Memória dos Brasileiros – Módulo Maués – Saberes e Fazeres
Entrevistado por André Machado
Depoimento de Maria Mazará
Maués 25/01/2007
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista MBCB 001
Transcrito por Augusto César Mauricio Borges
Revisado por Thiago Majolo
P- Dona Maria, boa tarde.
R- Boa tarde.
P- Então pra começar eu gostaria que a senhora dissesse pra gente o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R- O meu local de nascimento é aqui em Maués mesmo.
P- E a senhora nasceu quando?
R- Eu só sei pelo meu registro e a coisa que está aí. Espia aí.
P- E qual o seu nome completo Dona Maria?
R- O meu nome é Maria Mazará, é só que tem porque tiraram o sobrenome, né, porque o meu era Maria Mazará dos Santos e aí tiraram e só ficou Mazará. Não botaram os Santos.
P- Quando que tiraram?
R-Quando eu fui tirar o meu registro por causa do meu pai que era casado no civil e no católico, então tiraram o da minha mãe e ficou só o do meu pai.
P- A senhora nasceu no dia 30 do cinco de 1933 está dizendo aqui o seu filho.
R- Foi.
P- Então quando foram registrar a senhora tiraram os sobrenomes, é isso?
R- Tiraram. Tiraram o meu sobrenome.
P- E qual que era o nome dos seus pais?
R- O sobrenome da minha mãe era Maria Pereira dos Santos, o sobrenome da minha mãe, mas como eles eram casados no católico e civil puxou só o do meu pai. Então ficou Maria Anésia Mazará, tiraram os “Santos”, assim ficou o meu também.
P- E o nome do seu pai qual que era?
R- Antonio Sérgio Mazará.
P- E o que eles faziam?
R- Eles faziam plantação nesse negócio de roça, de legumes, era só. Naquele tempo você usava o guaraná, e aí parou.
P- E eles eram daqui de Maués também?
R- Era tudo aqui de Maués.
P- E seus avós também era de Maués?
R- Os meus avós eles eram do Peru, o meu bisavô.
P- Isso por parte de mãe ou de pai?
R- De mãe.
P- A senhora sabe de que lugar do Peru?
R- Não sei. Agora isso eu não sei porque quando os meus pais morreram eu fiquei com seis anos, eu sei assim porque a gente assim procura saber com os mais velhos. Mas tem os meus irmãos mais velhos que sabem disso tudinho.
P- E quantos irmãos a senhora teve?
R- Nós era quatro, morreu a minha irmã que era irmã e mãe de criação, ela morreu e só está os dois irmãos. Um mora em Manaus e o outro está aí.
P- E eles estão fazendo o que da vida agora?
R- Nada mais porque já estão velhos, estão só vivendo mesmo.
P- Mas quando eles eram mais jovens que profissões que eles tiveram?
R- Ah, eles trabalhavam de guaranazal. Mas só que abandonaram e os filhos não cuidaram também e aí foi embora e acabou-se tudo. Estão só vivendo já do aposento deles, e aí pronto; acabou-se com tudo.
P- Só a senhora que continua no guaranazal?
R- Só. Só eu que continuo no guaranazal porque o meu marido deixou ainda esse guaranazal pra mim.
P- E diz pra mim, como é que era Maués na infância da senhora?
R- Maués na minha infância quando foi produzida ele só era ainda uma ruazinha quando a gente veio pra cá, que tive aqui ainda. A gente morava aqui e só era uma rua. Depois foi continuando e fizeram duas e de lá agora continuou. Aumentou a cidade, mas era bem pequena, era interior mesmo.
P- O que mais que tinha de diferente em relação a hoje?
R- Diferente? Posso nem agora lhe explicar direito, porque o senhor sabe que quando a gente é jovem a gente não entende de quase de nada mesmo não presta atenção, e aí a gente fica por aqui.
P- E a senhora estudou?
R- Só uns livros porque naquele tempo nunca existiu aula.
P- Como é que era?
R- Estudei em casa com o meu cunhado, era o meu cunhado e pai de criação. Ainda me ensinou, sempre me ensinou o abecedário. Eu faço só o meu nome só porque não existia aula. Agora não, não aprende quem não quiser mesmo.
P- Não tinha escola antes?
R- Não, não. Pouca gente no tempo que eu me criei. Tem muita gente analfabeta que não sabe. Tem gente que não sabe nem mesmo fazer o nome. Eu ainda posso fazer o meu nome, eu faço ainda só que a minha vista já não dá mais, eu estou doente da vista.
P- Como que era a casa da senhora aqui em Maués quando a senhora era criança?
R- A maioria de nós morava mais no interior. A gente tinha casa em Maués, mas só pra viver mesmo, mas que nós parava mais era no nosso interior.
P-E como que era essa casa no interior?
R- Casa mesmo no chão e coberta de palha porque não podia fazer de outro jeito, né, tinha que ser assim.
P- E a senhora gostava de brincar de que?
R- Nós brincava mesmo assim quando brincava de criança assim de boneca, brincando com os outros assim de brincadeira de boneca, fazendo uma roupa, fazendo um crochezinho, um bordadinho, isso que era o trabalho da gente quando a gente era mais jovem.
P- Mas qual dessas coisas a senhora gostava mais de fazer?
R- Era fazer ponto de marca, bordado que chama. Costura também de costurar eu costurei bem. Eu era costureira ainda, eu fui muito costureira. Agora hoje em dia eu não costuro mais não.
P- E quando a senhora era jovem o que a senhora gostava de fazer?
R- Era fazer trabalho de doméstica, cozinha, e a fazer limpeza em casa. O meu trabalho era só trabalho mesmo de casa: vigiar criança e fazer as coisas mais que tinha que fazer. Era só porque estudo não existia pra dizer “eu vou estudar” porque...
P- E do trabalho de casa o que a senhora gostava mais de fazer?
R- Criança era lavar roupa, tomar conta de lavar as vasilhas por ali, varrer casa era o meu trabalho.
P- Aí a senhora disse pra gente que o seu marido tinha o guaranazal que deixou pra senhora, não é isso?
R- É deixou, o meu marido deixou.
P- Mas foi quando a senhora casou com ele que a senhora começou a mexer com guaraná ou a senhora já mexia antes?
R- Ele já tinha o guaranazal.
P- Mas a senhora já mexia com guaraná antes de casar?
R- Não, ainda não. Vim mexer com guaranazal depois de eu me casar com ele, mas ele já tinha o guaranazal já pronto já. Quando eu me casei com ele a gente já foi pra lá pra trabalhar no guaraná.
P- E o que a senhora fazia na cultura do guaraná? A senhora ajudava de alguma forma?
R- Ajudava. Nós íamos no guaranazal, tirava o guaraná da árvore, chegava pra casa e ia polir e aí fazer a torração do guaraná.
P- A senhora fazia a torração também?
R- Fazia.
P- Tinha alguma coisa assim que só o seu marido fazia e outras só a senhora fazia ou não, tudo mundo fazia tudo?
R- Mais era ele que fazia o trabalho porque ele andava pelo mato, tirava, caçava por ali. Sabe que o homem pra sustentar família tem que se virar de qualquer maneira. E assim era ele.
P- E quantos filhos a senhora teve?
R- Dez. Oito filhas e dois filhos, quatro filho parece porque morreu dois casais.
P- Ainda pequenos?
R- Pequenos, recém-nascidos. E ficou os dois que é o caçula e a caçula que ficou lá em casa. Mas tudo já tem o seu “pé de botas”, mas até aqui, graças a Deus, eles me ajudam. O pouco que têm eles sempre tem me ajudado, tanto pode ser os homens como as mulheres.
P- E estão todos em Maués?
R- Eles param no interior e, às vezes, eles vêm aqui me ver em Maués e voltam pra lá e sempre estão comigo aqui em Maués e passam semanas, meses e eles comigo aqui. E eles estão pra lá, param mais para o interior eles.Quem pára mais comigo é essa que vai comigo para Manaus, essa pára, é afetiva comigo, porque eu não posso fazer quase nada e ela faz as coisas por mim.
P- E a senhora está indo para Manaus por que agora?
R- O meu genro está muito doente, está sem esperança de vida e a minha filha chama que eu vá pra lá.
P- E é a primeira vez que a senhora está indo para Manaus?
R- Não. Já faz cinco vezes com essa agora. Eu tive com o meu marido doente em Manaus, passei sete meses em Manaus com ele doente, fui a primeira vez, fui a segunda, fui a terceira, fui quarta e acabou vindo morrer aqui em Maués mesmo.
P- Foi só quando o marido da senhora ficou doente que a senhora foi para Manaus?
R- Só. Só quando ele adoeceu mesmo que eu fui para Manaus passar um tempo com ele pra lá. E o que a senhora achou de Manaus?
P- É bom, só que a gente não anda como a gente andava aqui em Maués, porque lá é sempre tudo privado, é tudo fechado. Não me dei muito lá, mas no caso de a gente ir a gente vai, um passeio a gente vai. Não pra morar não, não tenho vontade de morar em Manaus não, moro aqui em Maués.
R- E a gente está perguntando aqui para as pessoas o que é preciso fazer para ter um guaraná de primeira qualidade, um guaraná bom mesmo?
P- É tirado da árvore e cuidado no mesmo dia, cuidar no mesmo dia assim pra limpar ele pra torrar e aí ele dá. Não é minha filha que dá?
R- Mas como é que tem que fazer, a senhora tira da árvore?
P- Vai catar, lava ele bem lavadinho e aí vai torrar ele.
R- E como é que torra?
P- No forno mexendo. Fogo de baixa no forno.
R- Demora muito tempo para torrar?
P- Não. Não demora muito não. Aí a gente pega a peneira e peneira tudinho pra tirar o que já está torrado pra torrar bem os graúdos e dá.
R- E a senhora sempre vendeu em grão ou a senhora fazia bastão?
R- Não. Hoje em dia tudo em pila assim em saco, sabe? Empilado assim. Sacava ele pra vender ele, agora é empilado.
P- O seu marido não fazia a pilação do guaraná?
R- Não, não fazia não. Nunca ele fez pilação do guaraná.
P- Por que eles não preferia fazer a pilação?
R- Porque ele tinha muito trabalho. Naquele tempo era só nós dois e tinha os meninos, mas eles estavam muito pequeno e não dava pra ajudar. Depois que os meninos cresceram mais e já dava pra ajudar aí melhorou mais um pouco.
P- Como é que fazia para plantar o guaraná, se plantava por semente?
R- É por semente. Por exemplo, cada guaraná debaixo da árvore aí tem aquela semente e naquela semente tinha aquela frutinha e aí a gente pega aquela frutinha dela aquela raizinha dela pega aquela terra bem amassadinha, bem amassada mesmo no toco do guaraná e aí faz as covinhas dele e vai plantar. Pisa bem em cima e faz a casa por cima e com prazo de dois meses já está arrebentando que é uma beleza.
P- Mas para começar a colher é rápido também ou demora no tempo?
R- Demora. Passa uns quatro anos, mais de quatro anos pra dar, mas quando ele vem bonito até antes de quatro anos dá.
P- E a senhora usava adubo no guaraná?
R- Não. Nunca nós usamos. Adubo só da terra mesmo.
P- Por que? A senhora usa ruim usar adubo?
R- Porque eu vou lhe dizer: com o adubo ele dá logo no começo ele dá bonito. Agora vai, vai, vai, vai e aí do meio para o fim as árvores vão morrendo e vai dando uma doença no guaraná e pronto, não presta não. Amanhã os meninos vão trabalhar lá e vão replantar, vão plantar de novo por onde já andou morrendo as árvores.
P- E a senhora toma guaraná?
R- Tomo.
P- Todo dia ou de vez em quando?
R- Não agora porque nós não temos. Os meninos não tiraram o guaraná e tiraram e venderam tudinho. Não tiraram nem ra fazer mesmo um pãozinho pra gente tomar ele. Mas a gente toma, pelo menos no tempo do meu marido, Deus o livre se ficava sem o aquilo, não. Mas eu como aqui quando tem.
P- O seu marido tomava todo dia?
R- Tomava, ele gostava.
P- E como que ele tomava?
R- Ralado. Você rala, não tem aquela língua que chama a língua de peixe? Faz-se o pão e daquele pão a gente vai e rala em cima do papel. Rala tudinho e depois vai temperando no copo. Quer tomar com açúcar toma, quando não toma simples mesmo.
P- Mas quanto de guaraná que põe?
R- Só mais um pouquinho porque guaraná novo ele é forte. Tomar muito ele...
P- Existe diferença entre o guaraná novo e o guaraná mais velho?
R- Tem. Tem uma diferença porque ele já está mais fraco de quando ele é bem novo mesmo. Aquele bem novo a gente não toma ele muito forte não. Dá no cérebro da gente.
P- E tem que por esse guaraná num copo d’água grande, pequeno?
R- É. Põe no copo d’água, a gente põe o guaraná no copo e aí põe a água dentro e a gente mexe com colher num copo cheio de água. E aí tempera, quando quer tomar ele temperado toma, quando não; quer tomar simples, toma também.
P- E tomar guaraná pode fazer mal?
R- Não. Não faz mal a ninguém.
P- Nunca soube de ninguém que passava mal tomando guaraná?
R- Não. Nunca soube não. Guaraná sempre é fortificante, tem vitamina o guaraná.
P- Para que é bom o guaraná?
R- É bom para fraqueza, pra outras coisas mais. Até uma coisa também demasiar e beber demasiado ele também enfraquece a gente, dá fraqueza na gente. Você tem que tomar pouco.
P- Tem gente que toma com remédio?
R- É, tem gente que toma com remédio.
P- Para que doença?
R- Assim a doença, por exemplo, se a pessoa está com uma diarréia, né, pode tomar ele com limão. Até com uma pedrinha de sal para a pessoa que tem a diarréia.
P- A senhora podia explicar assim como se fosse numa receita? Põe tanto de guaraná, põe tanto de limão?
R- É, por exemplo, não tem aquelas colherzinhas de chá? Coloca com uma colherzinha daquela e coloca uns dois pingos de limão e uma pedrinha de sal e toma para a pessoa que está com diarréia.
P- Então Dona Maria. A gente também está aqui conversando com as pessoas e está perguntando pra elas se elas conhecem causos aqui da cidade, histórias da cidade, essas coisas que só tem aqui em Maués que o pessoal conta, que o povo conta. Têm algumas até que o pessoal conta e uns falam “ah, isso aqui é verdade; não, isso aqui é mentira e aquela coisa.” A senhora também acredita acha que “não, isso aqui é verdade”. Eu queria que se a senhora pudesse contar pra gente uma dessas histórias dessas. Eu sei que todo mundo aqui conhece várias histórias, se a senhora pudesse contar pra gente uma dessas histórias. Contaram pra gente a história do Anselmo, por exemplo, contaram pra gente a história do índio daqui do guaraná. Se a senhora pudesse contar pra gente essas histórias de Maués.
R- É porque desses antigos dessas histórias antigas assim eu não tenho lembrança de contar, porque como sabe eu fiquei com seis anos, mas tem meus irmãos mais velhos que eles sabem de tudinho, da história do Anselmo que as pessoas sumiram é verdade. E aí ele quer sair e não pode sair. Diz que só sai se ele levar um com ele e aí vai se desencantar. Quem que vai querer ir pra lá com ele. Mas diz que ele anda. Eu tenho uma filha, essa que morreu o marido dela, ela falou com ele. Ele subiu aqui e foi embora. Quando veio de lá ele falou com ela. Ele disse assim: “boa tarde minha filha.” “Boa tarde.” E aí ela ficou olhando pra ele, a roupa dele tudinho de peixe, desenhada peixe a roupa dele, o calçado dele tudinho e aí perguntou pra ela assim: “e aí professora, a senhora é professora.” E ela disse “eu sou.” “E você costura.” “Costuro.” E aí ele disse assim: “e agora, para aonde que vai o rio?” E ela disse: “o rio passa aqui olha, vai aqui nessa curva e vão embora. De lá o senhor dobra e vai no rumo do rio.” Ele disse: “está bem, muito obrigado, a senhora é muito educada, muito obrigado.” Ele sabia sim, só que eu acho que estava querendo que explicasse pra ele. Aí ele falou com ela, falou com o neto, falou com o meu filho tudinho e aí se despediu e foi embora. E era ele, o Anselmo.
P- A sua filha viu o Anselmo, é isso?
R- Viu, ela viu.
P- Mas o Anselmo é exatamente o que? Ele é uma cobra, é um peixe?
R- Não. É gente. Ele só enterra a gente, em gente, formatura de gente mesmo.
P- Isso aí quando ele entra no rio ele vira o que?
R- Ele vira cobra grande, vira cobra grande e aí ele fica rodiando aí.
P- E por que ele virou cobra grande?
R- Aí que ninguém sabe o porque; eu acho que foi uma oração, quem sabe, que a gente não sabe, mas ele sai sempre aqui. O pessoal que mora aí nessa ilha dessa praia grande aí.
P- Então a senhora acredita nessa história, a senhora acha que é verdadeira?
R- É verdade porque as duas filhas falaram com ele. É verdade mesmo.
P- Por fim, Dona Maria, eu gostaria que a senhora dissesse pra gente o que a senhora achou de contar um pouquinho, eu sei que é um pouquinho, mas o pouquinho da história de vida da senhora aqui pra gente? A senhora achou bom, ruim?
R- Não. Está bom. Muito bem graças a deus. Eu achei bom estar contando aí.
P- Então eu agradeço muito a sua entrevista Dona Maria, muito obrigado.
R- Obrigado também.
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