Entrevista de Ana Lúcia Riquetto da Silva Ferreira
Entrevistada por Gracielle Pellicel
Mogi das Cruzes, 23/09/2023
Projeto Vestindo Memórias: Legado e Identidade
Entrevista número: VES_HV010
Realizado por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Primeiramente m...Continuar leitura
Entrevista de Ana Lúcia Riquetto da Silva Ferreira
Entrevistada por Gracielle Pellicel
Mogi das Cruzes, 23/09/2023
Projeto Vestindo Memórias: Legado e Identidade
Entrevista número: VES_HV010
Realizado por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Primeiramente muito obrigada por ter aceitado o convite. A gente começa pelo básico, que é perguntando o seu nome, local e data de nascimento.
R – Ana Lúcia Riquetto da Silva Ferreira, nascimento dois de julho de 1965.
P/1 – E onde você nasceu?
R – Eu sou natural aqui de Mogi.
P/1 – Os seus familiares te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R – Sim, aqui. Eu nasci de sete meses, eu sou prematura e minha mãe trabalhou de manhã na fábrica de montadora de piano, aqui de Mogi e ela passou mal e a minha avó a levou para o hospital. Eu nasci muito pequena e pelos padrões que as crianças nasciam nessa época as pessoas achavam que eu não ia sobreviver, não, mas eu estou aqui.
P/1 – E você sabe por que seu nome é Ana Lúcia?
R – Sim, é em homenagem a uma avó, que é Ana e em homenagem à Lúcia, uma amiga da minha mãe, que faleceu.
P/1 – E qual é o nome da sua mãe e como você a descreve?
R – Ah, sim. O nome da minha mãe é Irene e ela é uma mulher muito batalhadora, ela trabalhou na área de saúde até os setenta anos, 43 anos de hospital.
P/1 – Ela trabalhava com quê?
R – Auxiliar de enfermagem.
P/1 – E como é a parte da família dela?
R – É uma família grande, tanto da minha mãe, quanto do meu pai, então nós temos muitos primos, muitos tios, mas, assim, não é uma família assim que vá muito na casa um dos outros. São alguns tios que são mais chegados, outros nem tanto.
P/1 – E seu pai, qual é o nome dele?
R – O meu pai chama Augusto.
P/1 – Ele trabalhava com o quê?
R –
Trabalhou com a minha mãe, na fábrica de pianos, e depois em uma montadora, que se chamava Valmet.
P/1 – Você falou que ela era da área da saúde, mas ela também trabalhou na fábrica de pianos?
R – Isso. Quando eu era mais nova. Quando eu nasci ela ainda trabalhava, aí essa fábrica faliu, que era Schwartsman e ela ficou um tempo em casa e ainda quando nós éramos pequenos ela voltou a estudar, fez o curso de auxiliar de enfermagem e começou a trabalhar, na área de saúde.
P/1 – E como é a parte da família do seu pai?
R – Olha, é muito grande também, a gente não tem muito contato com eles, eles são mais distantes que a família da minha mãe. O meu pai é praticamente o caçula de dez irmãos, papai já está com 82 anos. Então, dos meus tios eu tenho acho que uma tia só... duas tias vivas, ambas mais velhas que ele.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram?
R – Meu pai e minha mãe? Eu acho que foi na empresa, eles trabalhavam antes em uma outra empresa e eles se conheceram nesse lugar.
P/1 – E além dos seus pais você tem algum parente que você tem algum carinho especial?
R – Tem algumas tias que a gente tem mais contato. Eu vim para cá muito pequena, então a minha avó morava algumas casas abaixo da minha, então eu cresci junto com os meus avós, com meu vô, com a minha vó.
P/1 – Você é de Mogi. Seus pais também, seus avós?
R – Minha mãe nasceu em Biritiba Mirim e meu pai Birita-Ussu. Então, os dois são zona rural.
P/1 – Onde que fica?
R – São vizinhos, aqui próximos.
P/1 – E seus avós também são de lá?
R – A minha avó é mineira, de um lugar chamado Cambuquira e o meu avô eu não sei bem, porque a gente sabe pouco da família do pai da minha mãe.
P/1 – Você tem algum irmão?
R – Tenho dois, tenho um irmão e uma irmã.
P/1 – Como é a relação de vocês?
R – É boa. Ambos moram em São Paulo.
P/1 – E quando mais novos vocês brigavam muito? Brincavam?
R – Não, a maioria das vezes, porque eu sou a mais velha, então quem cuidava dos meus irmãos para a minha mãe trabalhar era eu.
P/1 – Qual a diferença de idade?
R – Cinco anos.
(05:33) P/1 – Você cuidou dele, né, que você falou? Que legal! E quem te contava?
R – Geralmente era meu pai.
P/1 – Que tipo de história ele te contava?
R – De assombração. (risos)
P/1 – Tem alguma que você lembre?
R – Tem a da Catarina (risos) e aí nós fomos pesquisar que a tal da Catarina é contada no Brasil inteiro (risos).
P/1 – Como é essa história?
R – Que ela era empregada de um padre e que ela foi preparar carne para o vigário e que ela acabou comendo a carne toda. Como ela não tinha outra para repor, ela foi e tirou o fígado de um dos defuntos, que estava lá na igreja velando e fritou para o padre e aí o defunto ficava perseguindo-a, pedindo o fígado de volta. (risos)
P/1 – Como você se sentia depois de ouvir essa história?
R – Eu gostava.
P/1 – Não tinha medo?
R – Não, eu nunca fui muito medrosa. Meus irmãos tinham mais, mas eu nunca fui assim, de sentir medo. Nós pesquisamos e disse que realmente essa Catarina existiu, na década de vinte e pouco, trinta e que ela era mulher de um açougueiro que, realmente, no sul, ele matava as pessoas e vendia a carne no açougue, que ela realmente existiu.
P/1 – E você lembra da casa que você passou sua infância?
R – Eu cresci aqui, eu vim para cá, eu acho que eu tinha um ano e seis meses, mais ou menos. Minha mãe morava antes em uma casa de aluguel, meu pai comprou aqui e reformou e nós viemos para cá e aqui viveu eu e meus dois irmãos.
P/1 – E quando vocês chegaram a casa era desse jeito mesmo?
R – Não. Eu mudei para Suzano e minha mãe comprou uma outra casa para lá, uma casa maior e essa casa estava alugada. Aí, quando eu me casei, eu fui para (07:39) e a casa, logo depois, ficou fechada aqui. Aí a minha mãe me deu a casa para que eu morasse aqui. Eu, Toninho e meus meninos.
P/1 – E por que vocês foram para Suzano?
R – Ela queria financiar uma casa e na época, se você tivesse um imóvel no mesmo município, você não conseguia.
P/1 – E mudou muita coisa desde que você era pequena? Reforma, assim?
R – Ah, mudou, a gente mudou muito, mudou a entrada. A gente vai colocando de acordo com o que foi precisando, os meninos foram crescendo, aí nós fomos reformando.
P/1 – E tem algum cômodo, assim, que não tinha antes e agora tem?
R – Tem. Essa parte da cozinha pequena, que era lavanderia e nós abrimos. Lá em cima, no quarto dos meninos, também a edícula nós fizemos depois.
P/1 – E como era a sua infância, aqui na região?
R – Eu tive uma infância boa, porque aqui tinha toda a parte de descampado, era um terreno de criação de cabritos aqui na frente e logo abaixo moravam os meus primos, então eu cresci correndo a rua, aqui. Acho que a última geração que teve essa vantagem de brincar na rua foi a minha, logo em seguida as coisas foram ficando mais violentas e as pessoas já não brincavam mais tanto quanto era antes.
P/1 – Aqui, antes, só para eu entender, era uma região rural, assim?
R – Era mista, tinha muitos terrenos vazios. Tem muitas construções que são de vinte, trinta anos, eu já tenho 58.
P/1 – E como é que foi crescer aqui?
R –
É gostoso crescer no bairro. Conhece os vizinhos, tem amizade com todo mundo, para baixo moravam os tios e as tias.
P/1 – Então a família toda próxima, assim?
R – Era, morava todo mundo próximo.
P/1 – E vocês gostavam de brincar do quê? Você.
R – Bom, eu era muito moleca. Eu sempre brincava no quintal da minha avó, empinava pipa com os meus primos. Até a gente brinca assim, que eu era o peso do carrinho de rolimã. Então ele ia na frente, meu primo, e a gente ia sentado atrás, correndo morro abaixo.
P/1 – E vocês não brincavam com os cabritos, do outro lado?
R – Eu tinha medo, do cabrito eu tinha medo. (risos)
P/1 – Teve alguma coisa que aconteceu?
R – Não. Tinha um deles que protegia todos eles, que era o mais velho, aí eu sentia medo desse.
P/1 – Você tinha costume de ouvir rádio, música ou assistir TV?
R – Tinha.
P/1 – Você lembra de algum momento, alguma música, TV, novela, por exemplo?
R – O meu pai gostava muito de música. Gosta, né, muito de música.
P/1 – E ele ouvia o quê?
R – De tudo um pouco: Jovem Guarda, Roberto Carlos. Ai, meu Deus, fugiu… e outros da MPB, Poly, muita música orquestrada.
P/1 – E você gosta de música?
R – Gosto.
P/1 – O que você gosta?
R – De tudo.
P/1 – De tudo mesmo? Mas tem umas que você goste mais que outras?
R – Olha, eu gosto muito de música erudita. Tem uma que eu gosto muito, que é o Bolero, de Ravel.
P/1 – E a escola, como vocês iam para a escola? Era aqui mesmo, na região?
R – Quando eu estudava não havia escola para todo mundo, aí dividia-se: segunda-feira, terça-feira e quinta-feira ia uma turma... segunda-feira, quarta-feira e sábado uma turma, depois terça-feira, quinta-feira e sexta-feira outra turma, aí eles construíram uma escola mais próxima, do outro lado do morro e nós fomos primeiro para essa outra escola, mas a gente aprendia.
P/1 – E como é que vocês iam para essa escola?
R – Andando.
P/1 – E você subia o morro?
R – Subia o morro.
P/1 – E como é que era esse dia-a-dia? Você acordava...
R – Olha, como eram poucas escolas, geralmente a gente entrava às onze e saía às três da tarde. Acordava, tomava café, almoçava logo cedo para ir para a escola e ia e a gente aprendia, viu? Mesmo sendo com mais dificuldade, valorizava-se muito a educação.
P/1 – E porque esse horário, das onze às...
R – Porque tinha que ser três turmas.
P/1 – Então o tempo de aula era menor?
R – Era menor.
P/1 – E na escola tem alguma matéria que você gostou mais?
R – Eu sempre gostei de tudo. Tive muita dificuldade em matemática, porque eu acho que eu não sou muito lógica, mas eu sempre gostei de educação física, de artes, de história, de geografia.
P/1 – E teve algum professor que te marcou?
R – Sim, teve um de Educação Moral e Cívica. Nós estávamos na sétima série e o professor deu aula para a gente num dia e no outro ele sumiu.
P/1 – Por quê?
R – Era o período da Ditadura, ele sumiu.
P/1 – Descobriram depois o que aconteceu?
R – Simplesmente foi levado para depor e nunca mais apareceu.
P/1 – Como era a Educação Moral e Cívica, para quem não conhece?
R – Se falava sobre a história do Brasil, falava-se sobre política, sobre os presidentes e o que eles queriam que nós aprendêssemos.
P/2 – Como era o nome desse professor?
R – Lourival.
P/2 – Que história!
P/1 – E como era a vivência na escola, em geral? Você gostava de ir para a escola?
R – Eu sempre gostei muito da escola. Eu acho que eu escolhi ser professora para continuar dentro da escola, porque eu sempre gostei muito de ler, de escrever.
P/1 – E o que que você escrevia, assim, lia?
R – Olha, eu gostava muito de escrever poesia, quando eu era mais nova. Eu até escrevia razoável, depois a gente casa, tem os filhos, aí as coisas acabam ‘atropelando’, mas eu sempre gostei muito dessa parte de artes, gosto muito de ler e gosto de ler para as crianças também.
P/1 – O que você gosta de ler?
R – Tudo. Ultimamente, lá na escola, a gente está lendo muitos contos clássicos, mas a gente só aprende a ler, lendo e escrever, escrevendo. Você não valoriza aquilo que você não escuta, aquilo que você não sabe.
P/1 – E tem alguma leitura que te marca, ou marcou?
R – Marcou? Tem um livro da Zíbia Gasparetto, Entre o Amor e a Guerra.
P/1 – Sobre o quê?
R – Fala sobre amores que se passaram no meio da Segunda Guerra Mundial. Duas pessoas que se conheceram e, por algum motivo, não puderam ficar juntas.
P/1 – Interessante! Você tinha comentado também comigo que parte da sua família veio da Alemanha.
R – É, eles vieram por Portugal, que eles falam que são os alemães safruditas, se eu não me engano, porque a minha bisavó era portuguesa e eles vieram pra cá porque na Europa já não estava conseguindo viver mais como era antes.
P/1 – Que eles eram judeus, né?
R – É.
P/1 – E foi durante a guerra, ou um pouco antes?
R – Um pouco antes.
P/1 – Entendi. Eles vieram para essa região, mesmo?
R – Para essa região.
P/1 – O magistério, assim, já na escola que você pensou em fazer?
R – Não, eu não pensava em ser professora, eu queria fazer medicina, mas na época que nós estudávamos, a medicina era uma coisa muito difícil, a gente não conseguia pagar e eu tinha metade de uma bolsa em uma escola e lá, nessa escola, a gente tinha aula com os padres e com as freiras. Aí um dia, conversando com o Padre Luiz Ceppi, que foi um dos meus professores, ele falou assim: “Olha, você talvez não consiga fazer medicina, mas se você fizer magistério você vai se dar muito bem, porque você gosta de criança, tenta”. Aí eu tentei.
P/1 – E de onde ele tirou isso, que você gosta de criança?
R – Porque eu gostava de ficar no meio dos menores, tentar ajudar, tentar ajudar outras pessoas, aí ele: “Vai, faz magistério e vê o que dá”. E eu fiz.
P/1 – E como é que foi o magistério, para você?
R – Foi tranquilo. O meu filho mais velho nasceu e eu estava no último ano do magistério, o Fernando.
P/1 – E foi o que você esperava?
R – Foi, só que assim: você tem que aprender por conta, você não sai pronto. Você vai estudando, vai pesquisando, vai tentando outras maneiras de chegar nas crianças. Eu comecei a lecionar, comecei na zona rural. Na época que eu comecei a lecionar a gente limpava a escola, fazia merenda. Aí eu andava mais ou menos sete quilômetros para chegar na escola.
P/1 – Mas esse é o caso de uma escola rural?
R – Uma escola rural.
P/1 – Na época também era assim? Nossa!
R – É. Hoje, agora, não mais, mas a gente limpava a escola, fazia merenda.
P/1 – Então você fazia várias coisas, (risos) assim, para os seus alunos? Nossa!
R – Várias coisas.
P/1 – E o magistério existe hoje em dia?
R – Não, não mais. É um erro não existir mais.
P/1 – Por quê?
R – Porque hoje, as pessoas que quiserem trabalhar como pedagogas e dar aulas têm que fazer pedagogia, só que a pedagogia não prepara, ela é uma faculdade como outra qualquer e nem todas as pessoas têm a oportunidade de fazer uma faculdade pública e não têm como pagar. Então era muito melhor quando se tinha o magistério, você ia lá, você estudava e via se era realmente isso que você queria e, se fosse, você fazia a universidade.
P/1 – E como é que se entrava no magistério?
R – Eu estudei em uma escola aqui, particular, era o Liceu Braz Cubas, eu tinha meia bolsa também, mas no magistério existiam escolas públicas, ótimas escolas, como o Cefam, por exemplo, que a pessoa estudava e ganhava um dinheiro para você custear os seus estudos, ajudava muitas pessoas, que não existe mais.
P/1 – Você falou que, por exemplo, pedagogia é como se fosse uma faculdade qualquer. Qual a diferença hoje?
R – Não se prepara o profissional para trabalhar com as crianças, acaba sendo um curso muito vago, muito superficial.
P/1 – O magistério é mais prático?
R – É mais prático.
P/1 – E terminando a escola você foi direto para o magistério?
R – Fui.
P/1 – Então você, desde a escola você já é professora?
R – Desde a escola.
P/1 – E aí você falou dessa escola rural, quanto tempo você trabalhou lá?
R –
Escola rural? Uns três anos.
P/1 – E onde que era?
R – Comecei em um município aqui do lado, que é Biritiba Mirim, depois eu trabalhei em uma outra escolinha, chamada Granja do Baba, trabalhava dentro da granja, eu ia com os funcionários, no caminhão da granja, depois terminava o período e eu vinha novamente e depois em uma outra escolinha rural, no Capixinga.
P/1 – E depois de lá você foi para algum outro lugar trabalhar?
R – Aí eu comecei a chegar mais perto da minha casa, aí fui para escolas maiores.
P/1 – E conta um pouquinho assim na parte da adolescência e juventude, o que você fazia para se divertir com os seus amigos?
R – Eu dançava.
P/1 – Ah, é? Que tipo de dança?
R – Dança clássica.
P/1 – Como era? Que dança que você fazia?
R – Dança clássica.
P/1 – E como era?
R – Eu adorava ballet, gostava muito, desde a época da escola, então a gente montava coreografia pras outras crianças e eu já comecei a mexer com isso, sempre com música e com dança.
P/1 – E como é que você entrou no ballet?
R – Eu entrei por conta própria. Eu tinha problema no pé, pezinho chato, aí o médico falou que seria legal e eu fui, procurei a escola e me matriculei.
P/1 – Você ficou quanto tempo lá, ou você faz até hoje?
R – Eu danço ainda em um grupo de dança folclórica brasileira. Enquanto eu morava aqui, em Mogi, eu procurei a escola, aí mudei para Suzano, a prefeitura mantinha uma escola de dança pública, aí essa professora me viu dançando e achou que deveria investir em mim, chamava Maria Dolores Pestelli, ela é profissional do Ballet Nacional e depois eu fui estudar em... ai, meu Deus... São Miguel, é Faculdade Cruzeiro do Sul. A escola de dança tinha uma sala funcionando dentro dessa faculdade e eu ia todos os dias, eu tinha bolsa de estudos.
P/1 – Eu queria entender como a dança e o magistério...
R – Fazia os dois juntos.
P/1 – Sim. E aí era um horário um e o outro…
R – Isso.
P/1 – Sim. E São Miguel é muito longe daqui?
R – De ônibus acho que é uma hora e meia, uma hora e pouco.
P/1 – Entendi. Faz sentido. E você falou das danças folclóricas brasileiras, o que esse grupo... que tipo de dança que era?
R – Se dança cacuriá, coco, tambor de crioula. Ultimamente a gente tem feito Boi, que essas danças são do Maranhão. Inclusive passou bastante nessa última novela, antes dessa novela das nove horas, que falou-se um pouco sobre o Maranhão.
P/1 – E são mais danças do norte, assim?
R – Isso, do norte e nordeste.
P/1 – E você dança com que frequência?
R – Olha, durante a pandemia a gente meio que parou e agora a gente está tentando retomar novamente, porque o grupo diminuiu bastante, as pessoas mais velhas meio que se afastaram, mas se reúne pelo menos uma vez por semana.
P/2 – A Malu comentou que elas começaram juntas, não foi?
R – Foi.
P/2 – A senhora pode falar um pouquinho disso?
R – Posso. Bom, a gente foi em apresentações que o grupo foi se apresentar e eu fiquei apaixonada pelo Boi. Nossa, eu achei assim de um encantamento muito grande e tinha esse teatro, que é o Galpão Arthur Netto, que Malu trabalhava lá e nós nos encontrávamos nesse galpão e eu comecei a acompanhar, para acompanhar Malu e a gente acabou indo juntos e participando juntos também. Aí Malu mudou para São Paulo e eu continuei, por minha conta.
P/1 – E qual a importância do Boi?
R – De resgatar a cultura popular brasileira, porque está muito... o brasileiro, em questão, valoriza muito o que vem de fora, mas não valoriza aquilo que é das nossas raízes.
P/1 – E aí você foi fazer magistério e no último ano o seu primeiro filho nasceu?
R – Nasceu.
P/1 – Como é que foi ser mãe?
R – Meio ‘atropelado’. Eu casei, já estava grávida do Fernando, casei com o Toninho e é muito difícil conciliar maternidade, escola, dança. Aí meio que a dança ficou em segundo plano e eu me dediquei depois mais ao menino, terminar o magistério e logo em seguida começar a trabalhar.
P/1 – E você comentou comigo antes que você chegou a fazer pedagogia também.
R – Fiz, fiz quatro anos de pedagogia, eu tenho pedagogia.
P/1 – Aí foi bem depois do magistério?
R – Foi um ano e meio depois. Quando eu terminei pedagogia, nasceu o Leo.
P/1 – Nossa, que rápido!
R – Porque pedagogia são quatro anos.
P/1 – Sim. Pouca diferença...
R – São quatro anos e pouco do Leonardo e dois anos em relação a Malu.
P/1 – E seu marido, como é que você conheceu?
R – Na igreja.
P/1 – Vocês começaram a namorar...
R – Nós nos conhecemos no grupo de jovens. Ele frequentava a casa de uma das coordenadoras e ela convidou a gente para participar do grupo de jovens na igreja e a gente se conheceu lá e o nosso grupo de jovens, praticamente virou um grupo de casais.
P/1 – (risos) E aí vocês saíam em casal, essas coisas?
R – É, eu casei com o Toninho, o irmão dele casou com a minha cunhada Tila e outros casais também. O Agnelo ficou com a Rose e assim virou um grupo de casais.
P/1 – Entendi. Queria te perguntar também como é que essa rua mudou, através dos tempos?
R – Mudou bastante. Quando eu era criança aqui não tinha nem asfalto. Era rua de terra.
P/1 – E você falou dos cabritos.
R – Tinha. Essas casas da frente não existiam, era um descampado, então as casas mais velhas eram essa aqui, a da minha tia, a da minha avó e alguns moradores no alto do morro e depois, com o passar dos anos, foram construindo outras casas, até alguns conjuntinhos de casas iguais, aí foi povoando mais, mas antes era tudo rua de terra.
P/1 – E como a cidade, em geral, mudou?
R – A cidade de Mogi das Cruzes é bem antiga, ela tem 463 anos, é quase a idade de São Paulo e ela tinha os casarios, as casas mais antigas, as igrejas, a maioria ainda é construída com massa de pilão. Você olha as igrejas mais antigas aqui, elas são centenárias.
P/1 – E você sabe qual a colonização daqui?
R – Bandeirantes. Mogi foram pelos Bandeirantes. Era povoado de pouso, pra ir tanto para o litoral, de trazer plantação de café, plantação de cana-de-açúcar e subir a serra por esses caminhos.
P/1 – Você sabe o que levou os seus familiares a virem para Mogi das Cruzes?
R – Olha, eu nunca os vi comentarem nada. Eu acho que a proximidade de São Paulo, porque não é tão longe e esse ar de interior, mesmo sendo tão próximo da capital.
P/1 – Ia te perguntar também: como foi o seu casamento?
R – Nós nos conhecemos em Suzano, nós nos casamos na igreja de lá. Minha mãe ficou meio brava, meu pai também, porque eu casei grávida, mas a gente está junto até hoje, a gente tem 38 anos de casado.
P/1 – Seus pais ficaram bravos por quê?
R – Por causa acho que da gestação, de ter que ‘atropelar’ um pouco as coisas, de ter outros planos para mim, eu ainda estudava.
P/1 – Entendi. E como foi, para você, ser mãe pela primeira vez?
R – Eu sempre fui meio muito apaixonada por ser mãe, eu gosto, eu sempre gostei muito de ficar gestante, é como se você estivesse dono da humanidade.
P/1 – Gerando uma vida.
R – É!
P/1 – A gente teve agora uma pandemia que durou mais de dois anos, mais ou menos. Como é que o coronavírus impactou a sua vida, de alguma maneira?
R – Olha, para nós aqui foi bem difícil. Eu falei para vocês que eu tenho uma mãe idosa e um pai idoso. A minha mãe pegou covid naquela segunda fase da pandemia, ela tinha tomado uma dose da vacina e eu tive que cuidar dela. Aí ela saiu do hospital, logo em seguida, acho que uns três dias depois, eu fui internada, porque eu peguei covid dela. Pra nós foi bem duro.
P/1 – Vocês ficaram com alguma sequela?
R – Olha, se fiquei não sei. Fiquei muito esquecida na época, saí do hospital e não conseguia escrever direito e os professores, nós estávamos dando aula online, no meu caso por whatsapp. Eu acho que a pandemia não foi fácil para ninguém.
P/1 – Eu queria te perguntar como é o seu dia-a-dia no trabalho de professora?
R – Eu comecei a dar aula em 1986 aqui, mas eu gosto muito do que eu faço, eu acho que as crianças me têm como uma professora meio maluquinha.
P/1 – Por quê?
R – Acho que pelo fato de conversar muito com elas, de explicar coisas que talvez os pais não conversem tanto, de escutar, essa relação de escuta também das crianças, sabe? Porque elas também têm anseios, também têm dúvidas e às vezes passa despercebido pelos adultos.
P/1 – E como é, para você, trabalhar com alfabetização?
R – Eu gosto muito.
P/1 – Você tem alguma história, assim?
R – Todo ano tem história. Passam “N” crianças pela vida da gente. Se a gente levar em conta, olha, eu me aposentei de um cargo em 2015, mas eu continuei trabalhando, se a gente contar quantas crianças já passaram pelas minhas mãos, sempre trabalhando com salas numerosas: trinta, trinta e dois, trinta e cinco, trinta e sete, às vezes duas sala, de manhã uma sala, à tarde outra. Eu já estou dando aula para os filhos dos meus alunos.
P/1 – Então você está há quanto tempo na profissão?
R – Trinta e sete anos.
P/1 – E você tem como falar um pouco da alfabetização, como é?
R – O pessoal fala muito de metodologia, eu falo que a minha metodologia é uma salada de frutas, pego um pouco de tudo que eu acho importante e vou aplicando durante o ano e eles ‘acordam’, no segundo semestre a maioria já consegue ler e escrever tudo, então você vai juntando aquilo que é melhor de cada coisa, um pouco do tradicional, um pouco das teorias de Emília Ferreiro, outro tanto a gente constrói por conta própria e eles chegam ‘lá’.
P/1 – Você faz uma adaptação?
R – Vou adaptando, vou pegando textos, tirando palavras, outras horas começo das palavras e adapto o texto e vou fazendo assim, interdisciplinar, tudo, sabe, um pouco de cada coisa e vou colocando aquilo que eu acho importante pra que eles possam saber e irem por conta própria, no ano seguinte.
P/1 – E como você faz quando o aluno tem dificuldade no aprendizado?
R – Geralmente a primeira coisa que eu faço, senta do meu lado, porque geralmente aquele que tem dificuldade é aquele que a família delega mais, sabe? São aquelas crianças que têm problemas familiares, aquela mãe que trabalha o dia inteiro, aquela criança que tem algum problema de saúde mais sério, então geralmente é colocá-los perto de mim.
P/1 – Estou pensando aqui que a gente entrevistou a sua filha Malu, ela está em transição e ela falou que você deu algumas peças de roupa para ela. Por que você decidiu dar essas peças?
R – Olha, eu tenho observado já algum tempo esse tipo de transformação, até que chegou uma hora que eu olhei e não vi mais o Lucas, eu não enxerguei e eu percebi que eu tinha que ajudar, de alguma maneira e que a melhor maneira de você ajudar uma pessoa é de você entender e fazer-se entendido. Eu tenho uma amiga que também está com um filho trans, a Natália se tornou Natan e a luta da Rita também, por ser entendida e se fazer entendido, porque todo mundo olha e as pessoas perguntam: “Nossa, Ana, três filhos!”, porque os meus filhos são gays, os três e as pessoas perguntam, têm curiosidade como é. Importante é amar e ser amado e a melhor maneira que tem da gente amar, talvez, é de se fazer entendido, mesmo que a pessoa não fale nada, você enxergar o outro, usar os sapatos do outro e tentar caminhar junto. E eu sempre acreditei assim: quando você tem uma coisa e por algum motivo você não está mais usando, mesmo que você nunca tenha usado e você achar que aquela coisa vai melhorar a vida de outra pessoa, independente de ser meu ou não, então você delega, a força vai. É como se cada objeto tivesse uma força vital e você transforma, passa para outra pessoa.
P/1 – Como você se sentiu quando os seus filhos se assumiram para você?
R – Primeiro foi o Fernando, porque ele tem mais ou menos cinco anos de diferença. Não é fácil porque você, como pai e mãe, idealiza coisas que você quer para os seus filhos, acho que não é fácil para ninguém, seria hipocrisia da parte da gente falar que no momento seria fácil. Aí o Fernando saiu de casa, foi morar com o outro rapaz, não deu certo, voltou para casa novamente, aí Fernando resolveu morar sozinho novamente, ajudamos a montar a casa dele. Aí logo em seguida veio o Leo e Lucas resolveu falar também, de ‘lavada’, que eles tinham essa opção. O Leonardo, que já tinha um relacionamento com Gustavo. E o que cabe à gente é tentar ajudar, da melhor maneira possível. Agora Malu está em fase de transição, também. Teve uma época que chegou que ele começou a usar saia e tudo e nunca ninguém falou nada, mas a gente, como mãe, percebe que tem alguma coisa de transformação ali.
P/1 – E pra você, no início... como eu vou dizer?... foi uma aceitação imediata, ou não?
R – Não, acho que não, acho que foi construção para a gente também, foi construindo dia a dia. O problema maior não está na escolha deles, mas sim no mundo. O medo maior é o mundo, a aceitação do mundo.
P/1 – Mogi, eu não sei qual é o tamanho da cidade, exatamente...
R – Olha, ela não é uma cidade pequena, fica entre cidades grandes, eu acho que é em torno de seiscentos mil habitantes, mais ou menos.
P/1 – Tem essa preocupação assim, do que os vizinhos vão achar?
R – Não os vizinhos, mas em relação à noitada, à balada, à lanchonete, andar de noite na rua, a maneira com que você está vestido, você entende?
P/1 – Entendi. E você já tinha dado roupa para outras pessoas, além da Malu?
R – O tempo todo.
P/1 – O que você já deu?
R – Porque geralmente o que você não utiliza você tem que fazer a energia fluir, você não pode ficar com aquela energia parada dentro da tua casa. Eu faço bastante isso na escola, eu converso com os pais: “Quando vocês forem doar roupinhas manda aqui para a escola, porque a gente sempre tem crianças que não têm poder aquisitivo”. Às vezes as crianças vão de chinelinho de dedo, não é porque querem ir de chinelo, é porque não têm tênis. Então a gente olha lá e doa, os pais colaboram com a gente e a gente vai doando. Eu acho que o que não está servindo no momento mais, para você, você tem que fazer essa energia fluir, tem que circular, não é? E uma das melhores maneiras é assim: você doar.
P/1 – E se as pessoas que você deu a roupa derem para outra pessoa depois?
R – Não faz mal, eu doei.
P/1 – Então você gosta disso, de passar para frente?
R – Isso. Porque se você está ali com alguma coisa e você não está usando, então não te pertence mais, já. Então pode pertencer a outras pessoas.
P/1 – A Malu tinha falado comigo da importância de receber um vestido de você, vários vestidos. E para você, como foi dar?
R – Importante para mim é a pessoa se sentir bem e naquele momento ela estava precisando daqueles vestidos, mesmo para a identidade.
P/1 – Essas roupas, quando você deu, elas eram iguaizinhas quando você as adquiriu, ou teve alguma mudança?
R – Algumas sim e outras não.
P/1 – Tem peças que você usou bastante, que você mesma gostava? Você falou que, mesmo que você não usasse, você dava.
R – Hum-hum. Tem um vestido que levou que acho que eu usei uma vez, mas eu achei que naquele momento ia ficar melhor ali, com outra pessoa, talvez aquele momento não fosse mais meu, poderia pertencer à Malu.
P/1 – Qual que é o vestido?
R – É um azul.
P/1 – E como é o seu estilo de roupa, o que você gosta de vestir?
R – Eu gosto bastante de roupas compridas, eu gosto de roupas confortáveis, de malha, gosto de estampa, gosto muito de coisas estampadas, mesmo porque eu adoro roupa de chita, por exemplo.
P/1 – Você falou das danças folclóricas, muitas das roupas são assim.
R – Então, eu gosto muito de cor, eu gosto de vida.
P/1 – Queria que você falasse um pouco mais dessas danças e falar principalmente o que significa o boi nela.
R – O Boi é praticado praticamente no Brasil inteiro, ele só recebe outros nomes. No caso do Maranhão ele vem da lenda de São João Batista, que ele emprestou o boi para São Marçal, para dançar o Boi, para brincar o Boi no terreiro e ele se descuidou do boi, as pessoas estavam com fome e mataram o boi, ele não tinha mais o boi para devolver para São João Batista, por isso que as pessoas brincam o Boi, para fazer com que São João Batista fique contente novamente e existe o Auto do Boi, que conta a lenda na Negra Catirina e o Chico, que a negra estava com vontade de comer língua de boi e ele chega até o amo e tenta comprar o boi mais bonito da fazenda, tenta comprar de todas as maneiras, mas era o boi que o amo mais gostava, ele não queria vender. Aí o Chico vai e rouba o boi e tira a língua do boi, para a Catirina comer, porque senão o filho ia nascer com marca de nascença e eles acham o boi quase morto na floresta, ele sai procurando, ele manda os fazendeiros, os índios procurarem. Quando eles acham o boi, o boi está quase morto e trazem o boi daquele jeito para o amo ver e o amo fica muito triste, aí vem o pajé e faz o boi renascer. Então, em o Auto do Boi. Todo ano o boi nasce, é batizado e morre no final do ano, pra nascer no ano seguinte e todo um ciclo: ele vai nascendo, ele vai brincar depois que ele é batizado e depois ele morre novamente. Tudo isso tem ritual. Inclusive, no Maranhão os padres batizam o boi como se fosse uma criança, tem todas as falas, que ele não recebe os santos olhos, porque ele não é criatura, mas ele é batizado com água benta e tudo.
P/1 – E as danças, assim, elas representam algum período específico?
R – Não, não representam e é sempre assim, envolvendo a nossa formação:
brancos, negros e índios.
P/1 – Como assim?
R – As danças têm muito, por exemplo, os passos dos índios, aqueles passos miudinhos do cacuriá, as danças de saia, que fazem as evoluções. Por exemplo: o tambor de crioula tem muito... representa muito os negros, a percussão também, os tambores, tem os tambores, os pandeirões enormes que são, assim, gigantescos e tem muito dessa percussão tanto dos africanos, dos índios, é tudo muito misturado. Então, na hora que você está dançando você não sabe distinguir o que é uma coisa e o que é outra coisa. Então quem não conhece bem fala assim: “Nossa, parece macumba os tambores” e macumba não é nada, mais que o nome do tambor.
P/2 – Como que foi para a senhora fazer essa dança folclórica com a Malu, e como vocês... porque depois ela saiu, mas foi uma convivência...
R – Saiu, foi, nós sempre fomos muito cúmplices um do outro, sempre, e por eu gostar muito de artes acho que os meus filhos, todos eles meio que seguiram esse lado. O meu filho mais velho, Fernando, é muito criativo também, ele é artesão, trabalha com couro, ele cozinha muito, participou do MasterChef. Então, já o Leo trabalha com propaganda e marketing, com eventos e com essa parte de criação. Malu como artista cênico e como artes visuais. Então, a gente sempre se completou muito, muito, muito, desde pequeno.
P/1 – Ia te perguntar da dança, que você falou que você fazia dança clássica e a dança folclórica, assim. Como você foi de um para o outro?
R – Foi assim: eu tive o Fernando e como eu tinha que ir para São Miguel para dançar, eu até tentei ir, muitas vezes levando até o Fernando, mas eu comecei a não dar conta mais, era muito sacrificante, tanto para mim, quanto para ele me acompanhar, pegar ônibus, ir com mochila, aí eu acabei parando. Aí, quando foi mais ou menos há uns quinze anos, porque conta da Malu, eu resolvi voltar, porque talvez o meu corpo, por ter engordado, por “N” problemas de saúde, eu tive um câncer, tirei a tireoide, aí a gente fica mais gordinha, de não poder dançar de um tipo, mas de expressar essa minha parte artística de uma outra maneira.
P/1 – Como é que você descobriu o câncer?
R – Eu comecei a engasgar.
P/1 – Comendo, assim?
R – É, eu engasgava dormindo, com a própria saliva.
P/1 – E como é que foi, até descobrir?
R – Porque tem coisas que a gente faz no corpo da gente que é inerente, respirar é uma delas e, às vezes, dormindo eu engasgava. Aí eu já fazia tratamento da tireoide e procurei o médico e eu já sabia até o resultado, porque o meu avô, pai da minha mãe, teve o mesmo problema de câncer na garganta e a família da minha mãe toda tem muita propensão e é descobrir e cuidar.
P/1 – E aí como foi o tratamento, assim?
R – Bom, como eu descobri bem no início, foi bem mais leve, eu tirei a tireoide e fiz um tratamento com iodo, iodoterapia, tomei muito corticoide, muito corticoide e depois foi tranquilo, tem 21 anos, só que o corpo da gente não é mais a mesma coisa, eu ganhei bastante peso e pra você dançar assim fica mais difícil. Então, é migrar, não dá de um jeito, vamos do outro.
P/1 – Você falou da iodoterapia, como é isso?
R – Você toma uma quantidade de iodo e vai fazendo o tratamento, que é para queimar as células cancerígenas que ficam na garganta.
P/1 – E como é que você está, hoje em dia?
R – Estou super bem. Não vou dizer para você assim: “Nossa!”. Eu fiquei diabética porque, assim, você mexe em uma coisa e acaba mexendo em outras no seu organismo, mas dá para ir levando numa boa, acho que depende muito da sua cabeça, da maneira com que você enxerga.
P/1 – Como é que você enxerga?
R – O importante é estar viva.
P/1 – E você sempre foi assim?
R – Eu acho que sim, acho que desde que eu nasci, acho que viver é uma aventura.
P/1 – Voltando para a dança, dança clássica, dança folclórica, uma tem muitas regras. A folclórica também segue muitas regras, assim?
R – Sim, tem umas regras a serem seguidas porque, por exemplo: você vai dançar o Boi, tem muitas toadas, cada toada é um sotaque, é mais lenta ou mais rápida. A maneira, por exemplo: no cacuriá você dança, a maneira que você se movimenta, os braços, as pernas, o tamanho do passo do chão, que tem que imitar o passo do índio. Então, tem algumas coisas que a gente tem que observar, mesmo porque você está reproduzindo uma coisa que é cultural, então você não pode modificar o que é cultural.
P/1 – E como são essas roupas da manifestação?
R – Muito coloridas. As saias, a maioria é de chita e sempre com fitas coloridas.
P/1 – E é vocês que fazem mesmo?
R – Somos.
P/1 – E como é esse processo?
R – A maioria das vezes a gente se reúne para bordar, para costurar e o grupo, às vezes, pede para algumas pessoas que venham dar cursos para a gente, então às vezes participa de alguns editais. Por exemplo: tem a família Menezes, tem a Ana Maria Carvalho, que a gente é muito grato pela contribuição, Tião Carvalho; tem as meninas das Caixeiras do Divino também; tem a Mestra Roxa, lá do Maranhão; tem a filha dela, a Carla Coreira, que ajuda muito também. Toda vez que a gente precisa fazer uma oficina, eles vêm para ensinar.
P/1 – E esses tecidos, assim, vocês conseguem como?
R – A gente compra em casas de tecido mesmo, aqueles tecidos que as crianças usam de festa junina a gente faz as saias.
P/1 – Vocês trocam também, entre si?
R – Troca.
P/1 – A gente já está encaminhando para as perguntas finais e eu queria saber quais são as coisas mais importantes para você, hoje.
R – Eu prezo muito a minha família, eu acho que família é em primeiro lugar. Você tem que se amar. A gente tem a família da gente e, assim, o importante para as pessoas é ser feliz e eu sempre prezo isso, sabe? A maneira que você escolheu levar a sua vida, das suas escolhas, mas o importante é você ser feliz, independente de qualquer outra coisa. O pessoal ri de mim: “Qual que é teu projeto?” Meu projeto ultimamente é construir minha casa aqui do lado, para trazer a minha mãe e meu pai para cá. Aí o pessoal só dando risada, fala: “A Ana agora está pensando só em cimento”. Eu falo: “É mais ou menos isso”. Eu prezo muito essa questão de família. Gosto muito da minha profissão, eu amo muito o que eu faço, as pessoas falam: “Nossa, você dá aula tem 37 anos, você nunca quis ser diretora?”. As pessoas perguntam: “Por que você não foi ser diretora?” Porque eu amo o chão da sala de aula, eles me acrescentam tanto, mas tanto! Eu amo o que eu faço. É difícil para as pessoas imaginarem: “Nossa, mas nesse caos que está a educação brasileira!” Mas se todo mundo desiste, o que vai ser? Que futuro eles vão ter? E uma fala comigo, com as crianças é sempre essa: “Eu já sou passado, eu tenho 5.8, 58 anos, só que vocês são o futuro, vocês são os profissionais de amanhã, então vocês têm que fazer o melhor para vocês agora” e o pessoal pergunta: “Você não quis ser diretora?” Não, eu sempre gostei da sala de aula, sabe? Me satisfaz estar junto das crianças, de ver construindo, é uma construção muito bonita essa que as crianças fazem no seu dia a dia. Lembra que eu comentei que eu já estou dando aula para os filhos dos meus alunos? Eu estou na mesma escola há 21 anos, tem 21 anos que eu trabalho nessa mesma escola, então os pais já estão levando, os pais foram meus alunos, fui eu que alfabetizei, então eles confiam em mim.
P/1 – Como é que você se sente sabendo que tem muita gente que você ensinou a ler e escrever?
R – Se um dia perguntarem para mim assim: “O que foi que você fez que você acha que foi importante?” Eu dei aulas. Eu acho que, de alguma maneira, a gente continua vivo naqueles que você semeou alguma coisa. E eu sei que já tem alunos meus que já trabalham comigo, dando aula, são professores e há uns anos, uns três, quatro anos, pouco antes da pandemia nós fazíamos um curso acho que do PNAIC e uma das professoras que estavam lá... e uma proposta do curso de alfabetização era: se você pudesse falar para a sua professora da primeira série do primeiro ano, com ela, o que você falaria?” Aí uma das professoras levantou, foi lá na frente, chegou na minha frente e falou: “Professora, muito obrigada”. Ela tinha sido minha aluna e ela me falou que ela resolveu ser professora há alguns anos, em um curso que nós estávamos fazendo, de alfabetização, em um projeto do governo chamado PNAIC e um projeto desses que a gente tinha que assistir essas aulas. Até a gente fazia essas formações e uma parte prática. Aí a proposta da formadora do curso foi que se nós pudéssemos falar pra nossa professora da primeira série, ou do primeiro ano, que seja, o que você falaria pra ela. Aí uma das professoras levantou e veio na minha frente me agradecer que, por conta de eu ter sido uma boa professora, ela escolheu ser professora também. Hoje em dia, a última vez que eu fiquei sabendo, ela dá aula nas universidades, mas que eu tinha sido muito importante na vida dela, dos primos e dos irmãos, porque ela escolheu ser professora, porque ela se espelhou em mim. Isso foi muito importante pra mim.
P/1 – No momento, assim, como é que você se sentiu?
R – A gente meio ‘desmorona’, não vai esperar, porque a gente faz o melhor não é esperando nada em troca, que a gente sabe que no nosso país, infelizmente, o único caminho que se tem pra gente conseguir melhorar a vida das pessoas é só na educação e na cultura, não tem outro meio. Ou você nasce em ‘berço de ouro’, que não é para todo mundo e ouvir isso pra mim foi muito importante, foi muito significativo.
P/1 – Quais são os seus maiores sonhos?
R – Bom, no momento o meu projeto é a casa nova e daqui a uns quatro anos me aposentar.
P/1 – E a gente também queria que você falasse um pouco das artes da Malu, que tem várias delas aqui, expostas.
R – Ah, sim, tem várias xilogravuras. Essas aqui nós ganhamos de Natal, eu e o Toninho, há uns quatro anos, mais ou menos, aí eu mandei emoldurar, eu coloquei as molduras. Foram, acho, as primeiras que ele fez de xilogravura, ele ainda estava na universidade.
P/1 – E você gosta delas?
R – Eu gosto.
P/1 – Pediu para emoldurar.
R – Hum-hum.
P/2 – Você conhece o trabalho dela mais a fundo? Como você enxerga?
R – Bom, esses primeiros aqui eu acho que a representação da Malu é a maneira do corpo, a maneira que estava retratando uma parte de insegurança, a parte da maneira com que você olha o corpo do ser humano, a maneira com que você se enxerga e a maneira que as pessoas veem o que querem de você. Acho que foram essas primeiras obras que ele fez.
P/1 – E você também é muito próxima da arte. Você também tem alguma criação?
R – Não, não tenho não, dessa parte assim não.
P/1 – Mais a dança, né?
R – É.
P/1 – Mas quanto tempo você quer continuar na dança?
R – Ah, enquanto eu estiver conseguindo...
P/1 – Então a gente já está encaminhando para o final e eu queria te perguntar se tem alguma coisa que eu não perguntei e você gostaria de me dizer?
R – Acho que não. Pedir para as pessoas para que elas enxerguem o outro, calçar os sapatos das outras pessoas, sem julgamentos, com mais amor, com mais empatia. Nós estamos vivendo em um momento atual da nossa civilização muito conturbado, onde as pessoas estão muito egocêntricas e o ser humano, uma das características do ser humano é não viverem sozinhos, a gente precisa viver em comunidade. Não ter as pessoas… não julgarem as pessoas. Eu acho que a nossa sociedade está de luto, principalmente pós-pandemia. Não foram só os mortos. Eu acho que as pessoas deixaram morrer muita coisa dentro de si. A gente, como ser humano, vive em sociedade e tanta violência, tanto descaso com o ser humano, com as coisas. Você é capaz de passar por cima de um humano na rua, caído no chão e não olhar o teu próximo. Para que as pessoas tenham mais esse olhar de calçar o calçado do outro e não julgarem tanto. Mais tentar ajudar, mesmo.
P/1 – O que você quer deixar como legado para as próximas gerações?
R – Acho que o que a gente pode deixar para todas as gerações seria o conhecimento, essa parte de cultura, que os brasileiros não deixem morrer a nossa cultura, que é muito rica e mais amor pelas crianças, mais solidariedade, não tratar as crianças como pequenos adultos, deixar a criança ser criança, deixar brincar, deixar correr, deixar pular.
P/1 – E, por fim, como é que foi contar um pouco da sua história para a gente?
R – Foi muito bom conversar.
P/1 – Como é que você se sentiu falando?
R – Acho que tranquilo.
P/1 – Que bom! Então, muito obrigada.
R – De nada.
P/2 – Obrigada, tá?Recolher