Entrevista de Roseni Lima de Oliveira
Entrevistadoras: Paula Ribeiro e Elivanda Canuto
11/08/2021
Projeto Mulheres da Maré, Dignidade, Resiliência e Arte
Entrevista número MDRA_HV010
00:01:54
P/1 - Boa tarde Roseni, gostaria de agradecer a sua disponibilidade, aceitação para participar do nosso projeto de pesquisa, compartilhando conosco um pouco da sua história de vida, da sua trajetória de vida pessoal e profissional, e agradeço imensamente a sua disponibilidade.
R - Não tem de que, eu que agradeço de poder estar disponibilizando e que isso sirva de alguma forma para agregar algum valor à história da nossa comunidade.
00:02:30
P/1 - Roseni vamos começar do comecinho, nome completo, local e data de nascimento por favor?
R - Bom, eu sou Roseni de Oliveira, nasci no Rio de Janeiro, no dia 21/12/1957, mas oficialmente eu fui registrada, dia 26 porque as pessoas esqueciam muito a data dos aniversários, dos dias de nascimento, pai que registrava, então eu sou, oficialmente do dia 26, mas eu comemoro dia 21/12, e eu tenho o maior orgulho porque eu digo assim - eu nasci no dia do solstício de verão e por isso que eu adoro sol, adoro calor, adoro luz, adoro cor, eu acho que isso tem a ver com a questão do nascimento. Nasci no Hospital Souza Aguiar, a minha mãe me contou, sou filha do senhor Adevanir de Oliveira e da dona Maria Tereza de Lima e eu fui criada pela minha avó, eu fui primeira filha, primeira neta, primeira sobrinha. A minha mãe na época acho que tinha 18 anos, e o meu pai tinha 20 anos quando eu nasci e eles eram um casal jovem, mas que viviam os conflitos da maioria dos casais jovens que não tem uma estrutura de vida estabilizada, e brigavam, um para casa da mãe o outro também ia para casa da mãe não sei o que, depois voltavam, e nessa história toda sempre eu ia para casa da minha avó. Em uma dessas idas e vindas a minha mãe engravidou de novo, a única irmã que eu tenho por parte de pai e mãe que se chama Rosane, e eles ficaram nessa até que se separaram de vez, e minha avó na época falou assim “olha ela não sai daqui porque vocês não têm juízo, e essa menina fica para lá e para cá, e a mãe dela trabalha e ela vai ficar pelas mãos dos outros? Então ela vai ficar aqui com a gente” e eu fui criada pela dona Sebastiana de Oliveira que infelizmente não está mais entre nós, que foi a minha mãe, a minha mentora, uma das pessoas que moldou a minha personalidade e que me deu...como é que eu vou dizer? Uma garra, uma força e uma gana de viver. Que eu penso assim, talvez se eu fosse criada pela minha mãe eu não seria a Roseni que eu sou. Eu nasci...a minha família morava lá na favela do Esqueleto, é mais ou menos eu estava com 04 para 05 anos, ou já tinha completado 05.
00:05:56
P/1 - Primeiro sobre o nome, conhece um pouco a história do seu nome, Roseli? Por favor.
R - Não, o meu nome foi uma escolha mais da minha tia, e porque era um nome comum nas famílias, minha família é de origem mineira, então é um nome comum, porque aqui no Rio eu conheci poucas Rosenis, mas quando eu fui nas cidades lá do interior eu conheci várias Rosenis, e eu falei então já era a tradição, inclusive eu tenho uma tia que regula a idade comigo, ela é, não sei agora te dizer se é meses mais nova ou meses mais velha, e ela também se chama Roseni, eu acho que foi um convencimento da minha tia que veio a ser minha madrinha e que me deu esse nome. Eu eu nunca tive problema com meu nome não, eu sempre gostei. Esse sobrenome, em uma época perguntei a minha avó e a minha avó dizia que não sabia, mas depois com as vivências que a gente vai tendo, eu descobri que a família que a minha avó vinha que tinha o nome de Oliveira, era porque Oliveira era o nome do senhor da fazenda em que eles eram colonos, quer dizer, a minha avó e nem a mãe dela não foram escravos, mas eram colonos, trabalhavam nas fazendas, então a maioria não era nem registrado, então os patrões registravam, e era que um resquício da escravidão, porque era a Caetana de Oliveira que era minha bisavó, mas é porque pertencia a fazenda, era como se fosse, isso é uma tristeza a gente ter que falar isso, mas eu descobri que existe isso na nossa história, porque Oliveira é um nome tradicional português, e eu falei - a gente tem origem? A minha avó dizia “é, em parte e não sei o quê...”, mas é porque ela não tinha acesso a essa informação, e eu creio que seja por causa disso, porque eles eram colonos de uma fazenda que o proprietário tinha esse sobrenome, e foi quem registrou os pais dela e os avós dos pais dela, eles eram negros, a minha avó já era morena clara, minha avó era assim tipo da sua cor, e depois de grande eu fui descobrir que a minha avó não era da família da qual ela nasceu, porque ainda existia prática dos donos das fazendas abusarem sexualmente das empregadas, também um resquício da escravidão, mas falei - o nosso Brasil acho que a maior parte é construído dessa forma, Infelizmente.
00:09:24
P/1 - E você sabe de que cidade eles eram?
R - Ih menina, eu agora não estou lembrada não, mas eles eram, acho que a minha avó era de Porciúncula.
P/1 -Essa avó materna?
R - Paterna, que foi a que me criou. A minha avó materna eu tive muito contato, quando minha avó materna morreu eu ainda morava lá no Esqueleto, então ela morreu, aliás não, minto, eu já morava aqui, mas eu convivi com ela muito pouco lá no Esqueleto, porque logo em seguida a gente se mudou para cá. Eu me lembro como se fosse hoje, um dia minha mãe chegou 08 horas da noite para avisar que a minha avó tinha falecido, foi de problemas de pulmão que matou muita gente na época, tuberculose e me lembro que eu fui, o primeiro enterro que eu me lembro que eu fui, minha avó fez questão de me levar para o enterro da outra avó, mas a gente conviveu muito pouco, eu convivi um pouquinho mais com meu avô, que ele tinha, na época a gente falava uma birosca lá no Esqueleto, e eu convivi pouco com a família da minha mãe, porque como eu vim para cá na época do processo de remoção, a família da minha mãe foi morar na Vila Kennedy, eles escolheram ir para lá, o meu avô por parte de mãe tinha uma condição financeira um pouquinho melhor, porque lá eles iam morar em umas casas que eram os conjuntos habitacionais que era da Cohab, e que pagavam a mensalidade, só que o meu pai lá no Esqueleto ele trabalhava na feira, ele era feirante, então ele não tinha uma renda fixa determinada oficial, e aqui as pessoas não iam pagar nada, porque a Nova Holanda como...e acho que a Cidade de Deus e a favela de Ramos, foram construídas mais ou menos dentro dos mesmos moldes, eram centros de triagem com que as pessoas vinham para cá, e iam sendo construídos vários conjuntos habitacionais, e que as pessoas iam ter o direito de escolha de acordo com o seu poder aquisitivo ao padrão de casas ou apartamentos na época, só que essas políticas se perdem porque são políticas eleitoreiras, um candidato ganha e produz uma certa política e faz, mas termina o mandato dele, entra outro e a história toda muda e a gente foi ficando aqui, no início era a Cohab, depois virou CHP , acho que agora não me lembro a ordem é BNH entendeu? Mas sempre tinha uma política, mas a Nova Holanda sempre foi ficando, e era umas coisas assim que as pessoas não podiam fazer melhorias, a única melhoria que era permitida era você fazer o seu quintal, eu me lembro que o meu avô fez um quintal nos fundos e uma varandinha na frente.
00:13:10
P/1 - Antes da gente falar um pouco das suas memórias de infância aqui, eu queria ainda tratar um pouquinho do período na favela do Esqueleto. O que você tem de memórias como criança na favela do Esqueleto, e se você saberia dizer o porquê a sua família foi para essa favela?
R - Lá na favela do Esqueleto eu tinha uma vida legal, porque como meu pai era feirante, e lá em casa minha avó trabalhava, a minha tia que era irmã do meu pai e meu tio trabalhavam.
P/1 - Como feirantes também?
R - Não, minha avó trabalhou em fábricas e trabalhou em casas de família, e meu tio trabalhou em algumas instituições que na época eu não lembro, e a gente como conviveu pouco também não foi comentado, e a gente tinha um padrão de vida legal, porque nunca faltou nada dentro da minha casa.
P/1 - Como era a casa?
R - A casa era grande, a casa tinha uma sala grande, tinha um quarto da minha avó, que era o meu quarto também, e o quarto da minha madrinha, e o quarto do meu pai e do meu tio, tinha um banheiro do lado de fora, mas era assim do lado, você saia pela porta da cozinha, tinha a porta do banheiro, tinha um quintal grande, e em uma parte do quintal tinha uma outra casinha que morava uma outra família que não eram parentes, mas que precisaram, minha avó cedeu o espaço para que eles fizessem o barraco deles ali e era tudo bonitinho, o chão era cimentado, para uma pessoa de uma classe pobre, e na época pelas outras casas que eu ia, porque eu ia em muitas casas que era chão de terra, lá em casa era chão cimentado, minha avó encerava o chão, e muitas casas que eram feitas assim, lá em casa tinha mais ou menos um padrão das ripas da madeira, tinha a janela direitinho não sei o que, as casas que eu ia muitas eram vários tipos de madeira e muitos com pedaço de zinco e lata, antigamente umas latas de 20, aquelas latas aberta ali para completar e plástico não sei o que, então era umas construções meio complicadas e a maioria das casas também não tinham banheiro, era um banheiro em um determinado ponto que servia mais de uma família, e as pessoas na época ainda usava muito penico, que hoje o pessoal fala assim, (mas eu achava aquilo interessante), e hoje eu olho, faz parte da história, mas por exemplo, a minha avó trabalhou em uma empresa que eu não esqueço o nome Myrta Sociedade Anônima, que produzia sabonete, pasta de dente, era acho que dá Kolynos, que fazia o sabonete Eucalol, é engraçado, as memórias antigas elas são bem legais, e a gente tinha um padrão de vida assim, era pobre, não tinha condições de ter uma moradia regular, mas a gente tinha fruta a vontade em casa, porque o meu pai trabalhava na feira, então sempre existe uma coisa do escambo dos feirantes, que eu fui descobrir isso já também depois de grande, e eu sempre andei igual uma bonequinha porque eu era a única criança da família, foi nascer outra criança depois que eu já tinha 06 anos, e aí nasceu um menino, então eu continuei mantendo o meu trono.
00:17:58
P/1 - Como é que era uma roupinha?
R - Eu me lembro que eu andava muito bem vestida, olha na época a gente andava com meias, com luvas, tinha umas bolsinhas assim de criança e tinha uns chapéus, tinha uns como é que chamava agora é tiara, mas na época era outro nome, solidéu, e tudo enfeitado com flores, e umas roupinhas assim de renda, eu me lembro que eu tinha roupas assim, sainha com coisa plissado, minha madrinha costurava, então eu tinha um vestido que eu não esqueço dele, ele era verde, ele tinha um trabalho assim de serviço manual, casa de abelha, então a gente usava muito anágua, porque usava aqueles vestidinhos, mas tudo armadinho, eu digo assim, olha, eu vivi a minha vida toda na favela, mas eu nunca passei necessidade de nada. Se algum momento a minha família teve uma dificuldade, alguma coisa, eu fui poupada, eu não cheguei nem a perceber, eu sempre tive a educação no colégio que eu estava, eu tinha meu material escolar, eu tinha meu uniforme, eu tinha meu calçado, e eu sabia de histórias de crianças que eram 02 irmãos, e antigamente o uniforme era muito rígido nas escolas, então ia cada um com um sapato, um pé calçado e um pé de chinelo, porque eles só tinham um sapato, e aí eles chegavam, “ah não posso, estava com o dedo enfaixado porque eu machuquei o pé”, então tinha essas coisas, até que um dia a professora descobriu porque eles trocaram o pé que estavam machucados, se equivocaram. Eu sempre tive meus agasalhos, eu sempre tive brinquedos a vontade, eu não posso reclamar da minha infância, por exemplo, a infância que eu me lembro bem nos primeiros momentos foi lá no Esqueleto. Então lá no Esqueleto sempre aos finais de semana, às tardes, a minha tia que é minha madrinha, me levava para brincar, tinha uma praça que eu fui descobrir depois de grande, que era a Praça da Bandeira e outro dia eu passei lá na Praça da Bandeira e eles modificaram tudo, mas eu olhei que ainda têm, agora eles fizeram um jardim, porque eu me lembro que tinha um banco circular na Praça da Bandeira e eu me lembro que eu andava ali em cima daquele banco, me equilibrando. Tinha uma outra praça que eu ia brincar muito, que eu era levada para brincar que eu não sei dizer, mas é logo ali para o lado do Estácio, por ali, eu não sei dizer exatamente que eu também descobri depois de adulta quando eu fui lá que tem um hospital bem em frente a essa praça, não sei se é Cardoso Fontes, é um hospital que pra gente aqui não é de muita rotina, mas eu fui para visitar um afilhado e eu falei - ué, eu reconheço esse lugar, e eu me lembro que aquilo estava na minha memória, mas como eu não via, eu me lembro que era diferente, mas que eu brincava lá e agora fundamental foi a UERJ, a primeira vez que eu visitei a UERJ, quando eu entrei na UERJ eu entrei por uma portaria que eu não reconheci, mas quando eu saí, eu saí por um lugar que tinha um pátio enorme, tinha umas pilastras redondas enormes, e quando eu cheguei ali eu falei - gente eu já estive aqui, eu conheço isso aqui, e eu fiquei voltando na minha memória, e eu me via pequenininha, abraçada, que eu não conseguia nem abraçar a pilastra porque eu era bem pequena, e quando eu cheguei em casa eu perguntei a minha avó - vó eu estive em um lugar assim que eu tenho certeza que eu já fui lá, que eu reconheci aquelas pilastras, que eu brincava.
Ela: - Onde é que você foi?
- Aí eu falei - fui lá na UERJ.
Ela: - O que é a UERJ?
- É a Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Ela falou “a gente veio de lá.
Aí eu falei - Como assim? É porque a obra ficou parada há muito tempo, então a obra abandonada, as pessoas com necessidade de morar, a favela do Esqueleto, o nome Esqueleto porque era o Esqueleto da UERJ. Foi ali no entorno daquela obra, e ali ficou, esse pátio ficou uma área de lazer que as pessoas utilizam-se, as crianças jogavam bola, as pessoas jogavam baralho, então era aquele centro de convivência da comunidade na época, comunidade não, porque ninguém nem falava isso, era favela mesmo. Eu me lembro bem que eu corria para lá e para cá, eu vivia de joelho ralado, de galo na testa, porque eu era bem espevitada, e é uma lembrança bem forte que eu tenho de lá desse lugar, me lembro que eu tinha um cachorro, um cachorrinho pequenininho que corria atrás de mim, a gente brincava muito ali, e uma outra lembrança bem forte foi no dia que a gente se mudou.
00:23:40
P/1 - Se você puder contar um pouquinho o que se falava sobre a remoção, o que se falava daqui da Nova Holanda, que se ia para onde?
R - Que a gente ia para um lugar longe pra caramba, que não tinha nenhuma referência com as pessoas, e que ia ser complicado a questão do trabalho, porque meu pai…”nossa, como é que eu vou vir pra cá trabalhar”, porque ele trabalhava nas feiras de lá pra zona sul, não tinha convívio na zona norte, quer dizer, isso foi histórias que eu fui ouvir depois, e de tanto ouvir meu pai contar essas histórias, porque na época eu não tinha noção de nada, a gente ia se mudar, e pra criança toda mudança é bem-vinda, então vamos mudar, agora foi traumatizante para mim o dia da mudança, porque chegaram umas pessoas que a gente nunca viu com um caminhão e iam pegando as coisas da gente, e muitas coisas minha avó ainda estava arrumando, muitas coisas se perdeu, e eu me lembro…”vocês por favor cuidado com as minhas coisas, vocês vão quebrar minhas coisas”, quebraram o filtro de água, o filtro de barro da minha avó e minha avó xingou, “seus *****, vocês tem cuidado, a gente é pobre, mas as nossas coisas é comprada com sacrifício”, mas era tudo assim a toque de caixa, jogava as coisas no caminhão, dependendo da família, tinham coisas de duas famílias no mesmo caminhão de mudança, e não eram caminhões enormes, porque também tinham muitas pessoas que não tinha muitos pertences, mas eu me lembro que isso foi assim agressivo, entendeu? Ver a forma como eles lidavam. Eu me lembro que eu peguei uma bolsa com as minhas bonecas e fiquei grudada, falei - ah minhas bonecas não, não vai jogar minhas bonecas, não vai quebrar minhas bonecas.
00:25:35
P/1 - Vocês foram juntos?
R - Eu não lembro bem se a gente veio no caminhão, eu não lembro, porque também como eu era muito pequena, eu não sei se eu dormi, eu sei que eu cheguei aqui, aí quando eu olhei era um barraco de 02 quartos, tinha uma coisa também, como o meu pai...na casa da minha avó tinha um quarto que era tipo um celeiro, que era onde o meu pai guardava as mercadorias que ele trabalhava na feira, porque o meu pai era camelô, mas depois ele começou recrutar uns meninos para trabalhar como camelô na feira. Então, eu me lembro que na minha casa geralmente tinham dias que ficavam aquelas pessoas separando as mercadorias, arrumando as coisas, então tinha um quarto que era só aquilo, e na época o meu pai estava para casar e a minha madrinha estava para casar, e como meu pai, o trabalho dele dependia da proximidade que ele morava, ele ganhou uma casa, que era uma casa de comércio, porque a Nova Holanda quando foi feita, foi feito esse pedaço, esse primeiro pedaço aqui, e um pedaço que é lá depois da escola Nova Holanda que eram umas casas, mas não eram moradias, é para quem tinha comércio lá, então tinha uma casa para produzir o seu comércio aqui, e a minha madrinha como estava para casar, o casamento da minha madrinha foi o primeiro casamento que aconteceu na Nova Holanda, aí ela ganhou uma casa, um barraco que era do lado da casa da minha avó, ela e o meu pai dividiram essa casa. porque ela casou pouco tempo depois, ele casou e o barraco era dividido ao meio para que eles continuassem a vida deles.
00:27:34
P/1 - Mas era de madeira? Como eram as casas aqui?
R - Era de madeira. Eu vi acho que foi hoje, uma chamada do Globo Repórter que vai acontecer na sexta-feira, porque era umas ripas assim encaixadinhas, era bonitinho o que eu ia dizer, pra gente que era criança, era um lugar que você estava protegido, tinha um telhado ali, os cômodos eram dois e meio por dois e meio, a gente tinha dois e meio de sala, dois e meio de quarto. Eu me lembro que o meu avô mudou a parede, fez o outro quarto menor porque não cabia o móvel de quarto dele, porque tinha um guarda-roupa, penteadeira, aquelas coisas e ele diminuiu o outro quarto, a gente tinha dois e meio de quintal dos fundos, também pela extensão do barraco, a largura da casa era cinco por dez de comprimento, isso tudo eu sei porque depois eu fui construir minha casa, então eu tive que medir isso tudo, e meu avô aumentou a sala, pegou um pedaço da cozinha, e abriu para um pedaço do quintal dos fundos, ele deixou também uma faixa de três metros, fez um banheiro e aumentou a cozinha, que a cozinha era menor na época.
00:29:17
P/1 - É isso que você falou, quer dizer, havia famílias e famílias dentro daquela tabela com muito mais dificuldades que vocês, mas o trabalho do seu pai permitiu viver melhor.
R - Isso, e a minha avó também, aí logo em seguida a minha madrinha começou a trabalhar, então trabalhavam, a minha avó, meu pai, meu tio e a minha madrinha.
P/1 - E a sua mãe?
R - A minha mãe eu via, ia ficar um pouquinho, ela ia lá visitar, mas a minha avó me pegou para ela, eu era da minha avó, porque a minha mãe ela continuou trabalhando em feira como camelô que era daqueles paraquedas, às vezes ela não tinha dinheiro para comprar mercadoria, ela trabalhava ajudando algum barraqueiro, e eu tenho memórias de eu e a minha outra irmã dentro de um caixote debaixo de uma barraca, uma memória assim muito vaga, mas eu falei - mãe aconteceu isso, não sei o que lá? "Aconteceu, porque às vezes eu tinha que ir trabalhar, eu estava trabalhando na barraca lá do seu fulano, e a pessoa que tomava conta de você não podia, e eu tinha que levar”. Então eles botavam um caixote, forrava e a gente ficava ali dentro daquele caixote, era por isso que a minha avó me tirou da minha mãe, porque ela dizia assim, “você com uma filha só é mais fácil se virar, com duas já fica complicado”, e ficava preocupada também, a minha avó ficava também preocupada, porque quando ela não arrumava ninguém que ela pagasse, mas mesmo pagando, minha avó, “que casa que a minha neta vai estar?”, e de estar pelas casas dos outros, que cada vez eu estava em uma casa, naquela época já existia essa questão de abuso de crianças, era muito vedado, mas depois eu falava: - Mas por quê você não me deixou com a minha mãe? “Não, a sua mãe não tinha condições e você não ia ser criada por ela, você era criada um pouquinho em uma casa, um pouquinho em outra casa.”
00:32:00
P/1 - Uma forma de te proteger, né? Isso. A sua mãe veio para Nova Holanda?
R - Não, minha mãe foi para Vila Kennedy junto com a família do meu avô, o pai dela, seu Raimundo que hoje em dia é falecido também. E por isso que a minha avó me tirou da minha mãe, porque ela dizia assim, “você com uma filha só é mais fácil se virar, com duas já fica complicado” cada bloco desse que hoje você ainda vê essas características, uma casa de frente para outra, eram aqueles barracos, mas a gente saía do lado de fora, era criançada, porque antigamente as famílias tinham 05, 06, 08 filhos, aquela criançada na rua, não tinha carro que vinha aqui dentro, só era o carro do governo quando vinha trazer mudança, porque continuaram trazendo mudanças, e a gente podia andar na rua à vontade, não tinha muito da gente ir longe, porque a criança é muito pequena também, não se afasta muito. Aqui onde nós estamos, isso aqui era um valão, não sei se alguém já te falou isso, que isso aqui era um valão, então a minha avó sempre recomendava, as outras mães também, “olha até antes do valão, não pode ir nem na rua do valão”, a gente brincava até a esquina dali, essa praça aliás aqui não, não era o valão, valão é onde é a praça. Aqui existia um galpão que era da Fundação Leão XIII, foi quem administrou essa coisa da mudança, da remoção, que administrou, gerenciou de alguma forma a obra de continuidade, porque eu me lembro que o meu tio, o meu padrinho e o meu pai, trabalharam na construção dos barracos da Nova Holanda desse lado, porque estava complicado para o meu pai na feira, o comércio aqui ainda não tinha muita gente, porque as pessoas não vieram todo mundo de uma vez, foi vindo aos poucos, então ele tinha a tendinha lá na rua antiga Rua D, hoje eu não me lembro o nome mais daquela rua, o lugar ainda estava se estruturando, então não estava dando para viver, ele veio trabalhar na obra de construção dos barracos, mas pra gente que criança era muito legal, mexeu com a vida de todo mundo, porque a minha avó trabalhava lá pra zona sul, eu me lembro que a minha avó lavou e passou muita roupa pra fora. Então muitas vezes eu ia com ela, que ela ia buscar, ia levar a roupa lavada e passada e ia buscar a roupa para trazer para lavar.
00:34:52
P/1 - E como é que é exatamente isso pro seu fornecimento de água? Como é que era esse serviço?
R - Aqui era precário de água, no início tinha até uma instalação, só depois eles foram enchendo muito, muitas pessoas, por quê como eles acharam que aquela prática deu certo, eles começaram trazer pessoas de outros lugares, porque a princípio era só o pessoal do Esqueleto, mas depois começaram a trazer pessoal de Macedo Sobrinho, Praia do Pinto, alguns lugares que eles provocavam certas catástrofes para trazer as pessoas, inclusive incêndios, essas coisas, e a água não dava conta, eu não sei se tinha um tempo da concessão da água, eu sei que teve uma época que a Nova Holanda era gente andando com latas d´água, balde é uma coisa que tinha na favela, acho que quem não morou na favela não sabe, chamava rola rola, que era uns barris de madeira, e que tinha umas talas de pneu que colocava de um lado do outro aquele barril na horizontal, tinha um ferro que enchia o barril e depois que puxava naquele ferro e ele ia rolando ali.
00:36:20
P/1 - Mas isso para pegar água?
R - Para pegar a água. Por quê? Como a gente tinha essa dificuldade que a água não dava vazão a quantidade de água que vinha, então a água só subia a noite, por fim não estava mais nem subindo a noite. Porque quem tinha um pouquinho mais de condições, começou a colocar bomba e a bomba puxa água, então quem não tinha bomba não tinha água, e ficou essa coisa, e era uma demanda importante aqui, porque sem água é muito difícil. Tem aqueles políticos que eu creio que ainda deve ter hoje em outras cidades do Brasil, que vinha inaugurar uma bica e todo mundo ia apanhar água naquela bica, ou então tinha algum vizinho que tinha uma condição melhor, que ele deixava uma bica do lado de fora para as pessoas poderem...e ele tinha bomba, tinha lugares que você ia e pegava aquela água normal, mas tinha lugares que você tinha que pagar para pegar aquela água, tinha um grupo de pessoas aqui, é o pessoal dos rolas, que eles vendiam aqueles rola d'água, porque tinham famílias que as pessoas não tinham condições de ir pegar, de estar carregando, e era água pra tudo.
00:37:43
P/1 - Como é que era a sua avó como lavadeira, quer dizer, ela era uma lavadeira?
R - É, ela era lavadeira e passadeira nessa época quando ela veio para cá, ela parou de trabalhar nas fábricas. A minha tia trabalhou para lá, trabalhou na Kibon, trabalhou em um monte de empresas, eu me lembro bem da Kibon que de vez em quando ela trazia umas coisinhas da Kibon, mas quando a gente veio para cá não tinha condição, hoje em dia isso aqui é uma maravilha, morar aqui, eu até hoje eu fico pensando, porque é uma concentração de pessoas muito grande, e não existe uma política pública que construa casas, e que eles consigam remover o pessoal daqui sem criar uma revolta, uma comoção até mundial, porque isso aqui é uma área super nobre, é uma área que você tem ali Avenida Brasil, condução para tudo quanto é lugar, você está aqui a 20 minutos do centro, e você está a 10 minutos do aeroporto, a 10 minutos também da UFRJ. Então, isso aqui é um lugar a nível imobiliário muito valorizado, só que se você for pensar bem, você olha isso aqui de cima parece uma rebimboca, tirando a parte da Nova Holanda você consegue ver, porque tem um arruamento todo mais ou menos dentro do padrão devido a origem, porque não foi uma favela de invasão, foi uma favela de remoção, então as pessoas vieram já tinha aquela coisa, mas a maioria dos lugares é uma casa por cima da outra, é beco, é muita gente, então é muita gente, eles não tem interesse de ter uma política habitacional, um lugar com a qualidade, e também porque a Nova Holanda ela foi uma das comunidades que se estruturou, que rompeu aquela dependência, porque antes da Fundação Leão XIII você não podia por exemplo, o teu chão era de terra, não, era de tábua, era umas tábuas corridas assim, mas aquilo com o uso, com lavar ia se estragando, você não podia fazer de cimento, as pessoas faziam obra dentro de casa escondido, fazia obra à noite. Tem umas histórias muito interessantes, por exemplo, tinha casa que você olhava por fora era um barraco, mas quando você entrava as paredes eram internas, foram levantadas, porque a Fundação Leão XIII dizia que não podia, justamente porque a pessoa iria se mudar, e aqui era CHP 3 Nova Holanda, Centro de Habitação Provisória. Por acaso eu soube um pouquinho mais da história, porque na época eu fiz um trabalho de colégio e você podia escolher o tema, e eu escolhi falar da Nova Holanda, aliás, não era bem da Nova Holanda, era de Bonsucesso, mas com foco voltado para Nova Holanda. Então, eu fui descobrir que isso era lá de uma proposta do governo Carlos Lacerda mancomunado com o Governo, agora eu não sei se era governo, eu não sei se ele era ministro, senador, o que que era, o Mário Andreazza, e essas políticas de fazerem realmente locais com condições dignas mínimas de moradia, e hoje a gente tem vários conjuntos habitacionais, por exemplo, o Engenho da Rainha, não sei se você já ouviu falar, a Cidade Alta em Cordovil, a Avenida Suburbana que o conjunto lá era conjunto da Suburbana, o Quitungo que é lá na Estrada do Quitungo, Itararé, então foram vários conjuntos habitacionais que foram construídos dentro dessa política só que não dava conta, e tinha interrupções porque mudava um governo e que não tinha interesse nisso e aí aquilo parava, depois saia aquele governo voltava outro, mas eu me lembro que quando eu era criança era Arena e MDB, porque acho que logo depois que a gente veio para cá, ou eu não sei se já era assim, teve o golpe, eu fui criada na ditadura não tinha nem noção do que era isso, mas depois que a gente cresce a gente vai vendo o que faz parte das nossas histórias, das nossas vivências.
00:42:49
P/1 - Roseni, voltando um pouquinho a sua infância na Nova Holanda, conta um pouquinho sobre a Avenida Brasil, a Baía de Guanabara por exemplo, vendedores ambulantes, tinha peixeiros, coisas que vocês, por exemplo, o que não tinha aqui, que tinha que ser comprado em outro lugar da cidade, por favor?
R - Olha, a Rua Teixeira Ribeiro, desde que eu me entendo por gente, sempre teve um comércio, e até hoje tem lojas que eu fico olhando assim, nossa, mas era aqueles barraquinhos, aquelas tendinhas, quitandas, mas sempre teve um comércio, porquê quando a Nova Holanda veio para cá já existia a favela da Maré, já existia o Parque União, não era essa grandiosidade, mas tinha sim outras comunidades, a Nova Holanda, muitas pessoas que tinham seu comércio lá, botava suas banquinhas e vendiam de porta em porta, eu me lembro que tinha o cara do sonho que vendia sonho que era “sonhão, sonhão, sonhão do tamanho de um avião”, “olha aqui o meu sonhão”, e eu não esqueça disso, que a gente ficava tudo doida porque quase não era permitido a gente comer doce, estar comprando coisas assim porque o dinheiro era tudo ali muito organizado, mas tinha um cara daqueles pirulito que bate aquela catraca assim, tinha o cara do pão doce, tinha o prestamista que era...depois que eu fui ver que era um judeu, era seu Salim que vendia coisas para pagar, se a pessoa recebia por semana ele pegava por semana, se era por mês ele pegava por mês, vendia 03 vezes mais caro, mas era a condição que as pessoas tinham.
P/1 - Prestamistas.
R - É, eram os prestamistas.
P/1 - E com o peixeiro, peixeiro?
R - É, era tudo era na Teixeira, mas tinha uns peixeiros que passavam com aqueles cestos de vime grande na cabeça, o peixeiro com aquelas balancinhas assim de pendurar, sabe? É muita coisa que hoje eu fico pensando assim, eu falei cara, eu tive uma infância maravilhosa, eu podia brincar na rua, eu podia ficar no verão, a gente podia ficar mais ou menos até oito, nove horas na rua, a gente brincava, as crianças hoje não sabem o que é isso, a gente brincava de pique esconde, pula carniça, queimado e corria para lá, para cá, brincava de roda e depois que o ano foi ficando mais... tinha um negócio de passar anel, pera, uva ou maçã. Isso aqui era um lugar livre, porque não existia criminalidade, no máximo que eu ouvia falar que eu não entendia muito bem, mas é porque tinha uns 07 anos, uns golpistas, estelionato assim de pequena monta, inclusive eu fiquei apavorada essa semana que eu vi o caso, acho que foi anteontem de um taxista que ele botava lá coisa na maquininha e que ele não foi preso, foi respondendo em liberdade e ele confessou, foi preso em flagrante, foi levado para delegacia, mas aí apareceu um advogado dizendo que o crime de estelionato ele não foi atualizado. Ainda é aquela coisa de crimes que não oferece risco à vida, e era crime de pequena monta, diz que fala lá na lei, mas aí eu lembrei, eu falei antigamente por exemplo…
00:46:50
P/1 - Quem eram os valentões aqui?
R - Não tinha porque a maioria das pessoas eram conhecidas, conviviam muito, por conta desse centro de convivência lá nessa praça lá da UERJ, as pessoas, a maioria se conheciam, porque lá também não era uma comunidade gigantesca como nós temos hoje, as favelas imensas, eram pessoas que vinham por exemplo, do interior como foi a minha família, veio do interior para tentar a vida, uma condição de vida melhor aqui. Então vinha, ia trabalhar nas obras, quem tinha uma profissão era um mecânico, uma coisa assim, ainda tinha uma condição melhor, mas a minha família, a maioria era tudo do meio rural, eles plantavam não sei o quê, então chegava aqui tinha que se sujeitar ao trabalho que aparecesse, por exemplo, a gente deu, quer dizer a minha família que eu não cheguei a conhecer, o meu avô com pouco tempo que estava aqui ele morreu, ele passava por dentro da Quinta da Boa Vista para chegar ao trabalho dele, e teve uma tempestade, rebentou um fio, e o fio caiu dentro de uma poça d'água, ele pisou ali e morreu eletrocutado, e na época a minha avó não sabia de nada, porque minha avó nem o nome assinava, e teve um advogado espertalhão…”que não, a gente vai botar o caso na justiça, ela vai ganhar um dinheiro”, e minha avó foi, e aquilo ali ficou rolando tempos e tempos, mas quando chegou a sair, eu creio que o advogado deve ter comido muito dinheiro dela, porque ela falou, “olha, ele ficou durante 05 anos, todo mês ele levava uma bolsa de uma cesta básica lá em casa”. Aí eu falei - bom se ele fazia isso, é porque ele sabia que era uma causa que ia render muito dinheiro, que era a companhia de Carris Luz e Força, não era nem Light na época, e minha avó estava grávida do meu tio mais novo, meu pai tinha 12 anos, era o mais velho da família quando o meu avô morreu, por isso que meu pai foi se virar, vendia limão, vendia alho, mas vendia assim na mão, ele comprava um pouquinho ia lá e vendia, ia no lugar comprava mais e vendia, a minha avó não recebeu uma indenização que desse para ela comprar pelo menos uma casa, e ela ficou recebendo uma pensão que eu me lembro que na época era bem pouquinho, até o meu tio completar a maioridade, só que chegou uma época acho que uns 02 anos, ou 03 antes dele completar a maioridade, a minha avó parou de buscar, porque não valia a pena o dinheiro da passagem que ela gastava, porque era uma coisa que não foi atualizada, e na época ninguém tinha essa noção, porque pobre não botava coisa na justiça, porque deveria ter sido feito uma revisão, mas ela só botou essa coisa na justiça, porque na época acho que foi noticiado que ele pisou naquilo porque não tinha manutenção na rede, e ela estava grávida, então houve toda...meu avô morreu dia 06/09, e o meu tio Miro nasceu 12/10
00:50:31
P/1 - Queria perguntar, desculpa interromper, perguntar um pouco da sua infância e da sua escola, como é que era aqui no, período da escola, na Maré? Onde é que vocês estudavam? Como é que iam para escola?
R - Aqui foi feita a escola. Para ter um espaço na sociedade tem que ter instrução, e eu sempre gostei muito de estudar, eu era muito magrinha, muito magrinha, e eu gostava muito de estudar, então minha avó não me botava para fazer nada, porque “ah coitada, ela já é tão magrinha”, era muito ruim de comer, e tinha livro, tudo que precisasse para estudar, por exemplo.
00:52:19
P/1 - Então, tinha te perguntado Roseni, como é que foi, que escola você frequentou aqui, como é que foi essa tua formação aqui na escola, se era aqui na Nova Holanda, onde é que era?
R - Logo assim que eu vim para cá, aqui não tinha escola. Isso foi uma demanda também porque muita gente, muita criança não tinha escola, aí eles construíram uma escola que é a escola Clotilde Guimarães pra lá. Só que para muitas mães ficava dificultoso, muitas mães trabalhavam fora, as crianças não tinham como, porque existia, que hoje é a Avenida Brasil, na época era chamado de ‘a Variante’. A Variante matou muita gente, porque era alta rotatividade de trânsito, não tinha passarela, então muitas crianças estavam sem estudar, e eu meu primeiro colégio foi lá em Honório Gurgel, porque a minha madrinha se casou e quando chegou a época da escola, como não tinha escola aqui, minha madrinha me matriculou lá. Eu lembro que estudei no colégio Alípio Miranda Ribeiro.
00:57:09
P/1 - Você estava comentando Roseni, que você se matriculou em uma escola perto da casa da sua madrinha.
R - É, que era lá em Honório Gurgel, olha a distância daqui para lá, então eu fiquei morando com ela para poder estudar lá. Aí quando eu voltei de lá, aqui estavam fazendo a escola, mas aí parou, e por fim eles resolveram fazer uma escola que é acho que é pré-montada, umas placas, mas não deu para quantidade de crianças, para absorver todo mundo, aí eu fui estudar na Clotilde Guimarães, mas eu fiz a primeira série lá no Alípio Miranda Ribeiro e lá na Clotilde não tinha, só tinha sinal de trânsito, tinha o guarda que fazia era uma coisa que eu achava muito legal, os guardas fazendo aquela dança para parar o trânsito com apito, então a gente ia para a escola, eu estudei o segundo, o terceiro ano ali, mas a minha avó achava muito ruim ali, e a qualidade do ensino não era muito boa, a minha avó não sabia ler nem escrever, mas ela já identificava que ali...aí me botou para estudar em uma escola que era da igreja Nossa Senhora dos Navegantes, o nome da igreja Instituto Padre Francisco Carneiro, era uma escola menor que tinha atrás da igreja e eu fui estudar lá. Realmente, a qualidade do ensino era outra coisa. Lá tinha uma situação, eu fui para lá fazer a quarta série e a quinta série, depois era o ginásio na época, só que até a quinta série era de graça, o ginásio era pago, e eu fiz prova e consegui bolsa, eu tinha uma bolsa para estudar até o segundo ano ginasial, mas a minha avó na época falou “não, você não vai estudar lá, porque você tem essa bolsa, mas vai que de repente muda e não tem mais essa bolsa, e a gente não vai ter condições de pagar”, porque era um colégio caro, e também porque nessa época houve uma mudança nas diretrizes do ensino, antes era só até a quarta série, depois foi até a quinta série, e nesse ano justamente foi até a sexta série. Aí eu disse - não vó, mas eu estudo lá, quando a senhora não tiver condições de pagar, eu vou para o colégio público, aí ela falou, “é, mas você não vai poder ir para o colégio público, porque você não tem a sexta série, então você vai ter que ir para o colégio público agora, fazer a sexta série, se depois a gente conseguir uma bolsa para você estudar aqui tudo bem, mas se você precisar ir para um colégio público, você tem a sexta série”. Eu falei - bom, então está bom. Aí vim estudar, e foi quando eu consegui estudar na escola Nova Holanda, eu fiz a sexta série aqui, eu me lembro que naquela época era uma disputa assim de quem era o melhor aluno da sala, como eu vim de um colégio melhor, eu tinha um nível assim, então eu estava sempre entre os 03 primeiros alunos da classe, porque eu também não era assim, eu gostava de estudar, eu curti e tudo, mas eu não tinha muita visão da importância da escola. Eu curti porque eu curti mesmo, mas começou a criar uma rivalidade, porque tem uma menina inclusive eu falei com ela pelo zap ontem, que era aluna e ela era assim, se descontasse 01 décimo dela, ela ia questionar a professora, porque ela sempre queria ser a primeira. Então às vezes eu falava assim, - eu vou errar uma questão só para você continuar primeiro para você não ficar perturbando meu juízo, porque ela era brigona, eu era muito miudinha, muito magrinha, eu fui crescer depois dos 15 anos.
01:01:35
P/1 - Alguma professora que tenha te marcado mais?
R - Ah, teve várias, por exemplo, a minha primeira professora lá no Alípio, durante o ano mudou a professora porque ela estava grávida e saiu para ganhar neném. Primeiro foi a Marisa e depois a Marina, que a Marina era grandona e eu dizia - ai meu Deus eu queria crescer e ficar igual essa mulher assim altona, porque pra gente que é pequenininha, uma pessoa alta é imensa, e ela era muito carinhosa, e a professora Marisa também, e aqui eu só fiz um ano aqui foi a professora, não esqueço o nome dela Maria Lúcia Abud Pereira, ela era excelente na questão do ensinar, porque existe professores e professores, então eu estudei a vida inteira, por exemplo, estudei com a dona Sônia Pereira lá na Escola do Padre, que era uma boa professora, mas ela mantinha um distanciamento, porque como tinha essa mistura das crianças que tinham condições de pagar e das crianças que eram da favela, acho que ela era meio elitizada, então ela mantinha uma distância, e antigamente era umas coisas assim muito autoritarismo, até porque a gente vivia em uma época de ditadura, então ela era uma boa professora, ela toda semana fazia ditado, sexta-feira se você errasse uma palavra no ditado, você tinha que repetir aquela palavra 100 vezes, cada palavra que você errasse, e se por acaso na segunda-feira você não chegasse e mostrasse o que você escreveu, as 100 vezes, aí passava para 200 vezes. Era bom porque a gente ficava atento para não errar, porque se não passava o final de semana lá.
01:03:26
P/1 - Mas o fato de você ser moradora da Maré, de que forma isso aparecia um pouco ali na escola, havia algum tipo de diferença no tratamento de crianças que pagavam, crianças que vinham de uma favela aqui naquela época?
R - Não, porque por exemplo, a parte lá dessa escola que a gente chamava de Escola do Padre, a primeira parte do ensino que é o Ensino Fundamental hoje era de graça, então mesmo quem tinha condições de pagar, mas aquela parte era de graça, só que aí é onde começa você ver as diferenças, que as misturas com as pessoas que tinham condições com quem não tinha, mas por isso que eu acho que existia aqui tanto aquela rigidez do uniforme que tem que estar impecável, cabelo preso e o casaco não podia ser de outra cor, tinha que ser azul marinho, aquelas coisas toda, e existia as pessoas muito pobre, por exemplo, às vezes eu rabiscava umas folhas de caderno, ou então fazia uns desenhos no cantinho da folha, aí minha avó…”a esse caderno”, aí eu falava, é porque eu estava com raiva, eu era mimadinha, mas eu rabiscava com lápis bem de leve. E depois eu apagava e dava para minha amiga que sentava comigo, porque ela escrevia em um papel de pão costurado, que a mãe dela costurava aqueles papéis que ia com pão, e é onde ela escrevia, porque eu achava que se eu falasse, minha avó ia brigar comigo. Então, depois eu apagava, minha avó me dava outro caderno e eu levava para ela. A coisa do casaco que eu estava falando com você. Às vezes eu chegava na escola, eu estava de casaco, estava até com cachecol e ela encolhidinha. Aí eu falei - você não está com frio não? Ela “não, não estou não”. Aí eu falava assim - jura? Aí ela disse "não, não estou não”. Mas eu ficava assim, eu acho que ela não tem casaco, e como eu não usava uma roupa que tivesse um furinho, uma coisa assim eu não usava, eu enfiava o dedo e acabava de rasgar, eu não usava aquilo, eu comecei a morder a beirada do casaco, e eu dizia e - ó meu casaco estragou. “Minha filha, mas como estragou esse casaco é novo?” Não sei, estragou dos dois lados, aí minha avó, “vou comprar outro casaco”, eu falei - eu posso dar esse para minha amiga? Ela, “mas por quê?’’ Eu falei porque ela não tem, ela diz que não está sentindo frio, mas eu vejo ela tão encolhidinha. Essa minha amiga, tinha uma coisa que eu acho muito interessante, que ela tinha uns bichinhos andando, aí eu falei - tem uns bichinhos andando aí na tua roupa. Ela olhava assim, “não é nada não”. Aí um dia eu vi o bichinho descendo da cabeça. Eu falei - ele está na tua cabeça, que isso? Aí ela, “isso é caspa. Cheguei em casa, passei uns dias e falei - vó, a senhora tem que comprar um xampu anti-caspa, estou cheia de caspa, minha cabeça está coçando. Minha avó, “que caspa menina, criança não tem caspa não”, falei - mas eu estou cheia de caspa. Um dia eu cocei, peguei uma caspa e falei - aqui ó, a senhora disse que eu não tenho, aqui é uma caspa, aqui ó vivinha aqui na minha cabeça, minha avó olhou, “sua nojenta, isso é piolho!” aí eu - o que que é piolho? E minha avó cortou meu cabelo, eu fiquei de mal com a minha amiga, porque cortou meu cabelo Joãozinho na época que se fazia, enchia de Neocid e amarrava um pano e a gente ia dormir, no outro dia a mesma coisa, 02 dias acabava o piolho, não tinha piolho certo. Hoje em dia Deus me livre, fazer isso é arriscado matar uma criança, mas na época era o remédio de piolho. Depois a minha avó, porque eu não teria mais que cortasse o meu cabelo, porque volta e meia eu pegava piolho. Aí minha avó aprendeu fazer lá uns negócios com fumo, com hortelã, com vinagre, passava aquilo, mas não cortava o cabelo, porque eu fiquei de mal com a minha amiga, porque eu fiquei joãozinho e todo mundo encarnando na época não tinha negócio de bullying, todo mundo encarnava em todo mundo e era normal, quer dizer, não é que não tinha, é porque a gente não se traumatizava por causa disso.
01:07:59
P/1 - E e as outras escolas?
R - Na escola da Nova Holanda era mais ou menos, na época que eu vim eu já estava mais ou menos acho que com 09 para 10 anos, porque a maioria das crianças abandonam a escola antes de chegar na sexta série. As crianças estudavam, hoje em dia eu não sei, mas estudava assim, primeiro, segundo, terceiro, quarto no máximo a média é até o terceiro, porquê as crianças repetiam primeiro ano, repetiam o segundo ano, repetiam o terceiro ano, então elas enjoavam da escola, e as crianças iam muito para a escola para comer merenda. Essa coisa de vai para a escola para comer merenda, era verdade, porque as pessoas passavam uma certa necessidade, porque as famílias eram muito numerosas, eu me lembro, acho que depois que a gente estava aqui, que eu comecei a ouvir falar em anticoncepcional, mas um anticoncepcional fazia muito mal para as mulheres, mas as mulheres tomavam, porque antes as mulheres não tinham controle de evitar a gravidez, e os maridos usavam as mulheres, poucos eram os casais que tinham assim como o povo faz assim, ‘ah que fazia amor’, porque a mulher era um objeto, eu via as mulheres falando aquela coisa assim, a minha avó olhava para mim e eu tinha que sair de perto, porque antigamente a educação era assim, se a minha avó olhasse para mim atravessada, e quando começava a falar assim (‘Ah não, quando fulano quer…’), e eu ficava assim - o que é ele quer? (‘Não tem jeito, tem que dar pra ele!’), a minha avó já me olhava, e eu já ia saindo de pé, mas era muita gente nas casas, e os salários não davam, quando a mulher ia trabalhar, quando ela tinha filhos maiores que podiam ficar tomando conta, ainda tinha uma vidinha melhor, ou quando o marido tinha uma por exemplo, eu conheci muitas pessoas que o cara era mecânico, o outro que era eletricista, então como ele tinha uma qualificação profissional ele tinha um salariozinho melhor, porque senão a maioria era tudo auxiliar disso, auxiliar daquilo, ajudante disso, ajudante daquilo e era salário mínimo.
01:10:325
P/1 - Pois é, a sua família então valorizava.... Você fez escola, fez ginásio?
R - A minha avó tinha essa coisa, fiz o de ginásio, fiz segundo grau, então quando eu terminei aqui houve uma resolução do Governo, quem passasse e tivesse uma certa média já ia para o ginásio, ia fazer prova, mas tinha que ter uma média para poder ir para o ginásio. Eu saí de estudar aqui na escola Nova Holanda, e fui para o Mendes de Morais. Eu fiz o ginásio até a terceira série que foram quatro anos de ginásio no Mendes Morais. Só que com essa mudança, jogou um grande número, porque os pobres não tinham acesso para ir para os colégios mesmo público para fazer ginásio. Primeiro que a maioria não tinha interesse, segundo que não tinha vaga, eu me lembro que eu estudava no Mendes, mas eu não estudava no Mendes, era um colégio que era particular e que foi alocado pelo governo, que era a escola Rotary que eu estudava, mas eu era aluna do Mendes de Moraes entendeu? E aí só no terceiro ano que eu fui estudar lá no Mendes, porque foi uma explosão de crianças e crianças de comunidade que os pais se importavam e que botavam para estudar, que tinha aquela média e que podiam fazer a prova, que até para fazer a prova você tinha que ter uma média X e tinha que passar para ir fazer ginásio, eu fui até o terceiro ano lá, depois eu fui para o Colégio Dilermando Cruz porque eu cismei que eu queria trabalhar, então eu queria estudar mais perto de casa porque lá não era integral no Mendes, mas como era longe eu ficava muito tempo aí vim para cá. Aí mas chegou aqui também não tinha horário, que eu queria estudar de manhã para poder trabalhar a tarde, mas não consegui porque o ginásio era a tarde aí terminei o quarto ano, nessa época foi instituído também, nem tinha que fazer prova, quem tinha uma média lá em cima podia ir para o segundo grau e foi instituído um segundo grau técnico e eu tive qualificação para escolher qual técnico que eu queria, eu escolhi Processamento de dados que eu não sabia nem o que era, mas era uma novidade e que ia trabalhar com computador – ah eu quero isso, e o outro era Contabilidade e administração. Eu falei assim - a, eu quero Processamento de dados, administração e depois Contabilidade, mas tinha Secretariado, tinha Técnicas de enfermagem, tinha outras coisas, mas eu escolhi essas três. O colégio que tinha Processamento de dados, só tinha um colégio que também era alocado pelo governo, porque processamento de dados era uma coisa assim novíssima, e não tinha, só tinha esse colégio que era particular e como eram poucos alunos que se qualificaram e escolheram esse técnico, a gente estudava lá e o governo ia pagar a mensalidade, só que eu fui lá esse colégio era horário integral e lá não tinha uniforme, e quando eu cheguei lá para ver, para fazer a matrícula que eu olhei.
Eu falei: Eu não vou estudar aqui não.
A minha avó: “Por quê?
Eu falei: olha vó, lá não tem uniforme. A maioria do pessoal que estudou lá era só os riquinhos e era cada desfile de moda, né? E eu falei assim, - como é que eu vou estudar lá? Ela falou: Ah, mas você tem roupa pra caramba.
Eu falei: É, mas e aí? Lá não tem merenda né? Que se compra coisa na cantina, não tem refeitório.
Ela falou: Não, você toma café da manhã em casa, eu mando o lanche para você e você leva a marmita.
- Deus me livre de levar marmita para um colégio de rico! Tinha que levar lanche para manhã, lanche para tarde, ia em Copacabana, tinha que pegar duas condições e não tinha passe de estudante como tem hoje, eu fiquei pensando, eu não tinha ninguém que me orientasse assim, (‘não vai, vai valer a pena!’) Até porque as pessoas também…(‘ah, mas também esse negócio que você escolheu para estudar’), ninguém nem sabia o que era, (‘vai fazer administração mesmo que é a sua segunda opção’), aí eu fui para o Paulo de Frontin e fiz o primeiro e o segundo ano lá, porque antes nesse período que eu cismei que eu ia trabalhar, eu ia nos lugares procurar trabalho e ninguém me dava trabalho, porque eu não pesava nem 50 quilos e era miudinha, e aí eu dizia - mas eu já tenho um ginásio!
“Vai acabar de se criar menina”.
01:15:49
P/ 1 Que tipo de trabalho você procurava?
R - Eu procurava auxiliar de escritório na época, né? Porque eu já estava fazendo ginásio e terminando o segundo grau, e era o que tinha na época, né?
Mais porque eu até falei: - mas eu posso trabalhar em casa de família.
Minha avó: Não, minha neta não vai trabalhar em casa de família!
A, tem uma coisa interessante da questão assim machista, e do preconceito de gênero, que quando eu terminei o sexto ano aí porque antes o meu avô, que é o avô que eu conheci, ele comprava todo o meu material escolar e minha avó comprava uniforme, essas coisas, quando eu terminei ele falou:
- Bom, agora ela já terminou os estudos e a gente vai ter que pensar um trabalho para ela.
A minha avó: Ela não terminou os estudos não! E ela falou, esse langanho não aguenta trabalhar não, está vendo que isso é um mosquitinho!
Que meu apelido era mosquito elétrico, mas eu falei, mas eu quero estudar, eu quero fazer ginásio.
Ele: Pra que mulher não precisa estudar, aprendeu ou fez o primário está bom para ensinar os filhos a fazer conta, para não ser enrolada na feira e já está bom!
Minha avó: Ela vai estudar enquanto ela quiser.
Eu falei, eu quero fazer ginásio, quero fazer científico e quero fazer faculdade.
Aí meu avô falava assim: É, você não vai viver com homem nenhum, porque homem não atura uma mulher que sabe mais do que ele não, e homem tem que trabalhar cedo porque tem que bancar a família.
Minha avó: Não interessa, se ela quer ela vai.
Ele: Eu não banco mais nada!
Realmente, meu avô não comprou mais um lápis para mim o resto do tempo que eu estudei.
01:17:34
P/1 - Não aceitando a orientação e a educação que a sua avó dava para você.
R - É, não, porque ele achava...aí ele virou para minha avó e falou:
- Ó, você quer ver, você vai ver, escreve o que eu estou te falando. Daqui a um dia ela vai ter vergonha de você, porque tu não sabe ler nem escrever!
A minha avó, ela assinava o nome, mas ela disse que ela aprendeu a desenhar o nome dela, ela não sabia o que ela estava escrevendo. Sabia, reconhecia que aquele era o nome dela, mas ela não sabia ler assim, né? E aí eu, não é porque eu tive vergonha da minha avó, aconteceu realmente deu conversar com a minha avó e dizer que ela tinha que estudar, mas não é por vergonha, é porque eu achava, acho e continuo achando que uma pessoa que não sabe ler escrever é uma pessoa cega, né? Então eu dizia assim:
- Vó como é que a senhora via as coisas no mercado?
- Eu vejo pelas marcas, eu gravo os desenhos…
Eu falei, mas isso te tira oitenta por cento da visão da vida, entendeu? A senhora tem que aprender a ler e aprender a escrever.
Ela: - Mas eu já estou velha.
Minha avó estava com 55, 56 anos.
- Eu não tenho mais cabeça para isso, não sei…
Eu falei, tem, a senhora é uma pessoa inteligente, lúcida e capaz, a senhora vai estudar, aí inscrevi no Mobral, nos primeiros dias eu vinha com ela. O Mobral era aqui, porque aqui eram vários galpões, então tinha alguns serviços, a minha avó, nossa, minha avó se deslumbrou quando ela começou a estudar, que ela aprendeu, que é engraçado, a minha avó me ensinou o alfabeto porque ela conhecia as letras, mas ela não sabia juntar, ela não sabia formar palavras.
01:19:12
P/1 - Ela se alfabetizou?
R - Não, e depois ainda fez mais dois anos de supletivo, porque eu falei:
- Vó, agora a senhora aprendeu a ler e a escrever, mas não é suficiente.
Ela: como assim?
Eu falei, não a senhora lê uma frase, mas a senhora sabe o que está escrito ali pela sua vivência, mas a senhora não tem uma capacidade de compreender e de enxergar além daquilo que está escrito, porque saber ler e escrever a pessoa tem que ter uma capacidade de análise.
Aí ela: Bem que seu avô falou que você ia ficar com vergonha de mim.
Eu falei, não, vó, eu tenho orgulho da senhora, mas eu quero que a senhora abra mais os seus horizontes. Tanto que a minha avó fez primeiro e segundo ano de supletivo, depois ela começou a ter uns problemas de saúde e abandonou, mas ela entrou para igreja messiânica na época, ela lia os livros e ela fazia palestra das coisas que ela lia com os grupos religiosos dela, e ela falava assim:
- Minha filha, se eu soubesse um décimo do que eu sei hoje, na época que eu era novinha, eu não tinha tido esses filhos todos, eu hoje estaria em um outro patamar de vida, porque eu dizia para ela, o teu saber é o poder.
01:22:59
P/1 - Queria te pedir para você complementar a parte da sua escola desse, científico, e comentar um pouco como é que era o lazer aqui, o futebol, a música, o carnaval. Como é que era o lazer na Nova Holanda?
R - Bom, eu na minha infância, o lazer que eu vivi aqui eram as brincadeiras de rua, aliás minto, quando eu mudei para cá, aqui no final tinha uma praia, mas que eu fui acho que umas duas ou três vezes, porque minha avó tinha medo, que geralmente era o pessoal, minha tia, meus tios que levava, então ela tinha medo, não deixava muito eu ir, e lá no Parque União também não cheguei a ir, que eu não lembro o nome da praia aqui, sei que era, para lá era a tal da Praia da Moreninha, mas fora isso eu saía muito com a minha família, minha avó era aquelas pessoas que todo final de semana ela ia visitar alguém, ela ia visitar um afilhado, ia visitar uma tia, ela tinha uma coisa de referência de família, porque eles se sentiam muito assim desgarrados, porque a maior parte da família era no interior, ou do estado do Rio, ou de Minas, então as pessoas, os parentes que moravam aqui sempre se visitavam, e minha avó era uma pessoa muito querida, então ela tinha muitos afilhados, ela dizia que os afilhados quando são crianças as madrinhas tem que visitar, para quando eles crescerem eles terem essa referência e eles irem visitar, e a gente ia muito para sítios, para fazendas de pessoas passar o final de semana, por exemplo, carnaval, minha avó não gostava. Então todo carnaval a gente passava 04 dias, 05, dependendo do dia que caia para o meu avô não perder o trabalho. A gente ia para um lugar que era roça. Era legal porque eu era moleca, então eu vivia pendurada em árvore e tomando banho nos córregos, esse era o meu lazer, fora isso, o lazer era com a turma da escola, eu tinha um grupo de igreja, porque como eu estudei no Colégio do Padre minha avó fazia questão que fizesse catecismo, eu estudei catecismo e a gente tinha que assistir missa todo domingo, eu fazia parte do grupo do pessoal da igreja, aquele grupo que canta, que inventa as modas lá para igreja, apesar que eu nunca fui muito de religião, porque eu tinha muitos questionamentos e que ninguém satisfazia a minha curiosidade, eu sempre fui muito curiosa, não queriam, me explicar certas coisas que eu perguntava. A gente nasceu de Adão e Eva...Por que tem gente branca, gente preta, gente loira? Então, uns diziam uma coisa, teve uma pessoa que teve a capacidade de me dizer que os pretos eram os filhos descendentes, agora não sei se foi do Caim ou do Abel, sei que foi do que matou, e eles eram pretos porque eles eram marcados pelo pecado, olha que coisa absurda, mas eu falei - não acho que essa pessoa está mentindo, porque criança quando é muito pequeno a gente acredita muito nas coisas que as pessoas falam, mas depois quando a gente descobre uma mentira a gente aprende a desconfiar de quase tudo.
01:26:40
P/1 - E a questão do carnaval?
R - A questão do carnaval já foi depois que eu me separei, porque quando eu me casei eu fui para fora daqui.
P/1 - Com quem você se casou?
R - Eu me casei com o pai do meu filho mais velho, José Souza de Oliveira Mendes, a gente se conheceu aqui no sexto ano primário, depois fomos nos reencontrar já no segundo ano, no meu terceiro ano ginasial, no científico do meu curso técnico, a gente tinha uma amizade e tudo, e começamos a conviver mais próximo até que rolou, começamos a namorar e um dia meu pai descobriu uma cartela de anticoncepcional no meu guarda-roupa, porque eu sempre tinha duas cartelas, uma que andava comigo na minha carteira e outra escondida dentro do guarda-roupa, porque eu não queria correr o risco de acabar e eu não ter, porque as pessoas como falava antigamente “se perdiam né?” Que deixavam de ser virgem, então estavam perdidas e logo engravidavam, e eu dizia assim - gente, mas não, deixar de ser virgem não é sinônimo de gravidez! Quando eu resolvi que eu não ia ser mais virgem, eu fui ao ginecologista e falei que eu queria tomar um anticoncepcional, e eu queria começar a tomar antes para não correr o risco de engravidar, porque uma vez só era suficiente para engravidar.
01:28:30
P/1 - Se falava em aborto nessa época?
R - As meninas não, mas ele existia, muitas mulheres, inclusive mulheres casadas e muitas mulheres que se não eram casadas, que tinham a vida mais livre, mas assim a forma de evitar uma gestação era aborto, então eu comecei, aí eu me lembro que um dia eu deixei a minha carteira na cada da minha avó, porque para todo lugar eu ia com aquela carteira, e minha avó abriu a carteira para ver de quem era e viu o anticoncepcional, a minha avó quase teve meia dúzia de filhote. Aí quando eu cheguei na casa dela.
Vó, esqueci a carteira?
Ela: Esqueceu, quero que você me explique o que significa isso?
Aí eu falei - ué, a senhora não está vendo?
Aí ela falou: Estou vendo que é anticoncepcional. E para que você está tomando isso?
Aí eu falei - cara a ficha dela não caiu, eu não tive coragem de dizer para ela que eu não era mais...eu falei - não vó, lembra que eu falei que eu estava com os problemas menstruais, eu fui no médico e o médico passou isso para regular a menstruação, porque a minha estava irregular.
Ela - Ah tá, aí que susto!
Por que eu contei essa história? Porque eu já tinha uma vizinha que tinha uma história dessas, então eu me apropriei da história dela, mas quando meu pai descobriu ele falou “ah você vai me dizer o que é isso”…
Eu falei - pai, o senhor não é bobo.
Ele: Vai ser um absurdo e tem que casar!
Eu - não vou casar, e casa, não casa, e aí o meu namorado falou assim - mas eu caso não sei o quê - eu falei, não é você que decide, a vida é minha também...ficou naquele impasse aí eu falei - Bom o casal não casa, mas a gente pode morar junto. Aí ele - Mas qual é a diferença? Eu falei - Meu filho, pobre para divorciar, que na época era divórcio era uma coisa muito remota né? Dá muito trabalho e é para quem tem dinheiro, então se a gente viver junto e não der certo, vai cada um para o seu lado. Porque não era o meu projeto de vida casar, eu queria assim, eu já trabalhava, então eu queria trabalhar, eu queria juntar com uma amiga e morar assim, dividir um apartamento e viver minha vida, eu só pensava em casar e ter filhos depois que eu tivesse uma independência, porque eu pensava assim, quando eu estiver morando sozinha, essas coisas, eu vou conseguir fazer uma faculdade, vou trabalhar, estudar e vou ter uma condição de vida que eu posso escolher se eu vou casar e ter filhos, ou se eu vou ter filhos sem casar. Porque eu já tinha uma mente lá na frente que eu falei, não necessariamente eu preciso de um marido para ter filho, e a gente foi viver junto é complicado, porque ninguém tinha nada e ele queria porque queria, eu falei que não e aí então a gente termina, mas aquelas coisas de romã, se apaixonada, acabei cedendo. Vivemos juntos acho que 03 anos, em um ano e pouco que estávamos vivendo juntos, eu mudei o anticoncepcional por um anticoncepcional que era local e que você colocava na hora que fosse ter a relação, você vai dormir, tem que colocar no mínimo uma hora antes, só que esse anticoncepcional falhou, e o que acontece? Quando eu descobri a gravidez eu já estava com 03 meses de gravidez, porque eu engravidei e continuei menstruando. Vivemos a relação, mas era aquela relação assim, o pai do meu marido José Mendes, que ele tinha o mesmo nome do filho, ele era aquele cara, ele trabalhava em 02 empregos, botava as coisas dentro de casa, mas ele tinha mulher aqui, outra mulher ali, de vez em quando ele viajava, passava 03 dias sabe? Uma semana na casa de uma outra mulher, e a minha sogra achava aquilo normal, fazia parte, e meu marido cresceu com esse exemplo, e achou que ele podia ter uma mulher na esquina aqui, na outra ali. Eu falei - Não dá certo, aí eu quebrava o barraco. A mãe dele e a minha avó falavam assim, “não, mas Zezinho é um cara legal, um cara bacana e de família, não deixa faltar nada dentro de casa. Eu falei - vó, mas eu não casei para ter casa e comida? Eu nunca passei fome, nunca morei na rua, eu casei para ter um parceiro, um companheiro, uma pessoa para dividir a vida. Ele quando a gente estava junto, ele conseguiu trabalhar, fazer curso e depois ficou trabalhando na Escavagima, na época era um emprego cobiçadíssimo, um estaleiro que tinha aqui no Caju e ele tinha um salário razoável, mas a primeira coisa quando a gente foi viver junto, “mulher minha não trabalha”.
Aí minha avó: Não, mas você primeiro tem seus filhos, quando seu filho estiver grandinho aí você vai conseguir convencê-lo.” Quando ele começou nessa de arrumar coisa daqui e ali, eu brigava, eu cobrava e eu expulsava ele da minha cama, aí começou aquela coisa da questão da violência de que o homem pode tudo, minha sogra falava assim, “não, daqui uns dias, uns tempos quando ele ficar mais velho, isso tudo vai passar e ele vai ser só seu. Não vê Zé Mendes? As mulheres vêm buscar ele aqui na minha porta. Falei - Deus me livre, eu jogo água fervendo em uma **** dessas que vier aqui na minha porta para buscar o meu marido. Aí ele, “isso se eu não te quebrar antes”. Aí um dia eu falei - olha só, de hoje em diante você nunca mais me ameaça, porque se você me ameaçar, se você não me bater eu vou te bater, mas eu não sou criança para viver com você me ameaçando. Um dia ele resolveu partir para as vias de fato, né? Aí eu ameacei jogar água fervendo no ouvido dele, mas depois eu achei que não valia a pena a minha liberdade, porque homem batia, matava e ficava por isso mesmo, mas mulher imagina, (“matou o cara e jogou uma água fervendo’). Eu não joguei, mas eu infernizei a noite toda, ele passou a noite sem dormir, porque a água apagava o fogo que estava fervendo, quando frio, já esfriou, vou acender de novo para ele não dormir, foi um terror psicológico. Eu voltei para cá, vim para morar com a minha avó e o meu pai, eles desde sempre que mudou para cá ele era envolvido nessa de liderança comunitária, que aqui existia uma escola de samba que era Unidos de Nova Holanda, e eu me lembro muito bem que o primeiro presidente que eu conheci era o senhor Célio, coroão, grandão, negão, bonito, e depois o meu pai foi presidente dessa escola, e de vez em quando ele levava a gente lá, escondido da minha avó, eu e a minha irmã, porque uma época meu pai trouxe a minha irmã para morar. É, ele foi lá e roubou ela da casa da minha mãe e trouxe para morar, porque a esposa dele na época não podia ter filho, de vez em quando levava a gente lá e dizia "sambaí''. Aí minha irmã caía lá no samba. Eu tenho dois pés esquerdo. Eu falei - ah não! Aí minha irmã - está vendo? Eu sei sambar, você não sabe. Aí eu falei - eu sei estudar você também não sabe! Quando eu voltei para cá, o meu pai foi a primeira pessoa que admitiu quando eu falei que eu ia me separar, porque eu não ia continuar vivendo uma relação doente por conta de casa e comida. Meu pai falou assim: Olha só, a vida é sua, você escolheu viver essa relação, agora se você não quer, quem calça o sapato é que sabe onde ele aperta, onde ele machuca, se não está bom para você! Hoje em dia já não é tão complicado, porque durante muito tempo uma mulher separada era pior do que *** ele falou, “hoje em dia já não é tão mal visto não, você vai à luta, vai correr atrás do que você quer”, porque antes o meu pai tinha uma relação assim, o meu pai lá e eu aqui, porque ele morava com uma outra família, e meu pai quando ia na casa da minha avó para falar comigo, era só para me escovar porque eu era levada, então minha avó ia lá fazer queixa, ele vinha, eu apanhei pra caramba, mas também não morri por causa disso e nem carrego esse trauma assim, ai porque minha vida, ai porque eu apanhei, não, a maioria das vezes não é que eu merecia apanhar, mas era a forma que se educava na época, era a forma que as pessoas sabiam para conter. Eu tinha uma admiração pelo meu pai, porque o meu pai era essa liderança desde essa época em que eu era pequena, que eu cresci vendo, meu pai fazia excursões, meu pai organizava festas juninas e toda essa coisa aqui lúdica de dentro da comunidade.
01:38:28
P/1 - Se você puder falar mais então sobre o Gato.
R - Mas então porque nessa época eu não podia participar de nada que a minha avó não deixava. Quando eu vim que eu já estava separada, aí o meu pai um dia chegou lá em casa e falou assim, “eu queria que você escrevesse um negócio para mim''. Eu falei - o que? Aí ele falou “eu queria que você escrevesse um histórico de carnaval”. Eu falei pai - para não dizer que eu não brinquei com carnaval, brinquei com carnaval uma vez na minha vida e como é que eu vou escrever? Ele falou, “o histórico é tipo assim, é uma redação que você vai falar, contando uma história de uma coisa que vai ser apresentada”. Aí eu falei - tipo uma peça de teatro? Ele, “é mais ou menos por aí, porque o carnaval é isso, uma peça que vai acontecendo”. Está bom, escrevi. Aí ele foi, “não, isso aqui está demais, isso aqui está legal”, ele foi dando aquelas orientações porque ele era envolvido no carnaval há um tempão. Ele, “é, está pronto o histórico”. Eu falei - isso que é um histórico? Ele falou, “é, agora você faz uns desenhos de como se você fosse fazer uma peça de teatro, as roupas que o pessoal vai para poder montar essa história”. Falei - pai, eu desenho, mas eu não tenho o dom de desenhar, mas eu tenho um amigo que desenha. “Então chama ele”, e ele adorava desenhar. E a gente tinha uma interação de amizade que era tipo assim, como se eu usasse as mãos dele para desenhar, fizemos os desenhos, meu pai levou isso e apresentou em uma reunião do ‘Mataram meu Gato’, porque tinha outros temas que estavam na mesa, e o nosso tema ganhou para ser o enredo do carnaval.
01:40:19
P/1 - Qual é o tema?
R - Era o Mundo Encantado da Criança, foi o primeiro carnaval que eu fiz.
P/1 - Em que ano?
R - Deixa eu ver, acho que tem uns 40 anos, mas acho que foi em 1980 porque meu filho tinha 02 anos. Meu pai falou “bom, ganhamos, agora vamos mãos à obra. Como assim? Ele falou “a gente tem que ver tecido”. Falei - pai, não entendo nada de tecido, eu não costuro, “não, a gente tem que contratar costureira”. Ele falou, “mas você imagina essa roupa, que tecido você imagina que ficaria legal para roupa de carnaval? Eu fui me envolvendo por quê? Eu tinha saído de um casamento e eu estava meio que deslumbrada com aquilo, fui me envolvendo em fazer aquilo, mas para mim, eu estava fazendo uma coisa para o meu pai, entendeu? Porque o meu pai era o presidente do bloco na época. E por fim eu estava fazendo a contabilidade, administração, a documentação, tudo do Gato, tudo. Aí eu digo assim - gente, nesse Gato eu fui cozinheira, eu digo - eu já fiz feijoada para 300 pessoas, e as pessoas diziam assim, “quero dar os parabéns para cozinheira”. Eu falei, - ó, aqui a gente é uma equipe. “Mas quem comanda?”. Quem tempera, quem faz tudo é ela. Elas diziam, “ah, mas você tem cara de cozinheira daqueles panelões”, ainda tem uma panela lá em casa desse tamanho. “Você não mexe com isso não?” Eu falei - não, eu não sei fazer de tudo, mas eu não gosto de serviço doméstico não, não gosto, mas sei fazer, e lá no Gato tinha que fazer né? Porque eu tinha as pessoas que me auxiliavam, que picava os temperos descascava, lavava, mas quem ia para as panelas era eu.
01:42:22
P/1 - E um desfile ou uma apresentação do bloco que tenha te marcado bastante?
R - Todas elas me marcaram porque por exemplo, ‘O Mundo Encantado da Criança’ me marcou porque foi o primeiro, e a gente fez assim eu e o Carlinhos que infelizmente hoje é falecido, a gente fez com uma pureza, com uma inocência que também era pertinente ao tema, porque a gente contou a vida de criança ao longo da passagem do ano com as datas marcantes, importantes, e a gente foi muito fiel.
01:42:58
P/1 - Aqui na Maré vocês se apresentavam? E no Centro? Como é que era?
R - Não, tinha um local de desfile. A gente era filiado a Federação de Blocos que era na Alexandre Mackenzie lá no Centro, e a gente se apresentava de acordo com a ordem de colocação no grupo, e quando a gente pegou o Gato, o Gato estava lá acho que era quinto, sexto grupo assim, porque na época acho que eram só seis grupos, o Gato era o penúltimo na colocação de grupo, e a gente até fazia um desfile aqui, depois do desfile oficial a gente fazia um desfile aqui para o povo ver. Gente uma coisa mágica, essa Principal fervia, a gente vinha a Principal toda, a Teixeira, na época fizemos na Vila do João, na Vila do Pinheiro porque a vida aqui continuou, quando a gente veio para cá não existia a Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto Esperança, não existia nada disso, mas a vida foi e foi rolando uma questão de um engajamento político também nesse negócio, por quê? Durante uma grande parte da minha vida, até que eu comecei a trabalhar até que eu casei tudo, que eu não tinha nenhuma inserção política, então quando eu me separei que eu vim para cá e que eu tinha que tocar a minha vida, que eu comecei a enxergar algumas coisas, mas enxergar assim muito superficialmente, a Eliana ela montou a primeira associação de moradores aqui que realmente era de moradores, porque antes existia uma associação de moradores que a Fundação Leão XIII escolhia um pau mandado deles para ser o presidente da associação, eu me lembro bem da fisionomia do seu, eu não lembro o nome dele, mas Eliane deve saber bem, não sei se era seu Antônio, eu não lembro, mas eu lembro bem da fisionomia dele, e ela juntou com o pessoal que era o grupo jovem da igreja. Eu tinha uma vergonha de estar nos lugares, porque era muito complicado você estar em determinados lugares até para conseguir um emprego e morar na favela, e eu não gostava muito das coisas conforme acontecia as coisas na favela, as permissividades, as coisas assim, a falta de respeito da invasão do espaço alheio, que até hoje infelizmente isso é uma das coisas que não muda aqui, que ninguém respeita o espaço do outro, e essa questão de que o poder público que quando começou surgir essa coisa de facções, essas coisas, o poder público nunca deu conta de resolver e nunca deu conta de prevenir, de ter uma qualidade de ensino melhor, essas coisas, e eu achei que através do Gato a gente podia tocar em muitas coisas, e a gente podia ajudar de outras formas, e quando teve, que a Eliana resolveu montar, ela foi nas casas conversando com as pessoas, mas eu dizia - Eliana, eu não quero saber de associação de moradores não, não quero, eu trabalho fora, e o meu sonho era sempre ter um tempo para fazer uma faculdade, mas depois quando eu me separei e que terminou aquele primeiro mandato, o meu pai me convenceu, ele falou “não, a gente tem que fazer parte da associação de moradores, porque a gente vai estar mais inserido para poder conseguir as coisas pro Gato”. Porque o Gato ensaiava na rua, era na rua Principal, não tinha nada, então, “a gente colando com o pessoal da associação, a gente vai conseguir lutar junto com eles para conseguir melhores espaços”, e aí lá fui eu. Aí também surgiu na época uma vaga para trabalhar aqui como agente comunitária de saúde, e eu concorri a essa vaga e passei. Então, antes dessa coisa eu comecei a conviver mais, a me apropriar da margem, do meu lugar, eu vi a possibilidade de uma ligação através da cultura, né? Que é uma cultura popular e que todo mundo...porque não tinha muita coisa de lazer fora o futebol, e de conseguir trazer as pessoas e passar outras coisas para as pessoas. Comitantemente, o que aconteceu? Existia um médico aqui que vocês todas devem ter conhecido, ele foi vereador muitos anos Fernando Willian, ele morreu agora, acho que no ano passado, retrasado, ele era médico voluntário que comprou um barraco aqui dentro e ele fazia consultas de graça, clínica geral, era o médico que tinha, e atendia muita gente, e ele começou a recrutar umas pessoas que ele achava que tinha condições, tinha uma visão, e começou a falar de política, política partidária, porque as pessoas falam assim, “a gente não gosta de política”, mas tudo na vida é política, a gente às vezes não enxerga, mas tudo na vida é política, mas quando ele começou a falar da política partidária, da questão da divisão de classe, essas coisas todas, eu era anti-brizolista, porque o Brizola era comunismo, e o comunismo comia criancinha, aquelas coisas...eu comecei a me encantar por aquilo e fui assistir alguns discursos do Brizola. Gente, eu me apaixonei, eu não era petista, eu era brizolista, mas hoje eu vejo alguns discursos dele, porque hoje a internet dá esse acesso, ele até podia ser demagogo, podia ser populista, mas o cara continua atual, tudo que ele falava, essa coisa de falar da Globo, ele que abriu os olhos do povo para dizer que a Globo é a globo lixo, que a Globo era uma vendida. Eu queria muito trazer essa inserção política para o Gato, mas logo logo eu aprendi que a agremiação de carnaval de qualquer outra coisa que fosse muito política, e que colocasse muita coisa assim às claras, nunca se dava bem, vide, não sei se você se lembra da escola de samba Caprichosos de Pilares, que sempre vinha com os temas assim e nunca ganhava nada.
01:51:13
P/1 -Como é que vocês fazem os enredos do Gato?
R - Geralmente eu pesquisava, porque a gente pensava em uma coisa que fosse acessível financeiramente, e que tivesse roupas e coisas assim, as fantasias que não precisasse de muita pluma, de muita coisa que as pessoas não tinham condições aqui de comprar, a gente começou a buscar tecidos alternativos, porque antigamente no nosso primeiro carnaval as coisas que a gente usava era lamê e filó, lamê é aquele tecido brilhosinho e filó aquele véuzinho, porque era a referência que eu tinha de carnaval, porque todo ano no carnaval minha madrinha me fantasiava, eu já fui bailarina, colombina, índia, Jeannie é um gênio, todo ano ela fazia uma fantasia, e cetim que era as coisas que a gente conhecia, mas eu e esse menino, o Carlinhos, a gente começou assim - não, por que a gente não faz uma coisa assim com a chita? A gente tem uma riqueza de materiais, de tecidos, e a gente quando não tinha condições, porque coisas de brilho era muito caro, por exemplo, purpurina que era a referência em carnaval, purpurina era dois mil reais o quilo, hoje é barato, mas na época era muito caro, então a gente dizia assim - vamos botar só uns risquinhos de purpurina que é para dar um brilho, mas vamos fazer de outro tecido com cores, e a gente procurou trazer um carnaval bem próximo de uma realidade, porque já era uma questão política, e trazer para realidade do que era possível, a gente fazia as fantasias.
01:53:24
P/1 - Se você pudesse falar um pouco de alguns outros desfiles que vocês fizeram?
R - Nossos desfiles eram todos maravilhosos. Por exemplo, o desfile do Mundo Encantado da Criança, que foi o primeiro, foi o ano em que a gente teve o maior número de componentes no Gato, a gente desfilou mais ou menos com uns mil e duzentos componentes.
P/1 - Todos moradores da Maré?
R - Todos não, acho que devia ter uma meia dúzia que era de fora, porque se encantava pelo trabalho e carnaval todo mundo quer farra, chamar pra farra todo mundo vai, mas como falava do mundo da criança ao longo do ano, das histórias infantis, eu consegui inserir a minha avó que nunca tinha brincado carnaval na vida, nem me deixava brincar, mas consegui coloca-la como a Chapeuzinho, aliás a vovó do Chapeuzinho Vermelho, a minha tia eu botei também, eu não me lembro qual era a fantasia dela, mas eu consegui inserir as pessoas, aí tinha muitas crianças chegavam assim, “ah eu queria desfilar no Gato, mas a minha mãe não deixa”. Por quê? “Porque aqui nesse Gato só tem gente que não presta”. Falei - traz sua mãe aqui para conversar comigo. Eu dizia assim - poxa, olha só, meu pai é o presidente, eu sou a Roseni, você me conhece desde pequena, você me conhece atendendo as crianças na sua casa, porque a gente ia de casa em casa orientando as mães com as práticas, a gente pesava, media, acompanhava cartão de vacina, essas coisas, e a gente está querendo mudar, a gente não questionava as mães, mudar justamente essa cara do Gato, como a gente é uma pessoa conhecida, então a gente queria trazer as pessoas que são do bem para mudar essa coisa que as pessoas pensam. “Mas eu não tenho condições, é uma fantasia muito cara”. Não, mas a gente vai fazer baratinha, a gente vai pedir doações, você pode pagar cinco reais por semana? Você não pode por semana, pode por quinzena? E você pode começar a pagar agora a fantasia que o teu filho, a tua filha. Eu sei que por fim, a gente conseguia trazer não só aquela criança, como a mãe, às vezes o pai, porque na maioria das vezes o pai já fazia parte, mas a gente conseguiu montar um grupo de baianas que a gente não tinha, a maioria eram senhoras, tinha muitos que não tinham brincado no carnaval, por exemplo, eu consegui fazer minha madrasta, que era de uma tradicional família mineira, vir para cá, brincou carnaval e se vestiu de baiana. A gente conseguiu trazer a comunidade, o Gato virou um ponto de referência e de união das pessoas. Então esse primeiro enredo, a gente tinha o cara que vendia naquela carrocinha de legumes que andava nas ruas da comunidade, ele foi o nosso Papai Noel, porque ele era gordinho, tinha um olho azul, as bochechas vermelha que ele andava no sol o tempo todo, a gente vestiu ele de Papai Noel, a gente conseguiu trazer muitas referências, por exemplo, o cara que vendia aqueles balões de gás, que toda criança fica doida quando vê aquilo, - falei, não, porque você é a característica do personagem, porque a gente por não saber, a gente colocou uma coisa bem teatral, então para mim foi um desfile maravilhoso. Nós ficamos em quinto lugar, mas eram 12 blocos na época que desfilaram, a gente ficou em quinto, pra gente que nunca tinha feito aquilo, então foi ótimo, e a gente ficou em quinto por quê? O nosso carro quebrou no meio do desfile, e como não conseguiu consertar, as pessoas carregaram no braço, aquele carro passou no desfile, mas era carregado, tinha umas 50, 100 pessoas ali em volta carregando aquele carro. Depois nós fizemos um desfile sobre o carnaval, foi o segundo desfile que nós fomos campeões, foi lá em Vista Alegre, o primeiro foi dentro do IAPI da Penha, perto onde estou morando hoje, o segundo foi lá em Vista Alegre, e nós fomos campeões que foi contando a história do carnaval, contando de uma forma simples, porque a gente tinha um número de alas restritos, um monte de situações que não era igual ao das escolas.
01:58:24
P/1 - Como é que esse bloco vindo da região da Maré se inseriu? Tinham outros blocos de outras comunidades.
R - No mundo do samba a maioria eram pares, porque a maioria era de comunidades, ou era oriundos de grupos das escolas de samba, que tinha e montava lá um bloquinho lá perto de por exemplo, tem blocos que não é de favela, mas era assim, foi grupo de compositores da velha guarda que montou. Aqui a gente não tinha essa referência, a não ser do antigo de Nova Holanda que acabou logo, aí tinha o Gato. ‘Mataram meu Gato’, era um bloco de rua que ele só desfilava aqui dentro, seu Manoel de Jesus que fundou o ‘Mataram meu Gato’. Aí tem essa história que você já deve ter ouvido falar, que é porque pegaram o gato, mataram o gato da mulher, mas eu acho que isso é uma história lúdica, acho muito bonitinha, a gente assumiu, não acho que as pessoas tinham coragem de matar e comer o gato da mulher, apesar que já me falaram que aqui tem muita gente que come gato, mas era uma história legal, porque o pessoal que ficava fazendo batucada embaixo da janela dessa mulher, a mulher vivia brigando com eles, jogava água, e eles sumiram com o gato da mulher, e aí que a mulher tomou bronca mesmo e eles fizeram esse samba que “Mataram meu Gato, tiraram o couro, meu Deus do céu, que desaforo. Não tiveram pena de mim. Meu Deus do céu, porque eu sofro tanto assim”, mas era para implicar com essa moça, isso foi crescendo, tomou essa proporção, virou um bloco de embalo, mas o seu Manoel de Jesus registrou o bloco na Federação de Blocos Carnavalesco da cidade do Rio de Janeiro, e aí o Gato toda vez que desfilava ele era sempre, que o povo dizia era o primeiro de trás para frente. No ano anterior a gente via, teve lá uma situação que ele foi beneficiado, que ele ia ser excluído, mas foi beneficiado e acabou subindo porque faltou bloco. Nesse ano que a gente entrou, ganhou em quinto. No outro ano foi campeão e depois a gente ficou em segundo e terceiro. Sempre ali em uma condição que subia, porque antes era assim, subiam 04 blocos, aí quando chegar mais para frente só subiam 03, mas a gente sempre subia. Eu fiquei um bom tempo no Gato fazendo essa coisa.
02:01:30
P/1 - Que cargo você ocupou no Gato?
R - Eu fui primeiro carnavalesca, depois o Gato precisava de uma organização na questão estrutural, que era a questão de documentação que não tinha, porque a gente não pagava dage, e tinha que pedir alvará de permissão, porque a gente ensaiava na rua, então tinha que pedir autorização, tinha que pedir autorização na delegacia, então eu comecei cuidar de toda essa documentação, eu fazia a contabilidade do Gato, eu fazia compras, eu era uma faz tudo, porque eu fazia tudo, mas era para o Gato, mas era para o meu pai, porque muitas coisas eu queria poupar o meu pai de fazer, e muitas coisas ele não tinha muita experiência, e como eu trabalhava com administração e contabilidade, então para mim isso era fácil.
02:02:26
P/1 - Seus filhos participavam?
R - Na época, o meu filho participava que eu tinha um só, depois é que eu fui ter o outro, ele desfilou uma vez, a gente fez um enredo que ele vem de comissão de frente, era cupido, era uma ala de comissão de frente que era umas crianças que eram os cupidinhos, era falando do amor esse enredo do Gato.
P/1 - Então você era filha de componente do Gato, mãe de componente do Gato.
R - É, meu filho foi presidente do Gato uma época, porque o presidente abandonou e era o vice dele, ele aceitou ser o vice porque ele falou, “não, você é o vice para constar”, e porque a gente estava sempre lá, que a gente virava a noite, a gente não tinha condições de pagar profissionais para fazer as coisas. Então, a gente ia para fazer as coisas, e as pessoas, os nossos amigos iam ficar junto com a gente, era a questão da solidariedade, um ia chamando o outro, mas tudo a gente metia a mão para fazer...o Gato tinha um galpão aqui nesse espaço, acho que era mais lá na frente, e a gente fazia os adereços, que antigamente tinha adereços manuais, tinha um monte de coisa, a gente fazia e as pessoas vinham para ajudar, porque todo mundo gostava, mesmo quem não gostava de brincar o carnaval, mas ia assistir uma coisa que era muito forte na questão do Gato, é que o Gato era como se fosse assim 02 blocos, o bloco que desfilava e o bloco da calçada, que a gente dizia que era a ala da calçada, mas aí nesse período, como eu te falei, eu fui mãe de presidente, mas eu era a filha do presidente e a carnavalesca , mas eu sofri também na época, eu não pensava que era isso, mas hoje eu vejo muita discriminação, porque aquilo é a mulher, e eu sou muito firme naquilo que eu quero, eu defendo, eu luto e eu bato de frente, eu não cresci aprendendo ter medo, então tinha muito essas coisas, e muitos homens que só não me davam porrada porque respeitavam o meu pai, eu bati em muitos de frente, com muita gente, mas consegui deixar o Gato lá na avenida Rio Branco, porque antes os blocos desfilavam na Marquês de Sapucaí, e depois eles tiraram, e eu até entendi, porque um ano eu trabalhei na Marquês de Sapucaí, e quando era a época do desfile das escolinhas pequenas, as escolas que desfilam na terça-feira, eu não sei se ainda hoje é assim, a gente ficava lá toda vida para passar uma escola, porque aquele pouquinho assim em uma pista, e os blocos eram menores ainda, então eles tiraram o máximo que podia chegar era na Rio Branco, eu falei - não tem mais Marquês de Sapucaí não quero mais, eu casei novamente, foi quando eu tive meu segundo, e a minha terceira filha, meu marido não gostava dessas coisas, e também a gente queria dar um tempo, porque olha...era muito desgastante. Primeiro por exemplo, muitas vezes eu tirei o dinheiro da minha poupança para comprar coisas que o Gato precisava, meu pai chegou a vender a aliança de casamento para comprar coisas para o Gato, e por exemplo, ele tinha um comércio, uma tendinha, então ele tirava dinheiro do comércio para investir no Gato, era uma coisa, e a gente como era pouca mão de obra para fazer as coisas, a gente ficava muito cansado para dar conta.
02:07:55
P/1 - Roseni eu acho que você tem muita história para contar, acho que você tem uma memória fabulosa, né? E eu acho, que você tem uma trajetória de vida, você tem uma memória sobre a constituição aqui da região da Nova Holanda, você tem uma família muito participativa nessa história da Nova Holanda. Eu gostaria que você contasse sobre os filhos, quando nasceram, se nasceram aqui na Maré também, por favor?
R - O meu filho mais velho quando nasceu, eu tinha voltado a morar na Maré, no Parque União, estava na casa dos pais dele, é Hudson, ele era chamado lá na Federação, depois, de ‘presidente menino’, porque ele tinha 21 anos e era presidente, aí já era uma escola de samba, porque como eu falei antes, eu me afastei, fiquei 15 anos fora, e eu tive o meu filho mais novo e tive a minha filha, mas 15 anos depois a gente voltou para o Gato, e aí que a gente conseguiu transformar o Gato em escola de samba, Gato de Bonsucesso, e foi complicado, porque a gente teve que fazer no primeiro ano para poder acender a escola, tivemos que fazer 02 desfiles, um em Bonsucesso que era o desfile de avaliação para ver se a gente tinha condições de se apresentar enquanto uma escola de samba dos grupos inferiores, a liga só é o especial e o grupo A, mas a gente era do B para baixo, e fazer o desfile do Gato que era na Rio Branco, a gente não tinha condições de fazer nenhum desfile, mas a gente deu conta, fez os desfiles e fomos aprovados, e lá a intenção era que encerrasse com chave de ouro, mas nós ficamos em segundo lugar, mas mesmo assim foi uma colocação, e o nosso desfile, nossa, foi a sensação daquela avenida Rio Branco, que a gente estava falando das ‘trevas para a luz’, o nosso enredo, então, nós fizemos assim, a gente dizia que os filmes, as coisas tem os efeitos especiais, a gente tinha efeitos especiais, por exemplo, nós saímos com os dragões, assim, no carro, os dragões só tinha cabeça, porque o corpo era pano, armação de arame e blocos de isopor ali por baixo, mas aí vinha um menino lá sentado dentro do carro com extintor, que saia aquela fumaça. A gente fez muitas coisas muito legais, eu digo, eu aprendi com Mário Silva que foi o presidente da Federação dos Blocos de Carnaval. Ele falou, “olha eu adorei o teu trabalho”, eu falei - poxa mas a gente...Ele falou, “não, o problema é que vocês tem muita criatividade, é muito fácil você pegar uma pepita de ouro e botar em cima de um carro, aquilo vai ficar lindo, vai reluzir, mas o legal é você pegar um bocado de lata, ou um papel alumínio e fazer aquilo parecer e convencer os outros que é uma pepita de ouro”. Eu guardei aquilo, porque ele falou, “a necessidade faz aflorar esse recurso que todos nós temos, mas que não usamos”, porque a gente tem meio que preguiça, e quando a gente se transformou em escola, nossa, nós fizemos também enredos maravilhosos, falamos do Renato Lage, né? Que é um dos meus ídolos enquanto carnavalesco, nós fizemos enredos maravilhosos e nós conseguimos chegar de novo na Rio Branco, mas dessa vez enquanto escola de samba, estávamos a um passo de ir para Marquês de Sapucaí enquanto escola. Mas aí o que que acontece, começa a rolar muita questão da política, e uma coisa que está dando muito certo, atrai muitos admiradores, mas também atrai, como diz o meu pai, muitos secadores, as pessoas que cresce o olho, acha que a gente está se dando bem, porque toda vez que está lá em cima, a gente está enchendo os bolsos, porque a escola de samba recebe uma subvenção, não só a escola, o bloco também da entidade que é paga pela prefeitura, então essa subvenção para fazer um carnaval não é nada, mas para você pegar, botar no bolso e fazer uma farra é bastante dinheiro, então muitas pessoas achavam que a gente estava vivendo do Gato, porque a gente armava pagodes, bingos, feijoada, mas a gente fazia justamente essas coisas para arrecadar dinheiro, porque quando a gente era bloco, as pessoas ainda pagavam um pouquinho pela sua fantasia, mas pagava, depois não pagavam mais, porque as escolas de samba com a falta do chão, porque as escolas começaram a se elitizar, então tinha falta de ter o povo do chão. Elas começaram a dar fantasia, vinha ônibus aqui para buscar as pessoas para desfilar nas grandes escolas lá. Marquei no especial, então a gente não podia cobrar, e a gente teve que se desdobrar para poder dar a fantasia. Eu fui muito a lixo das escolas de samba pedir para pegar os restos de lá dos barracões para conseguir fazer as nossas coisas, e a gente sempre deu conta, mas aí depois de um determinado tempo, essa política de todo mundo querer ser o presidente, querer ser, querer ser, e o pessoal do poder querer interferir, querer mandar, para mim não dá certo porque eu sou muito abusada, eu dentro do meu direito sabendo que estou certa, eu vou enfrentar, se eu tiver de morrer, eu vou morrer, mas eu vou bater de frente. Uma época era assim como eu te falei, eu fui filha do presidente, eu fui prima do presidente, eu fui mãe do presidente, eu fui mulher do presidente, eu fui irmã do presidente, mas estava começando a ter tanta interferência do pessoal chegar e dizer, “a gente vai dar o baile na quadra e vocês vão fazer o ensaio na rua”, e eu arrumava briga, porque eu falei - não, a quadra é do Gato, vocês dão baile na rua, mas é aquele negócio, quanto a força não pode ter muita resistência. Eu falei - não, mas a gente pode negociar, a gente faz o samba até a meia-noite, como o baile de vocês só começam uma hora da manhã, a partir dali vocês fazem a coisa na quadra, não sei. Mas assim, chegou uma hora que os cara olhava para minha cara, olhava para mão deles e olha, eu falei assim, - gente, se um cara se me der um tapa vai ser uma tragédia aqui. Eu falei - ó, está no momento da gente deixar essas pessoas assumirem para eles ver a realidade, e as pessoas assumiram, foram descendo e foram descendo até que acabou. Uma época antes de acabar, eu ainda cheguei a conversar com a Eliana, porque eu sofria muito, porque o Gato virou para mim tipo um filho.
02:15:47
P/1 - Isso que eu queria que você falasse, o que significa para você?
R - O Gato fazia parte da minha vida, era um filho que eu peguei assim pequenininho lá e embalei, fiz crescer e depois eu peguei de novo, eu fiquei 15 anos na baixada, peguei de novo na adolescência para fase adulta e fiz crescer de novo.
02:16:30
P/1 - Pra gente ir finalizando, o que significava para você: era mulher, enfrentou situações, em espaços que a princípio eram espaços muito masculinos aqui na Maré, então queria que a gente finalizasse com uma reflexão nesse sentido, e você me dizer o que você achou de dar esse depoimento por favor.
R - Bom, eu a princípio eu entrei muito nessa coisa de estar fazendo, e quando comecei ver os resultados eu fui me apaixonando, fui me encantando e fui conseguindo agregar mais pessoas nessa coisa, e a comunidade começou a ser vista lá fora de uma outra forma, de uma forma legal, que tinha um pessoal bacana, e o Gato é assim, eu peguei ele lá pequenininho, embalei, deixei ele lá em cima, e hoje eu vejo que a maioria das pessoas estão direcionando para um tipo de lazer que são os bailes, não que eu tenha nada contra os bailes, porque eu acho que nós somos plurais e nós somos muitos, então dá para cada um curtir um pouquinho cada coisa, e é um direito de cada um ter o seu lazer preservado, mas eu acho que a gente não podia perder essa referência, te falei que hoje quando eu cheguei o menino falou assim, “vai ter uma festa no dia 05 de setembro, que vai ser a entrega do enredo do Gato, era legal que você viesse”. Eu falei, - quem é o presidente? Ele falou, “o Mauro Camilo”. Eu falei, - de repente se eu estiver de bobeira até venho. Mas nesse contexto que está hoje eu não quero me envolver, a não ser que eu tivesse um suporte, por exemplo, uma época eu cheguei a conversar com a Eliane e nós fizemos uma campanha, porque uma coisa também, eu já fui convidada várias vezes para voltar e assumir o Gato, mas eu não gosto assim, para eu voltar e assumir o Gato tinha que ter uma eleição, tinha que ser assim através do povo, porque eu acho que assim a associação de moradores, toda coisa que você vai representar uma liderança, principalmente dentro de uma comunidade, você tem que ser querida, recebida e escolhida pelo povo, porque você vai representar aquele povo, eu fechei uma época com a Eliana e nós íamos assumir o Gato, inclusive iríamos usar durante o ano o espaço do Gato para fazer oficinas, para fazer cursos que fossem voltados para atender as necessidades do Gato, e até comercializar para outras agremiações de pequeno porte que não tem condições. Só que na época, nessa eleição houve uma questão assim bem delicada, inventaram um conselho administrativo e não teve eleição popular, e dentro desse conselho administrativo nós não fomos eleitas, porque eu era presidente e a Eliana era vice, e depois eu falei assim, - não, eu não quero mais, até porque eu estava me mudando também, agora uma coisa que eu digo, se tivesse um pessoal sério, legal lá trabalhando e que realmente tivesse, o interesse fosse a questão cultural, a questão da inserção, que fosse uma coisa real, eu até colaboraria, até participaria, não vou dizer, a participaria de leve, não sei, porque eu não sei fazer nada de leve, eu ia começar, daqui a pouco quando ia ver, eu já estava até dormindo aqui, mas porque eu acho que isso não pode morrer, porque é a cultura de um povo, é a história de muita gente que começou, que se conheceu, que casou e que tem essa referência não só com o Gato, mas com toda questão cultural, porque eu acho que faz parte da nossa memória. Eu agradeço muito a Deus por ter tido a oportunidade de ter todas essas vivências, de todas essas nuances, de várias coisas na minha vida que eu já vivi, eu sou ativista sindical. Então, isso me deu condições e capacidade para matar um leão por dia, porque a gente enquanto mulher nesse cenário, a gente tem que ter muita garra, muita força e encarar e correr atrás da nossa luta, do nosso sonho, não deixar ninguém dizer, (você não pode isso, você não vai fazer), não, se você quiser você vai fazer. Tem que querer mesmo, mas você vai conseguir, e eu acho muito legal essa oportunidade de estar aqui contando, acho que um décimo da minha história né? E gostaria de falar mais, ter a oportunidade de uma coisa assim só do Gato, porque o Gato tem tanta história, mas nessa coisa do Gato se a gente fosse falar, eu queria trazer o meu pai, porque ele fez parte da história do Gato todo tempo, ele que levou a gente, ele conseguiu envolver, e o meu irmão também foi presidente do Gato, o meu filho mais novo não gostava, mas depois até queria ser mestre-sala do Gato, porque a nossa família, os 03 meses que antecedem o carnaval, a gente praticamente morava na quadra, muitas vezes eu saia do Gato cinco e meia da manhã, tomava um banho e ia para o trabalho, tomava banho, tomava café ia para o trabalho. Então muitas pessoas que você conversar, vai dizer assim, “na época da família do Adevanir ou o Zagalo”, que é o apelido do meu pai, “o Gato era outra coisa, o povo fala, “quando é que vocês vão voltar para o Gato, o Gato morreu”. Falei - calma, o Gato não morreu; eu tenho esperança, porque gato é sete vidas, então a gente não gastou todas, e eu tenho esse sonho que mesmo que não seja eu que realize, mas eu quero deixar essa proposta de uma semente para os jovens que estão chegando, os jovens que estão tendo oportunidade de estar estudando e preservar essa memória que é a cultura do nosso lugar, de conseguir levar o Gato, porque eu ainda ei de ver nem que não seja desse plano, o Gato lá na Marquês, mas o meu sonho era o Gato contando a história da Maré, da sua origem, como ele surgiu, da onde ele veio, porque rolou isso ou aquilo, e eu ainda vou ver isso. E olha, eu sou pé quente quando eu falo uma coisa, ela pode demorar, mas acontece. Muito obrigada a vocês pela paciência, e é muito bom que tenha N projetos como esse e que vocês continuem falando não só do Gato, porque a nossa comunidade ela tem uma história muito rica em vários aspectos, em vários sentidos, por exemplo, a gente teve competidor em olimpíadas aqui no Luta pela Paz. Esse ano teve um cara da Maré também, não sei se ele foi através da Luta pela Paz. A gente tem N coisas, pessoas que foram para balett lá fora, lá no Bolshoi. É o que eu digo, uma comunidade é um mundo, e é como uma colcha de retalho, e vocês que são historiadores e que querem mostrar essa história para o mundo, você não imagina o orgulho de ter tido a possibilidade de falar nem que seja um pouquinho, mas eu ainda consigo falar para mais umas 10 entrevistas como essa. Foi um prazerzão gente, muito obrigada, obrigada às meninas pela paciência. Foi muito bom estar aqui com vocês.
02:25:16
P/1 - Obrigada por compartilhar conosco essa história maravilhosa, história da Maré, história do Gato, muito obrigada por compartilhar.
R - Valeu gente!
P/1 - Obrigada Roseni, obrigada equipe pela parceria!
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