Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de "José" (pseudônimo; não há permissão para citar o nome verdadeiro)
Entrevistado por Cláudia Leonor, Winny Choe e Júlia Basso
Açailândia, 31/10/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MB_HV_077
Transcrito por Winny Choe
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 13/10/2008
P1 – José, eu queria que você me contasse onde você nasceu, qual a cidade de sua infância?
R – A cidade em que eu nasci se chama Floriano.
P1 – Floriano fica no Piauí é isso?
R – É, fica no Piauí.
P1 – E você cresceu em Floriano?
R – Cresci em Floriano.
P1 – Descreva para a gente um pouco da sua cidade.
R – A cidade é bonita, tem uma ponte, o rio descendo. Tem umas coisas muito bonitas lá. Muito, como é que se diz? Muito artesanato, muitas artes lá.
P1 – Que rio passa ali?
R – Rio Parnaíba.
P1 – Você ia pescar no Parnaíba?
R – Ia, ia pescar muito.
P1 – Que peixe tinha por lá?
R – Tinha mandi, piau da cabeça gorda, piranha, curimatã. Tinha um bocado de peixinho por lá.
P1 – E você brincava do quê quando era criança?
R – Eu brincava com pneu, colocava um cabo de vassoura, enchia o pneu d’água e saía brincando. No meio da pista, correndo, dizia: “Piii, olha o meu carro, olha o meu carro!” Aí, eu andava brincando.
P1 – Quem ficava brava era a sua mãe?
R – É, mamãe brigava. Aí, logo me matriculou, e fui estudar. Comecei a estudar, e não deu certo lá porque também a minha mãe, as condições eram fracas também. Não tinha como eu estudar, e eu deixei lá os meus estudos. Daí, eu disse para ela: “Mamãe, vou atrás de melhorar a nossa vida.” E saímos eu mais minha tia, eu mais ela. Quando a gente chegou em Açailândia, ela foi embora, e eu fiquei. E agora eu estou com dois anos sem ir para casa, sem ter notícias da minha mãe.
P1 – Faz dois anos que você está aqui em Açailândia?
R – Faz dois anos.
P1 – Mas vamos voltar um pouquinho. O seu pai, ele trabalhava ou trabalha...
R – Ele trabalhava vendendo vassoura.
P1 – De piaçava?
R – Não. Ele trabalhava vendendo vassoura, meu padrasto. Meu pai mesmo se separou da minha mãe. O meu padrasto que me criava.
P1 – E você tinha outros irmãos?
R – Tinha. Tenho a Raiene, a Alzirene, a Irene, a Elisabeth. Tem a Pitchula, a Franciele, tem o Francisdalvo, tem a Carol, tem a Jéssica.
P1 – Nossa, é um monte de irmãos.
R – Estou falando, tem um tanto por parte de pai, um tanto por parte de mãe.
P1 – Juntou tudo?
R – Juntei tudo.
P1 – Quantos eram? Quantos são, aliás?
R – Agora, eu não estou lá, mas sou eu, a Alzirene, a Elizabeth, a Irene e a Pitchula.
P1 – E os outros já casaram?
R – Não, os outros moram com meu pai, meu pai mesmo. É porque esse laço é do meu padrasto.
P1 – Ah, entendi. E o seu padrasto trabalha com o quê?
R – Ele vende vassoura.
P1 – E o seu pai também?
R – Não, o meu pai não. O meu pai mesmo trabalha quebrando paralelepípedo para fazer calçamento. Parou agora também lá, falou que estava doente e parou.
P1 – O que tem em Floriano para fazer? É calcário, é isso?
R – Lá em Floriano, o que tem para a pessoa fazer é pegar um peixe, fazer uma vassoura, quem souber. Mais serviço lá não tem, não. Serviço braçal, nem serviço nenhum não tem.
P1 – Não se planta nada?
R – Só quem planta alguma coisinha lá é algum fazendeiro que tem algumas terrinhas e planta. Mas é difícil também.
P1 – José, me fala uma coisa: além de brincar com pneu lá, com o que mais você brincava?
R – Eu? Eu brincava também. Quando eu terminei de brincar com pneu, eu comecei a brincar com gesso. Eu molhava ele e ficava brincando. Aí, eu aprendi. Sei fazer vaso, sei fazer bujãozinho, cofrezinho. Sei fazer barcozinho também. Quando eu estava no rio lá, eu cortava com a tesoura de papel, fazia o barcozinho e deixava ele descer. Pintava de verniz e fazia ele descer no rio.
P1 – Com quem você aprendeu a fazer barquinho?
R – Eu aprendi a fazer com um rapaz, chamava Cristiano o nome dele.
P1 – E vocês têm igreja, como é que era isso? Tinha festa na igreja?
R – Não, eu nunca tive paciência para ir para a igreja, não. Agora que eu estou aqui pelo Maranhão, que eu comecei a ir à Igreja Católica. Lá na minha cidade mesmo, eu nunca tive paciência de ir para a igreja. Meu tempo mais era cuidando das minhas irmãs, era lavando prato, varrendo a casa, assistindo uma televisão. Eu nunca tive tempo para ficar indo.
P1 – Você que ficava cuidando das suas irmãs?
R – Era.
P1 – Porque você era o mais velho e homem. Você era bravo com elas?
R – Tinha vez que eu batia. Tinha vez que fazia raiva, eu arrancava um cipozinho e dava nas pernas delas.
P1 – É mesmo? Mas o que elas faziam?
R – Quando eu dizia que era “mó” de elas sujarem os pratos, elas pegavam essa massa de trigo, quando eu me espanava assistindo televisão, elas queimavam uma massa, dizendo que estavam fazendo um bolinho. E, quando mamãe chegava, elas colocavam toda a culpa em cima de mim. E, aí, só ia patada. Quando ela saía, eu batia nelas.
P1 – Você era bravo, então, com elas?
R – Era bravo, mas não era tão bravo assim com elas.
P1 – Bravo na medida certa...
R – É, era na medida certa.
P1 – E como que foi a ideia de você vir para Açailândia, você e sua tia? Você se lembra? Como vocês começaram a conversar? Por que Açailândia?
R – É porque eu tinha muita vontade de conhecer outras cidades, e minha tia me disse: “Vamos para Açailândia?” Que lá, tinha três terrenos e uma casa. Aí, eu vim mais ela. Quando eu cheguei mais ela, o marido dela não trabalhava, e não sei no quê eu vou trabalhar. Logo, ele chegava em casa cheio da cachaça, cheio de drogas e queria me bater. E teve um dia lá em que ele pegou um... Para alargar meu espinhaço. Eu fui só pegar minha “boroca” e meus documentos e fui embora. Nunca mais também eu fui lá, não.
P1 – José, espera aí, vamos traduzir um pouco, porque a gente é de São Paulo. O que é “boroca”?
R – “Boroca” é a mochila da gente, que é conhecida como a “cachorra”.
P1 – Como?
R – A cachorra.
P1 – Por quê?
R – Porque, quando o cabra sai, ele tem que dar uma batida nela a modo de tirar a “puaca".
P1 – O que é “puaca"?
R – A poeira.
P1 – E, aqui em Açailândia, você começou trabalhando no quê?
R – Aqui, em Açailândia, eu comecei a trabalhar... Não tive muito serviço, não. Tinha um serviço de pastéis, mas eu não peguei, não. Eu peguei logo uma carona com um boiadeiro desses aí, eu parei no arame. Ele parou lá. E, quando eu parei lá, eu dando a volta, passei, tinha um cara apreciando, e ele me chamou. Aí ele disse: “Rapaz, você não quer trabalhar?” Eu disse: “Eu quero.” Eu fui para lá, trabalhar com ele, e estou com dois anos lá. E saí agora. Sendo humilhado lá dentro. Se o cabra fala de ir embora, ele diz que quer matar o cabra, vira a costa de foice na cabeça do cabra, de facão. E o cabra fica com medo. E lá também tem arma, tem fuzil, tem 12, tem 20. Lá é perigoso, a pessoa fica com medo. Eu saí de lá ontem às quatro horas da manhã. Saí “de” pesão. E, toda vez que eu via um carro, eu entrava dentro da mata. Eu pensava: “Será que são eles, que vão me matar?” Eu entrava dentro da mata e deixava o carro passar. E, quando eu cheguei na pista, ia vindo um carro, eu só perguntei de onde era, e ele dizia: “Não, eu vou para Buriticupu.” Eu entrei, e quando chegou lá no posto, o cara me disse: “Cadê o dinheiro, cara?” “Rapaz, eu não tenho, não, pode chamar a polícia.” Ele foi e disse: “Rapaz, pois tu vai ficar.” Eu disse: “Tá bom.” Mas ele também não brigou comigo, não. Aí, vinha vindo, passando outro cabra, e eu disse: “Ih, rapaz, você vai para onde?” Ele disse: “Rapaz, eu vou para Buriticupu.” Eu digo: “Rapaz, eu vou para lá também, quanto que é a passagem?” “Tanto.” Eu entrei, e ele não cobrou logo na hora, não. E, quando chegou na parada, ele disse: “Cadê o dinheiro?” Eu disse: “Rapaz, eu não tenho, não, pode chamar a polícia.” Eu contei minha vida para ele, porque é que eu estava vindo. “Rapaz, eu estou saindo é fugido, porque lá onde eu estou, o cabra não quer que ninguém saia, trabalhando que nem escravo, até no dia de domingo a pessoa trabalha. Se não trabalhar, ele não quer dar o ‘de comer’ também. O cabra também não pode ir embora porque jura de matar os cabras, e está ruim de a pessoa trabalhar.” Ele foi e disse: “Poxa, não carece de pagar, não.” Eu fui, falei com o promotor de Buriticupu, nós ligamos para o Centro de Defesa. Não. Ligamos para o Ministério da Saúde em São Luís, não deu certo, ligamos para o de Teresina, não deu certo. Aí, ligamos para cá, e foi o que deu certo. Ontem, eu dormi na casa do padre.
P1: Em Buriticupu?
R – É, em Buriticupu. Cheguei lá, ele me deu roupa, um sabonete, banhei. Tinha uma redinha bem limpinha, lençol, ventilador para eu dormir. Eu pensei: “Rapaz, aqui os cabras não vão me pegar, não, graças a Deus.”
P1 – Vamos voltar um pouquinho? José, quando você foi trabalhar, o que falaram para você?
R – Falaram que pagavam bem. Disseram que a diária era 15 reais.
P1 – A diária?
R – Que é o dia. Aí, quando eu cheguei lá, ele disse que era 12, eu digo que está bom. Quando deu o primeiro mês, meu dinheiro deu 400 e pouco, e eu só recebi assim. Eu nunca recebi o meu dinheiro todo, não.
P1 – E diga, continue.
R – E, quando a pessoa, se a pessoa vem para a rua, ele vem mais a gente, e não tem como a pessoa sair a modo de ir embora. Porque o “gato” sempre fica com o revólver na cintura, e, se o cabra corre, ele vai e atira. E tem outro com ele, que vai a modo de segurar o cabra.
P1 – José, eles prometeram carteira assinada? O que é isso?
R – Não. Ele dizia que assinava carteira, ele dizia que, depois de dois meses, assinava a carteira. Quando passou de dois meses, passou três meses, passou um ano, quando ele disse: “Rapaz, não vou assinar mais não.” Nunca assinaram a carteira. E agora também estava apagando um fogo por esses dias lá, por esse mês, por essas semanas. Eu sei que eu estava apagando o fogo, e meu documento foi e caiu. Eu desci na ladeira rolando. Quando eu segurei assim num tição, a modo de eu parar na descida, queimei meu dedo e foi quando eu saí apagando o fogo, rodando comigo mesmo assim na descida, que é alta assim a descida. Eu desci rodando. Quando eu cheguei lá embaixo, eu falei que não aguentava mais apagar fogo assim, não. E, na hora que lava assim. O vaporzão ardia aqui. Eu não aguentava, e ele dizia: “Rapaz, que nada.” Ficava só ameaçando a gente, e o jeito é a pessoa aguentar. E aguentei só com uma mão alternada, para apagar o fogo. E fui dormir fraquinho, baqueado. A mulher também nunca... Tendo carne lá, nunca bota carne para a gente comer. Só quem come, só o “gato” mais a mulher dele. Não quer tratar a gente bem, não.
P1 - José, mas qual era o seu trabalho na fazenda? Apagar o fogo era uma das coisas? Por que nessa época tem muito.
R – Mas o meu serviço mesmo lá é fazendo cerca. Assim que eu cheguei, fiquei carregando estaca. Comecei a carregar estaca nas costas, duas, três, e eu fui sentindo dores no peito. Eu falava para ele: “Rapaz, eu não aguento mais, não.” Ele dizia: “Rapaz, tu é um cabra novo, que tem muita força.” Ele vinha assim, e eu pensava que tinha muita força mesmo e o jeito era aguentar. E eu aguentei ainda um bocado de dia lá mais ele, botando estaca. Aí, eu disse para ele: “Rapaz, se for desse jeito, eu não aguento, não. Você vai me matar. O senhor não tem nenhum comprimido?” Ele disse que não tem, não. Eu fui para o mato, tem uma ladeirinha, e achei um pé de mastruz. Pedi um leite para um vaqueiro e fiz um mastruz. Aí, ele me colocou para roçar “junqueira".
P1 – Roçar “junqueira"? O que é isso?
R – Roçar “junqueira" é cortar mato. Matona fechada aí. Matão que tem cobra, tem tudo, e você vai só com uma foice na mão e vai trabalhar em cima da mata. Não tem café lá.
P1 – Vocês comiam que horas?
R – Rapaz, hora de comer era uma hora, eram 12 horas. E tinha vez que, quando vinham 12 horas, era cedo. Porque tinha vez que era uma, uma e meia.
P1 – Era uma refeição só por dia?
R – Não, ele fazia duas refeições, que eram o almoço e a janta, que ele dava.
P1 – Mas não tinha carne sempre?
R – Não tinha carne, não. E olha que ele tinha muito gado, mas não tinha carne, não.
P1 – O “gato” é o cara que fica lá na fazenda com você, tomando conta?
R – Era.
P1 – E, José, onde vocês dormiam?
R – Dormia num alpendrezinho que tinha lá.
P1 – Ao ar livre?
R – Era.
P1 – Em rede?
R – É, em rede.
P2 – Conta aquela história de quando você estava cortando o mato e a cobra apareceu.
R – Eu estava cortando a bola de capim no brejo, porque lá ele tem um brejo que ele mandou roçar. Eu estava cortando um capim, quando eu abaixei. No que eu levei a foice, uma jararacuçu foi e pulou em cima da foice. Quando ela pulou, eu afastei para trás e gritei. Aí, ele disse: “Rapaz, tu é frouxo.” Eu digo: “Acabou?” Ele disse: “Rapaz, se você não aumentar o serviço não vai ganhar a diária de hoje, não. E é arriscado tu nem jantar.” Mesmo assim, a pessoa tem de aguentar o que for, que a cobra morda, ou que um bicho pegue o cabra. Mesmo assim, a pessoa tem que aguentar. Só não aguenta quando ele vê que o cabra já está nas últimas mesmo. Ele joga o cabra na rede e deixa morrer.
P1 – Deixa morrer?
R – Deixa morrer.
P1 – Você viu isso? Você viu acontecer isso com alguém?
R – Não vi acontecer, morrer gente assim, não. Mas ele não dá remédio para ninguém, não. Ele manda o cabra se virar. O cabra que tiver uma dor, ele não cuida para levar para a rua, não traz remédio, não. Até um sabão que a gente pede para banhar é pago.
P1 – Você ia fazendo dívida lá? É isso?
R – É.
P2 – Como é que era a situação do resto do pessoal que estava lá? Quantas pessoas eram?
R – Eram oito, tem oito pessoas lá. A situação dos outros, a maioria é comprada por ele. Porque tem deles que são comprados, tem outros que não são. Porque também ele é um homem de muito dinheiro. Se a pessoa chamar outra para ir embora e o cabra não concordar, ele vai e fala para o “gato” e ele mata o cabra logo.
P1 – Aí, você resolveu fugir e não contou para ninguém.
R – Eu resolvi fugir e não contar para ninguém.
P2 – E aquele seu amigo que ficou lá, como será que ele ficou?
R – O meu amigo?
P2 – Aquele que você falou que não sabia contar dinheiro, como é a história dele?
R – Rapaz, tem um lá que é analfabeto. Ele é conhecido como o Curulebs, que é o sapo cururu. Ele é um rapaz doido. Se ele ganha 500 reais, o patrão troca dez reais ou cinco reais em nota de um, e ele sai alegre, gritando. Diz que está com dinheiro. Mas ele não sabe o que é dinheiro, não. Os cabras também, que tem 400, ele dá 100, dá 50. Não quer que os cabras vão embora, não.
P2 – José, você contou para a gente um pouco da história de quem é que vive lá, quantas mulheres, quantos homens. Você podia contar um pouquinho sobre isso?
R – Vivem oito homens, só trabalhadores, mas tem o “gato” e o dono, que é o Rivelino, que é o que fica lá. E tem a mulher, a mulher do “gato”, e tem a filha da mulher e dois pequenos, um loirinho, que é um casalzinho.
P1 – Os pequenininhos são filhos de quem?
R – São filhos da mulher do “gato”.
P1 – Para a gente, que é de São Paulo, explica o que é o “gato”.
R – O “gato” é aquele cabra que fica tomando de conta dos peões. Se a gente ficar sentado, ele fica só olhando. Ele não faz nada. Aí, é a modo de o cabra não sair, correr, beber água. Ele fica só olhando o serviço. Se for do cara almoçar 11 horas, e o “gato” está ali e não sente fome, porque fica parado, aí só almoça uma hora, uma e meia. E vai indo a vida.
P1 – Ele fica armado?
R – Fica armado, não tira o revólver da cintura, não. As armas que ele tem mais fracas são 20, 16, por fora. Lá tem fuzil, tem fuzil e rifle surdo.
P2 – E vocês saíam de vez em quando de lá?
R – Não, não saía, não. Até no domingo, lá as pessoas tinham que trabalhar porque, se não trabalhar, também não come.
P2 – Nesses dois anos, não teve nenhum momento de uma cervejinha, alguma coisa assim?
R – De ele botando lá?
P2 – Ou vocês indo pagar com seu dinheiro?
R – Não. Quando a gente vinha para a rua para tomar cerveja, ele vinha mais a gente, ficava olhando a gente. Aí, só fazia parar o carro e mandava a gente subir de novo.
P1 – Já faz dois anos que você não tem folga, não tem descanso?
R – Estou com dois anos sem folga. Já peguei muito dinheiro para modo de eu ir para casa, mas não acerta direito. É, com dois anos sem folga e sem ir para casa. E agora que não vou mesmo porque queimaram meus documentos.
P2 – E, depois que você falou com o procurador, que você foi para lá, como é que foi? Você contou para ele?
P1 – Por que você foi atrás do procurador? Como você teve essa ideia?
R – Eu tive essa ideia porque dizem que a Federal está aí no Buriticupu. Eles estão com medo, qualquer coisinha lá, eles estão com medo. Eu digo: “Mas, rapaz, pois vou aproveitar por enquanto que a Federal está aí pertinho, é a única chance que tenho.” Foi quando eu cheguei lá. A Federal não estava mais lá.
P3 – Quem te alertou para falar com o procurador? Quem te ensinou o local?
R – Eu que saí perguntando na rua: “Onde é que a gente encontra aqui um oficial de justiça?” Saí me informando e acertei. Cheguei lá, eu falei minha vida para ele. Ele disse: “É, rapaz, sua vida está sofrida, mas nós vamos ver o que é que podemos fazer por tu.” Ele encaminhou os papéis e disse que ia encaminhar uns papéis. Mandou eu dormir na casa do padre, porque a gente já tinha falado com a mulher daqui também, da assistência social. A gente já tinha falado com ela, a modo de eu vir para cá, que é onde eu estou hoje. Aí, eu vim para cá. Eles estão resolvendo aí o que fazem por mim.
P1 – Então, hoje é o primeiro dia que você não trabalha em dois anos?
R – Hoje, é o primeiro dia. Dois dias, que ontem eu dormi na casa do padre.
P1 – E o que você sentiu na hora que você deitou a cabeça no travesseiro, com o lençol limpinho, o que que você sentiu?
R – Foi quando eu me senti, cheguei a dormir sossegado porque eu estava em casa, porque lá a casa é grande e eu dormi só, num quarto, o ventilador lá. O padre me deu a rede, me deu roupa, me deu também sabonete, perguntou se eu não queria passar perfume. Tinha duas meninas na casa dele, me chamaram para a janta. Jantei, comi bastante, repeti umas três vezes, aí assisti televisão, assisti. E depois fui dormir.
P1 – Você está feliz?
R – Rapaz, estou feliz.
P1 – E o medo?
R – O medo é grande, eu estou com muito medo. O medo é grande.
P1 – Você tem medo de eles irem atrás de você?
R – Tenho medo demais. Eles já estão na rota, eles já estão atrás de mim, pode ter certeza.
P1 – Mas o que você acha que eles podem fazer com você?
R – Agora, eu acho que eles não podem fazer nada, porque eu também não estou só. Agora, eu tenho mais um apoio, e era ruim por enquanto que eu só estava lá, que aí eram só eles mesmos. Agora, eu acho que eu tenho mais um apoio do Ministério do Trabalho, do Centro de Defesa. Agora, eu tenho mais um apoio.
P1 – José, conta para a gente a história que você me contou sobre um dos trabalhadores que tentou fugir.
R – Rapaz, lá tem muitos deles que saem recebendo coronhada na cabeça, mas saem. Quando os caras não matam, deixam o cara doente de tanta coronhada na cabeça. O cabra sai doente.
P2 – E os outros queriam fugir?
R – Os outros lá, eles não abrem para ninguém, porque têm medo que contem para o “gato”. Mas tem gente que tem vontade de sair, sim. Tem velhinho que não aguenta mais trabalhar, tem menino. Eu também sou menino, mas tem menino lá que não consegue nem arribar uma foice e vai trabalhar também. É um sofrimento sinistro lá.
P2 – E, lá na fazenda, você encontrava mulheres? Como era sua relação com mulheres?
R – Não. Lá, de mulher, só tem a mulher do “gato” e a filha dele. Mas a filha dela é com um cabra lá. E esse rapaz falou que, se um dia quiser botar na loira dele, é logo para comprar um caixão. Mas ela também fica no meio da peãozada para modo de dar saliência, porque ela veste uma sainha bem curtinha, e tem essa rede de tucum. Quando ela vai sentar, ela não bota a mão assim. Ela abre, e, se o cara olha, ela fala que o peão que é saliente.
P2 – E as mulheres que você comentou que vão visitar vocês de vez em quando?
R – Não, não é lá, não. É em outros lugares que eu digo que tem.
P2 – O que tem?
R – Lá?
P1 – Não, nos outros lugares em que você já passou.
R – Tem peão lá que chega e já quer escorar a mulher dentro de casa. Tem gente que quer escorar, torar a mulher à força dentro de casa. Tem deles que querem torar à força, é uma coisa danada. O filho do “gato” é um lá que já tentou, botou arma mesmo numa mulher, mas a mulher não deu, não. Ele puxou ela, mas não conseguiu, não. Ela não ficou com medo de morrer, não. Ele falou para ela: “Ou tu dá, ou então tu morre.” Ela ficou com medo e pedindo: “Me solta.” E ele foi puxando no braço, e foi a hora que os rapazes chegaram, e ele saiu pela porta de noite. E no outro dia todo mundo sabia que foi ele. Ele foi até embora de lá, o filho do “gato”.
P2 – Conta um pouquinho mais para a gente como que você saiu da fazenda.
P1 – Conta como você se orientou, por exemplo. Você estava ali, junto com outros trabalhadores, você se escondeu no mato? Conta como foi que você sabia para que lado ir, para lá ou para cá. Como você se orientou?
R – Eu me orientei porque eu sabia a estrada em que passava carro. Eu sabia também que tinha um desvio, mas eu nunca tinha andado nele, não. Um desvio para modo de chegar na pista mais cedo do que os outros. Eu sai às quatro horas da manhã, eu levantei, tudinho estava dormindo. Eu saí de pontinha de pé, saí pouco correndo. Tcha, tcha, tcha. Saí correndo. Fazendo frio. Quando um carro passava, eu entrava dentro da moita, deixava passar, e seguia. Até quando eu cheguei na pista.
P1 – E você acha que correu quanto tempo? Até amanhecer?
R – Rapaz, eu corri. Corri uma base de três horas de relógio, correndo.
P2 – Uns 15 quilômetros?
R – Uns 15.
P1 – José, você já tinha a ideia de sair faz tempo?
R – Já.
P1 – E quando foi que você decidiu: é hoje?
R – É porque eu fiquei pensando. Rapaz, meu documento já queimaram, e, se eu falo de ir embora para eles, eles não querem deixar. Eu pensei: ou eu saio logo de uma vez, ou eu vou morrer logo. Eu botei na cabeça de sair, arrisquei minha vida e graças a Deus eu saí de boa.
P1 – E como é que fica o coração? Fica apertado? Como é que fica?
R – A gente fica nervoso, com medo. A gente fica se tremendo deles. Quando a gente vê um carro verde escuro, já pensa que ele mandou te matar e fica com medo. A pessoa nunca fica normal mesmo, não. Fica traumatizado.
P2 – E que horas que o teu coração sossegou?
R – Meu coração sossegou quando eu cheguei aqui no Centro de Defesa, e quando eu estava no padre lá. Mas, até quando eu vim de Buriti, eu estava nervoso.
P1 – E como você veio para cá?
R – Eu vim num ônibus. O padre que me ajudou, me deu dinheiro. Eu tomei um café de manhã, e ele me deu o dinheiro da passagem. Ele me disse: “Tu vai e pega o carro cedinho, que é a modo de ninguém saber, que eles já andam atrás de tu.” Eu entrei. Foi passando o ônibus, e eu dei com a mão. Aí, eu entrei e, graças a Deus, eu estou aqui.
P1 – E me fala uma coisa: você tentou se esconder no ônibus? Veio tranquilo? Como é que você fez?
R – Eu vinha vindo lá no ônibus, tinha duas cadeiras, duas poltronas. Eu vim deitado assim. Eu botava o pé do lado do vidro e a cabeça para cá. Para ninguém me ver. Mas tinha vez que eu levantava a cabeça para ver, mas, quando tinha muita gente e aqueles carros com vidro verde escuro, eu não levantava, não.
P1 – Eles usam aquele vidro escurão?
R – É, para matar o cara, para matar o cara.
P3 – Tem muito desmatamento?
R – Derruba, derruba, sim. Tem muito desmatamento lá.
P3 – E entram muitos caminhoneiros?
R – Lá, entram muitos. Agora, eles estavam puxando umas linhas lá em cima. Era só matona, tudo em riba lá. Agora está só tudo roça, que nós puxamos lá mesmo. Agora, tem só os pós das madeiras, que o madeireiro está puxando lá para ele.
P2 – O que ele faz com as toras lá? Porque, na verdade, é uma fazenda de gado, né?
R – As madeiras, eles vendem e vão botando pasto. Tem vez que bota roça, tem vez que... Mas ele não bota roça, não. Quem bota roça às vezes é o peão. Bota duas linhas ou três linhas.
P1 – Mas pode botar roça o peão?
R – Pode não. Ele não deixa, não. Só quem pode é o “gato” mesmo.
P2 – Como funcionava a caderneta? O que vocês podiam anotar lá?
R – Eu pedi um sabão para ele, e ele anotava a barra. Três reais o sabão. Qualquer coisa que pedia, um sabão para lavar as roupas, ele não dava. Tinha vez que tinha coisa na fazenda, e ele falava que não tinha. A pessoa trabalhava lá, com a calça suja, a roupa suja. Chegava lavar e largava lá de dia, e a roupa estava dura. Aí, vestia e ia trabalhar.
P2 – E roupas, em dois anos...
R – Roupa, eu tinha muita roupa porque, quando eu saí de casa, eu tinha muita roupa, e até hoje foi durando. Eu saí de lá e deixei uns dez calções, umas dez camisas, um vidro de perfume e um creme de axila.
P2 – Conta para a gente como foi que você machucou o pé, que fez o buraco na bota.
P1 – Deixa só eu perguntar uma coisa sobre a caderneta. Você estava devendo quanto lá?
R – Para o “gato”?
P/1 – É, só para a gente saber.
R – Não. Lá a barra de sabão é três reais. Minha conta todinha? Minha conta todinha só deu oito reais, porque eles não têm nada do que a gente precisa lá, não.
P1 – Mas oito o quê?
R – Oito reais. Que foram uma barra de sabão que eu comprei lá na mão dele e um CD de Eduardo Costa. Mas eles não deixam você sair de jeito nenhum.
P2 – Agora, pode contar, por favor, sobre seu machucado.
R – Eu estava trabalhando lá com as botas feias, todas rasgadas, e eu saí roçando. Foi quando eu pisei assim e, quando eu fui para a frente, o toco entrou. E aí eu fui derribar a bota e eu tirei o pau. Quando eu tirei, estava o buraco aqui. Tinha um velho que estava derribando também, eu pedi a gasolina, e só fiz pôr o dedo e meter a gasolina. Queimou, mas também não sarou na mesma hora, não. Passou um bocado de dia. E, quando eu chegava lá, a bota só tinha aquela salmourazona de sangue. Quando chegava de tarde, ficavam aqueles mosquitos dentro da bota, quando eu tirava o pé. Eu mesmo que fervi uma água. Foi assim que sarou, ele está bom. Graças a Deus, meu pé sarou.
P1 – Quem te ensinou a jogar gasolina para curar?
R – Ah, no serviço de lá, eles que ensinam a largar gasolina no pé, que fica bom. É o único remédio que tem lá. É gasolina. Então, se pegar algum corte, pode meter gasolina. Não tem outro remédio para o cabra usar lá.
P1 – Não tem álcool, outros remédios?
R – Não tem nada, não.
P2 – Tem outros machucados que você fez por lá?
R – Tem um outro da foice. Esse aqui é besteira mesmo. Esse aqui é da “junqueira". Quando engancha um pau, bate lá mesmo, ele arranha. Mas esse outro aqui é o da foice. Na hora que eu fui, eu estava brocando, na hora que eu levei para cortar aqui, eu segurei no pau e quando eu disse... Foi mesmo aqui a pontinha dela, mas não pegou de força, não. Só fez triscar, não enganchou com força, não. Só triscou. Eu subi ligeiro, fui amarrar um pano e trabalhei o resto da tarde.
P2 – E o que vocês conversavam na hora de dormir, na hora de trabalhar?
R – Eles só chamavam os caras de urubu. “Esse urubu, essa desgraça.” Só trata o cabra assim, não trata o cabra pelo nome, não. Diz: “Rapaz, um peão desse, besta fera de morrer.” É só assim que trata o cabra, jurando morte.
P2 – E com os outros trabalhadores, entre vocês, conversavam sobre a família?
R – Não, eles só contavam que ia melhorar, mas nunca melhorava. Eles diziam: “Vai melhorar para vocês, nós vamos assinar carteira.” Nunca melhorou, não. Eu estava lá com dois anos e estava ficando cada vez pior. Lá tem um freezer, mas se o pessoal pensa em pegar uma água gelada... Pode mandar meter logo uma bala na cara do cabra, porque ele não quer que ninguém pegue água gelada para levar para beber, não. Tem um poço cheio lá embaixo, e a gente faz só encher a garrafa e levar para o serviço água quente. Televisão, ele liga às seis horas e, sete horas, ele já tranca também. Ninguém assiste. Só assiste o que ele quer, e são poucas coisas que a gente faz do jeito que a gente quer. Café também. Não tem merenda de manhã, não tem direito o que comer. É ruim demais lá.
P1 – José, de onde eram os outros trabalhadores? Eram do Piauí, eram de Açailândia?
R – Rapaz, tem tantos trabalhadores, que tem uns que dizem que são de um lugar, tem outros que dizem que são de outro lugar. Tem muito, de muito lugar lá, eu não sei informar tudinho. Agora, eu sei que não são de lá mesmo, não. São tudinho peão rodado.
P2 – E, agora, para pensar em um novo trabalho, um recomeço, qual a perspectiva que você está sentindo?
R – Minha expectativa de recomeçar um trabalho é a modo de ver, depois desses dois anos de trabalho, o que a justiça vai fazer por mim. E vou tentar levar minha vida. Levar minha vida, esperando o que a justiça vai decidir. Eu vou morar, vou para casa, que nem a mulher daqui me falou. A mulher disse que vai me embarcar hoje. Eu vou para casa e vou esperar o ofício dela, e qualquer coisa, quando a justiça chegar e resolver, se for para eu ganhar tanto, é tanto. E eu sou um cara satisfeito. Só que eu procurei meus direitos porque eu não estava aguentando mais.
P1 – José, você quer voltar para Floriano?
R – Eu quero.
P1 – Você está com saudade de lá?
R – Rapaz, eu estou com saudade demais.
P3 – Pretende estudar novamente, voltar para a escola?
R – Eu pretendo estudar, mas eu só vou resolver estudar depois que resolver isso aqui logo. Para ficar com a cabeça calma, porque não tem como eu, estando lá no meu estudo, e ficar prestando atenção em negócio de serviço, não. Eu quero ver logo como é que eu vou ficar, como é que nós vamos fazer. O que a justiça vai fazer com o dono da fazenda, e ver o direito de cada trabalhador que tem lá dentro.
P1 – Você já falou com sua mãe? Tentou ligar?
R – Eu já tentei ligar, mas o numero do telefone não pega, não. Eu já tentei falar com ela, mas não pega, não.
P1 – Por quê? Você acha que está com o número errado? Acha que mudou?
R – Eu acho que mudou, ela mudou o número.
P1 – Quem foi que te ajudou a achar o número?
R – Foi o promotor, o promotor de justiça que me ajudou lá. Eu, sentado, ia falando para ele, e ele ia discando, e ninguém atendia, não.
P1 – José, me fala uma coisa. Hoje, estamos no Centro de Defesa, mas você tinha noção, quando você estava na fazenda, de que aquilo era trabalho escravo, trabalho ilegal? O que você pensava que era aquilo?
R – Eu acho que aquilo era um serviço escravo, acho que não tem um ser humano para aguentar aquilo ali, não. O cabra aguenta porque é rodado mesmo. Mas ali não é serviço para o cabra dizer que está satisfeito, não. É um serviço escravo, o cabra trabalhando é humilhado sem poder fazer nada.
P1 – Você já tinha ouvido falar de escravo?
R – Eu já tinha ouvido falar de escravo, porque dizem que escravo era o bicho que apanhava. Ainda, graças a Deus, que não chegaram a bater, não. Só chegaram a ameaçar. Dizia que ia cortar a cabeça do cara de foice, dizia que iam abrir um periquito na cabeça do cara de foice. Eu fiquei com medo também. Muitas vezes, eu não dormia, ficava pensando. Muitas vezes, eu ficava pensando em fazer coisa ruim, mas, graças a Deus, nunca deu certo, não. E nunca tentei fazer. E, graças a Deus, a única coisa que eu tentei botar na cabeça foi sair. E eu consegui sair e, graças a Deus, eu estou aqui no Centro de Defesa e estou mostrando para outros cidadãos. Mais à frente, algum dos meus amigos que estiverem me ouvindo, prestem atenção e vejam que todo cidadão tem o seu direito. Vamos trabalhar, mas não vamos trabalhar para morrer e nem como escravo.
P2 – Sabe o que eu lembrei que tínhamos conversado? Você não chegou a comentar se o pessoal dava pinga. Como o pessoal fazia vocês trabalharem tanto?
R – Lá tinha um canote de 50 litros de cachaça. Dessa cachaça da terra. Mas eles tiraram, porque disseram que a Federal estava no Buriti. Eles ficaram com medo e tiraram.
P2 – Mas a galera “cachaçava” muito?
R – Não. Eles davam dois litros de cachaça para beber, e pronto. O cara bebia e, se amanhã aguentasse trabalhar, ele trabalhava. Se não, ele não comia e ficava só ali na sua rede.
P2 – A comida também não era tão legal?
R – Não, era não. Era arroz e feijão. O sal que eles colocavam é desse sal de pacotinho de 25. E o sal que ele colocava para a gente comer era o sal que botava para boi. Botava aquele sal para a gente na hora de comer. A gente come porque é o único sal que a gente bota. E a gente não pode fazer nada.
P2 – Conta um pouco: entre você e o pessoal que trabalhava, dava para conversar um pouco?
R – Não, porque não dava tempo. Não dava para conversar, não, porque ele não deixa a turminha ficar perguntando.
P2 – Nem na hora de dormir? Conversar baixinho no ouvido?
R – Não, na hora de dormir, a conversa é pouca, porque o homem é zangado, é só chegou. Todo mundo chegou, deitou na rede e dormiu. Não tinha muito o que falar, não.
P1 – Você tinha sonhos, pesadelos?
R – Teve, teve uns pesadelos lá. Tinha uma noite que eu estava lá deitado na rede, eu estava acordado. Para mim que eu estava assim, que eu estava saindo de lá. Quando eu levantei e abri a porta, para mim, é como se tivesse uma porta. E eu levantei, e tinha um homem sentado na pedra. Quando eu olhei para ele, que eu dei um gritão assim, eu caí para trás. Quando eu caí para trás, foi a hora que eu abri os olhos e estava dentro da rede. Foi só mesmo ilusão na cabeça.
P1 – O que você achou que era?
R – Sei lá, alguma coisa avisando a gente. O lugar em que eu estava ali me deixou assombrado. Até hoje. Eu vou ficar traumatizado. Só que não estou muito traumatizado, não. Mas dá para ficar totalmente abalado.
P2 – Muita força...
R – Muita força.
P1 – Você acha que eles estão falando de você?
R – Eles estão, eu acho que eles estão falando muito “d’eu”. Falando muito “d’eu” numa hora dessa.
P2 – Você foi o primeiro a fugir da fazenda?
R – Teve um, uma vez, o Raposa, que fugiu e disse que ia denunciar a fazenda. Mas nunca mais viram esse cara. Ninguém sabe o que aconteceu com ele.
P2 – Como é que ficava no fim de ano, Natal, aniversário? Nada?
R – Não, ninguém tinha aniversário, não. Tinha vez que ele levava umas cervejas para ele mesmo e um canote de 50 litros de cachaça para nós. Mas nunca teve de dizer assim: “Rapaz, hoje nós estamos bebendo aqui por conta do cabra, o nosso patrão, estamos bebendo por conta dele.” Não, nada. Até uma coisa assim, pedi para costurar uma roupa, vai para a nota lá. Bota que, se for 15, ele cobra 25 do cara. Se for um preço, o cara cobra muito mais. Ele é assim. Lá, eles não cobram tudo o mesmo preço, não. Que a foice aqui no Buriti era dois reais, ele nos cobrava 20. Daí, já ia para a nota.
P2 – Nesses dois anos, você viu dinheiro vivo?
R – Eu nunca cheguei a pegar 400 reais de uma vez, não. Era de troquinho. O dinheiro “mais grande” que eu peguei lá foi de 250 contos, porque tinha um rapaz novo lá e foi fazendo a cerca com ele. Daí, me deu todo o dinheiro. Mas, depois disso, nunca mais deu dinheiro certinho, não.
P1 – E o que você fez com o dinheiro?
R – Com os 200? “Oxente”! Nós mandávamos trazer cachaça. Pagava fumo, pacote de fumo, barra de sabão.
P1 – Pagava despesa.
R – É, pagava despesa.
P2 – A casa do “gato” ficava perto de onde vocês ficavam?
R – A casa do “gato”, ele dorme lá dentro, e os peões dormem lá fora. Mas agora ninguém está dormindo dentro, porque ele tem medo de os cabras saírem fora. Então, está dormindo lá fora. É um revólver aqui do lado, uma 20. Tem um fuzil lá que atinge até 500 metros, e o cabra fala que atinge até mil metros. Se ele não puxar, é quando o cara tem sorte.
P2 – O que você acha que as pessoas pensam para fazer esse tipo de coisa?
R – Eu acho que essas pessoas, elas pensam assim. Pensam que, porque, apesar de ter muito dinheiro, pensam que são donos do mundo. Pensam que compram Ministério de serviço. Disse que eles compram esses pestinhas aí. Mas eu acho que a Federal não tem dinheiro que compre, né?
P1 – A Polícia Federal?
R – É, ela é séria, a Polícia Federal é séria, eu acho. Eu nunca ouvi dizer que compraram a Polícia Federal.
P1 – Do pouco de TV que você via, você chegou a ver a ação da Polícia Federal?
R – Eu via, eu via. Eu me sentia alegre porque é do tipo de pessoa que a Federal não liga para dinheiro. Se errou, ele tem que pagar por seus erros. É uma polícia ótima, uma polícia de muita competência e, graças a Deus, está cuidando de nosso país.
P1 – E você tinha fé de encontrar a Polícia Federal no seu caminho?
R – Eu tinha fé que ia encontrar, mas, se eu encontrasse só um ou dois, era arriscado nós morrer mesmo, porque ele, o moço lá tem um fuzil, e tem até aquele riflezinho surdo que só faz assim, “tchum”. Lá é perigoso demais.
P2 – E agora é hora de recomeçar, né?
R – Agora, eu vou tentar recomeçar, ver o que o Centro de Defesa faz, o Ministério Público, e a justiça, os oficiais de justiça. Ver como é minha luta. E espero que eles deem muita força para mim e que prendam esse cara. Não pode um homem desse, que está comprando o Ministério, está comprando todo mundo. Que a Federal está aí. Não pensa que ele tem muito dinheiro, porque ele não vai comprar ela, não.
P1 – José, conta para a gente como foi chegar no Centro hoje? Você estava no ônibus, meio desconfiado, aí você chegou em Açailândia pela rodoviária com a indicação do padre e do promotor para vir ao Centro. Como foi?
R – O padre foi quem me ensinou aqui. Era só para eu dormir lá porque de noite é perigoso. Aí, eu dormi na casa do padre. Ele me chamou e disse: “Bora, meu filho.” Na casa dele, eu cheguei, banhei, almocei, quer dizer, jantei. Almocei e jantei lá, porque eu comi três vezes.
P1 – Mas e aqui em Açailândia?
R – O padre tinha me dado o dinheiro para eu pegar o moto-táxi e vir aqui.
P1 – Mas, chegando ao Centro, com quem você conversou?
R – Chegando aqui, eu encontrei logo essa mulher ali. Mas eu tinha um cartão que tinha o nome aqui mesmo, que eu esqueci agora. A Carmen, Dona Carmen, uma ótima pessoa que me ensinou. Depois, ela me falou para ficar aqui que elas resolviam. Dormi aqui, e eles disseram que iam me embarcar a modo de eu ver esses negócios. E estou aqui esperando.
P1 – Ela está te orientando?
R – Está me orientando para ver meus negócios na justiça, me dando muita força. É uma pessoa ótima, e espero que, graças a Deus, espero que cada vez mais vá para frente o trabalho do Centro, porque são pessoas de muita competência e vocês também, que estão aqui comigo sentados, né? E que nós vamos tudo para a frente, para que meus amigos que estão no meio de uma fazenda, numa carvoeira, o que deve fazer para denunciar, para não ficar com medo de morrer. Porque, se tiver medo de morrer, o cara tem medo de morrer mesmo, mas, se ficar com medo, é cada vez pior o cara ficar aguentando.
P1 – Você acha que vai ficar um tempo aqui em Açailândia?
R – Eu acho que eu vou rápido para casa, que ela disse que era para eu embarcar ontem. Ela disse que, depois de 12 dias, era para eu ligar e conversar também com o assistente social de São Luís e Teresina. Qualquer coisinha, quando eu chegasse lá, era para ligar para ela, e eu resolvia vir mais eles para cá. Qualquer coisinha, nós vamos até a fazenda. Eu ia com ele, no carro com vidro escuro, a modo de eles não me verem. Aí, eu estou tranquilo. Eu cheguei aqui, ela me deu um apoio. Já almocei, comi bastante num restaurante na frente da rodoviária.
P1 – O que você comeu?
R – Comi frango, comi carne, salada, macarrão, comi um monte de coisa.
P1 – O que você teve vontade de comer de ontem pra hoje?
R – De ontem para hoje, eu comi tudo. Carne, eu tenho vontade de comer um monte de coisa gostosa, mas é assim mesmo. Eu não tenho muitos prazeres na minha vida, não. O que eu tenho prazer é receber meu trabalho, ser um cidadão comum, ser um tipo de cidadão respeitável e viver a minha vida. Só isso.
P2 – José, fala alguma mensagem, pela experiência que você está tendo, e quer que as pessoas vejam.
R – Eu estou falando aqui para os meus amigos que estiverem me ouvindo, que é para vocês terem força, serem fortes que nem eu, e chegarem e encararem e denunciarem os patrões que acham que são melhores do que a gente. Não é porque eles têm dinheiro que são melhores que a gente. Pode fazer isso não. Pode procurar o Centro de Defesa, que nós temos nossos direitos e estão aqui para ajudar. Tem a Polícia Federal também, que é muito competente e ajuda a gente nesses casos. E a gente nunca pode desistir.
P1 – Qual é o seu sonho?
R – O meu sonho é ter uma casinha para modo de morar mais minha mãe, mais minha irmã, e viver minha vidinha sossegada. Comprar uma casinha e dizer: “Mamãe, essa é a casinha da senhora.” E nós vivermos uma vidinha sossegada, sem perturbação, sem ninguém ameaçar ninguém. E viver nossa vida.
P1 – Pescar de novo no rio?
R – Pescar de novo no Rio Parnaíba.
P1 – Você acha que faltou contar alguma coisa, José? Que a gente não tenha perguntado, que você queira falar ainda?
R – Eu acho que não.
P1 – A gente queria agradecer muito por você estar contando sua história depois de uma luta para chegar até aqui.
R – Mas, rapaz, não, eu também agradeço vocês. São pessoas gente boa que me deram mais força, mais apoio. As pessoas aqui do Centro de Defesa do Trabalhador, que já me ajudaram muito e estão ajudando. Espero que, cada vez mais, a modo de algum amigo meu que estiver com dó de entregar um patrão, fazendeiro ou dono de carvoeiro, ele não vai ter pena dele, não, que ele não tem pena da gente, não. Ele vai botar logo para matar o cabra. Então, a gente que não tem que ter pena de entregar para a justiça. Só isso que eu digo. E vamos ter fé em Deus e vamos para a frente, que com certeza a gente muda esse mundo.
P1 – Nossa, com certeza, viu? Obrigada.
R – De nada.
P2 – Muita força.
R – Para vocês também.
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