Quando senti os braços e as pernas dormentes enquanto fazia o almoço naquela manhã de junho de 2012, a angústia deixou minha boca seca. Até tentei me tranquilizar, pensando que podia ter dormido de mau jeito...Mas a verdade é que eu sabia de cor e salteado onde aquilo ia dar. Logo viriam as diarreias, as tonturas constantes e a dificuldade para andar. Por fim, minhas mãos e pernas atrofiariam.
Quanto tempo levaria para acontecer? Difícil saber. Eu estava com 42 anos e minha mãe havia morrido entrevada aos 52 anos. Meu irmão deixou de andar e pegar objetos aos 36 anos e minha irmã se viu sem movimento aos 40. O que eu não sabia é que um transplante de fígado podia me livrar dessa triste sina. E o mais surpreendente: o mesmo fígado que estava me fazendo ficar doente podia salvar a vida de outra pessoa. Ficção científica? Não: transplante dominó.
Polineuropatia amiloidóticafamiliar (P.A.F.), mais conhecida como “doença do pezinho”, por ser diagnosticada através de uma biópsia no pé. Eis o nome do mal hereditário do qual minha mãe, meus irmãos e eu sofremos. Ele faz o fígado produzir enzimas defeituosas que, pouco a pouco, degeneram o organismo.
Infelizmente, fui a única da família a ter um diagnóstico a tempo de escapar sem sequela alguma. Humildes, não tínhamos instrução. Além disso, demos azar de passar por médicos que não conheciam a P.A.F. Tudo bem que ela é rara e difícil de diagnosticar,mas primeiro falaram para minha mãe que ela tinha tuberculose (!) e depois, para meus irmãos, “que era coisa do fígado e não havia o que fazer”.
Por sorte, passei num médicoda rede pública melhor capacitado. Ele desconfiou do quadro, pediu uma biópsia e detectou a P.A.F. O diagnóstico foi um alívio, mas ao mesmo tempo assustou. “Você precisa de um transplante de fígado com urgência; é a sua única saída”, disse o doutor.
O médico tinha razão, eu precisava de ajuda urgente. Além do...
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Quando senti os braços e as pernas dormentes enquanto fazia o almoço naquela manhã de junho de 2012, a angústia deixou minha boca seca. Até tentei me tranquilizar, pensando que podia ter dormido de mau jeito...Mas a verdade é que eu sabia de cor e salteado onde aquilo ia dar. Logo viriam as diarreias, as tonturas constantes e a dificuldade para andar. Por fim, minhas mãos e pernas atrofiariam.
Quanto tempo levaria para acontecer? Difícil saber. Eu estava com 42 anos e minha mãe havia morrido entrevada aos 52 anos. Meu irmão deixou de andar e pegar objetos aos 36 anos e minha irmã se viu sem movimento aos 40. O que eu não sabia é que um transplante de fígado podia me livrar dessa triste sina. E o mais surpreendente: o mesmo fígado que estava me fazendo ficar doente podia salvar a vida de outra pessoa. Ficção científica? Não: transplante dominó.
Polineuropatia amiloidóticafamiliar (P.A.F.), mais conhecida como “doença do pezinho”, por ser diagnosticada através de uma biópsia no pé. Eis o nome do mal hereditário do qual minha mãe, meus irmãos e eu sofremos. Ele faz o fígado produzir enzimas defeituosas que, pouco a pouco, degeneram o organismo.
Infelizmente, fui a única da família a ter um diagnóstico a tempo de escapar sem sequela alguma. Humildes, não tínhamos instrução. Além disso, demos azar de passar por médicos que não conheciam a P.A.F. Tudo bem que ela é rara e difícil de diagnosticar,mas primeiro falaram para minha mãe que ela tinha tuberculose (!) e depois, para meus irmãos, “que era coisa do fígado e não havia o que fazer”.
Por sorte, passei num médicoda rede pública melhor capacitado. Ele desconfiou do quadro, pediu uma biópsia e detectou a P.A.F. O diagnóstico foi um alívio, mas ao mesmo tempo assustou. “Você precisa de um transplante de fígado com urgência; é a sua única saída”, disse o doutor.
O médico tinha razão, eu precisava de ajuda urgente. Além do formigamento, eu já estava começando a perder o equilíbrio. Quando estava sentada ou deitada e levantava, tudo começava a girar, as pernas ficavam bambas. Isso era muito duro para uma pessoa como eu que, apesar de não trabalhar fora, era tão ativa nos cuidados da casa.
Assim, em novembro de2013, entrei na fila de esperado transplante de fígado. Chorei de ansiedade! O médico ainda tentou me tranquilizar, dizendo que o meu diagnóstico havia sido feito logo e que eu teria mais chances de ficar bem. E me deu uma notícia surpreendente: além de receptora, eu poderia ser doadora! Um transplante conhecido como dominó.
“Como assim?! Meu fígado não é doente?”, perguntei. O médico explicou que, no organismo de outra pessoa, meu órgão pode demorar até 30 anos para desenvolver a P.A.F. Por isso, eu poderia doar, mas só para alguém de mais idade. Foi aí que Seu Horácio entrou na minha vida – e eu na dele!
Foram oito meses na fila de espera. Eu já estava perdendo as esperanças. Mal conseguia andar, vivia com dores e precisava da ajuda do meu marido e da minha filha para fazer tudo. Então, em julho deste ano, o celular do meu marido tocou. Era a equipe do hospital, me avisando para ir para lá, pois havia um fígado para mim.
Fui internada no mesmo dia. Apesar do medo do meu organismo rejeitar o novo fígado (sempre há essa possibilidade...), eu me sentia feliz, pois já sabia que seria também uma doadora. Eu poderia ajudar a salvar uma vida! Foram seis horas de cirurgia. Recebi o fígado numa sala e na sala ao lado o senhor Horácio, de 64 anos, ficou com o meu.
Assim que acordei e soube que estava tudo bem comigo, perguntei como havia sido ao peração do Seu Horácio. Que felicidade enorme saber que ele também estava ótimo! Dois dias depois dos nossos procedimentos, fui ao quarto do Seu Horácio. Ele estava lá com a esposa e foi muito emocionante conhecê-lo. Que figura, todo bem humorado! Tenho certeza de que fará excelente uso do “nosso” fígado. Ficamos tão amigos que trocamos telefones e emails para continuarmos nos comunicando. Agora, estou muito melhor – meus irmãos também fizeram transplante, mas a tempo apenas de impedir que as sequelas se agravem – e feliz por ter conseguido fazer o bem sem olhar a quem!
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