os filhos da senhora faziam? Estudavam? Trabalhavam?
R - Estudavam, eles iam pra escola, aí chegavam da escola todos os quatro... Aí o Antônio falava assim: “Enquanto não estudar a tabuada vocês não vão sair pra brincar”. Aí todos os quatro estudavam a tabuada e depois que terminassem, eles iam brincar, o Antônio deixava eles brincar, né? Aí eles ajudavam a fazer o serviço de casa, comida, limpava a casa, principalmente o Anderson que é o mais velho...
P - E o Antônio trabalhava como vigia? Segurança?
R - Era segurança.
P - Ele sempre trabalhou como segurança?
R - Sempre trabalhou como supervisor de segurança, trabalhou no carro do lixeiro também, de ajudante.
P - E os filhos da senhora, onde eles estão hoje? O que aconteceu com eles? Conta a história deles?
R - O mais novo, o Welison, está na Nova Zelândia.
P - O que ele foi fazer lá?
R - Trabalhar, hoje mesmo ele ligou pra mim.
P - Faz tempo que ele foi?
R - Faz mais de cinco meses, porque o Wilson foi primeiro do que ele.
P - Então espera aí, vamos contar, vamos começar do mais velho pro mais novo. Conta o que virou o Anderson? Conta a história dele?
R - O Anderson casou.
P - Com quem ele casou?
R - Casou com a Janis.
P - Lá de Osasco?
R - Não, ela é do Pará.
P - Ele foi pro Pará?
R - Não, ela estudava aqui e ele conheceu ela e namoraram e aí casaram.
P - E hoje eles moram onde?
R - Capão Redondo.
P - E o que o Anderson faz da vida?
R - O Anderson está estudando pra pastor, está fazendo faculdade, ele quer ser pastor.
P - Ele tem 25 anos?
R - Ele parece um japonesinho, eu falo pra ele e ele fala: “A senhora ficou grávida de mim, estava andando muito com os japoneses...” Eu falo: “Não, meu filho, é porque eu olhava muito pros japoneses...” Ele parece um japonesinho, ele acha ruim quando eu falo que ele é filho de japonês...
P - E depois vem quem?
R - O Wilson, ele está nos Estados Unidos.
P - Como é que ele foi parar lá?
R - Ele já estudava inglês aqui e ele fez um curso pra poder ir pra lá... O pastor mandou o passaporte pra ele e ele teve que ir lá fazer tipo uma entrevista, uma prova... Aí foi e passou e aí foi pra lá.
P - O que ele faz lá nos Estados Unidos ?
R - Ele trabalha e estuda, faz faculdade.
P - Trabalha em quê?
R - Ele trabalha de vender livro pela escola e depois que ele está lá, ele já comprou carro, ele está muito bem lá, graças a Deus.
P - Ele estuda pra ser o quê?
R - Ele quer ser médico.
P - Ele tem 20 e poucos anos, né?
R - É. Ele é grandão, é capaz de ser maior que você, bonito ele.
P - Ele já veio te visitar aqui?
R - Não, tem pouco tempo que ele foi e eles já andaram... O Anderson já foi pro Acre, o Wilson já esteve no Rio Grande do Sul, o Wilson já esteve em Campinas, ele foi pra todo lugar.
P - Então vamos continuar a história aqui dos seus filhos. Um mora em Capão Redondo e vai virar pastor, o outro está lá nos Estados Unidos e quer ser médico, agora o terceiro... É o William?
R - Não é o Welison, que está na Nova Zelândia, o caçula.
P - O caçula? Mas não tem o William?
R - O William é o que está em casa, comigo e a menina.
P - O William está na sua casa ainda? O que ele faz?
R - O William faz um biquinho só, e a Neidinha trabalha de telemarketing, ela trabalha no Bom Retiro.
P - E ela mora com você?
R - Mora.
P - Então tem um filho só que está na Nova Zelândia?
R - Dois. O Wilson está nos Estados Unidos e o caçula está na Nova Zelândia.
P - Ah, então na Nova Zelândia só tem um?
R - Eles não estão num lugar só.
P - Um está nos Estados Unidos e o outro está na Nova Zelândia. E como esse foi parar na Nova Zelândia?
R - Ah, eles compraram a passagem, fizeram passaporte e fizeram o curso... O Welison já estuda inglês, já fala inglês, o Wilson também já tinha...
P - Mas o que o Welison faz lá na Nova Zelândia?
R - Ele trabalha.
P - Trabalha com o quê?
R - Eu nem sei, ele falou, mas eu nem sei com que ele está trabalhando lá... Eu sei que ele está trabalhando e estudando, fazendo faculdade também.
P - E a senhora tem saudades deles?
R - Eu sinto, mas eles ligam, hoje mesmo ele ligou.
P - E o que ele falou hoje?
R - O Wilson falou que está tudo bem, que graças a Deus está tudo bem e que não me preocupasse... O Wilson liga também, está até mandando um presente pra mim, um presente pro William, um presente pra Neidinha.
P - E o presente é surpresa ou você sabe o que é?
R - Não, é surpresa. Ele falou: “Mãe, eu estou mandando um presente pro William, pra Neidinha e pra senhora...” Agora que presente que é eu não sei, né?
P - A senhora separou do Antônio faz muito tempo?
R - Faz mais de dez anos... Mas nós somos amigos.
P - E aí ele mudou... Ele teve que sair de casa? Ele foi parar onde?
R - Está em casa mesmo... Eu moro em cima e ele, embaixo.
P - Na mesma casa? Então vocês são amigões.
R - O mesmo terreno... É ele que recebe meu dinheiro, ele paga as contas junto comigo, eu dou o dinheiro na mão dele e ele faz o que ele quer.
P - E o que a senhora gosta de fazer hoje em dia? Como é o dia da senhora hoje?
R - Ah, eu gosto muito de assistir televisão, gosto de assistir novela, eu levanto cedinho e vou limpar a casa, vou preparar o almoço pra almoçar... Tem que comer, porque saco vazio não para em pé, né?
P - Então dona Maria, voltando aqui pra história, então tem uns filhos seus que estão fora, a senhora mora com seu ex-marido, é amiga do seu ex-marido e a senhora estava falando do seu dia que a senhora acorda, vai limpar a casa e o que mais a senhora faz?
R - Lavo roupa sempre, tenho que fazer as tarefas de casa, tem a menina também, que trabalha, ela levanta seis e meia sai e vai trabalhar... Ainda bem que o ônibus da empresa leva, né?
P - A sua filha?
R - É o ônibus leva e traz, é pertinho, uns dez minutos da minha casa pro ponto do ônibus... O ônibus pega em frente ao Banco Itaú, ela entra no ônibus e vai embora e três horas ou duas horas ela está em casa, aí chega e vai pra escola... Só que ela não tinha terminado a escola, o único que terminou foi o William e a única que está estudando é ela.
P - O William terminou a escola e ela está estudando?
R - O William, todo mundo terminou, só ela que não.
P - A senhora gosta de morar aqui?
R - Eu gosto, eu adoro.
P - O que tem de melhor aqui?
R - Tem de tudo aqui, né? Eu gosto daqui... Agora, no Ceará eu não tenho vontade de morar não, só pra passear. Eu estava falando que quando eu aposentar eu vou passear lá, mas pra morar não... Por isso que eu não faço mais esforço pra ir lá, porque eu não tenho mais meus pais, porque já morreram. Então, são só irmãos, e eles ficam mais aqui do que lá... O importante, pra gente, mesmo, são os pais... Porque vai com aquela alegria de chegar, dar aquele abraço e tudo... Já irmão é diferente, né? Pra mim é diferente, ir daqui pro Ceará só pra ver as irmãs? Pra mim não tem graça... Agora um dia eu vou, um dia, passear, com fé em Deus, se Deus quiser, eu vou passear lá.
P - O que a senhora quer encontrar lá no Ceará? Do que a senhora tem saudade?
R - Ah, eu tenho saudade do pessoal de lá, os irmãos da gente... A cidade que você nasceu e se criou. Eu tenho vontade de comprar uma casa em Fortaleza, aí eu tinha vontade de ir embora pra lá.
P - Você tinha vontade de morar em Fortaleza?
R - Eu tenho, Fortaleza é muito bom, é muito bonita, capital do Ceará, lá é lindo, as praias de lá, se você vê... É muito bonita.
P - Tem alguma história importante na vida da senhora que a senhora não contou aqui, que a senhora queria contar? Uma história muito alegre ou uma história muito triste? Ou muito engraçada?
R - Tem a do meu irmão, o Cícero... Uma vez ele caiu, tinha uma cerca e ele caiu, ele ficou estatelado no chão e essa minha madrinha, que eu corri quando minha bateu com o martelo na minha boca, ela falou assim: “Sabe o que é bom comadre Luci” – falando com a minha mãe... “Você pega um pintinho do terreiro, põe no pilão e soca ele e dá pra ele com tudo, com merda, com pena com tudo”. A minha mãe falou: “Pelo amor de Deus, comadre, eu não tenho coragem, essa daí é que tem coragem, essa daí tem coragem de comer até ovo cru”. Aí eu escutei e falei: “O que é?” Peguei um pintinho novo, botei o bicho no pilão, esmigalhei tudo com tripa, com pena, com tudo e dei pro meu irmão, não coei e nem nada e falei: “Toma”. E ele disse: “O que é isso?” Eu disse: “É um pinto todo macetado, bebe aí”. Ele bebeu e eu disse: “Bebe tudo, não faz nem careta”. Ele disse: “Tem mais?” Eu disse: “Vou pegar outro”. Ele bebeu tudinho e não fez nem careta.
P - Mas por que tinha que beber o pinto?
R - Porque ele caiu e o pessoal falou que era bom.
P - Ah, ele estava machucado?
R - Isso, ele caiu de cima de um pé de manga, aí o povo falou que era bom, então eu pisei no pinto lá, esmigalhei, soquei, e dei pra ele beber, mas ele bebeu e não fez nem careta.
P - Mas quando a senhora tomou aquela martelada, quando a mãe da senhora deu aquela martelada na senhora, a senhora tomou também o pintinho?
R - Eu não tomei nada não, saí fora.
P - Quem comeu e bebeu o pintinho macetado foi seu irmão, você não, né?
R - Eu não, saí fora, Deus me livre, só se for pra eu vomitar tudo, né? Você tinha coragem?
P - Eu não tinha coragem de jeito nenhum.
P - Mas a coragem de socar o pinto a senhora teve, né?
R - Ixi Mas o bichinho só deu uma piadinha, a primeira piada foi a morte dele... Eu pisei, macetei bem macetado, eu tirei e não coei nem nada, botei no copo e ele bebeu...
P - E com aquele monte de pena também?
R - Com tudo, pra que coar? Lá é assim... Lá quando o pessoal caía... Aqui, quando a pessoa cai, tem que levar no médico pra enfaixar, tirar raio-X, né? Lá não, você toma um chá de mastruz, maceta aquele mastruz e põe em cima de onde você machucou e sara... Aqui não, aqui tem que ir ao médico.
P - E quando a senhora trabalhou de auxiliar de limpeza no hospital, a senhora viu alguns casos assim de machucado, o que a senhora viu que mais te marcou?
R - Lá trabalhar na emergência é que é perigoso, você vê tiro, bala, gente tudo machucada, mas eu trabalhava mais no berçário, né? Onde tinha os bebezinhos, no berçário só tem criancinha nova, mas sempre quando faltava alguém eu vinha onde o pessoal trabalhava... Aquele pessoal doente que tinha aids, tuberculoso, você tinha que trabalhar com a máscara, aquele setor chama infectologia, o quarto onde só tem os doentes se chama infectologia. Então, ali você tinha que entrar com máscara e tudo... Lá tinha uma presa, eles prendem, quando eu entrei e vi, ela estava morta, mas eu não me assustei não, eu não me assusto com nada, não. “E agora pra tirar essa mulher daí? Como eu vou limpar esse quarto?” Aí a enfermeira falou: “Não, Maria, tem que chamar o investigador lá embaixo no prédio, pra ele vir tirar a algema dela, pra descer pro necrotério”. Aí eu falei: “Então não vou limpar mais, não” porque já tava dando o horário da gente ir embora... Porque dava o horário da gente, meu filho, eu não queria nem saber se morreu, morreu e se não morreu, mas chegou o meu horário eu não queria nem saber, eu vou embora. Aí ela falou: “Não, Maria, pode deixar, não esquenta a cabeça não, vai entrar outra turma...” Porque eles lavam, desinfetam, lavam parede de cima embaixo pra desinfetar, aquela coisa toda... Por exemplo, morreu um e você já põe outro naquele leito? Não, ali tem que tirar todas as camas, limpar, limpar o chão todinho e desinfetar com cloro tudo, entendeu?
P - Dona Maria, conta uma coisa...
R - Porque lá sempre tem investigador, porque quando tem aqueles presos perigosos... Aí, quando eu ia limpar, o policial falava assim: “Olha, Maria, quando você entrar aqui nesse quarto você me chama, entra comigo porque tem quarto aí que os presos são perigosos”. Aí, toda vez que eu ia limpar, o cara falava isso... Eu ia passando assim e o cara falou: “Tia tem um fósforo aí”? Eu falei: “Que fósforo? Eu não fumo...” Aí o preso falou assim: “O que você está fazendo aí, então? Você vai me dar o fósforo sim...” O fósforo que ele estava pedindo era pra ele tirar algema, por isso que não pode dar fósforo pra eles... Porque já é avisado, o investigador falou assim: “Se eles pedirem um palito de fósforo ou grampo, não é pra dar, porque eles falam que é pra acender cigarro, mas não é, é pra abrir a algema que está no braço dele” Aí eu digo: “Não tem fósforo”. Ele disse: “O que está fazendo aí então?” “Eu tô olhando pra sua cara, e daí?” Daí a pouco o policial chegou e falou: “O que está acontecendo aí, Maria”? Eu falei assim: “É esse preso folgado aí, ele está me pedindo fósforo pra acender cigarro e eu estou falando pra ele que eu não fumo e ele perguntou o que eu estou fazendo aqui também”. Aí ele falou: “Fica quieto aí, pateta, o que você está falando com a menina? Você quer que eu dê umas porradas em você?” Aí ele falou: “Não, é porque eu estou pedindo um fósforo pra ela e ela não fuma”. “E como você fumar com essa mão aí desse jeito, seu pateta, fica na sua que você ganha muito mais...” Aí nunca mais eu entrava sozinha pra limpar, só com o investigador, porque tinha investigador direto ali. O quinto andar era cheio de preso e preso mais perigoso.
P - Alguém já fugiu lá?
R - Fugiu. Ainda bem que quando foge não é no horário da gente, né? Porque a gente trabalhava das duas às dez da noite, aí a gente sai as dez e entra outra turma das dez até as seis e aí das seis está saindo e estão entrando os da sete são três horários. Mas já fugiu sim, fugiu e fizeram até uma enfermeira como refém e fizeram a maior bagunça lá... Porque lá tinha banco eletrônico... Os caras arrancaram o banco, não deram conta de carregar e deixaram no pé da escada.
P - Dona Maria, conta uma coisa pra mim... O que a senhora vai fazer amanhã?
R - Amanhã? Amanhã é sexta? Eu vou buscar minha netinha, ficar com ela, e no sábado eu vou pra igreja, a igreja do meu menino, adventista.
P - Aquela que seu menino está estudando pra ser pastor?
R - Sim.
P - E qual dos seus filhos que tem filha?
R - O William, o mais danadinho, ele arrumou uma neta que eu nem sabia, meu filho... Ele sempre falava: “Mãe, a senhora vai ser avó...” E eu falava: “Ah, William, você é um pateta...” Eu não estava nem aí, eu não acreditava nele... Aí quando foi um dia, a menina tinha mais ou menos uns seis meses, apareceu o William, disse que era pai da menina, só que ele não fez o DNA, né? Mas a menina é a cara dele.
P - Aí não precisa nem fazer DNA, né?
P - O outro meu menino, o Anderson, às vezes fala: “Faz o DNA...” Eu falo: “Ah, a menina já se apegou com a gente, a menina já está muito apegada com a gente... Se for filha dele ou se não for, não vai fazer diferença nenhuma, porque a menina já está apegada com a gente...” Às vezes ela está em casa e a avó dela leva a chave do telefone, aí a avó dela chega, ela fala: “Vovó, pega a chave e liga pra minha avó vir me buscar...” Aí a avó dela liga e eu tenho que ir buscar ela... Ela é muito sabida, ela tem dois anos e cinco meses.
P - Dona Maria, a senhora gostou de contar a história da senhora pra gente?
R - Gostei.
P - O que teve de bom de contar história?
R - Legal. Você foi muito legal, todo mundo, né?
P - O que a senhora gostou de contar?
R - O que eu gostei de contar? Ah, o passado da gente é muito bom, contar o passado é maravilhoso... Vocês não gostariam de contar o passado?
P - E o futuro? Qual é o sonho grande que a senhora tem?
R - Ah, o sonho grande é de ver meus filhos sendo pastores o Wilson também, o Welison e a Janis também, a minha nora, porque a minha nora... O Anderson, até que enfim, ele me deu uma nora que eu gostei, porque eu falei pra ele: “Se eu for com a cara, meu filho, você já sabe como eu sou, se eu não for com a cara dela, não tem nada feito...” Eu falei: “Essa aí é sua mesmo, essa aí está aprovada, pode ficar de bem com ela, porque essa daí está aprovada...” Ela está estudando pra nutricionista, ela faz Nutrição, nossa Ela chega lá em casa e vai pro fogão, faz cada comida gostosa e vai pro fogão e eu não estou nem aí, deixo ela por conta do almoço, ela que faz, ela faz cada comida gostosa, a Janis. Só que o meu menino, o Anderson, está em Minas, ele está trabalhando lá, está estudando lá, e ela no Capão Redondo, ela está estudando direto.
P - Então o filho da senhora não está com a esposa aqui, né? O que ele está fazendo em Minas?
R - Está trabalhando e estudando.
P - Onde?
R - No colégio.
P - Mas em que cidade de Minas?
R - Ah, eu não sei, só sei que é em Minas, eu me esqueci da cidade que ele está.
P - Ele foi pra lá estudar e está trabalhando, depois ele volta, né?
R - Ele vai voltar o mês que vem, porque a sogra dele veio do Pará e ela foi pra Argentina, pra casa dos parentes dela... Ela só vai embora quando o Anderson vier pra ver ela, porque ele não viu ela ainda... Quando ele vier de Minas pro Capão Redondo, aí ela vai embora pro Pará. O Anderson já esteve no Acre também, ele pegou dengue lá e quase que morre, mas ele sarou, ficou bom, ele sarou porque a namorada dele estava lá também e estava cuidando dele, mas se não fosse, ele tinha ido pro beleléu, mas graças a Deus, Deus é muito bom, né? Deus é maravilhoso e protege muito a gente, muitas enfermidades, é só ter fé em Deus, sem Deus nada feito.
P - A senhora quer contar mais alguma coisa pra gente?
R - Não.
P - Então tá bom dona Maria. Eu e a minha colega aqui, nós todos te agradecemos muito, viu? Por você ter dado atenção pra gente e ter contado a sua história pra gente.
R - Eu que agradeço vocês, porque são umas pessoas maravilhosas, muito gentis, educadas. Vocês três, né? Gostei muito, são pessoas maravilhosas, atenciosas que dão muita atenção pra gente, apesar de que a gente é pobre, mas tudo bem, graças a Deus.
P - Isso não tem nada a ver. Foi um prazer, viu?
R - O prazer é todo meu também.
P - Que bom. Obrigado.
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