E: Nós queremos pedir-lhe que se apresentasse, que dissesse o seu nome, o local e a data de nascimento.
e: Eu sou o Gustavo Pereira, nasci a 16 do 4 de 1959 e tenho uma larga história de vida. Não é sempre boa, não é sempre má. Hoje encontro-me nos albergues noturnos do Porto, no núcleo de ...Continuar leitura
E: Nós queremos pedir-lhe que se apresentasse, que dissesse o seu nome, o local e a data de nascimento.
e: Eu sou o Gustavo Pereira, nasci a 16 do 4 de 1959 e tenho uma larga história de vida. Não é sempre boa, não é sempre má. Hoje encontro-me nos albergues noturnos do Porto, no núcleo de Campanhã e aguardo dias melhores. Pois... Já andei muitas situações, já vivi muito bom e algum também que não foi tão bom.
E: Como se chamam os seus pais?
e: Ah, eu... Eu sou filho de pai ausente. Sou filho de pai ausente. A minha mãe sempre me acompanhou. Tenho um irmão mais novo que eu. Estive em Espanha muitos anos, regressei aqui a Portugal e agora não estou a ver assim grandes perspetivas de vida para o meu lado porque os anos se foram passando e as soluções… as soluções não surgiram. As soluções não surgiram e, claro, também sou separado. Isso me trouxe algumas complicações. Mas sou uma pessoa separada bem assumida, sobre esse tema não tenho dúvidas. Já tenho um filho, maior. Claro que um homem separado também tem o seu problema. Uma separação deixa sempre ficar dor, mas não mais do que isso. Já estou habituado a essa situação. Claro que ainda tenho muita expectativa. Ainda espero muito da vida. Mas também sou consciente que a idade também não ajuda muito e, claro, depois dos 50, todos os problemas aparecem a um homem. Depois dos 50, todos os problemas. Saúde... A parte financeira também não é a mesma porque já não posso responder ao mundo do trabalho da mesma forma quando era jovem. E aqui os albergues me deram uma boa oportunidade. Tenho a situação base para eu manter o dia a dia. Por outro lado, também, não posso esperar que dure sempre. Algum dia vou ter de pensar noutro género de situação. Mas se eu não tiver uma garantia mensal, não posso. Porque não é com o rendimento mínimo que eu vou governar a minha situação. O meu rendimento vai dando para situação do dia a dia e... pouco menos ou pouco mais. Se hoje gasto umas moedas a mais, amanhã ou depois de amanhã tenho de gastar a menos. E assim vai a situação. Depois eu...
E: Estava a falar da sua mãe. O que é que fazia a sua mãe?
e: A minha mãe era doméstica. Ocupava-se... Eu... A minha história... Foi assim... A minha mãe também foi assim uma pessoa um pouco ausente. A minha mãe foi um pouco ausente. A minha avó era mais querida, mais... mais chegada.
E: Ela vivia convosco?
e: Vivíamos numa casa, que era uma casa que era uma equipa de futebol ali. Mas era uma equipa de mulheres, uma equipa de futebol, mas feminina. Porque a minha avó tinha sete filhas e um rapaz. Ou seja, eu tinha tias por todo o lado. Depois há os primos. Havia o meu irmão. Havia o meu avô. Havia o meu tio. Era uma família numerosa. Claro... Teria de surgir também uns problemas inerentes à situação.
E: Vocês viviam onde?
e: Eu sou de Cinfães do Douro. [impercetível] Vim para aqui para o Porto ainda jovem. Quando cheguei aqui à cidade do Porto, vi tantas luzinhas... era tudo... era um mundo muito diferente. Mas o choque... O choque de uma pessoa que nasce ou que vive numa aldeia... Quando se dá assim um choque com a cidade... salta-lhe a tampa. Salta, salta… era muito diferente a vida aqui há uns anos.
E: Com que idade foi para o Porto?
e: Ainda não tinha... tinha 12 anos.
E: E veio para cá para estudar? Foi para trabalhar?
e: Não, eu vim com a ideia de trabalho. Eu tinha feito o ensino primário. E pronto, aproveitei. Para mim já era o suficiente. Porque eu sei contar até nove. Sei o A, E, I, O, U e o ABC. Isso eu aproveitei bem. Mas hoje em dia, ter muitas letras... é preciso ter números. Eu vejo aí pessoas que são burros com 12º ano ou o 9º ano, mas nunca passaram de ser um burro. Porque o importante é ter 12º, ah isso já é um número. Agora eu, o ensino primário, para mim foi o suficiente. Vim aqui para o Porto. Comecei a trabalhar numa casa de material elétrico. Para o meu dia a dia, eu ia lá. Ainda estava na minha mãe. Pronto, se levava o dia a dia, já estava. Pois casei-me. Mas o casamento, seguramente, para mim, pela experiência que tenho, é o primeiro passo para a separação, seguramente, porque nenhuma pessoa que se conhece com 14, 15, 16 anos, um homem, uma mulher, que se conhecem ainda jovens, aos 70, podem ser amigos, mas não mais que isso. Podem ser bons amigos, até. Mas tanto ele como ela, precisam de passear, de encontrar outras soluções. Conhecer outras pessoas. E vivemos numa sociedade de muita competição. É o que lhe digo. A razão pela qual eu me separei. Exatamente.
E: Como é que conheceu a sua mulher?
e: Ah, conheci-a na rua. Começamos a teré-té-té... Os primeiros anos foram todos muito bonitos. Foi uma paixão. A sério. Foi uma coisa que deu bem. Depois veio o filho. Há que assumir, ela a maternidade e eu a paternidade. Há que assumir a situação. Tinha condições, etc., etc. A minha mãe também ajudou muito. Mas ela nunca se encaixou bem com a minha mãe. Havia ali um certo... prontos. E uns problemas puxaram outros.
E: Como é que foi o dia do seu casamento? Lembra-se como é que foi o casamento?
e: Foi, foi bonito.
E: Como é que foi a festa?
e: Um arrozinho, uma festinha. Foi uma coisa... Assim, muito soft. Mas... Pessoas amigas, padrinhos, o arrozinho, as florzinhas... e já está.
E: Que idade é que tinha quando casaram?
e: Ah, eu tinha 19 anos, estava quase a fazer 20. E ela também. A idade dela faz diferença um mês ou dois da minha idade.
E: E conheceram-se aqui no Porto, casaram aqui e ficaram aqui a viver na cidade. E depois, quando é que nasceu o primeiro filho? Que idade é que tinha?
e: Ah, veio logo assim. Eu vou-lhe dizer os primeiros anos eu senti-me bem e ela também. Só que… depois não acertámos. Acreditámos muito quando casámos. E depois, separamos nos, também acreditei. E eu sou... sou convencido nisso. Depois eu também conheci outra companheira. Também outro problema. Também me desempreguei. Também logo aí um fator que pesou muito. Eu trabalhava numa empresa. Só que a empresa… Conclusão, eu tinha boa situação na empresa, mas o patrão faleceu e como o patrão faleceu, deu-lhe assim um treco, pshit, apagou-se e ele era assim como um irmão, para mim. Porque eu na empresa já era o mais antigo. Eu tinha ido para lá ainda jovenzinho. Para mim, ele era assim como um irmão, era a minha segurança. Eu ganhava aquele ao fim do mês. Dormia na empresa, tinha lá no anexo, para mim... tinha prémio de refeição, etc. Aquilo para mim era... era só meter para o bolso. Mas ele faleceu, deu-lhe um ataque, não sei se foi uma trombose, se foi um AVC, mas ele... de um momento para o outro apagou-se e já está. Então claro, acabei por ficar eu e a viúva, só que ela não tinha capacidade de gerência. E com tudo na vida, seja um casamento, seja uma amizade, seja uma empresa, seja o que for, se não houver uma boa gerência...
E: O que é que fazia lá nessa empresa?
e: Material elétrico. Material elétrico e várias coisas. Tudo o que fosse material elétrico, eu tinha máquinas por tudo.
E: Mas era mesmo a empresa onde começou a trabalhar quando veio para o Porto?
e: Sim.
E: Desde os 12, 13 anos?
e: Sim. Aguentei-me ali. Eu realmente já era um expert. Fui lá assim completamente de olhos fechados e fui evoluindo, evoluindo, evoluindo... Eu aquelas máquinas, eu afinava aquelas máquinas todas, elas trabalhavam sozinhas, nem que fosse dia e noite, desde que estivessem ali no ponto. Mas claro... ele faleceu. Quando ele faleceu...Como é que vai ser com a empresa? Ficámos e... Ela tinha boa carteira de clientes, tinha bons o que para mim era super bom. Mas não havia possibilidades da parte dela, que ela não tinha realmente... Também não precisava, não é? A empresa fazia falta para mim, era a minha segurança, a minha retaguarda. Mas ela, além de não precisar, ela tinha dois filhos, já... Os filhos também queriam era fazer festas, festas e festas lá. A mim passava ao lado, não é? Quando eu fui para lá, ainda nem os filhos eram nascidos. Depois já eram adultos, quase adultos... queriam, eram festas e festas. A patroa não tinha capacidade. E eu, por muita boa vontade que tivesse de levar a empresa sempre a evoluir, que ela já estava, já tinha, já estava sólida no mercado. Mas por muito boa vontade, eu nunca me poderia sobrepor à ordem superior. Seja como seja, a empresa era dela. As máquinas, tudo. Eu era ali, prontos. Mas não havia possibilidades. Enquanto isso, mais dia menos dia, conheci lá uma companheira, só que ela não tinha também, ou seja, [impercetível], mas não tinha... foi quando fui para a Espanha. E em Espanha também me dei bem.
E: Para onde é que foi em Espanha? Para que zona?
e: Ah, lá me encontrei. Estive lá 14 anos e dava-me bem. Estava melhor com a gente espanhola do que com a gente portuguesa. A gente portuguesa... O imigrante é sempre um ser ingrato, seja em que parte do mundo for. O imigrante é muito ingrato. Mas os portugueses em Espanha, não há hipótese de relação. Mas eu como estava lá naquela onda.
E: E o que é que foi fazer para a Espanha?
e: Eu trabalhava nas vinhas, na construção. Se trabalhava, trabalhava e se não trabalhava, também não passava nada. Lá a casa, tinha também a confiança e das pessoas, das amigas também, tinha lá boas amizades. Fiz lá boas amizades. Não sei. Senti-me bem. A Espanha me surpreendeu para melhor, já lhe digo me surpreendeu para melhor, mas bem eu tinha um filho aqui, o meu filho também aqui. E tinha tratado da alimentação, rever pessoas amigas aqui e vim para aqui outra vez, rever isto. Claro, eu ainda tinha algum dinheiro... O que acontece? Foi-se gastando. Cheguei a um ponto, vim aqui para o Albergue... E agora? Agora, ponto de interrogação. O que é que eu vou fazer? Porque eu... já sou velho para trabalhar. E novo para me darem emprego. Ou seja, ainda é... Não consigo ter uma colocação a gosto. O que é que eu vou fazer? Também não vou trabalhar agora em serviços duros, isso está fora de questão. Não vou andar aí feito... serviço duro, para mim acabou. Isso... não. Agora, poderia ter alguma colocação mais assim suave. Uma colocação suave que me desse... eu com o rendimento mínimo, nunca posso ganhar grandes voos.
E: Vou voltar um bocadinho para trás. Estava agora a falar do seu filho. Como é que foi ser pai? Tão jovem? Como é que foi ser pai? E depois a paternidade?
e: Aí, no meu caso, como eu, o meu pai também foi um ser que não assumiu a paternidade, primeiro. Isso logo põe a minha relação manca. A minha relação fica manca. Vivo só como a minha mãe, porque a minha mãe também, as possibilidades dela eram reduzidas, porque ela estava na casa dos meus avós. Os meus avós iam me dando algum conforto, casa, alimentação, algum vestuário, mandaram-me à escola... só que não era a solução, ter pai e mãe. Uma família estruturada é o pai e a mãe. A sequência boa, a situação dos filhos, ou filhas, mas isso não aconteceu comigo. Quando eu fui pai, queria realizar toda essa situação em falta. Dar ao meu filho uma boa educação, habitação uma boa, quando ele chegasse à vida adulta, dar-lhe um carro, a carta de condução, um carro... Tudo isso se queria, mas a mãe não acompanhou essa minha situação. Mas o meu filho é uma experiência... porquê? Porque um homem, um homem quando tem um filho, se revê. Assim como uma mulher se tem uma filha, se revê. É como duas partes que se encaixam. Fui experimentando e tudo bem... O meu filho agora já é homem, para mim, tudo bem. Ele tem mais contato com a mãe, porque realmente, também quando foi a separação, ele decidiu-se pela mãe. O que eu achei por bem, o que eu achei por bem. Ainda lhe dava todos os meses aquela prestação pelo tribunal, todos os meses lhe dava a mesada. Mas não havia entendimento com a mãe. Não há entendimento. Ainda eu, nos últimos dias e noites que eu passei com ela, dizia-lhe vai ser um grande problema. Vai ser um grande problema, porquê? O rapaz vai se sentir mal sem pai por perto. A casa, tu vais aguentá-la, que ela também ficou com a casa, vais aguentar, enquanto aguentares, depois vais ter de ir para o teu pai. E assim foi, tudo o que eu disse, vai ser um grande problema. Mas ela não entrou às boas. Ela não soube ser no momento cúmplice. O homem e a mulher têm de ser cúmplices um do outro. Tem a ver sempre o diálogo. De manhã, ao meio-dia e à noite. Se isso falha, falha tudo. Tenho uma boa experiência sobre esse tema, para mim. Eu tenho boas intenções. Mas vivemos num mundo que não chega a ter boas intenções. Só que eu também fiquei numa carência muito grande. Eu fiquei muito carente. Não foi logo de imediato que arranjei outra. Estava habituado a ter a mulher sempre em casa, a ter a refeição, a roupa. Isso era arrumada, isso ela dava conta da situação. Mas depois deixei de ter. Como é que eu ia resolver o problema? Pois, não ia resolver o problema porque não resolvi. Só passado já muito tempo é que conheci outra que também me deu cabo da cabeça.
E: Mas voltou a casar?
e: Não, vivi maritalmente. Vivi assim bastante tempo ainda com outra. Só que ela, pssst, saltava-lhe o pirulito. Pois tinha de deixar essa situação. Só que gastei muito dinheiro. Essas mudanças de vida, essas mudanças de vida, a pessoa se tem gasta, eu ia comer fora, tinha que pagar, era aqui o Jota, não passa nada, não passa nada, mas é hoje, é amanhã, vamos aqui, vamos de férias, vamos à praia. Pois, é tudo muito lindo. Hoje em dia, irmos à praia, sai caro. Para mim, sim. Eu posso ir, presentemente, se eu quiser ir. Só que não tenho o acompanhamento certo também. E eu, posso arranjar aí uma maluca qualquer em qualquer lado, agora uma boa amizade, não se arranja. Isso ó, já abri a pestana. A gente, uma maluca.. há muito por aí, é um momento, agora as amizades, isso já é... eu realmente, com a minha mulher, a mãe do meu filho, ganhei-lhe muita amizade. Realmente, havia mesmo aquele sentimento forte.
E: Claro. E quando estava com o seu filho, contava histórias ao seu filho?
e: Ah, sim, tudo. Íamos passear, jogar a bola, era irmos à praia, era fazer piqueniques ... isso para mim, marcou-me muito.
E: Esses momentos, não é?
e: Esses momentos... e depois sentir a falta, é como passar do quente para o frio. Assim, rápido. A pessoa fica com o coração partido. Fica com o coração partido. Mas a vida é vida e há que seguir em frente.
E: E na sua infância, alguém lhe fazia também isso, os avós tinham esse hábito?
e: Ah, eu vou-lhe dizer, a fase da minha, até sair da escola, eu levei uma vida maravilhosa. Porque para já, cresci, nasci numa aldeia, encosta de um monte. Em minha casa havia, lá na casa dos meus avós, havia animais, trazia-os, contava-os, depois levava à feira, o que eu pedia, se não me davam hoje, me davam para a semana, tinha as minhas amizades, a minha professora também me marcou muito, para melhor, porque ela realmente era assim, durona. Mas fazia parte, fazia parte da educação daquele tempo, de manhã padre nosso e Avé Maria, e depois a portuguesa, cantar-se a portuguesa, todos em pé. Era, de manhã, era Padre Nosso e Avé Maria, tínhamos de rezar. Cantar a portuguesa, assinar a folha, sempre a folha, meninos e meninas, era mista, a escola era mista, meninos e meninas, todas as folhas, todos os dias. Realmente, a professora me marcou muito. E depois também a minha madrinha, também se interessou muito, era muito carinhosa, uma madrinha que eu tinha, era muito carinhosa. E eu, naquele tempo, o contato com a natureza, o contato que tinha com a natureza, me marcou muito. Enquanto que aqui na cidade é só cimento, é cimento, luzes a piscar. Claro que quando uma pessoa vê assim a primeira vez, fica surpreendido. Depois percebemos que a cidade é um pouco fria, em relação ao ser humano. É um pouco fria. Eu, felizmente, arranjei o trabalho tendo algum dinheiro, que me dava algumas comodidades: ir ao cinema, usava-se muito ir ao cinema, as festas de amigas, algumas e música. Isso me marcou. Mas a vida na aldeia me marcou muito, porque tinha o contato com a natureza, com os animais, ia à feira.
E: Isso fazia-o em família?
e: Não, com o meu avô, que o meu avô era negociante, negociava assim animais. E eu, como era o neto mais velho, ele chamava sempre por mim. Guardar as ovelhas lá para o monte e depois vir. Às vezes íamos de manhã e tarde quase sempre. De manhã, depois ao fim da tarde, ainda levá-los outra vez e trazê-los ou então deixá-los lá, mas às vezes..., e depois chegar e contá-las quando elas entravam para o curral. Contavam umas histórias do lobo... Mas é... Todo esse entorno, todo esse contexto, eu senti-me bem. Mas realmente, como era um jovem em formação, tinha de ganhar dinheiro na cidade. Claro, para ganhar dinheiro. A minha casa, tinha algumas [impercetível], havia o compra e venda de animais, ia dando para o sustento, mas não havia riqueza, riqueza. Isso não... E era muita gente.
E: Pois, como era viver numa casa com tanta gente, com tantas mulheres?
e: O que acontece? De manhã cedo, era uma saca assim grande, de pão, pão e tostas. Assim, e assim larga. Vinha cheia. Quando fosse nove e meia, dez horas, não havia. O meu avô era assim, quem comeu, comeu, quem não comeu, olha não há mais, eu agora não vou comprar outra. Uma saca, é uma coisa. Uma saca de pão é uma coisa. Duas sacas de pão já são mais caras. Mas para o dia-dia ia se tendo... mas não havia eletricidade. Naquele tempo não havia eletricidade. Era tudo candeias a petróleo. Imagina, uma casa com aquela família toda, cozinhar em panelas de ferro, cozinhar para aquela gente toda, nem é bom. Mas, digo bem a situação. Mas, fica uma boa experiência. Depois aqui na cidade, comecei a trabalhar, prontos. Também o meu dia a dia estava... Mas também, nunca pude exceder muito. Eu sempre fui uma pessoa... Se não fui equilibrado, procurei ser. Porque realmente a virtude está no equilíbrio. Não podemos ir muito para um lado, nem muito para o outro. O equilíbrio, vale, se a pessoa consegue manter-se no equilíbrio. Essa é a procura certa. Agora depende da capacidade que cada pessoa tem, de fazer essa procura ou não. Também, a sorte de vida. As pessoas não têm todas a mesma sorte. As pessoas não têm todas a mesma sorte. Cada um tem de procurar a sorte que lhe toca, foi o que eu fiz. Claro que, prontos, em Espanha também me senti bem, sabe?
E: Como é que foi chegar a Espanha? Já tinha saído do país?
e: Não, eu quando era jovem, houve uma ocasião que fugi, ainda era... ainda não tinha casado, tinha prái que, 16 anos, ou 17. Se tinha 17... fugi. E ainda não havia livre passagem de fronteiras, mas eu consegui saltar. Ou seja, saltei para lá fui até Ourense e vim para cá. E atravessei a ponte, ainda lá estava a guardia civil, que era de Espanha e a GNR, estavam sempre a controlar as fronteiras que havia, que não se podia passar. Mas eu, eu e o meu amigo, nós metemos na cabeça, passamos e shhhh contornamos lá uma ponte e lá passamos para o lado de lá a pé. Depois tínhamos umas pesetas, também se acabaram as pesetas, olha o que vamos fazer? Vamos para Portugal outra vez. Aí, mas agora desta última vez, esta quando estive lá 14 anos, eu cheguei lá, quase que não conhecia ninguém, conheci uma pessoa com quem fui, tinha lá casa, fui conhecendo lá boas amigas também, vou-lhe dizer, só posso dizer bem.
E: Mas foi um trabalho muito pesado que andou...
e: Não, dava-me bem, o que era, claro, aquilo era preciso acompanhar todos os dias. Havia uma entrega muito pesada da minha parte e não podia ser. Eu não podia estar a entregar de tal maneira, a uma situação assim, não me podia entregar. Porque era muito investimento, investimento da minha parte, emocional, físico... mas eu dava-me bem que realmente aos fins de semana íamos de férias, aquilo era festas e festas, eram festas grandiosas. Aqui também há, mas nós aqui somos 10 ou 11 milhões, lá são 40 e tal, e parece pouco, mas não é assim tão pouco, parece muita gente.
E: E quando fugiu para lá quando era jovem, porque é que fugiu?
e: Olha por uma questão de aventura, uma pessoa naquele tempo queria conhecer outra gente, conhecer outras pessoas... Porque realmente o ser humano gosta de conhecer outras pessoas, faz parte da natureza, agora há pessoas que são mais reservadas, mas o ser humano gosta de conhecer outras pessoas.
E: Também era assim na sua juventude?
e: Sim...
E: Como é que era ser jovem aqui, na cidade do Porto ou na aldeia? Como é que foi ser jovem? Ia aos bailes, às festas...? Como é que era essa fase da juventude? De sair à noite...
e: Sim, sim... eu andava também muito à noite, foi uma ilusão, foi uma ilusão, tive várias experiências de vida, umas que até dispenso, há experiências, claro, mas uma pessoa aprende, é uma questão de aprendizagem, a gente quer aprender, quando é mais jovem a gente tem a curiosidade, quer aprender, quer ir às discotecas, naquele tempo usava-se muito as boites, eu lá ia de vez em quando, se conhecia alguma amiga conhecia, se não conhecia não conhecia, para mim qualquer coisa, claro, mas eu procurava do meu interesse sempre, mas isso também… a feminina… sabe o que é que eu aprendi? A feminina é bastante inteligente, não é, é mais perspicaz, a feminina é muito perspicaz e o homem leva tempo a perceber isso, o ser feminino é perspicaz, o homem leva tempo a perceber, claro, mas… conheci, muitas experiências, gostava de ir à praia, ia à praia à noite, se me desse na gana ia à praia, eu e os meus amigos… sempre e sentia-me bem.
E: Como é que era o grupo de amigos?
e: Ah e tinha muitos amigos ui… conhecia, marcávamos encontros, às vezes, cumpríamos e aparecíamos, às vezes, aparecíamos, outras vezes, não aparecíamos. Também gostava muito de ir ao cinema, também… também… foi uma, uma experiência de descoberta, a gente vai descobrindo novos interesses, tanto do lado de lá como do lado de cá, entende? Vamos descobrindo novos interesses [silêncio] mas… mas… e a vida vai-se passando, os anos se vão acumulando. Felizmente, uma situação que me privilegiou de eu… em questão de saúde tenho sido um privilegiado, aquelas pequenas coisinhas e coisa… mas eu reparo bem, tenho um bom sentido de recuperação, em questão de saúde tenho sido feliz.
E: Eu vou voltar um bocadinho atrás, estava a falar dos costumes da sua família, portanto, das vendas, de ir à feira com o seu avô, de terem esses costumes com o gado… lembra-se de mais algumas coisas que tivesse, de brincadeiras que tivesse com os amigos no bairro? Como é que era viver nessa aldeia e ser criança nessa aldeia?
e: Também conheci lá amigas, quando era jovem, quando brincávamos, às casinhas, aos doutores e essas brincadeiras que… de certa maneira eram brincadeiras inocentes, mas que deixam ficar marcas fortes, por exemplo, eu lembro-me dessas brincadeiras todas e… eram inocentes, naquela época, mas hoje uma pessoa vai buscar recordação e vemos… e se encontrarmos ainda alguém dessa… dessa… há tantos anos que não nos vemos, quando brincávamos, íamos a correr para a escola e depois vínhamos da escola a correr, era, era, era assim a correr, a jogar à bola no recreio… a ir à doutrina, também se usava muito, eu ia à doutrina só que só havia uma televisão lá e estava sempre a… meia apagada, meia acendida, era só piquinhos, piquinhos… a gente queria era vir cá para fora para o recreio, cá fora jogar à bola.
E: Havia muitas crianças?
e: Havia, havia… eu acho que havia mais que agora, nós éramos uma receita de um caneco, éramos bandidos, era roubar fruta, era, a roubar fruta… claro que agora está tudo no registo, eu agora se tivesse assim um pouquinho mais descontraído… mais calmo… e se fosse a passar para um papel devagarinho, devagarinho, fosse buscando sempre… a memória vinha ao de cima… a minha vida dava um filme! Claro, claro, a minha vida dava um filme. Quando era… outra história, quando era assim mais novo, ainda não tinha casado, queria ir para a América.
E: Para a América?
e: Sim!
E: Porquê?
e: Para artista de cinema! A sério, comprei um livro… queria… queria ser realizador, para já, queria realizar, já tinha projetos e tudo [risos] essas histórias todas, só que… o financeiro, não tinhas condições financeiras para… não tinha envergadura, não tinha envergadura financeira, como é que eu ia? É que nem é bom, nem nos Estados Unidos, nem em Portugal, nem nada, como é que eu ia comprar essas coisas todas? Bem, eu já estava a contar com os amigos e com as amigas, já sabia qual é que ia fazer a artista principal, quem é que ia participar e eu também podia participar, claro [risos] não podia ser, não era possível, mas essa foi uma ilusão também que tive.
E: Mas era o que queria ser quando crescesse?
e: Sim, era, era, de fazer… inventar histórias e já estava a inventar uma história, etc. Gostava, gostava, era… uma história, ok, vamos fazer alguém que está agarrado ao mundo da droga, já tinha o guião, já sabia como é que ia ser, já estava tudo no plano, só que nunca passou do plano, porque também não tinha condições, não havia possibilidades, nem eu, nem que juntasse o dinheiro todo dos amigos… prontos, passou lá, passou a situação, passou de lá, depois conheci a minha mulher e dediquei-me ao casamento, dediquei. Eu sou uma pessoa, é o seguinte, eu tenho muita calma [impercetível], enquanto aquele programa estiver, eu estou, se algum dia por alguma razão ou outra não der, depois olha também acabou, acabou. Não é que eu seja de extremos, não tomo decisões extremas, mas é uma maneira de me proteger, não é uma situação que eu tome de extremo, mas protejo-me, não posso, até chegar ali, prontos, não há… temos pena, temos pena.
E: Mas acha que essa vontade que tinha de ser realizador vinha dos filmes que via?
e: Exatamente! Eu via os filmes todos, porque naquele tempo usava-se muito… usava-se muito ir ao cinema, eu via os filmes quase todos, as estreias, etc.
E: A que cinema é que ia aqui na cidade?
e: Ah… daqui? Olhe… aqui o Carlos Alberto, o São João, o Cinema Batalha, o Olimpo, o Júlio Dinis, o Trindade… esses cinemas eu conhecia-os todos, o Mal Formoso, que havia o cinema Mal Formoso… os velhos filmes indianos, os filmes de karaté, os filmes de cowboys, os piratas… eu acompanhei, eu estava sempre, se não ia à tarde, ia à noite… o “Passado Inesquecível” que andou aqui no Cinema Batalha muito tempo, sempre, sempre esgotado, eu vi-o 7 vezes e meia… tinha visto 7 vezes, depois comprei mais um coiso, mas já não consegui, já… não consigo ver mais e vim-me embora a meio do programa, a meio do filme. O “Passado Inesquecível”, o “Bobby” e outros, e outros, isso eram indianos. Depois havia os de karaté, o Bruce Lee… e esses filmes todos. Foi uma experiência bonita, eu queria acompanhar sempre essa onda toda e… e quando íamos, íamos para aí uns 10 ou 15, eu lembro-me de vir aqui ao Carlos Alberto e vínhamos para aí uns 20 ou 30 pessoas, aquilo era uma fila para nós, outra fila para nós e tudo ali a bater cadeiras. Aqueles filmes de cowboys e de piratas, a gente via todos, fazia parte da nossa… também não haviam outros grandes interesses, não é? O que é que a gente podia fazer? Eu, por exemplo, eu, no meu caso, ia até à Foz, ao Passeio Alegre, a Matosinhos à praia… mas eu gostava, para já, isso… a Praia da Luz, a Praia dos Ingleses… e eu lá ia, juntava… bem, já ia mais com a minha mulher, já, já era uma situação assim um pouco mais de… mais ao lado, prontos, mas quando me juntava com um grupo… nem é bom, íamos todos, era um autocarro quase só para nós, era, era, naquele tempo também era mais o elétrico, ainda havia o elétrico, prontos, mas os anos se foram passando e… prontos.
E: Mas ainda gosta de ir ao cinema? Quando pode… e levava o seu filho ao cinema depois… como é que foi essa trajetória no cinema?
e: Não, não, porque ele, ele… ele só queria a mãe, ele… ele estava tão, tão virado para o lado da mãe que… ele comigo era só picnics, ir à praia e jogar à bola, era o forte, o resto… a mãe… até aí tudo bem, até aí… mas…
E: E hoje ainda tem uma relação com o seu filho?
e: Sim, falamos, mas ele, ele… ele ficou muito sentido de eu me separar da mãe, porque realmente foi uma situação burra, até foi uma separação burra, mas não deixou de ser uma separação, não deixou de ser uma separação… mas não devia ter acontecido [silêncio] não deveria.
E: Ele ainda era pequenino quando se separaram?
e: Sim, ainda lhe estive a dar a ordem do tribunal, fizemos as partilhas e tal, olha ficas com isto na na na… acabei por deixar tudo, olhe já não dá nada… tirei bilhete e andamento, já não dava mais, fizemos as partilhas… o rapaz também, claro, ele tinha direito a casa, à… à… casa, realmente, ela ficava encarregue da educação dele e etc. e até aí tudo bem. Eu… eu só fiquei com a possibilidade das visitas todas as semanas, tinha direito a um programa de visitas, só que ela não… não ajudou muito nessa relação, entende? Porque em tribunal ficou tudo estipulado, as obrigações… as obrigações e os deveres do poder paternal, só que ela acabou de se apoderar da situação, até aí, enquanto ele era jovem, eu fui compreendendo, mas ele agora já não é jovem, ele agora é bastante adulto, já… já tem mulher e etc.
E: Já tem netos?
e: Han?
E: Ainda não tem netos?
e: Tenho um neto.
E: Tem um neto. Como é que se chama o seu neto?
e: António.
E: Que idade é que tem?
e: Ah já tem uns 4 ou 5 anos, é, isso, deve ter uns 5-6 anos. Ele nunca me perdoou bem a separação, mas… decisões são decisões, entende? Não que eu seja muito radical, compreensivo, sou eu, eu sou bem compreensivo, eu compreendo bem e puxo bem a brasa para a minha sardinha, entende? Eu sei puxar a brasa para a minha sardinha, que o meu interesse é coiso… olhe a… a conclusão… problemas para cima de mim… ainda quer mais dinheiro, queria, na ocasião, e já lhe estava… já lhe estava a dar a casa, quase, ou seja, fizemos a partilha e acabou por ficar com a casa, os eletrodomésticos, tinha montado tudo, quem lhe tinha comprado isso…
E: E foi nessa altura que depois foi viver para o anexo… da baixa… da Rua Formoso?
e: Sim, claro, da empresa onde trabalhei, porque realmente… financeiramente ainda estava ui… já estava bem… mas também eu era um homem só, carente, não estava com uma mulher, não estava com uma família, e o dinheiro, eu, o dinheiro… é como a gasolina, eu nunca fui assim também mãos largas, não… gastar, gasto, se tiver que comer fora vou, se não tiver, não vou, não gasto assim demasiado, mas… era uma pessoa, um ser carente e o dinheiro hoje em dia no mundo é que anda à frente de tudo, quem tem dinheiro vale, pois é, isso aprendi de vida, quem tem dinheiro vale, se não tem dinheiro, olhe passa mal, isso tá claro. Em Espanha também ganhei algum dinheiro, sabe? Ganhei bom dinheiro, claro… também o problema se punha igual, fora da família… tinha lá boas amizades, mas aquilo era só para festas e mais festas e andar de carro lá e íamos para longe, para o fim do mundo, nem é bom, nem é bom, acabou. Se eu quiser, eu vou para lá outra vez, na hora, se eu quiser agora, já lá estou… [impercetível]. Estar no Albergue não é uma situação boa, eu não me sinto bem no Albergue, sinto-me bem, sei que me dá o conforto necessário, mas não passa disso, não posso ser mais ambicioso. Imagine agora que eu agora conheço uma companheira, ainda está em idade fértil, vem um menino ou uma menina, passado 9 meses tens uma coisinha… um problema… quando me casei isso era possível, era possível, mas agora? Imagine se vem uma criança, isto 5 minutos de prazer é um problema para toda a vida, isso não há que ter dúvidas e hoje para se ter filhos é preciso ter muito boas condições, para se ter filhos é preciso ter condições, tanto eu… tanto o homem como a mulher, porque senão depois andam aí a bater às portinhas a pedir, ou está aí sentado no metro a pedir uma moeda. Eu nunca tive esse problema, felizmente, uns dias melhores e outros piores… mas ter filhos é um problema, 5 minutos de prazer, passado 9 meses vem a menina, e depois há que assumir, não é, há que assumir as crianças, só que isso vem na sequência financeira e emocional, se a pessoa não tem um trabalho bom, não é família rica, se não… como é que vai fazer para enfrentar o problema? Se não tem casa? Como eu também, quando a minha mulher ficou grávida, eu nem estava a pensar em ter a criança, só que a coisa, depois a minha mãe ajudou realmente, a minha mãe foi uma boa, muito boa ajuda, se não como era? [impercetível], o pai dela também foi um ajuda muito boa, a minha mãe também ajudou, eu tinha o trabalho, a coisa compôs-se, aí está bem, mas os primeiros… não estava no programa.
E: E onde é que era a casa?
e: No Marco, no Marco de Canaveses.
E: Então ainda era longe daqui do Porto.
e: O pai dela era de lá, tinha lá uma quintarola e estava bom. O meu filho também anda muito para lá, anda lá com o trator.
E: E vinha todos os dias para o Porto trabalhar?
e: Eu não, eu tinha aqui um irmão, tinha aqui um irmão, que eu dormia e pronto… isso havia sempre e também ela também vinha, ela passava muito com a minha cunhada, também não se deu bem com a minha cunhada… prontos, depois a minha cunhada também tinha mais filhos, tinha 3 rapazes e 2 raparigas, ou seja, aí ia dar choque, ia dar choque, porque depois as funções do dia a dia… dá chispa, a coisa não… prontos. Depois a minha mulher não soube ser cúmplice para o meu lado, se ela me leva nas boas… se ela me leva nas boas, tudo bem, mas começou… começou… depois ela também tinha um irmão, tinha um irmão e uma irmã também… ou seja, andava lá encostada para ali, até aí… eu nunca a vi com outro homem, ela soube ser fiel até… à maneira dela, só que eu… não aceitei bem a separação da manei… a separação burra como ela foi… foi uma separação burra, mas prontos, a vida levou esta caminho.
E: Tem de continuar, exatamente.
e: Levou este caminho e para mim… agora…
E: Como é o seu dia hoje? O que é que faz hoje no seu dia a dia?
e: Eu agora não faço nada, tenho tudo feito. Olhe tenho… tenho o comer na mesa, não é muito, verdade seja dita, se eu quiser comer bem tenho de ir ao restaurante, só que o restaurante… no mínimo 10 euros uma pessoa gasta sempre e se vier mais qualquer coisinha já não chega 10 euros, imagine se fizer isso à noite e ao meio dia depois… ou seja, tenho cama lavada… tenho… prontos, tenho o base, tenho o base, e tenho o rendimento mínimo ao fim do mês, tenho que me governar com o que der, só que não… claro, que eu queria mais… queria um carro agora, só que não posso ter, como é que vou fazer? Também não preciso dele, ando de metro e já está e até… o metro é uma surpresa agradável, realmente, sinto-me bem a andar de metro, se eu quiser agora vou até Matosinhos, vou até à Póvoa, vou até ao Aeroporto.
E: Gosta de fazer essas viagens?
e: Sim!
E: De passear sozinho… vai assim…?
e: Às vezes, sozinho, às vezes, acompanhado. Também depende da companhia, às vezes, há companhias… é como eu lhe digo, há sempre uma companhia melhor e uma companhia que não é tão boa, pois bem… só que… eu sou realista, apesar de tudo, apesar de tudo, sou realista e não gosto de dar o passo maior do que a perna, entende? A gente não deve dar o passo maior que a perna. Quando a gente vai a ver já está, o nosso problema já está mais para lá e depois não temos recuperação, porque eu, o meu problema tem reparação, mas há pessoas aí que o problema delas não tem reparação nenhuma, mas o meu problema tem recuperação, pronto. Isto no Albergue… a minha idade não joga a meu favor, a idade não joga muito a meu favor, não é, a condição financeira também… também não joga, mas levo o dia a dia. Também não vou andar aqui à espera da funerária, eu não estou à espera da funerária que me leve, para já sinto-me, não me dói nada, sinto-me com saúde, embora tenha algumas fragilidades, tenho algumas fragilidades, mas não sou doente, doente, doente, pronto, tenho sentido de higiene… e levo a vida assim, mas eu não espero muito da situação, porque vivemos num mundo de muita competição, o mundo é muito competitivo, sabe porquê? A gente hoje vai tomar um café são 60, 70, 80 cêntimos, amanhã passa lá já não chega 1 euro, ou é 1 euro, “ah quanto é isto?” e já é muito mais caro, pois é, não passa nada, não tem importância nenhuma, mas a moeda é de ouro, o que a gente gasta hoje pode nos fazer falta amanhã e a gente passamos aí na rua não vê uma moeda no chão, não vemos 20 euros no chão, entende? Não vemos uma nota de 10 euros no chão ou… mas para gastar, chega ali, gastou e acabou. E de onde é que vem o dinheiro? Tamos sempre à espera que a Segurança Social nos dê… e dá, enquanto a Europa estiver a mandar-nos milhões, porque a Europa está a fazer muito por Portugal, está a fazer, realmente, se não fosse a Europa nós ainda estávamos um país muito atrasado, a Europa, a Comunidade Europeia veio desenvolver isto tudo, [impercetível], hospitais… hoje toda a gente quer mais dinheiro e mais dinheiro e… se não houver aqueles 10 milhões, se houver 7 ou 8 já não é mau de todo, toda a gente se sente bem com isso. De onde é que vem? Um dia pode fechar a torneira, não há dinheiro para ninguém, ou podemos ir todos em guerra, porque ninguém estava à espera da pandemia, foi uma surra pandemia, o… agora o COVID, alguém estava a prever isso?
E: O senhor já estava no Albergue quando foi o COVID?
e: Já, já.
E: Como é que foi essa altura do COVID?
e: Ah estivemos aqui isolados… na rua tínhamos de andar sempre de máscara e houve dias que até nem podíamos sair à rua, foi… foi um grande susto, se não foi o fim do mundo… fez ameaça, fez ameaça, porque realmente ninguém estava à espera desta… desta pandemia. E o problema é que ainda pode vir pandemias mais graves, porque o ser humano é um laboratório ambulante, o ser humano é um laboratório ambulante, tem tudo… vírus, de um momento para o outro, e depois é assim umas pessoas contaminam as outras. O COVID foi uma pandémica que toda a gente contaminava… toda a gente, era toda a gente a contaminar toda a gente, se íamos ao mercado, se nos relacionávamos, se nos aproximávamos, os casais quase que nem se podiam encostar uns aos outros, foi um grande susto. Ninguém estava a prever isso e poderá vir algum dia, no futuro, algo mais grave. O avanço climático… até agora, este fim de semana estamos a atingir temperaturas muito elevadas, muito elevadas, não são bem normais para o planeta, porque o planeta está muito doente, o mar tem tudo quanto é lixo, tudo… os incêndios… os incêndios é… claro, depois o ozono sente-se.
E: Estas questões também lhe custam?
e: Claro! Ou seja, não é que me preocupe com isso, ou seja, preocupo-me, interesso-me, interesso-me, porque vejo, vejo a televisão. A gente num programa de televisão vê tudo, porque realmente a televisão é uma janela para o mundo, a televisão é uma janela para o mundo todo. A gente vê uma catástrofe na China, na Índia, a gente estamos a ver… as guerras, outro flagelo, porquê? Porque realmente a lição do… a guerra que está a haver agora… é que se acham com razão, tanto de um lado se acham com razão, como do outro, e quem é que lucra com isso? As empresas de fazer armas, as empresas… querem vender [risos] enquanto… claro, mas no meio disso tudo morre muita gente, o problema é que há armas de… de destruição muito, muito maciças, se cai, há armas que se cai uma bomba ali na Boavista ou… ainda mata gente em… em… toda a gente, não há que ir por aí.
E: Agora o senhor estava a falar da guerra, na altura não foi para a tropa então?
e: Não, fugi também, ou seja, não me apresentei.
E: Não queria… não queria ir para a tropa?
e: [Silêncio] O que é que acontece? É que eu… não fui, porque… isso, o militarismo… eu não senti a chamada militar, o meu interior não deu… chamada, tive grandes problemas por isso, andaram à minha procura, depois tive de me apresentar, tive de ir a Vila Real tratar disso, que o meu recenseamento era em Vila Real… enquanto disso também se deu o 25 de abril e já não era bem bem obrigatório, mas eu como tinha os papéis em falta, tinha de… pôr os papéis como… e houve lá um capitão em Vila Real, no regimento de… onde fazem o recenseamento, que me tratou da papelada toda “olhe isto já está o 25 de abril”, o primeiro 25 de abril, o primeiro, veja… veja bem aos anos que já vai o primeiro… passei, pronto, acabou, “você vá à sua vida”, pronto e tal… e eu continuei a trabalhar, não precisei, ou seja, já não era preciso ir lá para fora. Também o militarismo não me… no meu caso, não me vinha resolver os problemas assim, sabe? O militarismo…
E: Preferiu ficar no seu trabalho… claro.
e: Sim, porque realmente… porque realmente o meu trabalho era… era a minha segurança.
E: E gostava de o fazer?
e: Claro! Eu vou lhe dizer, eu sou um bom profissional naquilo, naquela arte, fazer as caixas, por exemplo, pôr os moldes, havia moldes para tudo e máquinas para tudo, há que afinar as máquinas, eu como já… já conhecia aquilo, para mim já era normal, eu afinava as máquinas todas, mandava ligar as luzes e se as máquinas eram para ficar toda noite, prontos, tinha uma ligação própria, se não era, também desligava, até aí tudo bem. Eu não podia aguentar sempre, mas sempre dependi, eu fui sempre um… não é que… de certa maneira, sou um lobo solitário, isso tem o seu lado bom e tem o lado mau, mas nem sempre podemos ter o melhor de dois mundos. Temos de tomar decisões e o dinheiro, realmente, é preciso ganhar dinheiro para o dia a dia e eu realmente… a minha mãe também me ajudou durante uns tempos, ajudou-me a mim e à minha mulher e… ao meu filho, ia, ia ajudando, mas o problema era meu, eu não podia ser… claro eu dependia daquilo que se ia ganhando, depois tinha a prestação da casa, os móveis paguei logo, os móveis e eletrodomésticos paguei a pronto… mas… mas a casa era preciso… dinheiro, que logo ao final do mês aquele dinheiro ia logo, pois claro, as obrigações mesmo obrigações, tinha de ser posto de lado, depois era o dia a dia.
E: E hoje acha que o facto de não ter uma habitação, uma casa própria influencia a sua vida e as suas experiências aqui na cidade e a forma como…?
e: Noto que realmente a pessoa tem de ter uma habitação própria, só que um homem sozinho é difícil… uma pessoa tem que… a um homem como eu faz falta uma amizade certa, faz falta uma amizade certa, mas isso não é muito, não é muito viável, na atual situação. Também tenho o meu… é como eu digo, sou um lobo solitário, tenho o lado bom, mas também tem o lado mau e eu procuro o equilíbrio, mas o que me permite o equilíbrio é aqui o Albergue, porque eu agora vou comer qualquer coisa, prontos, pode não ser uma refeição do restaurante, mas vá é satisfatória, é satisfatória e não preciso de gastar dinheiro, posso ir à praia agora, posso ir onde quiser e quando quiser volto para cá ou posso ir ali ao Aeroporto… posso ir até à Póvoa, andar por lá a dar voltas, só que… um homem só tem o peso da solidão, mas também as más companhias têm consequências, as más companhias também têm as suas consequências, o que é que eu vou fazer? Claro que se eu estivesse na minha independência, numa casa própria, tava independente, pronto, claro, numa instituição como nos Albergues há sempre regras a cumprir, sempre regras, algumas regras… até nem são, no meu caso não são assim muito pesadas, eu suporto bem e levo a coisa na boa, levo a coisa na boa, mas regras… agora se eu tivesse na minha casa, teria outras liberdades, mas também outros deveres.
E: Claro. Tem aspetos positivos e aspetos negativos…
e: Exatamente. Portanto, o equilíbrio é sempre necessário, depois o equilíbrio… agora eu não posso estar a dar passos maiores que a perna, isso para mim tenho bem isso, isso é uma decisão firme para o meu lado. Imagine uma aventura qualquer, não me posso tar a meter, meto-me num problema e depois como é que vou sair dele? Se já estou mal, ficava completamente arruinado, então aí é que o meu problema não tinha recuperação e levo assim.
E: Mas diz que ainda acha que há uma solução…
e: Para mim…
E: Sim. O que é que acha que… que seria? É um objetivo que tem, conseguir resolver…?
e: Não digo que seja um… não digo que seja um objetivo, mas é uma necessidade, é uma amizade certa, só que isso é muito difícil na situa… na atual situação é muito difícil, porque as boas amizades têm um preço sempre muito elevado, é preciso dar, é preciso uma entrega e… haver alguém que tenha um interesse, uma entrega também, tem de haver um bom entendimento, só que no mundo em que vivemos, e volto a repetir, no mundo em que vivemos… nada podemos dar por garantido, não podemos dar nada por garantido, o que hoje é bom, amanhã pode ser péssimo, entende? Como eu, quando cheguei a Espanha criei uma grande expectativa… e realmente, consegui, consegui o que me propunha, mas não deixava de ser um grande, um preço elevado para estar ali com uma entrega total da minha parte e prontos e era para o dia a dia também, também ganhei algum, mas o dinheiro também se gasta bem, o dinheiro se gasta bem. Em Espanha ganha-se mais, mas também se gasta mais, em Espanha gasta-se mais, eu levei assim, bem, para mim… não sei… dia a dia a gente vai… vamos… de hora a hora, Deus melhora, de hora a hora, Deus melhora, e eu levei assim, mas não estou a ver grandes soluções para o meu problema, porque eu também habituei-me desde muito jovem a depender só de mim, a depender só de mim… vivemos num mundo dependente uns dos outros… e quê? Quem é que vai aparecer agora para ajudar? Aparecem é para pedir cigarros, para pedir uma moeda ou para pedir uma nota, ou vamos aqui ou vamos ali e quando uma pessoa vai a ver já lá vão 20 euros, ah pois é… e 20 euros até nem é nada, não é nada depende do ponto de vista, não é nada depende do ponto de vista, isso 2 minutos e a gente vai ali e gasta 20 euros, mas… de onde é que vêm os 20 euros? [silêncio] Eu vou daqui até à praça e não vejo 20 euros no chão, prontos, e lá vou com as coisas do dia a dia.
E: Mas ainda tem sonhos?
e: Ah… [risos], eu ainda vou refazer a minha vida! Agora vai ser uma coisa mais, não é… vou refazer a minha vida, ainda me vou casar outra vez.
E: Esse é um sonho que tem?
e: Não é só sonho, vou levar isso avante, porque… eu sou uma pessoa com convicções firmes e é o seguinte: o homem faz a mulher e a mulher faz o homem, é o que lhe digo, é o que lhe digo, porque… porque, realmente, olhe… [silêncio] o mundo gay, por exemplo, certamente eles baseiam a sua decisão… que a natureza os fez dessa maneira, tanto o homem como a mulher têm aquela aptidão para aquilo, mas o homem foi feito para dar alegria à mulher e a mulher para dar alegria ao homem, e não mais do que isso, o homem para a mulher e a mulher para o homem, não é… natureza desencontrada, nós não podemos aceitar a natureza desencontrada, tanto para o homem como para a mulher, é igual, e eu ainda tenho… tenho sempre, isso para mim está na base do meu… da minha natureza.
E: E, por isso, é que quer também ter esse… tem essa vontade de voltar a casar e ter uma relação…
e: Sim, claro, claro… exatamente, uma relação mais… mais… com mais sabedoria e não cometer erros também, porque… ninguém nasceu ensinado, ninguém nasceu ensinado, o homem não nasce ensinado e a… a vida é uma aprendizagem. E eu agora… não vou cometer erros que cometi, nem ela, nem nada, vai ser tudo no certinho, nas boas, porque… é isso, a natureza do homem, porque a natureza não deu o equilíbrio certo a todo o ser humano, o ser humano não se equilibra todo da mesma maneira, portanto… dizem que a natureza os fez assim desencontrados… a parelha, o homem e a mulher, que os fizeram desencontrados… pois, têm a sua decisão, respeito, mas não mais do que isso. Eu respeito cada pessoa, mas para mim o homem é para dar alegria à mulher e a mulher para dar alegria ao homem.
E: Então quer deixar o lobo solitário para trás?
e: Exatamente… e boto sempre, claro, claro. Eu já sou da velha guarda, sabe? Por exemplo, há pessoas que gostam desta música… como é que se chama aquele artista? O… que é muito conhecido, que morreu, de bigode… King, não é o King… os King, não era os King… era uma música moderna que… que até morreu de SIDA.
E: O Freddy Mercury.
e: O Freddy Mercury! Pois isso realmente é uma música bonita, mas eu gosto de música mais suave.
E: E não temos todos que dançar a mesma música.
e: Claro! Eu até aceito, que é uma música, e até gosto, eu gosto da melodia, gosto da… da onda, mas, por exemplo, os Beatles é uma coisa mais soft, é uma coisa mais ao meu encontro, é. Agora os Rolling Stones aquilo é só máquinas de fazer barulho, meu, bum bum bum… é, é! Até aí estou bem, mas bem… gosto mais de… assim… eu não gosto de mar muito agitado, na música não gosto de mar muito agitado, gosto assim… que esteja, que cada pessoa tenha a sua maneira. Já também tenho… a experiência de vida fez de mim outra pessoa, fez aquilo que sou. Eu… eu sou feliz à minha maneira, é o que lhe digo. Já me perguntaram e eu falei que sou feliz à minha maneira. Quase tudo aquilo que eu quero, tenho, quase, há coisas que realmente não podemos passar dos limites, entende? Nós temos de saber… a nossa ambição tem de ter o limite certo, sabemos que chegamos ali à nossa barreira, e eu de certa maneira faço tudo, se eu quiser vou por aí e compro qualquer coisa, se eu quiser comer fora vou comer fora, quero ir à praia vou à praia, a companheira já é mais complicado, além de que me sai caro… além de sair caro e… depois não… isto… o mundo dá muitas voltas, o mundo dá muitas voltas e eu levo a situação assim, sou feliz à minha maneira. Gosto de ver televisão, quase sempre vejo os programas de televisão, durante a noite, às vezes, também, o telejornal… aprende-se muito, aprende-se muito, o que… também é um pouco repetitivo, é um pouco repetitivo e também há filmes que… há filmes bons… só que a gente tá a ver hoje e amanhã já não tá a dar, a gente se quer vê, se não quer ver não vê, lá está, isso para mim está claro.
E: E o que é que é mais importante para si hoje?
e: O que é mais importante para mim? [silêncio] Para mim, hoje em dia, é a procura familiar, estou nessa onda e vou conseguir.
E: Espero que sim.
e: Vou, vou atingir esse objetivo. Não digo que é hoje ou que é amanhã… porque… ou então vou para Espanha outra vez, se me der… se algum dia posso acordar com o pensamento noutro lado e tiro as coisas e já lá estou, eu se quiser saio agora e já lá estou, mas… não é… não é… o que é mais importante, respondendo à sua pergunta, respondendo à minha pergunta… também gosto de ler um livro, gosto de ler… há livros bons… eu tenho, eu tenho… algumas boas capacidades, que a sociedade também não aproveita hoje, sabe? A sociedade… o mundo social em que vivemos é complicado… mas o que é mais importante ainda não consegui ter essa resposta, o que é mais importante para mim… ainda não consegui ter essa resposta… vivemos num mundo muito remetido, vivemos o mundo, o mais importante realmente para mim é ter a confiança que posso aguentar este dia a dia, aguentar o dia a dia, com as condições, com o conforto que tenho, com o conforto, não é muito confortável a minha situação, não é confortável, mas… não quero descer o degrau, se não puder subir degraus, descer não quero, agora descer desta fase da minha vida… descer degraus é complicado, não quer dizer, se não subir, mantenho-me no patamar, isso para mim é realmente importante, só que… é… a gente não aguenta sempre o ritmo, sabe? Porque… elas não matam, mas aleijam, vivemos as situações que elas não nos matam, mas aleijam. A minha idade vai… vou ficando mais velho, a saúde também… estou, estou… sinto-me bem, mas não posso esperar daqui para a frente que a saúde me vá acompanhar sempre, isso pode ter a… posso ter problemas de saúde a qualquer momento, como toda a gente… pois, ter aqui o Albergue é uma situação um pouco incerta, é sempre de um momento para o outro… pudemos… sabe? Dão-nos boas condições, mas vivemos… todo o mundo é interesseiro, o mundo tem sempre interesse, um dia podem dizer “Ó senhor Pereira, você é muito boa gente, tudo bem, tudo bem, mas acho que você deveria procurar outra vida” e para onde é que vou? Posso arranjar um quarto ou… durante uns tempos, posso-me aguentar nessa situação, mas também… eu já estive a pagar 220 euros, a pagar 220 euros, só que isso… parece que não, um mês passa rápido, um mês passa rápido, ao final do mês temos lá de pôr aqueles papéis… papel bom, o papelinho, bom, temos de dar ao senhorio, se não ele não nos quer. Foi o que me aconteceu também, eu… já não aguentava mais a situação e vim para o Albergue, com… realmente, 220 euros era uma situação pesada para uma pessoa que não tem grandes rendimentos e eu agora nem por 220 euros arranjo. E o senhorio me disse “Olhe”, quando me disse, quando fez contrato comigo por 220 euros, “Olhe, você se quer, quer, se não quer, olhe eu ponho aqui neste quarto, você têm aí uma cama, eu ponho outra ao lado, ponho aqui 2 raparigas ou… destes dos estrangeiros, passam aqui a noite e eu ganho 2 vezes”, foi o que ele me disse!
E: Já foi há quanto tempo isso?
e: Foi antes de vir aqui para o Albergue! Ele disse-me “Se você quer, quer” e eu disse-lhe “220 euros é caro” e eu na ocasião…
E: Já estávamos nesta altura do turismo e…
e: Sim… isto… isto para o turismo foi um boom…
E: E isso também fez com que depois fosse mais difícil conseguir viver aqui, não é, na cidade…
e: E hoje… e não é possível arranjar um quarto…não é possível arranjar um quarto, aqui assim, não… se é longe da cidade, se é longe daqui também as possibilidades de trabalho são mais difíceis e… ou seja, tem o lado bom estar aqui na cidade, se a pessoa ganha, tem emprego e coiso… fora da cidade pode ser mais barato, mas também para ganhar também é mais difícil… para ganhar também é mais difícil, por isso, a vida está difícil, a vida está difícil. E quem tem ainda algumas comodidades como eu, que ainda tenho aqui no Albergue… há que manter, enquanto for possível, a refeição, fazer a minha higiene, tenho chuveiros tudo... isso…
E: Tem boas condições.
e: Tenho, tenho, tenho, tenho boas condições. A cama é lavada, mas… não posso esperar que me estejam sempre a dar essa facilidade, um dia pode acabar, que eu, eu também se há coisa que aprendi é o seguinte: não há mal que sempre dure e não há bem que não acabe e isso é o problema, que o meu problema já lá vem, já adquiri essas experiências, quando uma pessoa é jovem, não sabe… ah… ou seja, quando é jovem não pensa e quando é velho pensa demais, é o que lhe digo… ou seja, manter a situação equilibrada para mim, agora respondendo à sua pergunta, o que é mais importante para mim? Pois… como eu digo, o mais importante para mim é manter o equilíbrio, manter o equilíbrio, é o que lhe digo. Claro que tenho… tenho um filho que é importante, lá a família dele… mas… a minha separação deixou ficar dor, sabe? Foi uma separação burra, por isso, é que me deixou ficar dor. Eu se passar por ela, que já passei por ela uma vez, ou seja, a gente separou-se no tribunal… mas já passei por ela na rua… não falámos, eu não tenho nada que lhe dizer e ela não tem que me dizer a mim, mas eu tenho a cabeça a pensar, é o seguinte: esta aqui dormiu comigo e agora não me conhece? Claro que eu também… mas é… dormiu tantas vezes… dormiu comigo e agora nem me conhece… também não é preciso, mas ela podia ter tido, porque eu fui amigo dela, atenção, eu fui amigo dela, fui um bom companheiro dela.
E: Então e agora como é que espera… o que é que espera do futuro além de encontrar…? E como é que acha que… ou como é que gostava que fosse o futuro?
e: Ah isso… não é como gostava, é como quero que seja, isso… eu… eu vou refazer a minha vida, tenho, eu vou-lhe dizer, eu não morro sem refazer a minha vida e me dar a coisa de satisfação a mim próprio.
E: Isso é o mais importante.
e: Fazer essa satisfação, cumprir… também quero dar um bom… não que eu seja, não… não estou preocupado, em dar um bom exemplo, deixar, deixar um bom exemplo ao meu filho, mas quero cumprir, dizer que ele pode ter consciência tranquila… que eu [silêncio] não sou exemplo perfeito, mas o exemplo certo para ele, é isso, é isso, não perfeito, porque isso é uma procura de vida, a gente… o ser humano procura a perfeição, o ser humano sempre procura a perfeição, sempre, mas agora temos é de ser o exemplo certo, para o meu filho, que realmente isso… acho que faz parte da minha… do meu pensamento.
E: Como dizia, quando nasce um filho é uma parte também de si que se revê…
e: Que se reinventa, a gente se reinventa. Dizem assim a reencarnação não existe, mas se pensar… se o ser humano pensar bem, o ser humano reencarna, reencarna, nos filhos e nas filhas, na descendência, o ser humano reencarna, e assim… ai… a gente tem só histórias da moral e… mas o ser humano reencarna. Eu, por exemplo, reencarnei no meu filho, é uma reencarnação, também, pronto.
E: Então quer lhe deixar esta…
e: Não o exemplo perfeito, mas certo, para mim sim. Se fosse menina, seria igual. Eu ao princípio queria uma menina, era uma menina, coiso… depois “vamos fazer uma menina”, quando ele nasceu, “ah agora… quando vier ao mundo vai ser uma menina” pa… ficou. E ainda estou a tempo, é, eu vou reencarnar. Temos é de acreditar que este mundo é uma passagem, temos de deixar ficar o exemplo certo para a geração posterior, não anterior, posterior, a geração que venha dizer que tiveram nos seus descendentes… nos seus ascendentes… o exemplo possível e certo, prontos, e é isso.
E: Obrigada, senhor… sim.
e: Uma coisa… o ser humano tem de ser honesto… com as pessoas e as pessoas serem honestas, ou seja, dar honestidade e receber honestidade, dar respeito e fazer-se respeitar, até aí… o mundo gira bem.
E: Obrigada, senhor Gustavo, obrigada pelos seus ensinamentos que nos vai…
e: Ah, são experiências de vida!
E: Pois, mas essas experiências de vida conseguem ter um pensamento sobre o que é a realidade, sobre o que é a situação, que acho que é muito importante para transmitir.
e: Isto se fosse por escrito… eu tenho, eu tenho… tenho boa mão para a escrita.
E: Tem?
e: Tenho, eu escrevo.
E: Ah, não nos contou essa parte.
e: Tenho boa mão para a escrita, só que não tenho situação para me concentrar… sabe? [silêncio] Na situação atual eu não me posso concentrar para a escrita.
E: Mas gostava?
e: Se fosse… se aquilo, se aquilo que disse agora assim, isto foi uma situação breve e já está, se fosse por escrito em que eu… fosse buscando o fio à meada, ficava uma coisa boa e bonita, por escrito.
E: Temos que trabalhar isso então, temos que trabalhar isso…
e: Não, na situação do Albergue não é muito possível, porque…
E: Mas gostava de poder… desenvolver mais essa…?
e: Eu lá na minha aldeia, a minha casa era… a casa era grande e eu realmente vinha sempre para a janela… e depois escrevia bem, é como eu digo, já escrevi, era um jovenzinho e já escrevia cartas lá para o Ultramar para o meu tio, era eu que as escrevia, um bocado mal, mas… mas… e, claro, depois vim aqui para a cidade também… andava sempre com os papéis debaixo do braço, às vezes, cadernos assim em casa, mas lá na aldeia tinha condições, sabe o que é.
E: E tempo, não é?
e: E tempo! Tinha uma janela assim imensa, toda em pedra, que dava para ver… dava para ver até ao… e então… escrevia… claro, depois tive de vir aqui para o Porto. Ainda houve muito tempo que ia lá fazer visitas, a casa ainda lá está, que ela não é só minha, a casa não é só minha, era dos meus avós, mas… agora é de todos, isto… para tomar uma decisão ali… não é muito boa coisa, é melhor estar assim. Eu não posso chegar ali e dizer que eu vou mudar isto e isto e aquilo, é a casa de família, sabe? Por isso, deixo estar, eu é que tenho interesse aqui na cidade de resolver os meus problemas, pois é, sabe, o que me saltou agora mais essa do lobo solitário, de certa maneira sim, mas também tem o lado bom e tem o lado mau, isso já estou habituado, mas agora é que me veio à lembrança isso. Claro, e a vida vai-se passando, um dia de cada vez, já está. Faz-me lembrar um programa de televisão que dá, ao sábado de tarde, o que dizem os seus olhos? Há um programa que vai, vai gente… vai várias pessoas à entrevista que coiso… há pessoas que dão entrevistas bastante inteligentes, bastante… as pessoas oh pim, pim, pim.
E: Como a sua!
e: Bem, eu sou mais limitado, porque… bem…
E: Não, não… posso lhe perguntar o que é que dizem os seus olhos? [risos]
e: É um programa que… é na SIC.
E: Sim, é o Alta Definição.
e: Alta Definição… bem conseguido.
E: É essa a importância, não é, de nós falarmos das vidas…
e: Das vidas… porque o ser humano realmente… o ser humano é uma vida vivente, sabe? Eu já li a Bíblia, sabe? Eu já li muitas vezes a Bíblia, mas claro é um livro histórico, é um livro histórico, entende? A Bíblia é um livro histórico, tem o seu valor, só que nós hoje vivemos na era dos computadores, entende? Vivemos na era dos computadores… você não me perguntou qual é o filme que vi que mais gosto de ver agora…
E: Mas é…
e: Não, não, vou-lhe dizer, há um filme que dá que é “Eu sou o Computador”, a relação do homem com a máquina, não, do… do… neste caso, é uma mulher, só que o computador é tão perfeito que acaba por interagir o sentimento com a mulher, agora imagine-se [risos], é, é.
E: Não conheço, mas vou procurar esse filme.
e: “Eu sou o Computador”, ou seja, de muitos computadores houve um que saltou da geração… portanto, só que os outros computadores querem aniquilar aquilo tudo [risos], é uma história, vou lhe dizer… é preciso ser inteligente para fazer um filme daqueles ou vá houve um livro, houve alguém que escreveu um livro e depois fizeram o filme. O sentimento da máquina começa a interagir com a mulher, como é que se vai resolver um problema desses?
E: Pois e agora estamos a viver essa…
e: Pois, mas é que o computador começa a ganhar sentimentos próprios, começa a ganhar alma, vá, alma, o sentimento e como é que se vai resolver isso? Mas está bem feito o filme, já é antigo, destes filmes que eu tenho visto, esse eu tenho saltado… de vez em quando ainda dá na televisão.
E: Vou pesquisar, vou pesquisar.
e: Dá para ver até ao fim! Para mim sim.
[Risos]
E: Obrigada, senhor Gustavo.Recolher