Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Maria da Cruz Santos
Entrevistada por José Santos e Thiago Majolo
Petronlina, 09/12/2007
Realização: Museu da pessoa
MB_HV096
Transcrito por Vivian Wolf Krauss
Revisado por Paulo Ricardo Gomides
P/1 – Vamos começar então, Maria?
R – Vamos.
P/1 – Queria que a senhora dissesse o nome completo, o local e a data de nascimento da senhora.
R – Meu nome é Maria da Cruz Santos, nasci aqui em Petrolina em 2 de maio de 1956.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – A minha mãe é Ana Leopoldina Santos e o meu pai José Vicente de Barros, meu padrasto, que eu considero como pai, o pai que eu conheci.
P/1 – E eles nasceram onde?
R – Minha mãe nasceu em Santa Filomena, Pernambuco, e papai nasceu em Itainópolis, Piauí.
P/1 – Eles se conheceram onde?
R – Em Picos, lá em Picos. Mamãe foi de Santa Filomena pra Picos fugindo da seca porque lá em Santa Filomena era muito, era não, é muito seco e ela foi, pra ver se melhorava a situação pra lá. E lá conheceu meu padrasto. Já era viúva, casou com ele, que ele é cego de nascença, é deficiente visual, ele não tem nem o globo ocular. Mas ela gostou da forma dele, do jeito dele e terminaram se casando os dois.
P/1 – Eu quero saber, Maria, o que seus pais fazem?
R – Minha mãe trabalhava com cerâmica com modelagem em barro. Ela começou aos sete anos, ela aprendeu esse ofício com a mãe dela. Só que antes ela confeccionava utensílios, pote, panela, que eram usados na época. Depois, aqui em Petrolina, já no ano de 1963, ela começou a modelar as carrancas no barro. Ela soube da história das carrancas de madeira e ouviu a história antes dela conhecer as carranca de madeira ela desenvolveu as carranca dela no barro. Ela imaginou o que era uma carranca, colocou no barro, ela imaginou que carranca é cara feia, como no dicionário mesmo fala que o significado de carranca é “cara feia”, e ela colocou um rosto, que ela interpretou, que ela achou que era aquilo, e foi bem aceito. Através disso ela deu continuidade ao trabalho. Mas antes disso ela... porque ela é uma pessoa, uma mulher muito religiosa, e ela estava passando por dificuldade, ela pediu a São Francisco e a Nossa Senhora da Conceição, e a Padre Cícero, que é o Santo aqui do Sertão, do Nordeste, que ela queria melhorar a situação dela, pra melhorar a situação porque ela tinha duas filhas e estava tendo problemas, estava com dificuldade de renda, de alimentação, de tudo, que não adianta a gente esconder o que se passa, porque é verdade. E meu padrasto cego não tinha, tinha poucos recursos pra ajudá-la. Ela pediu, fez, rogou, fez uma prece com muita fé. Ela foi pra o rio buscar barro, quando ela chegou lá no rio, ela começou a cavar – e também nessa época estava com problema porque o barro onde ela cavava tinha sido proibido, o pessoal não queria que cavasse barro naquele local – ela foi buscar água lá, quando ela chegou pra pegar água no rio, que ela pegava em lata pra levar pra casa, ela viu pé de muçambê no mês de setembro, com a sabedoria popular, como dizem, ela achou que no pé daquele muçambê ela, se ela cavasse talvez, ela fez a hipótese que podia cavar e achar barro. E assim ela fez, ela cavou e encontrou o barro no Rio São Francisco. E ela ajoelhou e agradeceu. E na concepção dela ela achou que tinha encontrado uma graça, porque ela pediu com fé e ela encontrou. E ela disse que quando ela bateu com a picareta na pedra que deu fogo, o atrito da picareta com a pedra deu fogo, ela disse que era a luz da fé: ela sentiu que daquele momento em diante que ela ia ser feliz. E por sinal foi, que hoje ela é uma mulher vitoriosa. Apesar de estar com problema de saúde, que acontece com qualquer pessoa, mas o objetivo dela ela alcançou. O primeiro objetivo foi receber esse espaço, e outro objetivo, muito bonito, que eu aprendi, eu achei, foi porque ela conseguiu passar pras filhas o amor que ela tem pela arte, a força, a vontade de progredir na arte ela conseguiu passar pras duas filha: pra mim, que sou filha biológica e pra Ângela, que é adotiva. Então essa é assim muita felicidade pra mim, porque ela teve a capacidade e talvez até o poder de passar, porque não é toda família que passa uma tradição pros filhos e ela conseguiu, eu acho que com a força, com a vontade a gente viu que ia dar certo e a gente tem assim em mente de tocar pra frente esse trabalho.
P/2 – Eu queria que você contasse um pouquinho, então a sua mãe está em Picos, no Piauí, não é isso? Conhece seu padrasto...
R – É.
P/1 – E quando que surge a ideia de vir pra, de...
R – Pra Pretolina?
P/2 – É.
R – É porque lá eles estavam passando dificuldade. Era período de chuva, eles plantavam, período de seca, mexia no barro. A coisa não estava andando, estava meio difícil. Eles resolveram procurar o Rio São Francisco. Lá em Picos mesmo eles souberam da notícia que Petrolina tinha um rio e esse rio não secava, não ia ter problema de água. Mamãe falou com minha avó que era pra cá que ela queria vir. Arrumaram o que tinha e vieram pra Petrolina. Vieram de Picos até Paulistana trazendo os pertences no lombo do jumento que tinha. E de Paulistana pra Petrolina vieram de trem – na época existia o trem que chegava até Petrolina que o tem parava do Bonfim pra Salvador. Assim eles vieram. Aqui chegando, encontraram o rio, foram bem recebidos, a cidade é acolhedora e o pessoal assim, muito, gostaram de muitos deles e aqui com o dinheiro que trouxeram já compraram um pedacinho de terra e aqui se radicaram, aqui ficaram. Começaram a trabalhar: a mamãe começou ainda a mexer no barro porque ela, lá em Picos ela, porque desde criança que ela já tinha aprendido com a mãe dela, ela deu continuidade a esse trabalho, só que ela trabalhava o barro, mas confeccionando somente utensílio.
P/2 – Que tipo de utensílio?
R – Utensílio, pote, panela, jarro. Porque naquela época, nos anos 1950, nos anos 1960, o pessoal utilizava muito porque não tinha tido ainda o advento do alumínio. era mais o pessoal das roças, das fazendas, que trabalhava muito, que usava muito os utensílios de barro pra poder confeccionar, pra poder cozinhar as comidas, pra fazer trabalho com farinhada, esses trabalhos assim de roça. Era bem aceito essas peças, esses utensílios na época. Depois, já aqui em Petrolina, no ano de 1963, ela começou a pegar o barro lá na (Refés?), ali perto da estação de trem, lá foi proibido, como eu falei pra vocês...
P/2 – Sim, aí...
R – Ela pegou e foi na prefeitura, pediu ao prefeito pra retirar o barro no rio, que ela já tinha encontrado barro, que eu falei a vocês que ela encontrou, fez o pedido, encontrou barro. O atrito do ferro com a pedra deu fogo, ela achou que era a luz da fé, e que daquele dia ia ser feliz... e ela foi à prefeitura pedir ao prefeito, porque naquela época o pessoal tinha muita vergonha. Ela não queria ser reclamada de novo, porque ela já havia sido reclamada antes. Ela disse que ela ia encontrar um lugar pra cavar o barro, mas queria uma segurança para que não fosse mais ser reclamada. Daí o prefeito disse que se ela encontrasse o local e comunicasse a ele qual era esse local, que ele liberava, ele deixava ela tirar. Quando ela encontrou ela foi lá dizer a ele. Ele disse: “Quando a gente vê mato na porta é sinal de negócio. O que é que você quer?”. Ela disse: “Eu quero um anzol, pra eu pescar”. Ele disse “’Você vai pescar o quê?”. Ela disse: “Vou pescar barro no Rio São Francisco”. Ele disse: “‘Oxente’, os outros pescam é peixe, você vai pescar barro?”. Ela disse: “É, porque, senhor prefeito, eu quero o anzol eu não quero peixe, porque o peixe eu cozinho e acaba, e o anzol eu vou pescar sempre”. Ele disse: “Ah, você é uma nega de coragem”. Ela disse: “Com muita honra que eu quero ser uma nega de coragem, porque eu quero ganhar o pão com o suor do meu rosto”, que antigamente tinha gente de vergonha, não que eu esteja dizendo que agora não tem, mas antigamente a palavra do pessoal era verdadeira, era uma palavra assim, que era igual um tiro, que batia e ali ficava. Com isso ela foi, comunicou que era no rio, que ela ia pegar o barro, ela pegou o barro. O primeiro barro que ela pegou, que ela foi com o meu padrasto, ela diz que era um barro bonito, um barro verdinho. Lá mesmo ela começou a modelar. Ela fez um barco, começou a pensar, eu acho que ela fez uma reflexão em cima, dentro do eu dela da vida dela. Ela imaginou a história que ela tinha ouvido das carrancas de madeira que serviam pra espantar o mau espírito e naquele tempo já tinham retirado, porque tudo, toda crendice ela passa: o pessoal acredita, acredita e depois tem um tempo em que o pessoal já não acredita mais, principalmente os filhos dos barqueiros, que já as barcas antigas os primeiros donos já tinham morrido, já quem estava trabalhando eram os filhos. Esses meninos mais novos não acreditava naquelas crendices de antigamente, as carrancas já não existiam mais nos barcos, porque antes diziam que as carrancas serviam pra espantar os espíritos maus que existiam nos rios, no rio, e também os peixes grandes, que antigamente existia surubim muito grande, jacaré, e quando o pessoal vinha com uma carga nos barcos os peixes, os jacarés abatiam, tiravam. E nos barcos que tinham carrancas, a carranca, em noite de lua cheia, refletia na água e os animais que vinham pra abater o barco pensavam que era um outro animal maior do que eles e se afastavam.
P/2 – Hum...
R – As carrancas, os barcos que tinham as carrancas faziam o percurso da viagem todinho sem problema nenhum, por quê? Os animais tinham medo das carrancas, porque ela refletia a luz da lua, da lua refletia na carranca e batia na água o reflexo, a sombra, está entendendo?
P/2 – Estou...
R – A sombra batia na água e eles se afastavam, o barco que tinha as carrancas não tinha problema nenhum. Minha mãe ouviu essa história todinha dos barqueiros. nessa hora que ela estava lá no Rio São Francisco fazendo a reflexão dela, que ela foi pegar o barro ela começou a modelar, e modelou. Só que ela modelou a carranca dela, da forma que ela entendeu, que ela não conhecia. O prefeito passou lá em casa, que eles, antigamente a rua, o bairro era pequeno a cidade era pequena, o prefeito fazia visita nas casas, nos bairros pra ver as necessidades. Passou lá no Gersino Coelho, no Cinzeiro, na época o nome do bairro onde a gente morava era Cinzeiro. Ele viu, minha convidou pra ele entrar, ele entrou, ele viu as peças que minha mãe tinha feito tal. Ele: “A, dona Ana, muito bem, que legal. A senhora está afirmando mesmo, é uma nega de coragem”. Certo, ele batia no ponto: “É uma nega de coragem”. A mãe disse “Está vendo? É pro senhor ver”. Ela ia botar, levar as peças pra feira pra vender, toda segunda-feira ela levava as peças pra vender na feira. Ela sempre levava algumas peças das que ela fazia pra o pessoal ver. Assim, eu também acho ela uma pessoa de muita coragem, porque não é todo mundo que mostra o que faz, não. E ela tudo, toda semana ela levava duas três pra, junto com as outras peças, porque vocês sabem o que é feira livre: o pessoal coloca as coisas no chão, não é em banca, é no chão. Ela botava as panelas, os potes, os barros, o que ela fazia. no meio daquelas peças ela colocava uma duas peças dessas de escultura que ela estava começando a fazer. Toda semana ela mudava, o que ela levava na semana passada, nessa semana ela já colocava outra. Vieram dois jornalistas de Recife fazer uma, como é que se diz? Uma reportagem sobre o parente irrigado, Bebedouro, o primeiro parente irrigado daqui. Jornalista gosta muito de arte popular e feira livre. Eles foram pra feira, estavam aqui na região fazendo o trabalho deles, foram fazer uma visita na feira. Quando eles chegaram lá viram aquele monte de gente “arrodeado”: as panela de mamãe, o pessoal estava mangando, porque o pessoal daquela época não sabia o que era cultura, o pessoal ria, bolava, porque mamãe fazia umas bonecas, fazia umas mulheres de vestido, fazia um monte de coisa, então era santo, e não era todo mundo que fazia aquilo. O pessoal ficava em volta das peças de mamãe, achando que era santo, e uns riam, bolavam, outros diziam: “Parece o cão”. Outros diziam: “Parece a cara de quem fez”, e mamãe pegava, defendia. Ela dizia: “Não, minha gente, acho que não parece o cão, não. Acho que a pessoa que faz isso nunca viu o cão, não. E também não parece a cara de quem fez, não, que isso está tão lindo que aquela pessoa não é nem tão bonita assim”. Ela sempre defendendo as coisas dela. Quando os jornalistas se aproximaram pra saber de quem era, ela já se prontificou: “Ah, é meu, meu amigo, você quer comprar alguma coisa?”. O jornalista “Não, a gente não quer comprar”, e se identificaram, disseram assim, que estava nascendo, pra concepção deles, estava nascendo uma artista popular no sertão pernambucano. Porque até então só ouvia falar de arte popular lá pro lado do Recife, Caruaru, que era o Mestre Vitalino, mas pra cá pro sertão, não. Eles disseram: “Oi, a senhora tenha a certeza que está nascendo uma artista popular em Petrolina. E a gente gostaria de fazer uma entrevista com a senhora, que a gente é do Diário de Pernambuco. Agora, a gente não vai prometer nada: a gente vai mostrar lá na redação. Se eles acharem por bem vai ser colocado no jornal, e se não, torço que todo mundo goste, o que já é uma forma de o seu trabalho ser divulgado”. Ela disse: “Tudo bem, não, meu amigo, eu não vou perder nada com isso. Se eu não ganhar, que perder eu não vou.” Ela é uma pessoa muito decidida, decidida mesmo. Ele disse: “Oi, amanhã...”. Mamãe disse: ”Hoje eu não posso largar meu trabalho porque aqui é meu ganha pão, mas amanhã pode ir lá em casa que a gente conversa”. Quando foi no outro dia os dois foram, amanheceram cedinho já estava lá. Ela ensinou tudo direitinho, quando demoram e tudo, eles foram. Quando eles chegaram lá, ela fez uma peça pra eles verem, eles fotografaram, fizeram aquele trabalho todinho de jornalista fizeram entrevista com gravador e tudo. Quando foi mais ou menos com, eles disseram: “Oi, não prometo nada, mas de quinze dias a um mês a senhora tem um retorno”. Quando foi com quinze dias, justinho, chegou uma pessoa da prefeitura, com um pacote. Ela disse: ”Meu amigo, o senhor vai ficar aqui pro senhor ver. Se for coisa boa o senhor fica calado, aqui mesmo fica, que só você sabe, se sair a conversa eu sei quem disse. E se for coisa ruim, você fique calado, não diz nada. E se for coisa boa você diz a todo mundo, que é pra todo mundo saber o que foi que aconteceu.” Quando ela abriu foi, era a primeira página do Diário de Pernambuco, foi com um jornal que circula em todas as capitais do Nordeste. Daí começou. Foi convidada pra exposição, pra feira de artesanato em vários locais, pronto, não parou mais. Quanto mais ela trabalhava, mais vontade tinha, mais chegava convite pra ela participar de exposição, de feira, dessas coisa toda, pronto. Até...
P/2 – Deslanchou...
R – Foi, com certeza. Já pensou se ela tivesse se omitido, ou não tivesse querido conversar com pessoal? Se ela fosse uma pessoa egoísta e dissesse: “Não, não quero não porque eu vou perder meu tempo”. Ela tinha perdido a chance de mostrar o trabalho dela pra outras pessoas. E com isso, até quando ela já estava pertinho de ficar doente, 2004, ela ainda deu entrevista, a gente tem, um senhor, até Carvalho Pinto veio, fez foto dela pra colocar na internet tudo, porque ela nunca se negou. Sempre foi uma pessoa, assim, aberta pra inovação.
P/2 – Sei.
R – É pela vida dela, eu acho que foi por aí.
P/2 – Então vamos voltar pra vida da senhora.
R – Da senhora não, de você, que eu não sou dona de nada.
P/2 – (risos) Desculpa.
R – De nadinha.
P/2 – De você.
R – Sim.
P/1 – Só queria que a senhora falasse um pouco antes do seu, do seu...
P/2 – Você...
P/1 – Você, desculpa.
R – Não falei de papai, não foi?
P/1 – Isso, do seu padrasto e...
R – Ah, foi, foi. Pois é. Ela conheceu ele em Picos porque o padrasto dela era cego também, só que ele não era de nascença, ele cegou depois de grande, teve um problema nos olhos e cegou. Ele era amigo, o meu padrasto era amigo do padrasto de mamãe. Foi através dessa amizade deles dois que mamãe conheceu ele. Ela dizia assim, talvez uma particularidade dela, uma história pessoal, mas eu achei muito interessante que ela me contou, que ela disse assim, que quando viva com o meu pai, ele era um homem, assim, muito mulherengo, ela sofreu muito com ele, essas pessoas bem danadas. Ela disse assim, que um dia, se ficasse viúva, queria uma pessoa, um marido, que tivesse olhos somente pra ela. Quer dizer, ela fez esse pedido não pedindo, que só queria uma pessoa cega, mas queria uma pessoa que só tivesse olhos pra ela. E Jesus escolheu um cego, porque esse cego só ia ter olhos pra ela mesmo. Depois de um tempo, ela refletindo, fez uma reflexão, ela disse: “Mas, menino, mas, menino, Jesus Cristo me ouviu, porque eu disse que queria um homem que tivesse olhos somente pra mim e José só tem olhos pra mim.” E é mesmo, eles já têm cinqüenta anos de casado, mas eu quero que você veja o amor deles. Ele passa o dia da sala pro quarto, me ajuda a colocar ela na cama, porque ela está sem andar, é aquele amor. E fica preocupado, todo dia ele pergunta “Minha velha comeu direitinho? Minha velha já lanchou?”, aquela preocupação com ela. E é isso mesmo. Ela arrumou uma pessoa que só tem olhos pra ela, direitinho. É bem interessante a convivência deles dois.
P/2 – Que bonito.
R – É muito bonito. E nisso, ela fez uma homenagem a ele: ela dá, em cada peça dela, quando ela estava trabalhando, ela dava um toque nos olhos pra simbolizar a cegueira dele. Ela pediu a ele: “Meu velho, eu queria fazer uma homenagem a você: eu queria colocar um toque nos olhos das peças pra simbolizar a sua cegueira, pra dar o sinal que você não enxerga”. Ela disse: “Está cer...”, ele disse: “Está certo, tudo bem. Você que sabe o que faz.” E também na época que teve aquela tomada do JN (Jornal Nacional), que (Pedro) Bial veio aqui, eu achei muito interessante a colocação que ela fez. Ela, ainda que ela estava com problema de dicção, ela não está falando direito porque o AVC agravou a garganta, ela disse a Bial que hoje ela é os olhos e ele é a fala, porque o casal é dois corpos e um só coração, ela disse que ela é os olhos, porque ela está vendo, e ele é a fala dela, porque ela não está conseguindo falar direito. Isso também me marcou muito porque a gente sentiu que era amor verdadeiro deles dois, é um amor que não é dessa terra, não. Veja, eu acho que foi Jesus que uniu, porque é muito bonito o amor deles dois, uma coisa muito profunda. A gente sente assim, dessa forma.
P/1 – Ele ajuda ela a amassar.
R – É, no trabalho dela ele ajudava ela a amassar, ele é quem amassava, e ainda hoje é ele quem faz esse trabalho pra gente, porque é muito cansativo. Se a gente for amassar o barro pra depois, começar a confeccionar as peças, a gente fica cansada, e ele faz essa parte de amassar o barro.
P/2 – Vem cá, então já aproveitando que a senhora já está falando disso, a senhora podia contar pra quem não sabe como é que é o processo? Primeiro...
R – Di...
P/2 – Busca o barro, daí o que tem que fazer?
R – É a gente mesmo que vai pegar o barro, final de semana, lá no rio, só que a gente não _____________, a gente já retira um barro que ele já foi retirado pra fora pra fazer lagoa de estabilização, lagoa de tratamento de água, aqui no rio. Eles tiraram o barro, colocaram numa parte, aquela sobra que já foi retirada é o que a gente está utilizando. A gente traz, coloca durante três dias umas vasilhas de pneu de carro que tem, durante três dias fica a infusão. Depois desses três dias, a gente coloca numa lona e ele amassa o barro com o pé. Vai amassando, amassando, amassando, fica igual a uma massa de modelar, aquela massinha que criança brinca na escola, daquele mesmo jeitinho. Ele amassa, depois que ele amassa ele ainda fica tirando todos os fragmentos. Todo fragmento que tem, pedrinha, raiz, é ele quem retira.
P/2 – E isso é que é cansativo fazer.
R – Pois é, mas ele gosta, ele gosta muito. Quando não está fazendo já diz: “Minha filha, já estou com saudade.” Porque ele amassa, uns 50, entre 45 e 50 quilos de cada vez. A gente coloca num saco, a gente não trabalha ele todo duma vez, vai trabalhando aos poucos, sabe? Quando tem muita pessoa na loja a gente vai, faz mais encomenda, vai trabalhando aos poucos. Demora um pouco, vamos dizer, demora uns oito dias, doze dias, quinze dias pra terminar aquele barro. Depois ele torna a fazer o mesmo serviço. É assim. E é um trabalho tão gostoso de trabalhar, eu acho que vira vício o barro. Quando a gente não pega no barro a gente fica com saudade, sabe? Não sei se é porque a gente já está desde pequenina. Eu nasci nem os dentes, mamãe já mexia no barro. Já virou vício, e um vício muito bom, que não faz mal a ninguém, a gente faz é lucrar, ganhar dinheiro com ele. É legal.
P/2 – E depois amassa?
R – Você amassa...
P/2 – E como é que constrói a peça?
R – Depois faz a peça, dependendo da imaginação da gente. Vamos dizer que eu quero fazer uma carranca mais ou menos daquele jeito ali. Eu começo a peça, vou começando, armo. Depois de armar a gente deixa ela tomar consistência, depois é que vai dar acabamento. Dizendo não dá muito pra entender, só vendo fazer. quando vocês quiserem eu vou dar uma demonstração.
P/1 – Ah, que ótimo!
P/2 – Que bom! Isso ajuda muito a entender.
R – É, porque só dizendo assim é difícil de entender, é melhor que a gente vá fazendo os passos que a pessoa vai sabendo mais ou menos como é que é feito.
P/1 – Aproveitando, vamos falar um pouquinho da sua infância agora.
R – Minha infância?
P/1 – É, como é que era a cidade?
R – Não, pelo amor de Deus, não fale de minha infância não que eu estou por aqui pra fazer um memorial pra minha escola, lá pra faculdade. Eita coisa que a gente tem que relembrar, lembrar e relembrar. Como era a cidade aqui de Petrolina?
P/2 – É, sim.
R – Era uma cidade bonita, sem violência, comum. Hoje é bonita, mas eu acho que antes era ainda mais bonita porque tinha muita, a natureza era mais natural, como se diz, ela era mais natural, porque hoje em dia, modificou muitas coisa. O rio está modificado, colocaram aquela, a orla, que na época que eu era criança não existia a orla. A gente descia, chegava à margem lá embaixo sem ter aquela parte de concreto. As lavadeiras, tinha as lavadeiras, as mulheres lavavam roupa no rio. Era bem, totalmente diferente. As ruas eram na areia, a gente brincava muito, era muito bom, era assim, era bem legal.
P/2 – E a senhora gostava de brincar de quê?
R – Oxe, eu brincava de matança, a gente brincava de pega. Brincamos de boneca, brinquei de boneca até quinze anos. Bem grandona brincando de boneca com as colegas. Com as caixas de boneca. Era muito bom.
P/1 – O que é matança?
R – Matança é brincar com a bola. Fica duas turmas, uma turma dum lado, outra turma do outro, daí a gente vai jogar a bola pra bater. Se bater na outra colega ou no outro colega do outro lado ele está morto. Pra ver quem mata mais. Ah, o lado que sobrar mais criança, mais jogador, é o lado que ganha. Por isso que chama matança, porque o jogo vai matando, vai matando. (risos) E é assim.
P/1 – Como que era o rio aqui, era muito diferente do que é hoje?
R – O rio?
P/1 – É.
R – Era. A água bem limpinha, bem cristalina, bem limpinha mesmo. E o pessoal, as famílias iam no final de semana. Muitas vezes, o pessoal tinha muito medo porque é perigoso afogamento – por sinal perdi dois parentes, é que se afogaram. Um caiu e o outro foi acudir, morreram os dois, agarrados. O pessoal não tomava muito banho de rio quando eu era criança. Depois dessa descoberta da Ilha do Rodeador que o pessoal vai mais, mas antes o pessoal quase não ia tomar banho, porque era muito perigoso, ele é muito perigoso. É fundo. É perigoso. Mas as famílias iam, tiravam foto, passavam a manhã fazendo piquenique na beira do rio e tudo. Era bem legal. Muito legal mesmo. E de Petrolina o que eu mais admiro é a catedral e o rio. Eu acho que nenhuma outra cidade não existe outra muito bonita, a catedral mesmo vocês já foram?
P/2 – Já.
R – É muito bonita. Muito bonita mesmo.
P/2 – É linda.
R – E o rio também eu acho bonito. A ponte, muito bonita. As coisa que a gente tem que nem outras cidades não tem e a gente não quer abrir mão, eu, a gente passou uma temporada no Grande Recife. Mas eu chorava todo dia pra vir embora, todo dia eu sonhava com Petrolina. Era. A gente foi passar um tempo lá, eu fui com mamãe. Era muita saudade. Danada. E quando era à noite eu dizia, chega a dar aquela dor por dentro, parecia que eu ou vinha me embora, ou vinha. (risos) Era. _________
P/2 – E do quê que a senhora brincava com as suas irmãs?
R – Com minhas irmãs? A gente brincava de casinha. De boneca, que antigamente, hoje em dia as meninas não brincam mais. Não, não brincam mais, não, as meninas hoje em dia só querem namorar. Antigamente a gente brincava até grandona. Era. De boneca. Cada uma tinha a sua casinha. Fazia a sua casa, tinha seus bebês, aquela coisa toda de menina. Que já é da genética mesmo da mulher, ter aquela forma de procriar, de ter filho e tudo, dessa forma. E a gente brincava que só de boneca. Cada um tinha sua casa, era legal.
P/1 – E como que era na sua casa, trabalhava também, ajudava a mãe, como que era?
R – Na, na, em casa?
P/1 - _____________________
R – Era, eu trabalhava, eu estudava, sempre mamãe quis que a gente estudasse, que ela dizia assim, que não queria que a gente tivesse, sofresse como ela sofreu, porque ela sofreu muito na época dela, de adolescente pra criança, era difícil, sei que elas não estudaram, na época minha avó não deixava estudar. E trabalhava em roça, e ela não queria isso pra gente. Ela dizia que era pra gente estudar pra gente ter um futuro melhor do que o dela. Era assim. A gente ia pra escola, depois, a manhã a gente passava na escola, depois almoçava, descansava um pouquinho depois ia ajudar ela no barro, ia ajudar ela a fazer as peças. E assim a gente já aprendia. A gente só brincava de domingo, final de semana, a semana inteirinha a gente ajudava. Além da gente ajudar no serviço de casa a gente ajudava ela no barro.
P/2 – Como é que era que, como é que vocês ajudavam?
R – Fazia as peças. Porque ela fazia as peças pra levar pra feira, e nessa época quando eu era criança, ela não fazia carranca ainda não, fazia mais utensílio, tinha que fazer vários, pra poder fazer um monte, pra poder levar pra feira pra vender. Quanto mais ela levasse, mais ela vendia, mais ganhava dinheiro. Ela, a gente ajudava, fazia, ela fazia as peças maiores, e a gente as pequenas, com minha irmã.
P/2 – Ah, você já sabia fazer peça inteira?
R – Já sim. A gente não fazia toda: a gente começava e mamãe dava o acabamento. Era assim, a gente levantava as peças, os bolos, como ela chamava, mamãe dava o acabamento, porque quando, vamos dizer que eu, eu levantava dez peças, essas dez peças que eu levantava, ela já vinha levantada já, só dava o acabamento. Já agilizava o trabalho dela já ajudava no trabalho dela. Era assim. Quando ela já começou a fazer as carrancas, quando ela pegou encomenda pra doutor Oso, doutor Geraldo, pra _________, a gente já, quando ela terminou dez eu já consegui fazer uma sozinha. ela ficou maravilhada, muito contente, porque eu já estava tentando ajudar ela com a peça que eu fazia, começava, eu mesmo terminava, não era necessário que ela me ajudasse. E era tanto que minha irmã mais velha, a mais velha do que eu, ela sabe fazer utensílio, mas não sabe fazer carranca, porque na época que minha mamãe começou a trabalhar nas carrancas minha irmã casou, foi morar na casa dela, foi cuidar dos filhos dela. E eu não, fiquei em casa ajudando ela, pronto, eu me dediquei mais, tanto ao estudo quanto às peças, à confecção das peças, tanto que hoje eu que dou continuidade ao trabalho. Eu e minha irmã adotiva.
P/1 – E quando você viu a primeira carranca da sua mãe, o que você achou daquilo?
R – A primeira dela? Eu achei muito interessante, e, assim, eu achei que ela era de muito potencial, principalmente por ela ter coragem de mostrar o que fazia, porque não é todo mundo que tem coragem de mostrar o que faz, tem gente que faz coisa tão bonita e esconde, não quer mostrar, fica com vergonha, fica pensando que as pessoas vão rir, vão mangar. Porque naquela época o pessoal mangava muito das coisas. De tudo o pessoal mangava: botava apelido no povo. Hoje que não tem mais isso, e eu acho tão interessante. (risos) O pessoal ria. Mas era mesmo! Olha, quem é da minha geração, que eu sou de 1956 daquela geração 1950 até 1970 sabe que o pessoal daqui era mangador. Pense! Mangava com a, se a pessoa tivesse um defeito o povo mangava. Se a pessoa fosse dessa cor aqui, ave Maria, era mangado que só! E a discriminação que era lá em cima. Pense. O pessoal diz: “Não, é o negro que se discrimina”, é não. Só quem sabe o que é racismo é quem tem pele escura. Quem não tem não sabe, não. Ainda hoje eu acho que o pessoal acha que é a gente quem se discrimina, mas não é não: vai lá ter pele escura pra tu ver o que é. Porque ainda hoje prevalece aquela história de boa aparência. O que é ter boa aparência? É ser loiro, olhos claros e cabelo liso.
P/2 – Está feito.
P/1 – (risos).
R – Olhe, um cabra de...
P/2 – Só falta o cabelo só!
R – Um cabra de boa aparência.
P/2 –Vamos alisar o cabelo.
R – Não, mas não sei lá pra vocês lá pra São Paulo, mas aqui é assim. É, aqui em Petrolina é assim. Eu não tenho revolta disso, não, porque eu sou assim, eu quero, eu quero ir atrás dos meus objetivos, eu me importo pisar alguém por o que eu quero. É o que eu quero, eu não posso me aniquilar, me anular por causa do que o outro diz. “Óie”, é tão interessante, que aconteceu um fato agora, vocês não estão me perguntando, não, mas eu vou dizer. Que eu cheguei na minha turma, no primeiro dia de aula, agora o ano passado, o ano retrasado, que eu comecei a faculdade.
P/2 – Faculdade de quê?
R – Pedagogia. Uma colega minha disse, mesmo, assim – depois foi que ela me disse, que ela é da minha equipe e ela me disse: “Da Cruz, no primeiro dia de aula que tu chegou lá eu disse: ‘O que essa senhora está fazendo aqui?’”. Quer dizer, o mesmo que ela estava fazendo: eu estava correndo atrás do meu objetivo, do que eu quero, não me importa o que o outro diga, eu estou correndo atrás do que eu quero, não é verdade? Do que eu almejo, de onde eu quero, o que eu quero alcançar. Depois ela me disse, eu digo: “Mas, Jô, mas ______ eu não acredito, não”. Mas ela disse: “Foi”. Eu disse: “Tudo bem _____, eu não vou ficar com raiva de você por causa disso, não. É mais um incentivo pra gente, pra mim, eu quero é fazer sabe o quê com você? A gente vai competir: você com sua idade baixinha”, que eu tenho duas, ela tem trinta e poucos anos e eu tenho 52 a gente vai competir, “Vamos ver quem é que vai chegar lá, se é você ou se é eu, ou nós duas vamos chegar juntas. Eu desejo que a gente chegue junto, ao mesmo tempo. Mas vamos competir, vamos ver quem é que tem mais coragem, se é a velha ou se é a garotinha”. Ela riu que só. Mas eu não tenho raiva disso, não, é bom porque é mais um incentivo pra eu não desistir, pra eu ir até o fim. E eu estou determinada.
P/2 – Claro. E já que você está falando agora de escola, de universidade, conta como é que era a escola primária.
R – Não queira saber, não. (risos) Era no tempo da palmatória, nos anos 1970, era. Aluno era, naquele tempo do, como é que se diz, aquele tempo que o pessoal foi exilado, como, tem um nomezinho.
P/2 – Naquela época? Ditadura.
R – Da ditadura. Muito bem! É isso mesmo, que aluno não tinha nem voz nem vez. A voz era do professor, porque o problema era tradicionalismo naquela época. Tudo era tradicional, o ensino era tradicional, tudo era tradicional, os professores. Ah, a lei era dela. Eu estou conversando demais?
P/2 – Não, isso a gente tem tempo de...
R – Achei que estava (risos), vocês estavam cochinchando. Porque eu presto muito atenção nas coisa.
P/1 – Desculpa.
P/2 – Não, acho que ele quer trocar a fita.
P/1 – Daqui quatro minutos.
P/2 – Troca duma vez.
P/1 – Então, vamos lá, Maria, você estava contando do período da escola, da palmatória. Como é que funcionava...
R – Sim.
P/1 – Conta pra gente essa história.
R – Era assim: no meu tempo, porque antes era a professora que batia, o aluno errava uma pergunta, porque antigamente era muito, como eles chamava arguição, como um questionário. Eles davam um questionário, a gente estudava, era pra gente saber, vamos dizer, dez perguntas. Você tinha que acertar todas, se você não acertasse o pau comia. Então no meu tempo já era diferente, era aluno contra aluno, porque parece que teve uma lei que o professor já não podia bater. Foi baixada uma portaria, alguma coisa desse tipo, que o aluno, que o professor não podia bater. Eles colocavam aluno contra aluno. O aluno me perguntava, se eu errasse o aluno me batia, e assim vice e versa, sabe, era desse jeito. Era. (risos) Até os anos 1970 ainda teve palmatória. Depois disso, aboliram, acabaram. Mas, e era muito assim, o aluno não tinha vez, não tinha voz. Era sempre que, sempre o professor que estava certo. Aquela época do tradicionalismo, aquela história bem tradicional o estudo bem tradicional, o professor falava e o aluno ouvia, desse jeito que eu estudei até o Ginásio. Era assim, que eu estudei o Ginásio numa escola municipal ou Estadual: o primário no Município e o Ginásio numa escola Estadual. Funcionava desse jeito, era bem tradicional, bem tradicional mesmo. Mas eu achei bom porque eu aprendi. Muita coisa que eu sei hoje, que eu vejo que o ensino de hoje ele está muito superficial. Os alunos aprendem se quiserem, se não quiserem não aprendem. Não tem aquela coisa de você ter que fazer. Se um pai bota pra um aluno. Ah, dá uma prensa no aluno pro aluno querer alguma coisa, a Justiça acha que o pai está errado, a... Não sei, não. Sei lá, pode ser até minha forma de pensar, porque a gente sempre é direcionado por o quê a gente aprende com os pais. Num, eu acho que não existe a liberdade demais, porque você sempre está condicionado àquilo que você aprendeu com seus pais, com os princípios da família, eu acho assim. Mas eu acho que muitas coisa antigamente era melhor do que hoje porque tinha mais pulso os pais, tinha mais determinação. Hoje é muito liber, liberal, é muita liberdade. escancara, como diz a história. Eu acho assim, não sei. Pode ser que seja, pode ser até que eu esteja errada, mas eu acho dessa forma...
P/2 – Não, imagina... você então teve, sempre estudou, a sua mãe fez questão de vocês estudarem, e ao mesmo tempo você foi se interessando pela profissão.
R – É. Pela arte. Eu acho que ela conseguiu, porque a gente via ela sofrendo, que as coisas antigamente não eram fáceis, era difíceis, tudo era difícil antigamente. Porque você tirar, “óie”, do ferro elétrico, que hoje existe, antigamente era ferro de brasa, as mulheres sofriam antigamente.
P/2 – Como é que funcionava o ferro de brasa?
R – Você não sabe, não?
P/2 – Eu sei mas quero que você conte (risos).
R – Era um ferro que existia que a gente comprava nas lojas bem ali tem um, tem dois, que aqui em casa ainda tem; colocava brasa dentro do ferro, fechava e botava no lugar que tivesse vento, pra poder o vento assoprar, o vento que soprava e o ferro esquentava, você passava nas roupas. Já pensou se o ferro tivesse um pouquinho de ferrugem, passasse na roupa branca, e teria de lavar tudo de novo? É muito sofrimento. Mesmo como cozinhar com carvão ou com lenha, que a gente cozinhou muito. É, com lenha você fazia a fogueirinha e botava a panela em cima e ia tendo cuidado pra aquele fogo não baixar, sempre estar bem, bem perto do fundo da panela, pra poder esquentar e a comida cozinhar. Bem assim era no carvão. No carvão tem lá o sugareiro, botava a brasa, acendia, pra poder aquele carvão estar sempre bem aceso pra poder cozinhar a panela. Era muito trabalho.
P/2 – E, Maria, como é que era conservar os alimentos sem geladeira?
R – Salgava. Tudo era salgado. Carne tinha que salgar, porque não tinha geladeira, salgava e botava no sol pra ficar sequinha, depois guardava. Fruta tinha que ser meio murcha, porque nunca tinha uma fruta bem, bem conservada porque não tinha geladeira. Mamãe comprava mesmo saco de laranja e a gente passava a semana chupando laranja. Mamãe comprava melancia também, muita melancia. Ela muito, gostou muito de alimentar a gente muito bem. Ela comprava, sempre comprava fruta pra gente na feira. Ela vendia as peças, ia comprando. Comprava feixe de cana, sabe o que é cana? O que faz a garapa?
P/2 – Sim.
R – Ela comprava cana pra gente quando criança. Melancia, laranja, banana. Sempre ela comprava fruta, a gente foi muito bem alimentado. Comia muita carne. (risos)
P/1 – É.
P/2 – E essa casa que vocês moravam, no bairro Cinzeiro, não é isso que você falou?
R – É. De taipa.
P/2 – Você podia contar como era essa casa, você se lembra?
R – Tu sabe como é taipa?
P/2 – Sei.
R – Pois a casa da gente era de taipa. De taipa é que não é de tijolo, é feita de barro. Vai pegando as bolas de barro, e vai fechando. Primeiro coloca os enchimentos, que são as madeiras, depois bota umas ripas, umas ripas, umas varinhas, vai amarrando com caruá. Depois está tudo amarradinho, vai enchendo aquelas parte que estão amarradas com os enchimentos com barro mole. Logo que enche todinha, o barro vai secando, depois ela fica toda sequinha. Então, mamãe mesmo, ela pegava e alisava tudinho, por dentro e por fora, porque ela tinha medo que escorpião, aquelas escorpião que não, “coisava” a gente, picava a gente, porque ele tem veneno. Ela alisava por dentro e por fora e pronto, ficava toda legalzinha. E tinha os cômodos, tinha a cozinha, tinha a sala, tinha o quarto, tudo arrumadinho. E ela quem subia, porque meu padrasto era cego, não podia, ela que subia em cima da casa pra retelhar, pra colocar as telhas. Quando estava chovendo, que tinha uma goteira, ela mesmo arrumava. Era assim. Era uma vida que talvez hoje as pessoas sentissem que era sofrimento, mas na minha época não era, não, era muito bom. A gente era feliz e não sabia. Porque não tinha violência, a gente não via muita coisa ruim, os vizinhos eram solidários uns com os outros, eram muito solidários. Era diferente de hoje. Hoje em dia o pessoal só, só quer é, ter assim, só tem amizade com quem tem as coisas. Tem só, o meu amigo não é por que você é, é por que você tem. E antigamente não, todo mundo na rua era amigo. A gente não via aquela divergência. Parecia família, quem tinha mais dividia com quem tinha menos. Era assim. Era bem diferente de hoje.
P/1 – O Maria, o que é caruá, que você disse que amarra a casa?
R – Caruá é uma planta, que até eu conversei, não sei se foi com ele, não, foi contigo mesmo, que lá em Conceição das Crioulas, que é um reduto quilombola – vocês já andaram lá?
P/2 – Não, ainda não.
R – É um reduto quilombola que tem numa cidade chamada Salgueiro, aqui pro lado de Recife, numa estrada que vai lá pra Recife. E lá eles têm uma planta que é parecendo, eu não sei nem comparar. Ela é parecida com essa plantinha assim, ela é assim, sabe? Abertinha. Só que ela tem fibra, e na fibra dela pode se fazer corda, e lá no pessoal que eu te falei eles fazem, eles tiram a fibra pra fazer bolsa, pra fazer boneca. Que lá onde eu falei, lá é um reduto quilombola, o pessoal ainda são descendentes de escravos.
P/2 – Sim.
R – Que no mês de março desse ano dois jornalistas, uma senhora e um rapaz fizeram o livro do Mulheres negras que fazem parte da história do Brasil. Vieram lançar lá, em Conceição das Crioulas, vieram deixar um, porque mamãe está nesse livro.
P/1 – Está nesse livro...
R – É. Veio quem com ela foi uma neta de Cartola, de lá da Mangueira, que ela também participou.
P/2 – Olha!
R – É.
P/2 – Que beleza.
R – É. Depois eu vou mostrar o livro a vocês, é bem legal.
P/2 – Então quer dizer que vocês moravam numa casa de (Itaquera?) uma espécie de uma escultura. Toda de barro, alisada pela mão da sua mãe.
R – Ah, era. Pegava uma tábua, pegava o barro mole ainda, ia ficando igual ao que está rebocado. Toda rebocadinha. Comprava tinta e pintava. No Natal ficava bonitinha, toda pintada (risos).
P/1 – Que beleza.
R – Era.
P/1 – E Maria conta pra gente...
R – A gente morava do jeito que dava num... tem que, tem que ser assim. Porque a gente não vai que querer a riqueza dos outros, então a gente tem que satisfazer com o que a gente tem.
P/1 – E tinha um cômodo especial que era o ateliê da sua mãe?
R – Tinha uma parte que ela, que era só do trabalho.
P/2 – Como era?
R – Era parecido com o outro restante da casa, só que só tinha as parede que eram encostadas, ela fez como alpendre, sabe? Do lado o alpendre e pronto, trabalhava ali. Não era fechado como o restante da casa. Esse lado de trabalhar, ele era aberto, um pouco aberto, tinha até pra ventilação, pra ficar mais ventilado. Trabalhava lá. E coberto também de telha, do mesmo jeito. Era.
P/1 – E, Maria, você vendo sua mãe todo dia trabalhando teve algum momento em que você disse: “Não, quero ser outra coisa, não artesã, quero ser médica, advogada.“?
R – Não, eu sempre quis ser artesã. Até porque quando ela começou a desenvolver o trabalho dela foi na época em que eu fiz magistério. Só que eu fiz Magistério pra eu conhecer e aprender como lidom ar a psicologia, a didática; pra eu colocar esses ensinamentos pra eu ensinar outras pessoas, porque meu Magistério que eu fiz não foi pra ensinar, assim, a ler, a escrever. Eu quis fazer Magistério pra eu poder aprender como lidar com as pessoas. Porque através do Magistério você tem Sociologia, você tem Psicologia essas outras matérias, essas matéria que a gente entende mais o ser humano, como lidar; a hora que a pessoa está com um pouquinho de tristeza, a hora que a pessoa está mais alegre. A gente tem que saber dosar o comportamento das pessoas. E foi através desse compor, desses ensinamentos que eu quis aprender pra eu poder passar, assim, o trabalho pra frente. Que eu achei assim, muito bonito, pra ficar só nela não, é melhor que passasse pra outras pessoas. Por sinal tem um rapaz, que ele, foi ele quem fez essa escultura aí, e ele morava lá na rua lá (do lado?) de casa. E através dela ele hoje é curador, ele fez História da Arte e está em São Paulo, também. Era muito amigo da gente. Assim, foi criado lá na rua, foi, ele foi criança lá na rua. Hoje ele tem mamãe como, como talvez mãe, alguma coisa. É que por sinal ele está trabalhando até na Universidade de Niterói e levou ela lá pra um evento, chamado Inti, Interculturalidade, que teve lá em Niterói. Ele levou mamãe na época ela ainda estava bem. Foi ela e minha irmã adotiva mais nova.
P/1 – Entendi.
R – Foi lá.
P/2 – E, Maria, o seu padrasto era deficiente visual. Como é que foi esse convívio com ele quando criança, ele precisava de cuidados especiais?
R – Não, porque ele já nasceu cego, ele aprendeu a se cuidar na escola, porque a família dele não teve acesso, que naquela época, veio começar a ter escola pra deficiente de pouco tempo pra cá. Pra trás não tinha, e ele não estudou nem nada, mas a mãe dele, a família dele, ensinou as coisas mais pessoal dele se cuidar, dele tomar banho, dele ir no banheiro, essas coisas assim dele, sabe se trocar e não teve problema, não, ele sabia tudo. E era um super pai. Nunca encostou um dedo na gente pra bater, e mamãe diz que ele, que casava com ele, mas que era pra prometer que não ia bater, não ia ser abusada, bater na gente. E é portanto ainda hoje ele tem cuidado, trata a gente como se fosse criança. Ele tem aquele carinho; quando eu vou embora pra escola eu: “Benção, papai, já vou.” Ele: “Deus te abençoe, Deus lhe acompanhe”, assim, muito legal com a gente ele.
P/2 – E qual, como que era o temperamento dele?
R – Ele era um, o temperamento dele era, ninguém mexia na ferida dele nem mexia com o que ele gosta, que todo deficiente é meio, assim, se a pessoa tiver, não tiver cuidado ele é meio agressivo. Mas não só ele, todos os deficientes. Agora eu acho papai uma pessoa muito controlada. Não sei se é pelo apoio que a mamãe dá, deu a ele, sempre que a família dele praticamente abandonou, porque veio embora, a gente veio embora pra Petrolina e eles nunca procuraram saber notícias dele nem nada. Ele tem a gente com muita segurança. E ele, eu não vou desprezar ele nunca, jamais, Deus me livre, porque foi a pessoa que mamãe encontrou pra ajudar a criar a gente, e a gente tem mais é que ser solidária com ele. Agora ele é muito, eu acho, \ uma pessoa que ele é, ele vivencia as datas que a gente que tem, que enxerga não tem essa capacidade. Se é Natal, ele entra no espírito de Natal. São João, Carnaval, sabe? Ele tem aquela vivência, ele consegue viver aquele momento. E ele é muito alegre, passa muita tranquilidade. Teve uma vez que uma mulher chegou aqui em casa, uma pessoa de condição, rica, que era, era dona de uma loja de móveis. A mulher chegou aqui se maldizendo, triste, aborrecida por problemas dela, não sei, problema alheio que ela não contou. Ele pegou, ele estava amassando barro, ele disse: “Minha senhora, não faça isso, não, que isso é triste, Jesus Cristo não quer isso, não”. E ele também é muito católico, ele passa o dia rezando. Ele tem (Ruzara?) ele gosta de rezar. A mulher disse: “Mas, seu Zé, eu estou passando por dificuldade, estou passando por isso, não sei o quê.” Ele disse: “Minha senhora, não faça isso, não, porque, olhe, pra mim o que é mais doce do que o mel, não existe doce mais doce do que o mel, pois pra mim a vida é igual um favo de mel.” Quer dizer, que foi uma lição de vida pra essa pessoa, porque ele nunca viu a luz do dia, não sabe cor nenhuma, ele não conhece ninguém por feição, e ele dizer que a vida dele é igual um favo de mel. Ele é uma pessoa que tem uma espiritualidade, eu acho, elevada, porque é difícil a pessoa ser desse jeito. E ele é assim, ele tem uma palavra de conforto; minhas sobrinhas chegam, porque são minhas sobrinhas, filha de minha irmã, ele considera todos como netos, os bisnetos tudo bisnetos, os meninos todos adoram ele, os pequeninos, que estão nascendo, filhos da minha sobrinha. Minha sobrinha chega: “Oi, Dé”, que ela chama ele de Dé, “Como é que está?”. “Oi, tudo bom!”. E conhece todo mundo pela fala, e dá conselho às meninas, chega conversando uma coisa, conversando outra, ele: “Não, minha filha, a vida não é assim, não.” Ele é muito uma pessoa muito espontânea. E se começar a conversar com vocês, ave Maria, amanhece o dia ele conversando. Tem história, história, história até umas horas.
P/2 – É mesmo?
R – É conversa demais. E alegre, brincalhão. Muito legal ele. Eu acho. Assim, é uma pessoa que, não é porque seja meu padrasto, é porque é assim mesmo, desse jeito. Estou inventando nada, estou dizendo a verdade (risos). Que a gente tem, eu acho, minha mãe me ensinou que a gente deve sempre viver em cima da verdade, porque por pior que ela seja, é melhor a verdade do que uma mentira. Porque tem que ser a verdade. E hoje o mundo está tão cheio de subterfúgios, de muita coisa, assim, meio, que as pessoas não acreditam muito nos outros, e a gente tem que dar um voto de confiança às pessoas. Pra que o mundo seja melhor a gente tem que confiar.
P/1 – Tinha muita festa na sua casa?
R – Festa?
P/1 – É, São João, essas coisas?
R – Não, pouca festa. Assim, Natal, São João, mamãe sempre fazia bolo, fazia alguma coisa pra comemorar. Os vizinhos iam lá pra casa ou então a gente ia lá pra casa dos vizinhos. Sempre era assim. Mas muita, muita festa, não. Teve uma época que, já depois que ela começou a fazer as carrancas, que foi logo assim que ela começou, foi quando foi lá no dia que ela foi lá mostrar a peça ao prefeito. Tinha uns americanos, que eles vieram fazer, não sei se vocês ouviram falar que existia na época de Kennedy, existiam uns americanos que eles vinham fazer cooperação. Vinha de lá dos Estados Unidos como um estágio, ainda acho que hoje eles...
P/1 – É, era da Aliança pelo Progresso, acho.
R – Pronto, era Aliança Pelo Progresso. Era, foi 1963, foi pra lá pertinho do acontecido, que mataram Kennedy. Esses Americanos eram de lá dos Estados Unidos, de Miami, esses americanos foram, o prefeito pegou e pediu, que eles fossem pra prefeitura, que era pra prefeitura arrumar um lugar pra eles estagiar, porque o prefeito, na época a cidade era pequenina, tudo era a prefeitura que localizava e tudo. Quando eles estavam na prefeitura conversando, querendo que o prefeito liberasse um local pra eles fazer o estágio, mamãe também estava. Juntou. A assistente, foi uma assistente social dar assistência à gente lá, porque já estavam chegando pessoas de fora, turistas pra comprar as peças, a americana foi fazer como um estágio. Ela sempre ia lá na parte da tarde ver como era o movimento e tudo. Essa americana, ela sempre, tinha um amigo dela de Recife que tocava sanfona, de 15 em 15 dias eles faziam festa lá. Tu falou de festa, eu lembrei. Eles faziam festa, o pessoal da comunidade ia – igual um baile, o pessoal da comunidade ia dançava, se divertia. Era bem legal. Funcionava como uma associação, mas assim, só mais a parte de divertimento, só, era assim.
P/2 – Queria falar um pouquinho do seu trabalho artístico.
R – Do meu?
P/2 – É. O seu dia a dia, assim, como é que é? Você começa, o que você faz? Bate, existe uma inspiração, como é que é o...
R – Porque agora, até 2000, que a gente morava lá no Gersino, era assim: amanhecia o dia, trabalhava até meio dia. Tinha vez que tinha, que tinha encomenda passava o dia inteiro trabalhando. Quando não tem encomenda de trabalho só um expediente, e também na época eu não estava estudando, agora eu tenho que ter meu tempo de estudos, dos deveres, das coisas, de ler alguma coisa pra poder levar pra poder fazer. Normalmente a gente está apresentando, muito trabalho e tudo, mas de 2000 pra cá eu sou funcionária da Prefeitura e eu sou cedida pra prestar minhas duzentas horas aqui. Eu recebo pessoas, eu recebo alunos. Vem aluno saber da história de mamãe, eu sento pra passar. Outras vezes vem grupo de alunos que já está agendado pra vir conhecer o Centro. É assim. E eu tenho meu período também de trabalho. No período que eu vou receber, tem escola agendada naquele dia, naquele horário eu não estou pegando no barro. Tem vez, tem dias também que os alunos querem ver trabalhando, eu já vou pegar no barro, já vou demonstrar. É assim, vou...
P/2 – Sim, mas eu queria ainda mais detalhado. Por exemplo, você chega pra trabalhar, o que você faz?
R – Depende.
P/2 – Por exemplo: Essas peças, você que fez?
R – Não, Ângela. A carranca foi eu, agora o peixe foi minha irmã adotiva.
P/2 – Então, por exemplo...
R – Porque eu sou, eu direciono mais meu trabalho pra carranca.
P/2 – Ah, sim.
R – Porque eu faço mais, eu sei fazer rosto humano, máscara, eu faço utensílio. Mas aqui no Centro eu direciono mais meu trabalho pras carrancas, porque é o que é mais procurado é as peças que mamãe fazia. Então o pessoal vem querendo as peças que ela fazia, a gente faz, eu faço mais as peças que ela fazia. Já a minha irmã, Ângela, ela faz outros trabalhos diferenciados. E eu considero ela não artesã, mas como artista plástica, só que ela não foi na Academia, não foi na Universidade ela não fez Belas Artes, mas o trabalho dela ela faz peças únicas. Eu faço mais peça em série. Como mamãe fazia. Ela faz carranca pequena, grande, média. Assim, carranca, mais carranca. As feições a gente muda porque não é uma fôrma, é da cabeça da gente que imagina e coloca, sai, caras diferenciadas. É uma carranca, mas ela não é igual, porque ela não é fôrma, não é feita em fôrma. É assim que trabalha.
P/1 – O estilo que você segue é o da sua mãe?
R – É, eu gosto muito de trabalhar. Mas também eu gosto muito de rosto humano. Que eu tenho pra mim que meu espírito era mais clássico. Eu gosto muito de coisa bem feita, bem acabada, nariz afilado, lábio fino. Gosto muito dessas coisa assim.
P/1 – Você...
R – Eu gosto mais da coisa clássica bem acabada, aquela coisa bem feita. Eu gosto muito. Ah, não está mais aqui, está na loja. Eu tinha uma máscara aqui que ela é bem serena, bem bonita, está na loja, eu vou mostrar. Eu gosto muito de peças assim.
P/2 – E como é que você se sente nessa responsabilidade de continuar a tradição do trabalho de sua mãe?
R – Eu me sinto feliz, eu me sinto feliz. Eu não tenho orgulho, não, o pessoal diz: “Porque tu, você é filha de Ana”. Eu não sinto assim: “Ai, porque eu sou...”. Não, não tenho orgulho, não, eu tenho, eu sou contente e tenho muita felicidade de ser filha dela. Até um dia desses eu ia passando lá na, a gente estava saindo de uma aula de uma disciplina, as meninas me chamaram rápido: “Vem cá, vem ver um negócio”. Quando eu cheguei numa sala, numa sala de História, os meninos estava fazendo um seminário em cima da vida dela. Aí.
P/1 – Que legal.
R – Elas: “O que tu sente?”. “Nada”, eu fiquei emocionada por ver, mas eu não fico orgulhosa, toda cheia de besteira, não. Agora emoção a gente fica, chega a dar vontade de chorar, a garganta chega a dar aquele “travozinho” mas eu acho que é normal.
P/2 – E teve algum momento que ela sentiu que você ia seguir, ela te falou alguma coisa?
R – Ela dizia que ela me pedia sempre pra nunca abandonar a arte, que ela sentia que eu tinha potencial, porque sempre quando ela estava fazendo peça, normalmente quando ela pegava encomenda eu sempre estava no pé, sempre fui uma filha muito de estar junto, muito. Ela viajava, eu sempre, ela não fez uma viagem sem mim, sempre. Fez uma, a que ela foi por Rio de Janeiro, foi a única viagem, que também eu já estava estudando, e não podia me ausentar, ela foi com Ângela. Mas sempre, sempre, sempre eu...
P/2 – Conta aí, conta uma viagem que vocês foram juntas e foi legal.
R – Uma que eu achei muito interessante, muito importante para a vida da gente foi essa de Brasília. Esse é meu sobrinho, é o filho da Ângela.
P/1 – Ah é?
R – É. E, porque assim, eu até de vez em quando eu conto pras meninas: na semana que a gente ia o Presidente Bush estava no Brasil. Eu vi aquele hotel muito lindo, com aquela fachada azul, eu disse: “Mas que hotel bonito! Muito bonito o hotel”. Foi até no Jornal Nacional. Isso passou. Quando foi, a gente viajou no dia 6 de novembro. A gente viajou, sei que fomos pra Recife, de Recife pegamos voo pra Brasília. A minha irmã, porque mamãe estava com problema e eles mandaram passagem pra ir duas pessoas pra tomar conta dela. Foi eu e minha irmã. Quando eu cheguei lá, o pessoal foi pegar o pessoal lá do cerimonial lá do Lula, foram pegar a gente no aeroporto, tudo direitinho, que era pra direcionar pra lá que ela ia receber a Honra do Mérito Cultural, porque foi ela e um grupo, Ziraldo, (Pinduco?), um bocado de gente, Zé do Caixão até, de São Paulo. Um monte de... Eu acho que aquele grupo que está na foto, o senhor viu, não foi?
P/1 – Sim.
R – Pronto. Quando o pessoal pegou a gente no aeroporto, foram lá pra colocar a gente no hotel. Quando eu olhei na fachada, na hora me veio: o mesmo hotel que Bush estava. (risos) Eu digo: “Eu não acredito, não. Onde foi que o meu barro me trouxe?”, porque foi o barro (risos), foi, não foi outra coisa, não, foi o barro. Quando a gente desceu, estava um monte de gente assim, aglomeração de gente com cachorro bem lindo, pense, que cachorro bonito, parecia cachorro de cinema. E quem tomava conta do cachorro era uma moça. Quando eu desci, eu perguntei ao rapaz que ia levar a gente que cachorro era aquele, que raça era aquela. Ele disse: “Você sabe de quem é esse cachorro? É o cachorro de Bush. O cão farejador de Bush.” Ele já tinha ido e o cachorro ainda estava lá. Quer dizer que a gente ficou no hotel que Bush ficou. Depois: “Eu não credit,o não”, porque pra mim foi uma honra, porque a gente, o barro, que muita gente não valoriza de jeito nenhum, levar a gente aonde ele levou é uma coisa excepcional. Pra mim foi uma das viagens que mais marcou. E ela foi bem recebida, teve a solenidade, à noite a gente participou do jantar, depois do jantar teve um show com o Gilberto Gil. Gilberto Gil e Henri Salvador, que é um compositor da França, que também foi homenageado, que até na música da Maria Betânia tem um trechinho que fala do Henri Salvador. Ele também estava lá, eu achei que foi muita coisa, porque através do barro, através da nossa arte que a gente chegou aí. Que é um caminho. E o objetivo final foi esse, foi a gente chegar nesse lugar na sociedade, conviver com pessoas que a gente nunca esperava conviver, falar e tudo. E é muita coisa pra gente. Eu acho.
P/2 – O que significa, você estava falando do barro, o que significa o barro pra você?
R – Tudo. Se resume numa palavra só: tudo. Pra mim é tudo. E não tem nada mais importante na minha vida do que ele, do que o barro. Nada, nada, nada. Porque só através do barro e do trabalho, porque a gente tem que trabalhar pra poder chegar a um resultado final, e é com o barro que a gente chega lá, no meu caso que a minha arte, a matéria-prima da arte da gente é o barro. Então é ele que se resume toda a história da vida da gente. E é tudo o que representa a nossa vida é o barro.
P/1 – E todo dia você trabalha? Põe a mão no...
R – Todos os dias, ainda o dia que eu não trabalho, por isso que, acho que era para ti que eu estava dizendo que parece um vício, quando a gente não pega no barro fica com aquele, aquilo parece que _____ um ano, tem que fazer, tem que vir alguma coisa. É assim.
P/2 – Mas quando você vê a peça pronta?
R – Ave Maria, é um filho que nasceu. E quando a gente tira do forno? Porque a finalização é o forno, que ele queima, a gente tem que queimar, ficar igual uma telha, pra ele ficar (perene?), não derreter, porque se a gente fizer a peça e ele não for no forno, ele pode, corre o risco dele derreter, se você colocar água ele derrete. E depois que vai o forno pode quebrar, mas não derrete mais. A parte final, a finalização do barro é a queima. E eu acho, assim, parece que foi ontem que eu estava vendo uma reportagem falando do barro, de umas peças bem lindas que tem, parece que é da Roma Antiga, da, não sei de qual é, de qual é o país. Umas peças bem lindas que eles pegam, vão encontrando os fragmentos e vão juntando, e fazem aqueles cálices bonitos, aquelas coisas, aquelas peças bem lindas. Ontem de noite estava falando, passou uma mulher modelando tudo do mesmo jeito. É uma arte milenar que muita gente não dá o devido valor pra quem tem o barro. É muito bonito, porque eu acho que foi um dos materiais mais antigos que foi usado pra poder colocar os objetos, até os remédios antigos eram colocados ali. O pessoal, parece que é do Japão ou é da China, eles cultuam muito o barro pra poder chegar àquela finalização, pra poder fazer aquelas peças que eles colocavam aqueles remédios numas peças de barro pra poder, passava, parece que ficava em infusão pra poder fazer as medicações da época. E eu acho assim muito, muito interessante a história do barro, me atrai muito, eu acho muito interessante.
P/1 – E por falar em valor, como que, quem compra hoje em dia as peças, encomenda, como que funciona essa rede de venda?
R – Assim, o pessoal que vem em excursão, eles passam e compram. Outras vezes pessoas veem aqui e encomendam. É, assim, porque aqui na região tem muitos, vem muita gente de fora fazer negócio com a agricultura, vem aqui conhecer, porque o nosso Centro já faz parte dos pontos turísticos da cidade, muita gente vem conhecer, tem gente que vê as peças e compra na hora, outros encomendam. Agora um problema sério que a gente tem é porque as transportadoras não querem transportar, porque pode ter avaria e elas não cobrem, a gente está com problema sério, tem vez que a gente deixa de vender porque não tem como mandar, porque outros produtos as transportadora não levam? Não levam de um lugar pra outro? As transportadoras? E o barro, o artesanato em barro eles não querem levar. Minha irmã mesmo já perdeu de vender peças porque vai na transportadora, as transportadora pergunta: “Que material é?”. A gente tem que dizer: “Ah, a gente não transporta esse tipo de material, não”. O problema maior é esse, mas tem gente que quer, vê ele mesmo, compra, a gente embala direitinho e eles mesmos levam. É assim que funciona. A gente participa também de feira de artesanato. Tem uma grande feira no mês de novembro, no mês de julho, na FENEARTE, é Feira Nacional do Artesanato, no Centro de Convenções de Recife, todo ano a gente participa. E lá é muito bom. Porque vem gente de fora, do Rio de Janeiro, de São Paulo, o pessoal faz encomenda, mas normalmente eles mesmos levam, outras vezes eles compram já a peça pronta. É assim que funciona. E visita sempre a gente tem, o ano todo, visita. O pessoal vem de fora e passa aqui, vê, outros veem e levam a notícia pra outros, outros quando veem já compram alguma coisa. É assim. E a gente não tem muita gana por dinheiro, não. Porque a gente quer é pra sobreviver, porque tanto dinheiro pro povo ficar querendo sequestrar a gente? Não. É bom vender a pouco mesmo. É bom é ser pobre, esse negócio de ser rico pra morrer ligeiro? Não. Está bom assim. Não é que a gente seja conformado, mas a gente não vê, aqui em Petrolina mesmo já teve caso de pessoas sequestradas por causa de dinheiro. Só a gente ser assim mesmo. Esse Centro foi construído na Lei de Incentivo à Cultura.
P/2 – Sei.
R – Que existe uma Lei de Incentivo à Cultura. Eles viram que o trabalho dela era um trabalho que era de benefício pra a comunidade, já tinha um respaldo, já tinha um reconhecimento lá fora, foi feito o projeto – duas arquitetas da Prefeitura de Petrolina fizeram o projeto e teve a captação de recursos, a Telemar, a TIM, a Bom Preço e a Companhia Energética de Pernambuco (CELPE), que é a Companhia de energia aqui de Petrolina, colocaram 74 mil reais e foi construído, quem construiu foi a construtora de um deputado daqui, do Doutor Geraldo Coelho, da família dos Coelho, que os Coelho é que manda aqui em Petrolina (risos).
P/2 – É, nós já sabemos (risos).
R – Tem uma família que manda, tem uma família que manda aqui.
P/2 – Maria, a gente está chegando já no final da entrevista, que eu tenho que aproveitar ainda a luz pra tirar uma foto sua aqui com a obra e tudo.
R – Sim, é mesmo.
P/2 – E o Thiago deve ter as deles, mas a pergunta que eu queria que...
P/1 – Pode fazer.
P/2 – Encerrar, um pouquinho, queria que você contasse, qual é a herança que a sua mãe está deixando pra você?
R – Qual herança? Eu acho que é a sabedoria do barro, que ela ensinou a gente que não tem outra maior é o trato com o barro, que isso é uma herança que a gente vai levar pro túmulo e esse espaço, também pra gente preservar e levar até o fim da vida da gente porque eu acho que a herança maior é como a gente fazer, porque ou aqui ou ali ou acolá a gente tem essa herança e ninguém toma da gente. Essa herança da gente, da gente saber lidar com o barro, não tem herança maior.
P/1 – Eu só tenho mais uma pergunta pra você, que é assim, agora esse artesanato de carranca, em todo lugar faz, pequeninos, grandes.
R – Sim, mas faz de madeira.
P/1 – Então, ninguém faz de barro?
R – De barro não. Só a gente. É isso, porque aqui em Petrolina tem várias pessoas, em Juazeiro, Ibimirim, que é outra cidade de Pernambuco que faz na madeira, agora no barro, então até hoje, que eu saiba, só a gente.
P/1 –Sim.
R – Pode ser que amanhã apareça alguém fazendo, mas até hoje, só a gente.
P/1 – Queria agradecer.
R – E eu queria que alguém aprendesse pra fazer também, mas até agora não. Acho que é porque lidar com barro é muito trabalhoso, porque além de você confeccionar você tem que pegar a quentura do forno, que é quente. São seis horas de fogo pra poder deixar uma peça no ponto, acho que isso que afasta o pessoal, que muita gente não quer ter trabalho com as coisas, não (risos). É, as pessoas não querem ter trabalho com as coisas, não. Mas pra mim é gratificante, é dar continuidade a um trabalho que minha mãe me ensinou, minha professora foi minha mãe! É muito bonito! Muito bonito mesmo.
P/2 – E, Maria, o que você achou aqui de dar sua entrevista, contar a sua vida e o seu trabalho aqui pro Museu da Pessoa?
R – Eu achei legal, porque a gente vai ter oportunidade de mostrar o trabalho da gente pra mais pessoas de outros locais é muito legal porque outras pessoas vão conhecer a vida da gente, conhecer a gente, eu acho muito bom, muito bom mesmo. Legal.
P/2 – Muito obrigado.
P/1 – Obrigado.
R – De nada.
P/2 – Foi muito boa, a senhora é uma boa contadora de história.
R – Nem tanto. Eu queria ser.
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