Entrevista de Malu Bandeira
Entrevistada por Grazielle Pellicel
São Paulo, 15/09/2023
Projeto Vestindo Memórias: Legado e Identidade
Entrevista número: VES_HV009
Realizado por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Então, Malu, pra começar a gente começ...Continuar leitura
Entrevista de Malu Bandeira
Entrevistada por Grazielle Pellicel
São Paulo, 15/09/2023
Projeto Vestindo Memórias: Legado e Identidade
Entrevista número: VES_HV009
Realizado por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Então, Malu, pra começar a gente começa do básico, que é o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Hum-hum. Meu nome é Malu Bandeira, a minha data de nascimento é quatorze de agosto de 1992, então tenho 31 anos, e o local de nascimento é Mogi das Cruzes, São Paulo.
P/1 - Te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Não, acho que não profundamente assim, não.
(01:09) P/1 - E por que Malu, por que você escolheu esse nome?
R - Malu foi um nome que eu me batizei, não é meu nome de registro. Eu sou uma pessoa trans e aí pessoas trans têm essa oportunidade de se dizer, de dizer sobre seu nome, escolher. E aí, quando eu escolhi, eu pensei nele por conta da minha família. A minha avó chama Maria, minha avó por parte de pai, e aí ela tem doze filhos, seis mulheres, seis homens e das mulheres todas os nomes começam com Maria. Então, tem Maria Betânia, Maria das Dores, Maria Aparecida, Maria de Fátima, e aí eu tomei pra mim esse Maria também, tomei esse feminino que tem na minha família e no meu nome de registro tem Lu também, né? E aí eu fiz essa composição de Malu.
P/1 – Legal isso. E qual é o nome da sua mãe?
R - O nome da minha mãe é Ana Lúcia.
P/1 - E ela faz o quê?
R - Ela é professora, trabalha com a alfabetização de crianças do Fundamental I, na rede pública de Mogi das Cruzes.
P/1 - E qual é o origem dela? Ela é de Mogi também?
R - Ela é de Mogi também, ela é nascida em Mogi. Minha família por parte de mãe é de Mogi e da parte do meu pai é de uma cidade de Minas, chama São Bento Abade, no sul de Minas, bem pequenininha.
P/1 - E como é que é a relação com a sua mãe?
R - Eu tenho uma relação muito boa, assim, com ela. Acho que hoje ainda melhor, assim. Sinto nela muito um lugar de amiga, para além de mãe, sabe? De uma pessoa muito presente na minha vida.
P/1 - E por que hoje é melhor?
R - Ah, porque eu acho que, com o tempo, eu fui conseguindo também reconhecê-la, além da ideia de mãe, né? De ser só uma mãe. Então, de que eu podia contar e conviver com ela e conhecê-la para além desse papel, então de entender também os desejos dela, fragilidades, as inseguranças, as vontades. Acho que cada vez mais a gente tem conseguido se aproximar. Antes não tinha, antes era só esse papel de mãe e filha. Então eu acho que, aos poucos... que é um papel muito bonito, mas às vezes limita essas aproximações.
P/1 - E qual é o nome do seu pai e o que ele faz?
R - O meu pai é Antônio. Hoje ele é aposentado, mas ele já trabalhou numa escola particular, como porteiro.
P/1 - E como é que é sua relação com ele?
R - A relação com ele também é muito boa, assim. A relação com os dois é muito saudável. Às vezes eu tenho alguns conflitos e algumas questões com esse processo da transexualidade, mas eu entendo muito no lugar de um primeiro estranhamento, de algo que é mais recente, que está em construção. Então... não um recorte de violência, assim, né? Então, por exemplo: para eles ainda é muito estranho reconhecer a minha identidade enquanto Malu, não enquanto o filho que eles tinham, né? Então, tem essas questões ainda. Mas eu acredito que está em processo de construção. E na minha família tem uma questão muito particular, assim, porque eu tenho mais dois irmãos e eles são homossexuais. Então... antes da questão de gênero ser uma discussão, a questão da sexualidade também sempre foi algo assim, pra ser conversado em casa. E aí eu percebi que, com o tempo, eles deram conta de se relacionar com a sexualidade da gente de uma forma saudável, né? Então, por isso que eu também aposto no tempo, pra questão de gênero também ser mais naturalizada dentro de casa.
P/1 - E como é que é essa relação com seus irmãos?
R - É muito boa, acho que é uma experiência muito oportuna, porque acaba que a gente consegue ter um espaço de força. E aí eu sou a mais nova, então eu consegui ver também como eles se relacionavam com a questão da sexualidade e cada um de maneira distinta, então eu consegui ir achando a minha maneira de me identificar dentro desse processo.
P/1 - Além dos seus pais, dos seus irmãos, você tem algum parente que você gosta muito, que você tem um carinho especial?
R - Ah, eu acho que eu tenho muito pela figura dos meus avós, assim, tanto paternos, quanto maternos. Acho que eu tenho um carinho muito grande. Eu não sei, acho que eu sou uma pessoa bem familiar, na verdade. Então, vou ficar elencando muitos nomes aqui, (risos) assim, de... mas acho que essas figuras são muito fundamentais pra mim, assim. Hoje meu vô e minha vó por parte de pai já são falecidos, mas eu tenho neles, tanto também na parte materna, muita referência.
P/1 - E você sabe de onde vem esse carinho, essa referência?
R - Em relação a eles?
P/1 – É.
R - Eu acho que da educação que eu tive, do acesso que eu tive. Minha família é muito grande, mas sempre teve muito uma preocupação de entender e se fazer junto, desse estar junto. Então, festa de família era sempre muita gente. E eu penso muito na forma como eles conduziram, sabe? Assim, com erros e acertos, né? Pensando que era um outro tempo. Então de como eles fizeram para estar aqui, chegar aqui e ainda assim ser pessoas acolhedoras, pessoas receptivas. Até com essas novidades, com todas essas questões, que eu também carrego. Então, por exemplo: minha vó por parte de pai me surpreendia muito, assim, quando ela perguntava do namorado do meu irmão, porque que não estava indo lá, ou quando ela chamava atenção para questões raciais dentro da família. Então eu achava uma mulher muito, muito corajosa, assim, muito, muito importante, sabe, nesse sentido.
P/1 - E essas festas que você falou, essas reuniões, vocês costumam se reunir em algum momento especial?
R - Ah, sim, geralmente, por exemplo: tem as festas que já são as normais, que tem Natal, Ano Novo. Geralmente, desde criança, tinha um momento para se reunir primeiro com a parte materna e depois com a parte paterna da família. E tinha sempre um contraste, porque o núcleo materno era um pouquinho menor, porque minha mãe tem dois irmãos e do meu pai muito maior, assim. Então, era sempre uma festa menorzinha e uma festa grandona. Mas a gente também se reúne em aniversários. Tinha uma época que a gente, na família, se reunia para fazer os aniversariantes do mês, assim. Então, como agosto, às vezes tinha, sei lá, quatro, cinco pessoas da família que faziam aniversário comigo, então a gente se reunia para fazer uma festa só com todo mundo, sabe? Acho que tinham esses momentos assim. Aí deu uma mudança um pouco depois da pandemia, também depois do falecimento do meu vô e da minha vó, aí os encontros alternaram. Você acha que está uma fala muito difícil, assim? Muito... está tranquilo?
P/1 – Não se preocupe. Esqueci de falar, deixa eu aproveitar: se tiver alguma coisa que você não queira responder, você pode falar.
R - Ah, está bem.
P/1 – E vocês tinham algum costume, assim, além dessas festas? Um costume especial, que só acontece na sua família, por exemplo?
R - Específico?
P/1 - É.
R - Ah, de pronto assim, não lembro de nada de algo muito específico.
P/1 - Tudo bem. E seus familiares te contavam histórias? Assim, para crianças. Você gostava de ouvir?
R – Sim, hum-hum. Tinha bastante histórias. Acho que meu vô, o pai da minha mãe, tinha muito esse lugar. Ele tem uma casa na praia que fica na beira de um mangue, lá em Caraguatatuba. E a gente ia desde pequenininha, a gente estava sempre passeando lá. E aí lá era o momento de histórias, de lendas que ele contava, de terror. Aí tinha esses momentos.
P/1 - Quando você ia pra essa casa?
R - Geralmente eram férias, aqueles períodos de feriado, sabe? De recesso escolar. Aí era o momento que a gente ia, assim. E aí acabava que ia sempre a família junto, né? Com meus irmãos, meus pais, meus avós.
P/1 - E tem alguma história que ele te contou, que ficou marcada na sua cabeça?
R – (risos) Tem. Tem uma que ficou, que é a história da Catarina, que é a história de uma mulher que trabalhava com o padre, e aí o padre dá um dinheiro pra ela, pra ela comprar fígado e fazer fígado acebolado no almoço, pra ele. Só que quando ela cozinha esse fígado acebolado, ela fica com muita vontade de comer, e aí ela vai experimentar e acaba comendo o fígado todo. E aí no desespero de não conseguir voltar e comprar o fígado para fazer para o padre, ela vai no cemitério e rouba o fígado de um morto. (risos) E aí a história conta de quando o padre vai - depois que ela faz e prepara - e come esse fígado desse defunto, assim. E aí quando chega a noite, ela está sozinha e o defunto aparece pra ficar sondando-a e perguntando cadê o fígado. Aí ele usava isso pra dar um susto, pra dar uma aterrorizada na gente.
P/1 - E vocês ficavam assustados?
R - Ficava, com certeza, porque ele contava a história assim, era sempre num contexto, sei lá: estamos na praia, ou no período da tarde, assim. E aí à noite ele vinha e começava a fazer barulhos na casa, assim, sabe? E aí começava, ele fazia uma voz, tipo: “Catariiiina” e ficava mexendo (risos) nas coisas da casa, assim, pra assustar a gente.
P/1 – Legal. Você tem muitas memórias nessa casa que você falou, do mangue?
R - Ah, tem bastante.
P/1 – Tem alguma, assim, especial?
R - Ah, acho que tem várias. Tem desde lembranças, por exemplo, com meus irmãos na praia, ou quando a gente voltava da casa de praia e minha mãe dava banho nos três de uma vez. Então, tem coisas que eu lembro, assim. Ou, por exemplo, de quando eu já era um pouco mais velha e aí quando ia meus primos mais novos, de eu ter que dar banho nos meus primos. Acho que essa lembrança é muito bonita, assim, dela dando banho nos mais novos e depois eu dando banho nos mais novos também. E acho que memórias recentes também, de eu ir pra essa casa com amigas, pra passear, e aí acho que num outro jeito, de um outro momento, diferente.
P/1 - Você lembra da casa onde você passou sua infância?
R - Lembro.
P/1 – Como ela era? Você consegue descrever?
R - Ela era uma casa pequena, simples, era... eu lembro que você entrava pelo... tinha uma porta na sala e uma portinha na cozinha. E aí da sala você tinha acesso para a cozinha, tinha um balcão que dividia a cozinha em dois e aí tinha um corredor bem pequenininho, aí na direita desse corredor era um banheiro, também pequeno. Aí, mais para frente tinha um quarto, que ficava eu e meus irmãos. E aí, logo depois tinha o quarto dos meus pais, assim. E em cima da casa tinha uma laje, que era onde eu costumava brincar. Era na laje e no espaço da garagem também.
P/1 - E o que você gostava de brincar?
R - Ai, de muitas coisas. Eu tenho uma diferença de idade, né, entre os meus irmãos, assim. Com o mais velho são sete anos de diferença e com o do meio são dois anos. Então, acabava que eu brincava muito mais com o meu irmão do meio, assim, pela gente ter uma idade mais próxima. A gente brincava de Lego, brincava na rua. Brincava de faz de conta, de imaginação.
P/1 - E essa casa ainda existe?
R - Ainda existe, meus pais ainda moram lá, mas bem diferente já. Reformaram, mexeram, a laje virou um quarto, o quarto que era nosso virou uma sala. Ela já é bem diferente do que era.
P/1 - Ah, mudou bastante.
R - Mudou.
P/1 - E tem alguma comida que você, quando eu falo comida você lembra da sua infância e você lembra?
R - Lembro. Tem uma que minha mãe fazia, que é um arroz com frango e catupiry, né? A gente falava arroz, frango e catupiry, assim. Todo mundo gostava de comer o arroz da minha mãe. Hoje eu não como mais, porque eu sou vegetariano, mas acho que é uma lembrança muito afetiva que eu tenho. Inclusive, das minhas tias irem e minha mãe preparar. Ah, era bem gostoso. (risos)
P/1 – Ela preparava em dias normais ou tinha alguma apresentação?
R - Ah, geralmente era quando era alguma festa em família, sabe? Quando tem aquela coisa de levar um prato. E aí era o prato que ela levava assim, né? Aí eu tenho lembrança dessa comida.
(16:09) P/1 - E vocês tinham costume de assistir TV, ouvir música?
R - Sim, sim. Tínhamos. Minha mãe, dia de... por exemplo: fim de semana eu lembro muito dia de faxina em casa, assim. Então, meu pai e minha mãe ajeitando a casa e aí ela sempre colocava música. E de televisão também. Eu tenho muita memória de assistir televisão com meus irmãos. E aí teve as fases, né? A fase do desenho, a fase da MTV. (risos) Teve os processos, né?
P/1 - E desde aí você já tinha uma ideia do que você queria ser, quando crescesse?
R - Não. Acho que eu quis ser muita coisa. (risos) Até padre eu já quis ser, quando era criança, na época da catequese. Sorte que eu desisti. (risos)
P/1 – E escola, quando você entrou nela?
R - A minha mãe é professora, então a escola foi uma presença na minha vida, a educação sempre teve muito presente. E aí as primeiras lembranças que eu tenho de escola não era eu estudando, mas era eu tendo que levar, com a minha mãe, o meu irmão para a escola, na educação infantil, que era esse meu irmão de dois anos de diferença, que é o Leonardo. E aí eu tenho uma memória de quando ele ia pra escola, de chorar, de ter esse momento dele estar lá e eu não poder brincar com ele, e aí eu chorava. Mas aí depois isso foi se tornando numa ansiedade de entendimento que, se eu fosse para a escola, ele ia estar lá. Só que como tinha essa diferença de idade, sempre quando eu entrava, a gente estudava um ano juntos e aí eles mudavam para outra escola, para outro ano, outro período. Então da educação infantil foi pro Fundamental, depois Fundamental II. Aí era sempre assim: eu ia, quando chegava, ele mudava.
P/1 - E como é que foi esse começo da escola? Quando você entrou na escola, como é que foi pra você?
R - Ah, diferente, né? Acho que escola não é fácil pra ninguém, né? Mas nos primeiros anos eu tenho uma lembrança boa da escola, assim, de gostar. Parte da minha vida dentro do ambiente escolar, eu estudei na escola que minha mãe trabalhava, então tinha essa coisa de estar juntas dentro da escola, então acabava que eu gostava. A minha experiência com a escola foi mudando conforme eu fui crescendo. Aí acho que desde um cansaço também em relação à escola, mas também de estranhamento. Depois de um certo tempo eu... meu pai começou a trabalhar em uma escola particular e aí eu e minha irmã ganhamos bolsa, né? Ele era porteiro na escola. E aí já era um espaço que era muito importante, eu entendia que ia ser bom pra mim, pra minha formação, mas também era muito desconfortável, de pessoas com uma outra classe econômica, com uma outra relação de vida, assim, né? Então, tinha os seus estranhamentos, também.
P/1 – O que era esse estranhamento? Você consegue...
R - Assim, por exemplo: questão de idioma. Eram pessoas que, por exemplo, tinham acesso à aula de inglês desde a educação infantil. Então, quando eu entrei, eu nunca tinha estudado inglês, né? Porque até então as escolas públicas que eu tinha passado era o fundamental, então não tem ensino de inglês, né? Então, tinha esse estranhamento, assim. E deles tirarem ‘onda’, porque eu não sabia falar inglês. Ou de, quando eu entrei, os professores acharem mais conveniente eu entrar no reforço, né? Então peguei o reforço de todas as disciplinas, porque tinha vindo de uma escola pública e aí acabou que eu saí, porque não era por estar em uma escola pública que eu não sabia aqueles conteúdos, não tinha acessado algumas coisas. Então, tinha essas diferenças assim. Só que eu entrei no quinto ano, o meu irmão entrou já perto do ensino médio, então ele tem muito mais consciência, assim, dessas pequenas violências de diferença de classe, por exemplo, né? E acho que era um espaço também de pessoas muito normativas, assim, né? Então também era muito violento nesse sentido, assim, de sofrer bullying, porque na época eu era uma criança e fui um adolescente gordo, então passava por situações de bullying. Não tinha sexualidade conversada ainda com os amigos, assim, não tinha isso colocado, mas já tinha processos de violência também, nesse sentido. Então, foi um espaço importante para mim, mas com ressalva, sabe?
P/1 – Apesar de tudo isso, teve alguma matéria, algum professor que te marcou?
R - Sim, teve. Eu tive um professor de informática chamado Danilo, que a gente brincava na escola, falava que ele era mais professor de filosofia do que informática, porque eu acho que era justamente porque ele conseguia gerar questionamento para a turma, sabe? Então, os trabalhos que eu mais tenho lembrança, de envolvimento e de interesse, são os que ele propunha. Então, por exemplo: uma vez ele pensou num projeto pra gente participar de um fórum de estudantes junto com estudantes da rede pública. E ele brincava, chamava a gente, eu e meu irmão, de punk. Ele falava: “Vocês são punks” e ficava ‘tirando onda’ da gente. Mas acho que é porque ele já tinha uma visão crítica também a respeito da relação que a gente tinha com aquele espaço, e quanto a gente não pertencia àquele lugar, também. E aí, depois de um tempo, quando eu fui me envolver com teatro, começar a estudar teatro, fazer um curso, teve uma coincidência que foi que esse professor estava na mesma turma que eu estava matriculada. Então, a gente estudou teatro juntos, assim. E aí foi uma experiência bem legal, de conseguir retomar essas memórias, conversar com ele depois de adulto, assim. E hoje é uma pessoa que eu tenho muito carinho, desse contexto, assim.
P/1 - E por que punk, assim? Como é que você era na adolescência?
R - Eu era uma ‘morna’, (risos) não era nada demais, assim. Acho que o meu irmão estava muito mais pra esse contexto de uma ousadia do que eu, mas eu acho que, de certa forma, a gente já tinha um olhar mais atento para aquele espaço. Acho que mais o meu irmão do que eu, mas acho que já se tinha, porque eu me lembro uma vez que eu queria comprar... eu vendia pão de mel dentro da escola, escondido, minha prima fazia e eu vendia, para ganhar dinheiro deles, já que eles tinham dinheiro, era um jeito que eu achava de ganhar dinheiro também e aí eu juntei dinheiro e eu queria comprar um tênis, que era um tênis que nem o deles, e aí eu lembro que, na época, acho que era uns seiscentos reais, era caro pra danar e aí eu consegui juntar e fui no shopping, minha mãe me levou até a loja e eu estava animada para comprar, porque eu ia ter o tênis que todo mundo tinha e aí eu lembro do meu irmão me puxar de canto e ele falou assim: “Mas é isso que você quer? Você quer ter um tênis? Porque você nunca vai ser igual a eles, você vai querer ter esse tênis?” E eu lembro disso, assim e aí eu não comprei o tênis, comprei um baixo, (risos) para tocar música, porque eu achava que eu ia ter uma banda, tal. Não aprendi baixo, desisti da ideia, mas acho que me marcou muito, assim, dele me atentar para isso, de que não era um tênis.
P/1 – Você pensou nisso, chegou a se arrepender, ou não?
R – De ter comprado o tênis?
P/1 – É.
R – Não, eu gostei do baixo, achava que dava uma empoderada, assim, sabe?
P/1 – E o teatro, como que ele entrou na sua vida?
R – Entrou... na verdade eu tinha um amigo de infância, na minha rua, era quem eu brincava, só que aí ele começou a fazer aula de desenho, aí eu inventei que eu queria fazer aula de desenho, mas era porque eu queria estar junto com ele, para brincar. Só que aí, nesse processo, ele saiu, não continuou e eu dei continuidade e aí eu fui ficando e esse mesmo professor que dava aula de desenho era também diretor de uma companhia amadora e aí eu fui me aproximando, depois eu conheci um espaço que tinha em Mogi das Cruzes, que chama Galpão Arthur Netto, de cultura e cidadania, que hoje não tem mais e aí eu comecei a fazer, fiz um curso técnico, comecei a vir à São Paulo para fazer cursos e aí foi aumentando esse desejo. Depois que eu terminei a escola tentei uma faculdade e não consegui, eu fiz primeiro uma graduação em artes visuais, que eu também tinha essa relação com desenho e aí, depois que eu terminei, no último ano, eu fiz Unesp e também entrei em artes cênicas. Aí acabei que eu fiz as duas linguagens, assim.
P/1 – E como é a sua relação com a arte, assim? Surgiu desde quando?
R – Ah, foi na infância, mas foi nesse processo assim, dessas aulas, de começar a entrar nesses espaços, mas eu também tinha uma relação muito com a minha mãe. O meu pai tinha feito teatro, acho que era no grupo de jovens da igreja, a minha mãe foi bailarina também, ela dançou por bastante tempo, então eu tenho memória, por exemplo, da minha mãe falando sobre o passo de ballet. Eu tenho um registro na memória dela me ensinando e me explicando e aí eu já tinha um desejo de me pensar também dentro do contexto do ballet, sendo bailarina, por exemplo, mas ali, naquele momento de infância, também lembro muito de um lugar de restrição, de eu querer, mas não falar, porque eu sabia que, se eu falasse, talvez seria mal entendido, assim, entre muitas aspas e aí acabei perdendo essa oportunidade de dizer para a minha mãe que eu tinha vontade de dançar, como ela. Depois foi interessante porque, com o teatro, eu me aproximei de um grupo de pesquisa de danças e tradições populares, que chama Jabuticaqui e depois de um tempo eu acabei aproximando a minha mãe também. Então, por um grande tempo a gente dançou juntas nesse grupo, assim e hoje eu saí, porque de morar em São Paulo, estudar, mas ela continua até hoje no grupo, dançando.
P/1 – Como é que era isso, dançar com a sua mãe? Que tipo de dança?
R – A gente dançava... como é um grupo de pesquisa, tinha um recorte, principalmente do Maranhão, então a gente dançava cacuriá, caroço, bumba- meu-boi, ciranda, eram esses tipos de danças, assim. E dançar com a minha mãe eu acho que foi uma oportunidade de criar memórias muito bonitas pra mim. Acho que eu tenho lembranças muito bonitas, dessa dança.
P/1 – Tem alguma que te marcou?
R –
Ah, acho que sempre tem. Por exemplo: de dançar boi, acho que boi é uma dança muito forte, então de dançar boi junto com ela, ou de dançar ciranda, de estar perto. Eu lembro de uma vez a gente dançar juntas, de mão dadas, em uma ciranda, em uma roda, foi uma experiência bem bonita.
P/1 – Você falou que dançar boi é muito forte, por quê?
R – Você já viu bumba-meu-boi, a brincadeira, a tradição?
P/1 – Eu só vi a imagem do boi, assim, balançando.
R – Sim. O boi tem esse contexto da dança, mas ele é uma arte, mesmo, muito completa, porque você tem encenação, tem a parte de música, tem a parte de dança, tem a parte dos bordados, dos figurinos. Então, no contexto da arte ele é uma arte muito completa e tem um símbolo muito forte da miscigenação brasileira e também tem uma relação muito forte com as religiosidades católica, mas também pensando as matrizes indígenas, africanas e também tem todo o ciclo do boi, porque o boi todo ano vai nascer, vai ser batizado e vai morrer e eu acho que isso mexe com a gente. É uma dança que, querendo ou não, fala um pouco dos ciclos que também são nossos. Acho que a gente nasce, batiza e morre e diversas vezes, simbolicamente, na nossa vida, a gente passa por esses processos de nascimento e morte. Então, eu acho que acompanhar isso em uma dança e ver isso acontecendo, você se apega ao boi. Imagina: você passa um ano inteiro brincando com ele e no final do ano você tem que matá-lo e se despedir dele, é bem marcante, assim. Isso porque era um grupo de pesquisa, fico pensando no Maranhão, que é um outro contexto, muito mais intenso, de tradição.
P/1 – E você passou por esse processo de vida, batizado e morte alguma vez, na sua vida?
.
R – Várias vezes, acho que a gente passa muitas vezes. Acho que o mais recente que eu tenho passado é o processo de transição. Acho que eu tenho vivenciado um luto também da pessoa que eu era. Então quando eu estava falando antes, da dificuldade em relação aos meus pais, acho que é porque a gente tem compartilhado esse luto juntos, da expectativa de um filho, da ideia de um filho, mas ao mesmo tempo experimentado uma gestação de uma outra possibilidade de vida, de uma outra identidade de pessoa e o batizado foi recente, quando eu escolhi Malu passei por um processo de batizado, também.
P/1 – E quando você decidiu que ia começar a fazer a transição?
R – Foi um processo longo, na verdade, porque eu acho que eu fui primeiro para a experimentação e depois para a ideia, então eu comecei muito no lugar do vestir, assim. Então, uma amiga, que é a Suame, deu uma saia e depois teve um outro amigo, o Kim, também tinha me dado uma peça de roupa e eu estava usando e aí a saia veio acompanhada depois de um brinco e aí foi mudando, depois de um vestido, depois unhas, maquiagem. Só que isso foi um processo extenso, assim, de anos. Quando eu mudei para São Paulo já estava muito nesse lugar, assim e já vão fazer oito anos, só que só mais recente que eu comecei a entender a transição social também e com muitas dificuldades desse entendimento também, porque hoje, socialmente a gente tem um olhar para essa questão da transexualidade num processo de patologia, a gente encara como se fosse uma questão de doença, uma questão de disforia de gênero e aí por muito tempo eu tinha dificuldade de entender, enquanto uma pessoa trans, porque eu não identificava essa disforia em mim, essa questão, essa imagem do olhar no espelho e estar insatisfeito e eu falava: “Mas eu não estou insatisfeito, então não é, se eu não estou insatisfeito. Eu tenho que ter um ódio do meu corpo, eu tenho que ter uma repulsa ao meu corpo para querer mudar” e aí eu ficava muito enganada nesse discurso que a sociedade atribui para a gente. Aí, quando, na pandemia, eu comecei a fazer acompanhamento de terapia, meu terapeuta me atentou para esse lugar de que a angústia que eu sentia é porque eu estava esperando um laudo, ele dizer que eu tinha uma disforia. Só que ele, enquanto psicólogo, não acreditava nisso, ele achava que estava no lugar do desejo e que assumir um desejo também é muito difícil, assim. Então hoje eu entendo a transição, não é porque eu tenho um descontentamento com o meu corpo, mas é porque eu aprendi a amar o meu corpo e eu o amo tanto que eu permito experimentar outras possibilidades para ele, para além das histórias que me contam e acho que me agarrar nisso é muito importante nesse processo, tanto que eu falo que eu não tenho disforia, eu tenho euforia de gênero, eu sou uma pessoa eufórica. Me maquiar, me preparar aqui para essa entrevista, me produzir me gera bem-estar, me faz bem, sabe? Então, acho que está em uma outra chave, a do desejo.
P/1 – Esse processo de você receber roupas, assim, influenciou - você falou, pelo que eu entendi - de alguma forma também, esse desejo.
R – Sim, com certeza, e foi uma coisa que sempre esteve presente. Nas primeira conversa que a gente teve, que você trouxe essa questão da roupa, e de ganhar roupa de alguém, eu fiquei pensando muito na minha infância, quando eu era caçula e vestia as roupas dos meus irmãos mais velhos. Aí depois também pensei quando adulta, as minhas amigas entendendo essa questão da minha performatividade de gênero, já ali em um começo, assim, me presenteavam com roupas delas e aí outras figuras que são importantes, por exemplo: para mim uma lembrança muito importante foi quando a minha mãe deu uma roupa dita feminina pela primeira vez, que era uma roupa dela e aí acho que me marcou muito esse processo, assim. Tem um pensador que chama Preciado, também uma pessoa trans e ele tem uma frase que é muito bonita, que ele fala que gênero é uma coisa que se faz juntos, em todos os sentidos, desde quando a gente vai fazer um chá-revelação, para ficar nessa chateza de achar que é um menino ou uma menina, atribuindo forçadamente um gênero para alguém, mas até nesses momentos, por exemplo, de que minha mãe ou uma amiga me presenteia com uma roupa sua, desobedecendo muitas questões, assim. É um gesto muito grande em uma ação muito simples, assim.
P/1 – E o que significou para você quando a sua mãe te deu a primeira peça de roupa?
R – Acho que uma identificação. Acho que é quando ela vê ali, em mim, uma feminilidade que ela também vê nela. Acho que tem essa sutileza, assim.
P/1 – Você tem essa roupa aqui?
R – Tenho.
P/1 – Você pode mostrar para a gente?
R – Posso. Posso pegar?
P/1 – Claro!
R – Foi esse vestido que ela usava, mas aí ela achou que já não estava mais servindo, já não estava mais legal nela e aí ela me deu esse aqui.
P/1 – O estilo de vocês é parecido?
R – Não, mas é isso, assim: acho que eu entendo esse gesto tão importante para mim que não me incomoda usar uma roupa que é dentro do estilo dela, sabe? Acho que muito pelo contrário, assim, eu acho que me faz bem. Tanto que são roupas, por exemplo, de uma outra lógica de estampa, que são coisas que ela gosta mais, assim. Demorou para eu entender também de vestido, mas hoje eu uso e eu adoro quando eu me visto com eles, assim.
P/1 – Então você não começou usando vestido, de primeira?
R – Não.
P/1 – Foi um processo?
R – Foi um processo.
P/1 – Como é que foi isso?
R – Ah, diferente (risos) porque, no fundo, a gente sabe o quanto a sociedade é violenta, então muito do que me restringia era o medo. Então de pensar que começar pela saia foi mais fácil, porque eu também percebia que, sei lá, usar uma saia preta as pessoas estranhavam menos. Estranhavam, mas não incomodava. Quando eu ‘botei’ uma saia estampada eu já vi que tinha outros olhares. Quando vinha acompanhado de uma unha pintada, aí ia mudando, assim. Então, por exemplo: o vestido eu acho que super incomoda as pessoas na rua, quando eu estou de vestido e é nítido, assim. Acho que hoje eu tenho… fui criando até uma expertise, assim, de ver quem está me olhando com curiosidade e quem está olhando com uma certa repulsa, por exemplo. Quem está olhando com maldade, mesmo, assim, sabe?
P/1 – E aí como é que você se sente com esses olhares, tanto de curiosidade, quanto de repulsa?
R – É uma situação bem ruim, né, assim e é muito ruim isso que eu vou te dizer também, mas a gente vai se acostumando com uma situação dessas, a gente vai… acho que o corpo mesmo, tem momentos... é isso, tem, as vezes que eu saio com amigos… uma época eu trabalhei em um estúdio de tatuagem, por exemplo e tinha muitos homens héteros e uma vez eu lembro de andar com um amigo na rua, a gente ia comprar umas molduras e quando a gente voltou no estúdio, ele virou para mim e falou assim: “Amiga, eu não sei como você aguenta” e eu fiquei: “O quê?” E aí ele tinha percebido os olhares e eu já nem estava mais me relacionando com esses olhares, sabe? Então eu acho que a gente, de certa forma, vai também criando uma armadura, vai aprendendo a se proteger, porque se eu for levar em consideração todo o olhar que eu vou levar, acho que vira um processo meio de enlouquecimento, mesmo, de adoecimento. Então eu vou tentando me desvencilhar deles. Mas machuca você passar na rua e entender que em muitos lugares você não é bem-vinda por ser quem você é.
P/1 – Sua mãe te deu outras peças de roupa, também?
R – Deu, deu mais vestidos. Tem de manga longa, de manga curta, tem macacão, esse aqui também é um macacão que ela me deu.
P/1 – Como é que é esse tecido?
R – É uma malha, é bem levinho, é bem gostoso, inclusive.
P/1 – E essa estampa é com folhas?
R – É de folhagens. Aí tem esse azul, eu já confesso que eu já uso mais, que ele já é curtinho e já dá para dar um... fazer um babado na rua (risos) e acho que tem uma potência muito grande nesse gesto, assim, desses presentes que elas dão. Por exemplo: eu lembro uma vez que eu cheguei em Mogi e ela tinha comprado dois esmaltes, assim e aí ela tinha falado assim: “Ah, eu gostei desse esmalte, eu fui comprar e eu achei que era muito a ‘sua cara’. Tinha vermelho também, mas achei que vermelho não ia ficar muito legal” e aí super usei os esmaltes, foi bem próximo, um pouquinho depois da pandemia, já, assim e eu sempre a percebi abrindo espaço para essa discussão da transexualidade acontecer, sabe? Então, eu conseguir verbalizar e conversar com eles foi muito recente e (risos) ela ia sempre tateando, assim. Então, contava de uma amiga que o filho é trans, contava de uma pessoa que ela já deu aula e que transicionou. Então ela sempre colocava assim: muito em um lugar subjetivo e, ao mesmo tempo, no meu trabalho já estava muito presente. Quando eu olho hoje as xilogravuras que eu fazia, assim, lá na época da faculdade, quando eu estava usando uma saia só, preta, não era nem racionalizado ainda, o primeiro trabalho que eu fiz de uma gravura era um corpo trans. Então as gravuras, desde quando eu comecei a estudar, eram representações de corpos trans e não racionalizava sobre isso. Por exemplo: esse vestido que eu tenho aqui, pendurado, eu fiz em uma oficina com... quer que pegue?... um amigo, em um ateliê coletivo, que chama Danilo Pera e era estêncil e aí é isso, assim, eu ainda não me entendia enquanto uma pessoa trans, mas já fiz um corpo masculino com um vestido e aí tinha essa lógica de pegar essas imagens de estudos de modelo vivo do século XIX, XX e aí colocar uma roupa feminina em cima. Então é isso: acho que no meu trabalho eu fui me deflagrando antes (risos) do que racionalizava e acho que a minha mãe, nesse processo, também foi me percebendo muito bem.
P/1 – Como foi essa percepção?
R – Ah, eu acho que percebe e não só a minha mãe, eu acho que as pessoas, quando a gente tem uma questão de sexualidade, ou de transexualidade dentro do nosso convívio social, a gente consegue identificar de repente um constrangimento dessa pessoa em relação ao assunto, ou se fechar um pouco mais. Eu acho que tinha vários indícios e que pessoas próximas minhas viam. Por exemplo: eu tinha, para minhas amigas, muita dificuldade de me relacionar afetivamente com as pessoas. Então na época da adolescência eu não tinha uma pessoa com quem eu me interessava, estava sempre fugindo desses espaços e dessas discussões. Acho que quando essas pessoas começam a me presentear com uma roupa, tem ali um convite também tipo: “Seja quem você quiser ser”. Acho que está nesse lugar, assim. É um lugar sutil, mas que eu acredito que exista, a gente consegue perceber, sabe? Acho que é da convivência também, quando a gente convive com alguém que a gente ama a gente sabe quando a pessoa está bem, quando não está.
P/1 – E essas roupas, você fez alguma modificação nelas, ou elas continuam intactas?
R – Não, essas continuam intactas, assim, do jeito que eu ganhei, mas essas eu não sei se eu mexeria nelas. Acho que eu gosto delas assim.
P/1 – Por quê?
R – Acho que pelo símbolo que elas carregam. Acho que eu gosto de olhar nelas e ver a minha mãe. Então, assim, por mais que sejam roupas… é isso que você perguntou, né, se eram do meu estilo, não, elas não são, mas elas são do estilo da minha mãe e quando eu uso e reconheço a minha mãe em mim também é um processo muito bonito e aí acho que não queria que perdesse, sabe, esse sentido.
P/1 – Ia te perguntar: como é o seu estilo, assim, de se vestir?
R – Ai, cada dia de um jeito. (risos) O meu namorado briga comigo, porque ele fala que eu vou da senhora até a (risos) urbana. Acho que eu vario muito, porque o que acontece é aquela questão de novo dos olhares. Eu já sei que, independente da roupa que eu usar, se for um vestido longão, de senhora, andando na rua, as pessoas vão estranhar; se for um topzinho, uma sainha curta, as pessoas também vão olhar, então eu aproveito disso para brincar também, eu falo: “Hoje eu estou me sentindo assim e vou experimentar e vamos ver o que vai ‘rolar’” e tem dia que não, tem dia que às vezes eu estou mais reservada, não querendo me expor e aí vai variando, assim. Acho que tem essa possibilidade de fazer virar uma brincadeira, também.
P/1 – Te perguntar também, aproveitando: quando você era criança você abria o guarda-roupa dos seus pais e pegava roupa deles?
R – Sim. Acho que tanto do meu pai, quanto da minha mãe. Acho que criança tem muito disso, independente de orientação de gênero, de identidade de gênero, orientação sexual. É um espelho, a criança também experimenta o adulto, de brincadeira. Então eu tenho memória de me vestir com a roupa deles.
P/1 – E essas roupas que você mostrou aqui você sabe como sua mãe as adquiriu, a origem delas?
R – Não, não sei, mas por exemplo: esse macacão eu tenho mais lembrança dela usando. Esses dois vestidos ela acho que usou menos. Não lembro tanto dela usando.
P/1 – Voltando um pouquinho, falar da faculdade, como é que foi fazer Artes Visuais? Você fez cursinho, alguma coisa assim?
R – Não fiz. Na verdade eu me frustrei porque eu não consegui entrar nas universidades públicas e aí tem essa expectativa de você conseguir entrar, principalmente se você estudou em uma escola particular, que foi o caso, e eu ainda era bolsista, então eu me frustrei mais ainda, porque eu achava que era mais que a obrigação dar esse retorno, assim, para a minha família: entrar numa faculdade pública. Aí não consegui. Só que aí, na época, a minha avó tinha ajudado o meu irmão pagando aula de inglês e ela perguntou se eu queria fazer e eu falei: “Não, eu quero fazer uma faculdade”. Aí ela me dava esse dinheiro, que era o mesmo dinheiro da aula de inglês e ai eu inteirava trabalhando. O dinheiro que eu trabalhava e esse dinheiro que ela me ajudava eu pagava a faculdade, foi a primeira faculdade que eu fiz.
P/1 – Qual foi o seu primeiro trabalho?
R – O primeiro trabalho registrado mesmo, assim, foi em um museu de arte sacra, aqui de São Paulo, mas antes, quando eu estava no teatro, naquele Galpão Arthur Netto, que eu tinha contado, eu cheguei a trabalhar lá, mas informalmente. Então, eu ajudava a receber os espetáculos, na montagem dos espetáculos que vinham pra apresentar na cidade, fazer camarim, recepção do teatro.
P/1 – E esse trabalho do museu que permitiu você pagar a faculdade?
R – Sim. Eu entrei na faculdade, eu tinha um dinheiro e nessa época que eu entrei na faculdade eu trabalhava em uma companhia de teatro, que eu também tive acesso nesse espaço do Galpão Arthur Netto, que chamava Theatron, que é uma companhia de teatro institucional e é um teatro que a gente apresenta dentro das empresas, geralmente está relacionado à Semana da Sipat, segurança do trabalho, sobre o uso de EPI e aí com esse dinheiro eu comecei a pagar a faculdade. Logo que eu entrei eu já aproveitei o período de estágio e já consegui esse estágio no museu de arte sacra, como educadora.
P/1 – E como é que foi esse período da faculdade?
R – Eu gostava, mas a faculdade também trazia questões, mais no sentido de como o conhecimento ali é construído, como ele é constituído, muitas questões normativas também, ocidentais. Acho que depois, quando eu terminei a primeira faculdade e fui para a segunda, acho que eu já tinha também uma maturidade maior e conseguia ser um pouquinho mais crítica com o que eu estava acessando também, de conteúdo.
P/1 – E o seu trabalho depois da faculdade, assim: quando você terminou, você começou a fazer o quê?
R – Eu trabalhei um tempo em uma ONG como educadora social, chamava CCA Gracinha, que ficava na região do Monte Kemel, em São Paulo e lá eu trabalhava como educadora à frente de um grupo de adolescentes e é um espaço que atendia famílias em vulnerabilidade social daquela região. Então acontecia no contraturno escolar e era com temáticas de arte que a gente trabalhava com esses jovens e lá atendia crianças de cinco a quinze.
P/1 – E como é esse trabalho de arte-educadora?
R – Na verdade, acho que dentro da ideia de artista, o trabalho como arte-educadora foi o processo mais importante de arte que eu tive, porque me atentou pra um olhar de que arte e educação não dá para ser separado, sabe? E se um trabalho artístico está esvaziado de arte a gente pode questionar se ele é só, de repente, uma decoração, um souvenir, (risos) mas hoje eu não consigo ver de forma desassociada, assim. Principalmente depois dessa experiência na ONG, acho que foi uma das experiências de educação que mais me marcou lá.
P/1 – E por que você acha que não pode separar a arte e a educação?
R – Olha, porque eu acho que, no contexto de mundo que a gente vive, esvaziar a arte da ideia de educação é ainda manter certos padrões que a gente já está condicionado. Eu acho que todo mundo diz que a arte é pra questionar, mas eu acho que é questionar e acompanhar de uma reflexão e produção de pensamento e todo processo que é pedagógico, é educativo, quando acompanhado desse processo de reflexão, potencializa. Então eu fico pensando, sei lá, não sei, porque eu acho que eu vou fazer crítica ao trabalho de pessoas e eu não queria ir para esse caminho, mas de pensar que possibilidades a gente tem de instaurar discussões que são importantes socialmente, sabe? Então, hoje, por exemplo, eu trabalho lá na bienal, na 35ª Bienal e aí a gente tem artistas que estão questionando que a ideia de mundo que a gente vive precisa acabar, então de que esse mundo de colonização, de uma relação desequilibrada com a natureza, com os espaços que a gente ocupa no ambiente, privilegiando a ideia de ser humano, precisa findar e que a gente tem que ter um olhar mais atento, por exemplo, com outros conhecimentos, outros mundos que já existem, então mundo de pessoas indígenas, povos originários, de cosmovisões de pessoas pretas, de outras relações de convivência com esse espaço que a gente ocupa e acho que são trabalhos que são pensados pedagogicamente, que está para além da ideia de gerar uma situação ou de fazer um choque, mas precisamos instaurar uma roda de conversa, um espaço para pensar sobre isso, pra dialogar, pensar pedagogicamente.
P/1 – E como é, para você, trabalhar na bienal de artes?
R – Ah, eu acho que tem sido uma oportunidade muito boa, assim, primeiro por poder trabalhar dentro de um contexto que eu gosto, que é da educação e de arte, mas também pelos acessos, né? Se a gente for pensar as oportunidades de pessoas trans dentro do mercado de trabalho, eu sei que é um super privilégio que eu tenho, de estar dentro da bienal, sabe? Então, acho que isso é muito importante, pensar também a importância da gente estar dentro desses espaços, que são espaços de certa visibilidade também. Então, quando a gente vai discutir sobre arte, a bienal tem uma certa relevância dentro do contexto da história da arte no Brasil e aí ter desde artistas trans, pretos, indígenas, pessoas no educativo também, com esses mesmos recorte, eu acho que é super necessário.
P/1 – Desde que você começou a transição, você sentiu mais dificuldade no mercado de trabalho?
R – Acho que sim. Eu estava pensando aqui, para ver se tinha alguma situação, mas por exemplo: teve uma vez que uma amiga, eu estava perguntando, ela dá aula em uma escola particular e ela é muito bem remunerada e aí eu perguntei se lá tinha, por exemplo… como é que fazia para mandar currículo e ela falou assim: “Ah, sempre abre, geralmente é mais no final do ano, mas abre” - porque tinha mais que uma unidade aqui em São Paulo - “Só que eu indico, se você for mandar, quando você for fazer a entrevista, de ter a expertise, de repente, não ir tão feminina”. Aí eu fiquei pensando nisso que ela falou, que é uma escola que, mesmo sendo particular e mesmo tendo toda essa questão construtivista e tal, vai esbarrar nessas questões e aí acho que é uma dificuldade de acessar, porque eu também não me interessei em mandar o currículo pro espaço. Se eu vou ter que negociar a minha existência, acho que é melhor eu procurar outro lugar.
P/1 – E seus outros trabalhos, o que você faz, de arte-educação?
R – Eu também trabalho como xilogravurista, então eu exponho muito em feiras, vendendo essas gravuras, prints, ilustrações digitais, também trabalho com venda de imagem. Por exemplo: recentemente eu fiz uma animação para um documentário de uma ONG, fiz capa de livro, agora recentemente fui convidada para pintar um mural, mas ainda vai acontecer, também para fazer ilustração para um livro infantil, mas dentro desse recorte do trabalho é isso, eu acho que eu entendo que a transexualidade traz dificuldades, mas eu acho que eu também tive acessos que outras pessoas não têm. Então, acho que eu também estou respaldada, por exemplo, por ser uma pessoa trans branca. Então eu acho que eu tenho acesso a algum espaço, se eu fosse uma pessoa preta eu não teria. Eu acho que tem privilégios aí, também, nessa questão do trabalho, onde eu tive a oportunidade de conseguir fazer uma graduação. Tem outras meninas trans que não fizeram, então aí já é um obstáculo maior, porque a gente vive em uma sociedade que se impressiona muito fácil com quem fala bem e a gente cria até categorias entre pessoas que colocam essa comunicação difícil com pessoas que têm uma comunicação simples, não acessaram esses espaços e a gente cria hierarquias entre isso. Então, eu fico pensando o quanto isso também foi um mecanismo de defesa que eu também aproveitei, me agarrei e sei que isso vai gerar, gera algumas oportunidades.
P/1 – Como é que são as suas obras? No que você se inspira?
R – Ah, varia bastante, mas acho que a questão do corpo e da transexualidade aparece bastante, é bem presente nas representações.
P/1 – Tem alguma que você possa mostrar para a gente?
R – Tem, eu posso pegar aqui. Posso levantar pra pegar?
P/2 – Fique à vontade!
R – Deixa eu ver uma impressão bonitinha para mostrar. Essa aqui é uma xilogravura, dá para ver?
P/1 – E do que ela consiste?
R – De como ela feita, você diz?
P/1 – Não, por que você a fez assim?
R – Esse trabalho eu fiz durante o período da pandemia e aí, na época da pandemia eu tinha feito algumas leituras de tarot, algumas pessoas tinham jogado para mim e tinha uma carta que ficava repetindo, assim, que era a carta do mundo e aí eu comecei a ficar intrigada com essa carta, dela aparecer muitas vezes e eu comecei a pesquisar os sentidos dela e significados sobre ela. Posso colocar aqui, na mesa?
P/1 – Pode.
R – E aí nessa pesquisa dos significados, ela é uma carta que fala muito sobre fim de ciclos. Acho que aquela história do boi, acho que é uma carta muito da história do boi, então desses ciclos que se findam, para iniciar novos momentos. E aí eu fui me aprofundando, fui lendo a respeito dessa carta e dos elementos que tinham nela e aí, como a gente estava nesse processo de pandemia, eu acho que eu comecei a me questionar muito a respeito desse ciclo que estava se findando, assim, para a gente mesmo, vivenciando a relação com o covid, sabe? E com tanta morte acontecendo. E aí eu fui pensar em uma nova possibilidade de carta, de releitura pra essa carta e aí eu criei esse trabalho, só que aí eu alterei alguns elementos dele. Geralmente a gente tem essa figura central que, geralmente, no Tarot de Marseille, é uma mulher fazendo um quatro com as pernas e ela está segurando um bastão e um receptáculo e tem esse tecido em torno dela e aí eu a transformei em uma mulher trans e aí, pra construir essa imagem, eu tirei uma foto minha, nessa posição e aí pedi para uma amiga para ver os seios dela e aí desenhei os seios dela em cima da minha foto e aí eu fui constituindo a imagem. E aí geralmente tem esses elementos do leão, o touro com um chifre quebrado, uma águia e um anjo. Aí o anjo eu representei a minha comadre, que é a Carla, pedi para ela uma foto, peguei, na verdade, ali no Instagram e depois eu falei: “Posso fazer, ‘botar’ em uma ‘xila’”? Ela falou: “Pode”. Que é ela no momento de gestação, quando ela estava gestando a minha afilhada e aí coloquei o anjo enquanto uma mulher negra gestando, pensando nessa vida que vai vir. Acho que muito dentro dessa possibilidade de novos mundos, na representação de uma mulher negra trazer esse novo mundo e aí eu coloquei também o guaraná e um cajueiro junto, pensando as relações de matrizes indígenas também, da nossa cultura e aí o guaraná tem uma lenda e o cajueiro também. O guaraná é uma história de morte de uma criança que era muito invejada por um deus indígena e ele fica com inveja e a criança morre, só que aí a mãe fica muito triste e ele se arrepende e onde a criança morreu nasce esse pé de guaraná, que tem esses olhinhos, que são os olhinhos da criança, que é para ela não sentir saudade e do cajueiro também é uma história de amor, dentro de um contexto de uma etnia indígena, de uma escolha que uma mulher tem que fazer entre duas pessoas interessadas nela, mas ela tem que escolher quem ela ama e nessa história também acaba resultando em morte, assim e aí diz que onde ela morreu ela estava comendo caju e nasceu um pé de caju. Então tem esses símbolos dentro da cultura indígena, que vão trabalhar a questão de morte e aí tem esse símbolo da mulher negra pensando a ideia da vida, do início.
P/1 – E qual foi a técnica que você usou de xilogravura?
R – A xilogravura é um trabalho que a gente faz na madeira, então toda essa imagem foi impressa em uma matriz de madeira.
P/2 – Que é aquela ali?
R – Isso, quer que desça?
P/2 – Você consegue?
R – Só tem que subir na cadeira, mas eu consigo. Acho que vai cair esse aqui.
P/1 – Você mesma que esculpiu?
R – Sim. Onde você quer que eu coloque? A ‘xilo’ é feita em madeira e pode ser vários tipos de madeira, mas aqui eu usei um compensado, que é mais acessível também, mais baratinho e aí tem umas ferramentas que são cortantes, que são as goivas e aí a gente vai desenhando na madeira, primeiro eu vou riscando com o lápis e depois eu vou marcando onde eu quero que fique madeira e onde eu quero que tire, aí depois eu venho com um rolo de tinta, passo a tinta na matriz, coloco o papel em cima, aí eu vou esfregando a colher de pau no verso do papel e a tinta vai passando da madeira para o papel e então aí eu consigo tirar a impressão. Então essa aqui é a matriz e essa aqui é a impressão.
P/2 – Muito bonito esse trabalho.
R – Acho que foi uns seis meses para fazer essa matriz e era em um momento que a gente estava bem isolado e estava com bastante restrição, aí eu acho que me marcou muito esse trabalho em específico, por conta do isolamento.
P/1 – E você sente que esse trabalho diz alguma coisa sobre você?
R – Com certeza. Eu acho que, por exemplo, tem uma questão que é das gravuras que eu fiz, essa é a primeira que eu trago um rosto. As outras não tinham, eram corpos sem rosto. Acho que muito mais completa e acho que não é à toa, acho que nada acontece ao acaso de que, tudo bem, naquele momento eu falava: “Eu não tenho um modelo, então eu preciso tirar uma foto minha, mesmo, para conseguir ver a imagem como eu quero”. E só depois que eu fiz o trabalho que eu consegui me entender e me dizer enquanto uma pessoa trans, por exemplo. Acho que é quase como se fosse um autorretrato, talvez não tão fiel, porque aqui eu estou com muito mais cabelo, (risos) mas eu acho que diz muito sobre mim, assim e principalmente sobre o fim do meu ciclo e sobre esse nascimento também.
P/1 – Aproveitando que você falou da pandemia, como foi esse período para você, pessoalmente?
R – Na verdade eu tive sorte, porque eu voltei para Mogi um pouquinho antes da pandemia, porque eu tinha planos de mudar, de tentar ir para fora, eu estava juntando um dinheiro, só que aí com a pandemia esse plano foi ficando mais distante, faltava um valor pequeno, com a mudança do dólar foi virando um valor enorme, gigante e ainda bem que eu não fui, que eu estava em Mogi com os meus pais, então a gente conseguiu se acolher, se abrigar, um ao outro, mas foi um período para todo mundo acho que foi muito marcante. A gente teve questão de covid na família, a minha mãe pegou covid, ela ficou muito mal, minha avó também pegou covid, bom que elas saíram com saúde e estão vivas, mas foi bem assustador, assim, por exemplo, esperar leito, medo de ser entubada, de acompanhar esse processo dela, aí por sorte não foi, mas foi bem violento.
P/1 – E como foi isso de voltar para a casa dos seus pais?
R – Pra mim, eu tinha receios, mas pra mim acho que foi uma oportunidade muito bonita, de poder olhar para eles para além de ideia de pai e de mãe, principalmente com essa situação do covid. Por exemplo: teve uma situação muito forte, foi quando a minha mãe estava doente, ela ficou internada e aí, quando ela teve alta, a gente a trouxe para a casa e na entrada da casa tem dois degrauzinhos, sabe aquele desnível da rua? E ela não conseguia subir, não tinha força no corpo pra passar esses degrauzinhos, ou não tinha força para tomar banho sozinha, então dei banho nela. Então, eu acho que essa imagem de dar banho nela, nessa inversão de papel, da figura que a gente tem, de uma mãe banhando uma filha e aí inverte para uma filha banhando uma mãe, acho que me atentou muito para essa quebra de papéis que a gente estava falando, de como eu posso cuidar da minha mãe também, não só ali naquelas custas do covid, assim, mas pensando de uma maneira geral, como que eu posso acolhê-la, e do meu pai também, entender essas humanidades, assim.
P/1 – E agora, como está a sua vida?
R – Olha, acho que está boa. Acho que se eu posso dizer da minha vida é que eu estou em um momento muito feliz, principalmente num momento de coragem e de contentamento com as escolhas que eu fiz. Acho que a transição me trouxe muita segurança também, que quando eu olho para trás, assim, e vejo a pessoa… eu tive que ter muita força para me dizer uma pessoa trans e isso me encorajou pra outras tomadas de decisões também, que às vezes são menores. Então, acho que isso me trouxe uma outra qualidade de vida, assim, sabe? De entender os lugares que eu quero estar e quando eu preciso estar, mas também entender lugares que às vezes é importante sair e não ficar, sabe? Acho que eu estou ficando esperta, estou ficando calejada, (risos) mas eu acho que eu estou em um momento muito bom, muito feliz.
P/1 – Eu queria te perguntar também se você tivesse a oportunidade de passar essas roupas para frente, você passaria para alguém?
R – Passaria.
P/1 – Teria alguma condição para isso?
R – Acho que não. Ou a condição do desejo, do presente, de querer presentear alguém, ou da necessidade, por exemplo: aqui tinha uma vizinha nossa que era aluna e era uma pessoa em situação de rua, uma travesti, e logo quando eu mudei para cá, pra essa casa, eu já a conheci, então ela acompanhou a mudança e aí outra condição de ser trans, um outro recorte, também de vulnerabilidade assim e ela precisava muito desse apoio, então a gente se ajudou muito, assim, só que aí, enfim, teve alguns movimentos na vida dela, que ela vivia junto com o companheiro em situação de rua e aí ele faleceu de pneumonia e ela ficou um tempo no hospital e aí depois eu peguei um trabalho em Minas e aí, quando eu voltei, eu já não a encontrei mais e aí não tenho mais notícias dela também, mas ela seria uma pessoa que eu presentearia, por exemplo, que inclusive gostaria de vê-la vestindo, também.
P/1 – Inclusive, sua mãe já viu você vestida com essas roupas?
R – Já. O macacão, não, eu ainda não achei o look pra usar.
P/1 – E ela gostou?
R – Gostou. Por exemplo: o vestido azul ela acha muito curto, aí eu sigo a indicação dela: “Usa com um shortinho, usa com alguma coisa” e eu ainda dou uma amarrada na cintura, para ficar mais curto ainda, (risos) mas ela já viu, já. Eu já usei em um almoço na casa de um tio, aqui em São Paulo e aí eu fui com esse vestido.
P/1 – E como foi?
R – Foi bom. Minha família lida bem, mas não diz sobre, fica meio no não dito. Acho que a pessoa que não tem coragem de dizer, de expor o que está pensando, assim é meu pai, sabe? Ele, por exemplo, não gosta, não se sente confortável e é lógico, para mim mexe muito essa opinião dele, mas é o que eu estava falando: eu acredito que é uma questão de tempo também, porque eu confio muito no amor que ele tem por mim e ele mudou muito, já, ele já se repensou muito, diversas vezes, sobre vários outros temas. Então acho que é isso: eu demorei muitos anos para entender a transexualidade, é injusto também eu cobrar que eu coloque um vestido e que tudo esteja resolvido pra ele. Acho que a gente pode construir junto isso, sabe?
P/1 – A gente já está encaminhando para as perguntas conclusivas, mas eu queria te perguntar se tem alguma coisa que eu não falei, que eu não te perguntei e você gostaria de falar.
R – Ai, eu acho que não, não sei, agora não vem nada na cabeça, assim.
P/1 – Tudo bem. Quais são as coisas mais importantes para você, hoje?
R – Nossa! Quais são as coisas mais importantes para mim? Acho que a minha família, acho que poder viver com dignidade também, não no luxo, mas confortável, sem preocupação, sem ficar gerando ruga e que as outras pessoas também possam viver com dignidade também, tanto quanto eu, mas eu acho que são essas as importâncias que eu tenho para mim e meus amigos, minha família, meu companheiro, que é o que me fortalece. Se eu consigo construir toda essa jornada e sentar aqui e me dizer de todas essas formas é porque tem muitos braços que eu posso abraçar e me acolher quando eu preciso. Então, acho que essas pessoas são muito importantes para mim.
P/1 – E quais são os seus sonhos?
R – Meu sonho é ficar rica. (risos) Acho que é estar em espaços também que eu admiro, por exemplo. Acho que um sonho mais recente que eu tenho é de conseguir montar uma exposição, por exemplo, desse trabalho e de compartilhar com outras pessoas também o que eu produzo. Acho que também de ter um pouco mais de conforto, de conseguir trabalhar só com isso, sem ter que desdobrar em trezentos trabalhos diferentes, fazendo mil coisas ao mesmo tempo para conseguir pagar um aluguel, sabe? Acho que um pouquinho mais nesse sentido, assim. Mas acho que esse lance da exposição é um sonho recente, que eu estou querendo muito, assim.
P/1 – O que você quer deixar como legado para as próximas gerações?
R – Eita! Nossa, eu não sei.
P/1 – Como você quer ser lembrada?
R – Como Malu. (risos) Acho que a minha expectativa é de que as pessoas consigam se encontrar também de uma maneira que seja tranquila, não só em relação a transexualidade, mas de estarem confortáveis em ser quem se é, sem grandes cobranças, pesos, mas também não sou... acho que não é um legado que eu consiga sozinha, acho que precisa de muita gente.
P/1 – E, por fim, como foi contar um pouco da sua história para gente, hoje?
R – Ah, eu gostei bastante, sabia? Eu confesso que eu dei uma segurada várias vezes em choro, de ficar emotiva, dei uma segurada boa, mas eu acho que eu estou muito feliz de poder compartilhar um pouquinho sobre mim e de conhecer vocês um pouquinho, também.
P/1 – Legal. Malu, muito obrigada, foi incrível.
R – Eu que agradeço. Nossa, foi linda a conversa. Eu amei.
P/1 – E a gente adorou.
R – Que bom!
P/2 – Obrigada, tá?
P/1 – As cores da bandeira trans...
R – Sim e eu nem ‘saquei’, nem tinha pensado.
P/1 – É, então! (risos) É engraçado como é inconsciente.
R – Nem tinha pensado. Tenho até os outros trabalhos, os primeiros que eu fiz, eu mostro para vocês também e que não era uma questão que eu nem, de verdade, nem pensava, nem colocava racionalmente.
P/1 – Eu esqueci de perguntar das tatuagens.
P/2 – Quer? Pode perguntar.
P/1 – Pode perguntar?
P/2 – Pode.
P/1 – É que você falou que você é também tatuadora.
R – Sim.
P/2 – O que você gosta de fazer, de arte?
R – Dentro do contexto da tatoo, né? Na verdade, os trabalhos que eu mais gosto de fazer são projetos. Eu não gosto muito de fazer desenhos assim, porque tem dois tipos de trabalhos na tatuagem: você pode fazer flash, então você deixa os desenhos prontos e as pessoas se identificam e tatuam, ou tem os projetos, chega alguém com uma ideia e te conta e você produz a imagem e tatua. Os projetos são os que eu mais gosto, assim, acho que eu me interesso mais, porque a tatuagem começou muito um ‘plano B’, assim, de um jeito a mais de fazer dinheiro, só que aí eu fui percebendo algumas relações com essa questão da transição, porque tem uma discussão que é, da gente pensar a transição também quanto a um direito ao corpo possível. Hoje, por exemplo: o processo de harmonização, do laser, eu estou construindo um corpo que não existia dessa maneira, mas eu vou imaginando-o, vou idealizando-o e ele vai acontecendo e a tatoo, claro que num outro contexto, também é um pouco disso. Então, quando uma pessoa escolhe uma tatuagem, ela começa a desejar um corpo que ela não tem. Se você tem um dragão nas costas e você está pensando nisso, desejando isso, você não tem um dragão nas suas costas, seu corpo não é naturalmente assim, então você deseja e vai lá e paga e alguém faz e aí você modifica o seu corpo, faz uma modificação corporal. Então eu comecei a fazer esses cruzamentos assim, esses contextos de mudança na tatuagem também, com esses da transição e aí eu comecei a ‘curtir’ a tatuagem. Então, a ideia de projeto começou a me interessar mais, porque a pessoa fica idealizando. Uma vez eu peguei um projeto, por exemplo, que era pensar uma imagem na coxa com o tema da América Latina e aí fiquei pesquisando o que podia ser da América Latina e é muito ‘massa’ quando você vê o resultado pronto e você vê a pessoa se relacionando com aquela imagem. Eu gosto bastante, tenho gostado bastante do universo da tattoo.
P/1 – Eu acho interessante, porque eu nunca pensei, é uma modificação corporal também.
R – E é uma super modificação corporal, porque ela é fixa e é isso: mesmo com laser vai dar um super trabalho assim, mas é uma modificação grande no corpo e que é histórico nosso, também. Acho que sempre quando a gente se lembra humanidade, a gente gosta de modificar. (risos)
P/1 – É verdade. Essa fala que você falou me lembrou aquele filme do Almodóvar, sabe, Fale com Ela?
R – Qual que é? Não sei.
P/1 – É um que o filho morre... eu não sei explicar... eu sei que ela volta para Barcelona mulher e ela conhece uma mulher trans e essa mulher tem uma hora que a peça dá errada e ela vai lá na frente e fala que para ela ser autêntica ela teve que mudar todo o corpo dela, até ela ser ela mesma, o que ela queria.
R – Acho que eu não assisti. Sim.
P/1 – E o nome dela é autêntico, é um negócio assim.
R – É do Almodóvar? Eu vou procurar, depois vou assistir.
P/1 – É o meu filme favorito dele, é Fale com Ela. Não, Fale com Ela, não, é Tudo Sobre Minha Mãe, lembrei.
R – Eu assisti.Recolher