E: Então eu queria começar por lhe perguntar qual é que é o seu nome, local e data de nascimento.
e: Local onde nasci?
E: Hm-hm.
e: Chamo-me Fernando Moutinho Maia, nasci em África, em Lusaka, na Zâmbia, sou africano, mas sou filho de pais portugueses. O meu pai foi para África tinha 17 anos,...Continuar leitura
E: Então eu queria começar por lhe perguntar qual é que é o seu nome, local e data de nascimento.
e: Local onde nasci?
E: Hm-hm.
e: Chamo-me Fernando Moutinho Maia, nasci em África, em Lusaka, na Zâmbia, sou africano, mas sou filho de pais portugueses. O meu pai foi para África tinha 17 anos, voltou com 47. A minha mãe casou, como se chama, por procuração, ela tava cá e o meu pai tava em África. Conheceram-se num período de férias, em que o meu pai veio a Portugal. Ele fez a tropa em Moçambique e… e prontos… depois nasceu a minha irmã, depois nasci eu. A minha irmã é rodesiana e meses antes de eu nascer tornou-se independente, passou a ser Zâmbia, eu sou zambiano, nasci em 1965, no dia 21 de janeiro… e prontos. Aos 5 anos fui para a escola inglesa e com 6 anos fui eu, a minha irmã e o Jorge Arezes, de outra família portuguesa, fomos todos para Moçambique estudar, fomos para um colégio interno, em Vila Pery ou Vila da Manica, que eu já não me lembro ao certo, que era um colégio de São Francisco de Assis e Santa Clara, fiz lá os dois primeiros anos, 1ª classe e a 2ª. Por causa da guerra das colónias, começaram… as fronteiras fecharam, até aí viajávamos de carro e… passamos a andar de avião e a primeira vez que vi o mar foi na Beira em Moçambique, também foi uma experiência boa, nunca tinha visto o mar, a Zâmbia é um país central, é rodeado de outros países e só temos rio que é o Zambeze. Depois disso vim para Portugal com 8 anos, vivi entre tios e avós, mas passava os fins de semana com eles, fui para o Colégio da Formiga em Ermesinde, a minha irmã foi para Santo Tirso, que era de freiras, que era o contrário de Moçambique, onde era misto, e aqui tinha de ser separado, o Jorge que era de Afife, de Viana do Castelo, foi para Viana, só que encontrávamo-nos três vezes ao ano e viajávamos juntos para ir de férias… prontos Natal, Páscoa e… férias de verão. Até aos nossos… até aos meus 12 anos, 11 anos, os meus pais voltaram e África acabou. Fiz o… o ciclo, que era o 1º e 2º ano na altura, equivale hoje ao 6º ano, e depois fui para o secundário para a Escola de Ermesinde, onde a minha irmã já estava, deixei de viver com os meus tios, passei a viver com os meus avós… os meus pais vieram em dezembro e em janeiro o meu pai cometeu suicídio. Prontos, a minha mãe teve que lidar com a burocracia… desagradável do nosso país, depois foi os entraves e a arrogância e tudo isso, ainda hoje continua, infelizmente, a atitude dos serviços, do Estado perante as pessoas e… e prontos… criou-nos, comprámos um apartamento em Ermesinde. Aos 19 anos… eu tive altos e baixos, reprovei o primeiro ano, depois deu-me para trabalhar, fui trabalhar para a Siderurgia Nacional, chamavam-me o puto, porque eu era muito miúdo… depois convenceram-me para ir voltar a estudar, mas nos entretantos ainda fui para um armazém, trabalhar num armazém de… de construção civil, que era o Senhor Serafim, às vezes, ia para as obras também, mas a minha responsabilidade era arquivar e… e distribuir o material para as obras e depois quando voltava o material tinha que dar baixa, dar entrada no arquivo, prontos, era fazer trabalho de armazém. Depois voltei para a escola, fiz os dois primeiros anos, era mais velho, tinha perdido já dois anos, ou três com o qual tinha reprovado, faço o 7º e 8º ano, depois o meu tio veio da África do Sul, pedi à minha mãe se me podia pedir uma mota, tive uma mota, que nunca foi comercializada em Portugal, e foi um bocado uma loucura e um desvio também, prontos tive muito mais liberdade, conheci muito mais o país, fui a quase todo o lado com ela e… eu e um amigo meu… que éramos muito amigos… depois desligamos um bocado dos estudos e… e tornamo-nos muito boémios nessa altura, da nossa infância, da nossa juventude, as namoradas, as motas… e prontos. Ele foi para a tropa, em parte separamo-nos, e eu fui para o Algarve, tive outra experiência no Algarve, fiquei lá durante 1 ano ou 2, voltei, comprei um carro, vendi a minha mota, comprei um carro e tive o meu primeiro acidente… tive 3 meses num hospital e… no hospital aqui do… São João, dei cabo das pernas, fiz umas quantas operações… depois disso… conheci um indivíduo que tava na Suíça, fui para a Suíça, tive lá 1 ano, voltei… continuo?
E: Então, se calhar, voltamos um bocadinho atrás outra vez e voltamos à sua infância, enquanto ainda estava em África, quais é que eram os principais costumes da sua família lá? Como é que era a vida lá?
e: Era… sei lá, era diferente de Portugal, éramos mais… a época também era diferente, em Portugal também era agradável, as pessoas, mas as pessoas têm uma noção errada de África, nós vivíamos muito melhor em África do que propriamente em Portugal, em Portugal havia muito mais miséria, as condições sanitárias eram muito pobres, tinha que se ir ao poço buscar a água e isso para mim foi um choque quando eu vim para Portugal, e quando nós tínhamos aquilo que nós temos hoje, tínhamos banheira, tínhamos cilindro, água quente e távamos em África, fazíamos as necessidades dentro de casa, como fazemos hoje, lá, e em Portugal tinha de se vir cá fora, porque era cá fora e buscar um balde para a casa de banho e buscar balde para cozinhar, para tomar banho, tudo dentro de casa e… prontos, as condições eram muito mais atrasadas e, no entanto, estávamos nas colónias, que era muito… muito melhores condições.
E: E gostava de ouvir histórias, nesta altura? Alguém lhe contava histórias?
e: Ouvia as histórias da minha mãe… e quando tava com os amigos, uma pessoa ficava curioso [impercetível], mas falava-se muito em espíritos, em fantasmas da época que se via e aparecia e não sei quê e não sei quantos e claro que como miúdo depois ia dormir com dificuldade [risos], parecia que via no escuro. E na altura partilhava o quarto com a minha irmã e eu ficava num canto e ela noutro e… levantava-lhe os lençóis da parte dos pés e enfiava-me lá e a minha mãe apanhava-me, apanhou-me umas quantas vezes assim, separou-me, pôs-me num quarto e a minha irmã no outro e eu depois, pronto, tive que lidar com isso [risos], tive de superar essa parte e… consegui.
E: Sim [risos] e… os seus pais, o que é que eles faziam?
e: O meu pai trabalhava nas minas de cobre. Segundo a minha mãe, ele trabalhou nos comboios, nos caminhos de ferro e depois teve uma proposta melhor e fomos para Kabwe para trabalhar nas minas de cobre, é uma das maiores do mundo, que é a Copperbelt.
E: Hm-hm. E depois então… não, antes de avançarmos para a escola, se calhar… lembra-se da casa onde passou a sua infância?
e: Lembro.
E: Como é que era?
e: Era uma casa grande, tinha uma data de divisões, tinha… tinha a cozinha grande, tinha uma despensa grande também, tinha uma sala tipo sala de jantar e havia uma outra, mas essa era mais… ninguém usava praticamente, depois tinha o quarto da minha irmã, tinha a sanita que era… prontos onde fazíamos as necessidades, que era separada da banheira e de onde se lavava a cara, tinha dois armários que era para os arrumos, coisas, toalhas, roupas e não sei quê… os quartos eram todos grandes, era uma casa grande, depois tinha mais dois quartos, tinha uma varanda da parte da frente, a casa ficava no meio e depois era jardim a toda a volta, tínhamos uma pequena piscina, dava-me mais ou menos pelo peito, a água, nem isso e… e prontos. Tínhamos várias árvores de fruto, mangueiras, bananeiras tínhamos umas quantas, papaeira, guabeira, mais… limoeiro… pera-abacate, sei lá, havia flores, jardim, relva, muita coisa, é isso.
E: E como é que era a região onde vivia? À volta da sua casa, como é que era?
e: Era tudo residencial. E todas as pessoas que trabalhavam, viviam ali, normalmente, aquilo pertencia à empresa Copperbelt, as pessoas… não havia gastos nenhuns, nem de eletricidade, nem água, era tudo dado pela companhia e tínhamos uma casa e prontos. E todas as pessoas que viviam ali, muitas das vezes, havia o clube, onde havia piscina, havia… do outro lado havia o cinema, havia onde eles organizavam festas e isso e… prontos, todos os que eram filhos ou familiares tínhamos um cartão e tínhamos acesso à piscina e eu muitas das vezes metia-me a pé e tinha sempre boleia, havia sempre alguém que ia trabalhar e dava-me boleia para a piscina e ia com a toalha… e lá ia eu. A minha mãe dava-me uma moeda para beber uma coca-cola ou um pacote de… de… como é que se chama… de batatas fritas… e prontos. [risos]
E: Que brincadeiras é que tinha na altura? Tinha muitos amigos?
e: Dava-me com os vizinhos e quando não tinha vizinhos brincava sozinho. Tinha lá o Klein que era ao lado, depois tinha dois irmãos escoceses que era do outro… havia outro o Allan, que era o Klein, que era o da casa onde tinha a piscina maior, que era grande e… eu ia lá muitas vezes e prontos.
E: O que é que mais gostava de fazer quando era criança?
e: De explorar… era curioso, às vezes, olhava para o longe, via qualquer coisa e ia até lá, tinha que ir até lá. Brincava… fiz de tudo, jogava à bola, subia às árvores, passava para o telhado, saltava… uma vez subi o telhado, fiquei lá e não conseguia descer e a minha mãe “o que é que tás aí a fazer?” e eu “olha subi e agora não consigo descer” [risos] e ela disse “olha, vais ter que esperar pelo teu pai, quando ele chegar” e eu passei o resto da tarde a olhar.
E: E depois então vai para a escola em Moçambique, é isso?
e: Sim.
E: Como é que foi essa experiência? Tem alguma primeira lembrança de quando foi para a escola?
e: Tenho, até tenho fotografias… ou tinha fotografias, porque algumas já foram. Foi, foi difícil e era difícil, principalmente, quando nos separávamos dos pais. A experiência, enquanto távamos juntos, era bonito, porque era uma viagem extremamente longa, ficávamos na Rodésia, que era outro país vizinho, antes de irmos para Moçambique, também havia os Feiteiras, que era uma família portuguesa onde ficávamos, normalmente, ficávamos lá duas, três noites… dias, depois é que íamos para Moçambique e convivíamos, ficávamos com eles, tinham dois rapazes, mais ou menos da minha idade, e prontos brincava com eles, divertíamo-nos enquanto lá estávamos, e depois é que íamos para Moçambique. Quando fazíamos a passagem da Zâmbia para a Rodésia havia uma… uma ponte sobre o Rio Zambeze e o meu pai ia lá dentro apresentar os documentos e eu ia até à ponte e olhava para baixo e via a vida animal, desde crocodilos, hipopótamos e prontos e maravilhava-me com aquilo.
E: E como é que era com a professora ou o professor?
e – No primeiro ano? Eu falava só em inglês, a minha irmã e o Jorge falavam português e, às vezes, tinham que chamá-los porque eu fui para a primeira classe e a minha irmã ficou logo mais adiantada 2 anos ou 3 e ele também, que ele era mais velho e… e infelizmente durante os períodos dos recreios, a seguir ao almoço e a seguir ao jantar, eu tinha que ficar com uma freira que me ensinava do inglês para o português, ela dizia uma frase em inglês, depois dizia em português e eu tinha que repetir aquilo para aí 20 vezes [risos] e era assim. Depois foi o resto, foi a escola, o convívio, os amigos e o português veio ao de cima, é assim.
E: E depois veio para cá?
e: E depois, pronto, começaram as guerras das colónias, mesmo durante o último ano, às vezes, ouvíamos tiros e bombas à… à distância, tipo rajadas ta ta ta ta, ta ta ta ta… pum pum… mas nunca chegavam ali, nunca… nos incomodava. E depois pronto as fronteiras fecharam, começamos a andar de avião e viemos para Portugal, é isso.
E: Hm-hm. E veio para esta zona do Porto porque a sua família também era de cá?
e: A minha irmã ficou com os avós e eu fiquei com os tios, com os tios que tavam a criar o Tone, que era filho de… de um familiar da minha tia, eles como não tiveram filhos, ou melhor tiveram, mas perderam um ou dois quando eram miúdas, duas raparigas acho eu, então eles ficaram com o Tone e criaram-no como se fosse um filho deles. E como havia já um rapaz… era para ser ao contrário, eu é que ficava com os avós e a minha irmã ia para os meus tios, mas porque ele tava lá então trocaram e ela ficou nos avós, mas depois encontrávamo-nos aos fins de semana, os meus tios “ah vamos visitar a tua irmã” e lá ia eu até aos meus avós… ou vice-versa.
E: E lembra-se de quando chegou cá assim… as primeiras memórias que tem?
e: Lembro-me de tudo. Quando entrei pela frente pensava que era o jardim de lá de fora, do lado de trás, quando saía era outras casas [risos] e a casa de banho é ali [risos], “ah tá bem”, é diferente… e era tudo pequenino.
E: E como é que foi? Sentiu alguma dificuldade nesse… nesse momento?
e: Não, era miúdo, era… dava-me com toda a gente, para jogar futebol, para dar uma corrida, para ir aqui ou ali, jogar ao pião, aprendi tudo, aprendi de tudo, uns com os outros, a jogar dominó aprendi com os meus tios, a jogar às cartas… jogos de tabuleiro aprendi com um outro indivíduo, às damas, xadrez. E depois partilhava, ensinava conforme aprendia, ensinava aos outros e prontos e… e jogava, era, era típico. Fazia o que os outros também faziam.
E: E quando é que começou a sair sozinho?
e: Ui foi complicado… o meu pai morreu, a minha mãe prontos pa ter… entre aspas pulso sobre os filhos, os rapazes eram mais veraneios, as raparigas ficavam em casa… a minha irmã já namorava com o meu cunhado e para sair às vezes eu tinha que fazer de vela [risos], porque era… em parte era benéfico, às vezes, íamos ao cinema prontos lá ia eu ver o filmezito, outras vezes olha… encontrávamo-nos às x horas, deixava-os ir e eu ia ter com os meus amigos, depois encontrávamo-nos, e a minha mãe tinha a ideia que íamos todos juntos e que ela não tava sozinha mais o namorado e que não acontecia nada [risos] e pronto, era assim.
E: Como é que era o seu grupo de amigos?
e: Quer dizer… nunca tive muitos amigos, mas tive alguns… houve um período que fui muito popular, também não sei porquê, acho que foi por causa da mota, que era uma loucura, depois era tudo… tudo doido, pensavam que era mais rico do que era… por ter o que tinha, enfim… não sei…
E: O que é que costumava fazer com esse grupo de amigos?
e: Coisas normais, jogávamos à bola, fiz parte de… quando fui para Ermesinde já conhecia o Capas Peneda, que tinha andado comigo no colégio… na altura andava com o Rui Gordo, que ele era ligeiramente gordo, e o primo dele que depois era… não, o Mário Gordo é que era da minha turma e depois ele apresentou-me o primo dele, que era o Rui Gordo, depois eles faziam parte de… prontos como eles viviam ali, havia o… íamos jogar futebol aos fins de semana… como é que se chamava aquilo? Era um clube local, jogávamos futebol de 11 aos sábados de manhã e depois do Águias de Palmilheira havia os… os miúdos e não sei quê, que eram mais miúdos e fazíamos vários torneios de futebol de salão e pronto jogava aí. Depois por intermédio deles, cinema… ou íamos ao cinema… e coisas assim e jogar futebol… quer no clube quer nesses torneios locais e… e prontos e comecei a conviver mais. O Paulo Merceeiro, que se tornou no meu melhor amigo, em parte… fomos… como é que eu hei de dizer? Costuma-se dizer que é uma coisa rara ter… almas gémeas… em parte foi para compensar também a perda do meu pai, às vezes, as pessoas não conseguem compreender isso, prontos, mas aconteceu, então fomos muito chegados. Ainda me lembro que ele era o Paulo Merceeiro e… prontos tinha uma mercearia e ele… e a minha mãe ia lá encomendar a mercearia e ele ia-nos entregar a casa, então um dia ele apareceu, eu abri a porta e ele apresentou-se… e mais tarde tornamo-nos os melhores amigos.
E: E quando é que começou a sair à noite?
e: Sei lá, a minha mãe… nesse aspeto era difícil, porque a minha mãe controlava… ou melhor estipulava horários “quero-te às 10 horas e não sei quê e não sei que mais”, claro, os outros iam até à meia noite e eu distraía-me e chegava mais tarde e… uma vez ou outra a minha mãe não me deixou entrar, prontos… depois fui ficar na casa do Paulo e a minha mãe chateou-se “eu tou a educar o meu filho, ele tem que aprender, não tem nada que ficar aí” e prontos eram essas coisas, era assim.
E: E depois então começou a trabalhar também?
e: Era, tive uma experiência muito novo a seguir a… o meu pai morreu, andava no 7º ano, reprovei, depois pedi à minha mãe que prontos queria trabalhar, queria ganhar dinheiro e não sei quê e por intermédio de uma tia que falou com alguém arranjou-me na Siderurgia, só que a Siderurgia era um trabalho muito pesado… não era pesado em termos de peso, só que é um… um ambiente pesado para um miúdo andar ali, aquilo era… era a zona de forno, é laminagem, depois aquilo derrete o ferro e depois fazem o ferro e depois vai para laminagem e depois sai para a construção civil, por aí… e então fazia as paragens e depois tiraram-me dali e puseram-me com uma senhora, que era um trabalho já de andar nos escritórios e fazer limpezas e não sei quê. Depois saí dali e fui… por intermédio do Nuno, que era um amigo meu, que é polícia agora… há muitos anos já, falou-me no Serafim e eu falei com ele e ele arranjou-me trabalho para o armazém dele de eletricidade, é isso. Depois tive lá acho que foi 1 ou 2 anos, não sei ao certo e depois voltei para a escola, voltei ao 7º ano… até ao 9º.
E: Que idade é que tinha nessa altura, mais ou menos?
e: Não sei… 14 anos… 13, não sei, por aí…
E: E depois fica na escola até ao… 9º?
e: Até ao 9º, reprovei duas vezes no 9º. Na segunda vez reprovei por faltas, esqueci-me de aparecer [risos].
E: Sim [risos] e depois então termina o 9º ano e volta a trabalhar?
e: Voltei, foi quando o Paulo foi pa… pa tropa e eu fui para o Algarve. Foi uma aventura maluca, que me falaram e não sei quê, que se arranjava trabalho no Algarve e não sei quê… fomos 3 e depois eles vieram embora e eu fiquei, sozinho.
E: Como é que foi esse período no Algarve? Já tinha estado lá alguma vez?
e: Já, já… já tínhamos ido… tínhamos ido de férias, tínhamos paí 14 anos… ou 13 já nem sei… fomos para Caminha, eu, o Paulo e o primo dele, o Pinto… e depois no ano seguinte, fui eu mais ele fomos para o Algarve, fomos para Lagos, pela primeira vez, e depois no ano seguinte voltamos todos mais o Toni, fomos de carro, os três mais o Toni, é isso, que ele tinha lá a namorada, fomos de carro e ficámos também em… não fomos para Lagos, fomos para Albufeira e depois mudamos fomos para Quarteira, é isso, porque havia mais gente também de Ermesinde e para tarmos todos juntos fomos para Quarteira, saímos de Albufeira, é assim. E depois quando eu… ele foi para a tropa e eu fui para o Algarve, pronto, já conhecíamos o Algarve, ou já conhecia.
E: Sim. E ficou… ao bocadinho disse-me, ficou lá 1 anos mais ou menos.
e: Fiquei. Fiz o verão, chegou ao inverno, eu trabalhava numa discoteca nessa altura e… nas Açoteias, que era Nova Iorque e… ele vendeu a discoteca e eu de todos era o único que ia ficar e ele vendeu a um indivíduo que era do Porto, que tinha uma discoteca aqui no Brasília, chegou a altura do Natal, para passar o Natal, e ele queria abrir para a passagem de ano, então ele tava a remodelar aquilo tudo e ele disse “ah a equipa já está feita, eles sabem que tu vais aparecer” e mandou-me para baixo e disse quem era o indivíduo, quando lá cheguei ele disse “não tomes a mal, sou o gerente da discoteca, eu não te conheço, eu montei a equipa, não te quero comigo” e eu olha… virei as costas e fui me embora. E depois prontos era o período difícil, porque o Algarve é sazonal, é como a formiga, tem que trabalhar durante o verão e… durante o verão para o inverno, e no inverno praticamente não há nada, fecha quase tudo, é sazonal, é turismo. E então nesse período trabalhei na construção civil, houve pessoas que me ajudaram, o meu colega de quarto ajudava-me com dinheiro, com coisas que eu precisava e, claro, quando comecei a trabalhar tive que lhe pagar os empréstimos, e ajudou-me também a arranjar não só o trabalho na construção civil como depois trabalhar como barman, que ele sabia que eu gostava de ser barman… e foi ele que me arranjou onde tinha trabalhado, falou lá com o… o chefe, que era Fernando também, como eu, e fui, depois fui trabalhar para lá.
E:
E depois disso, ficou aí muito tempo?
e: Fiquei, fiz 1 ano… não, durante esse período sazonal, comecei mais ou menos em abril… comecei a aprender a trabalhar com o Fernando, ele fazia cocktails, eu tomava nota no final do dia, como é que se faz os cocktails e fazia os apontamentos e depois sem ninguém ver, durante o dia, fazia-os eu, ia praticando e depois… tornei-me um bom profissional, depois foram-me buscar, a nível interno, mas não sai, porque era um grupo, havia outros empreendimentos, era o maior era co Fernando Barata, trabalhava no Forte de São João, no Goldfinger Bar e depois veio outro… o doutor Xavier veio-me buscar para o bar dele, disseram-lhe que eu era bom barman e ele era de Ermesinde e não sei quê e dava-me uma percentagem e um ordenado melhor, e eu sai e depois tive… deu-me qualquer coisa e voltei para casa, vendi a mota e… senti saudades de um momento para o outro e voltei para casa, comprei um carro, ao Paulo Estação e… Ford Taunus 1500 e passado 2 ou 3 dias sai à discoteca e encontrei-me com o Paulo lá, o Merceeiro, que era muito meu amigo e viemos embora mais cedo, precisava de uma peça para o carro e prontos… ele começou a acelerar, fui atrás dele e perdi o controlo do carro, fui contra uma árvore e acordei no hospital e tive lá 3 meses.
E: Como é que foi esse período? Lembra-se desses 3 meses?
e: Ai… a primeira semana… foi… foram muitas dores, foi horrível, tava todo partido, todo pisado. As visitas vinham e eu suportava as dores, depois pedia para irem embora, estava constantemente a pedir injeções para as dores, depois tinha que dar um período… “Fernando, tens que aguentar mais um bocado” e prontos… depois era eu mais os outros, uns por um motivo, outros por outros, fiquei no corredor, não havia lugar na… na… como é que se chama… nas enfermarias, as enfermarias cada uma era de 6 pessoas, até que apareceu uma vaga e eu entrei. Depois os 2 primeiros meses tive restrito à cama, por causa do joelho e então quando passei para a cadeira de rodas aí passeávamos o hospital todo, éramos eu e mais não sei quantos… todos de automóvel interno [risos], é, íamos visitar as outras enfermarias, depois íamos perguntar os motivos de porque é que eles estavam lá e prontos era assim que passávamos o tempo… íamos tomar café…
E: Então depois saiu de lá, do hospital, e como é que foi depois a partir daí?
e: Tive de fazer reabilitação, fiz fisioterapia enquanto deu, depois o resto tentei fazer por mim, natação, correr, isso tudo… só que rejeitei a placa, tive que voltar para o hospital tirar a placa… e prontos… perdi parte do osso, porque eles tentaram arranjar um espaço para ser operado… nos entretantos, porque o bloco é complicado, tem sempre muita gente, e eles entravam de fim de semana, entrava ao domingo à noite, passava a semana toda… se arranjasse uma vaga maravilha, se não arranjasse voltava para casa e então aquilo tava a apodrecer o… como eu tinha rejeitado a placa, tava a apodrecer o osso, quando eles me tiraram, rasparam o osso, com o tempo foi assimilando, depois corria, doía-me muito a canela, voltei a… tinha um período depois de ter… enquanto não tive alta, tinha de ser visto pelo médico que me operou e eu falava que me doía muito a canela quando corria e não sei quê, mandou-me fazer raio-x e acusou que… foi assimilando, perdi parte do osso e prontos… deixei de jogar futebol, deixei de correr… mas prontos, é isso, a vida continua.
E: E depois… é então depois disto que surge a Suíça?
e: Foi, foi… foi, foi… veio o… irmão do Crespim, o Alberto, tava aí e eu na altura tava desempregado e… prontos, a falar, a conviver não sei quê… arranjei uma oportunidade, se podia ir com ele e ficava no irmão e tentava arranjar trabalho e assim foi. Falei com a minha mãe, pedi ao meu cunhado se ele me emprestava dinheiro para as viagens, pronto para me suportar inicialmente e… prontos e fui. Arranjei um trabalho, só que depois infelizmente os colegas são muito falsos e traidores, faziam-se amigos e andavam-me era a tramar por trás e… e a dizer coisas que não eram verdade e fizeram-me a folha e depois trocaram, porque era a mulher de um, ela já lá tinha trabalhado, ela ia voltar, ele tava-lhe a dar emprego e eles tavam-me a mandar embora, sem motivos para despedir, era uma desculpa esfarrapada, depois queriam que eu ficasse, porque afinal engaram-se no mês e eu disse “não… não vou ficar porque…” e vim-me embora.
E: Hm-hm. E depois como é que foi a seguir?
e: Depois fui para os seguros. Também por intermédio de uma senhora, que gostava muito de mim, ia à missa com a minha mãe… e, às vezes, quando ia à missa ela precisava de dar a mão… a velhota [risos], não, mas no bom sentido, eram aquelas velhas que metiam a mão e não sei quê [risos] e lá ia… e ela então foi lá… ela tinha uma senhora que era cabeleireira que era… cabeleireira em casa, ela era doméstica, mas só fazia para determinadas pessoas… depois na conversa ela disse “olha tenho ali o Fernando, não sei quê, o seu marido tem a empresa dele, não tá a precisar de ninguém?” e arranjou-me emprego, fui falar com o marido e fui trabalhar. Trabalhei 4 anos, foi numa corretora de seguros. E depois… os feitios não se enquadravam, no último ano comecei a ter problemas com o engenheiro e… mal por mal vim-me embora. E afetou-me bastante, tive uma quebra mental… que durou muitos anos e inconscientemente, sem eu saber, tava a alimentar o mal, porque… [silêncio], mas prontos isso foi depois, depois superei essa dificuldade também.
E: E teve então num período de desemprego após essa… essa experiência?
e: É, tive um período de desemprego, fui trabalhar para a Boavista, para o grupo Sonae, no departamento de relações públicas, mas tive lá 2 meses e não me aguentei, porque tava… afetava-me muito a depressão com que eu estava e eu despedi-me… e prontos. Tive um período em que tive desempregado, depois voltei ao Algarve em duas ocasiões e fui para os barcos também. Tive nos barcos de… cruzeiro nos Estados Unidos, também é uma história gira, é, puseram-me no barco mais antigo, ao fim de 2 meses tiraram-me e depois fui de um extremo para o outro, puseram-me no melhor barco da companhia, nas Caraíbas… é.
E: E era barman lá?
e: Não, era escanção, vendedor de vinhos, trabalhava na sala de… prontos um restaurante, só que em vez de servir comida, servia vinhos.
E: Como é que foi esse período? Conheceu muitos sítios novos?
e: Conheci o quê?
E: Se conheceu muitos locais novos nesse…
e: No primeiro barco fazíamos 2 dias às Bahamas e 5 dias a Cozumel no México, em que o Key West passávamos, onde tinha vivido e morrido, ele suicidou-se, o Hemingway, o famoso escritor americano, e havia lá um bar, às vezes, íamos beber qualquer coisa quando lá estávamos e tinha lá os retratos do Hemingway, ele fazia pesca e tinha lá os retratos… que mais? E depois quando saí para as Caraíbas era Porto Rico e fazíamos o cruzeiro de 7 dias, íamos a Martinique, São Tomás, Santa Lúcia, por aí. Só que a maioria… quando távamos no Porto, tínhamos… aquilo era muitas horas de trabalho, só tínhamos direito a um dia folga por semana e, se as pessoas se portavam mal, tiravam esse dia, o resto era sempre a trabalhar… e nesses dias de folga, os portugueses e espanhóis, havia turcos, havia outras nacionalidades, franceses, britânicos, era uma mistura de tudo, mas gostava mais do ambiente do primeiro barco… porque prontos há muito racismo, infelizmente, a cor da pele e não sei quê… e então havia muitos africanos, mas era… e outras nacionalidades e portugueses e tudo, os meus chefes eram portugueses… os outros era mais… era diferente, porque o americano acho que é, ainda hoje, é muito racista, infelizmente, mas prontos.
E: Então e teve a trabalhar nesses barcos durante quanto tempo?
e: Tínhamos de fazer um período de 6 meses e eu acho que fiz 2 num e 2 no outro… e depois conheci uma americana, mas não aconteceu nada no barco, e ela escreveu-me que tava apaixonada e os outros convenceram-me “vai, aproveita” e não sei quê… e eu fui [risos] e tive lá 2 meses, fui até a Atlanta, à Geórgia. Ela trabalhava num Banco e prontos… ficava com o carro, levava-a, deixava-a ficar, depois andava a passear, às vezes, perdia-me [risos] “já não sei onde é que estou”, depois tinha os pontos de referência aqui e ali, juntava, via os sinais… até dar com a coisa, era assim. Depois chegou a um ponto saturei, saturei, vim-me embora, porque ficava sozinho, aos fins de semana íamos passear e prontos, era assim.
E: E depois volta então para aqui, de novo?
e: Voltei.
E: Como é que foi esse período?
e: Nesse período voltei ao Algarve. Ainda tinha contactos de pessoas que conhecia, arranjei trabalho, onde ficar e… fui trabalhar para o Clube Praia da Loura, por intermédio de um indivíduo, falou com outro e ele disse “opa, ele que venha cá”. Então durante esse período conheci a minha mulher, em férias, que era propício o ambiente, o trabalho é tudo… prontos. Conheci-a e depois mantivemo-nos em contacto e eu então em setembro, finais de setembro, fui até ao Reino Unido passar 2 semanas e acabei por ficar… e… quase 15 anos lá. Vivemos 3 anos juntos, depois… depois casamos, é isso, ao todo foram 15 anos, é, tivemos altos e baixos nas relações, nos feitios, mas prontos. E eu um dia cansei-me, mais porque… também em parte, por causa do emprego que tinha na altura, separou-nos, porque… como é que eu hei de dizer? Eu trabalhava turnos e noites e não sei quê e fins de semana e, às vezes, não nos encontrávamos e então ela fazia a vida dela e eu fazia a minha e… acho que nos fomos separando e saturei aquilo e um dia deu-me uma cena e… como diz o outro, deu-me um vaipe e fui-me embora, e deixei ficar tudo para trás. E tínhamos uma vida boa, tínhamos uma casa, tínhamos dois carros, íamos de férias duas vezes por ano, era assim.
E: Lembra-se do dia do seu casamento?
e: Lembro.
E: Como é que foi?
e: O meu cunhado foi meu padrinho, foi a minha irmã, foram os meus sobrinhos, foram todos e… prontos, como é que foi? Sei lá… era um casamento, fomos à missa, um assina, o outro diz que sim, o outro dá a aliança e prontos. Vesti-me de… de fato, eu e o meu cunhado… os escoceses têm os tartan’s, não é, as famílias e não sei o quê… e tínhamos um colete axadrezado e fomos em… os fatos foram smoking, e é isso, e o colete… o colete era cor tartan, ele teve uma cor, eu tive outra, não foi nada específico. Depois houve a festa, fomos para o hotel, houve um discurso… depois é a festa, é dançar, é divertir-se.
E: E foi em que cidade lá?
e: Em Aberdeen.
E: Era lá onde viviam? Onde viveram esses 15 anos?
e: É. Tivemos duas casas, vivíamos em frente ao porto, junto ao mar, mesmo ao lado do… do farol e via os barcos a entrar e a sair… para o porto, aquilo era o porto em Footdee, e é assim.
E: E depois então, passado 15 anos, volta.
e: Voltei, é. Trabalhei nas plataformas… inicialmente, fui trabalhar para uma… para um café restaurante e depois é que fui para as plataformas, conheci outros… um português, depois ele vivia, alugava um quarto a um indivíduo que era latino, que era chileno e conheci mais outros latinos, chilenos também, e eles trabalhavam todos nas plataformas, ganhava-se mais dinheiro, aquilo era 2-3 semanas e depois a mesma quantidade em casa, prontos, eu também fui, durante um período de tempo. Depois aquilo começou a escassear, havia trabalho, não havia di… havia muita concorrência, muita competição e prontos… saturei-me e depois fui para uma pedreira trabalhar, da pedreira fui para… um departamento da câmara de transportes públicos, depois dali fui… comecei a trabalhar nos transportes públicos, deram uma formação gratuita, trabalhei para uma empresa, ano e meio, e depois fui para a Maior, para a First Bus, davam melhoras regalias, melhores horários de trabalho, melhor ordenado, os autocarros, tudo e prontos… até que me separei, tive lá uns quantos anos a trabalhar, depois vim-me embora, vim para Portugal, foi assim.
E: O homem dos mil ofícios. [risos]
e: É, um bocadinho.
E: Qual era a profissão que mais gostava?
e: Já me perguntaram isso… gostei mais de viver. Há coisas que prontos gostei imenso de fazer na altura, mas se voltar atrás, hoje não fazia, porque acho que é próprio para a época. Pronto trabalhei, por exemplo, trabalhei na Penha também em Guimarães, foi a primeira discoteca em que… as discotecas na altura iam… tavam… funcionavam até às 4 da manhã e esta foi a primeira até às 7 da manhã e foi a primeira, ou melhor foi a maior… na época eram 2 mil pessoas, tinha 2 pisos… e depois abriram uma no Porto. Eu separei-me, comecei a trabalhar aqui no… nos seguros, depois era muito desgastante, apesar de eles darem… de passar o fim de semana lá, pagavam tudo, ficávamos no hotel, tínhamos onde ir comer, assinava eu, assinava ele e… mas conciliar os dois sentia que era desgastante e então separei-me. Um dos patrões veio ter comigo ao Porto, encontrou-se comigo aqui no Porto para ver se eu voltava e não sei quê, mas mantive a… durante um período de tempo o… ainda cheguei a ir a um casamento de um colega meu, e já lá não trabalhava, ainda cheguei a… a ir várias vezes a Guimarães, depois abriu aqui uma outra no Porto, convidavam-me e assinavam o cartão que não pagava nada, prontos… encontrava-me com eles aqui no Porto, às vezes, os que eram daqui do Porto, era assim. Depois, como tudo, vai um para cada lado, aos poucos, as pessoas vão-se separando.
E: E… voltou a casar? Depois de... ou esse foi o único casamento?
e: Não, tive duas pequenas relações, uma maior, outra mais curta. Quando trabalhei aqui no… vim para o Porto, trabalhei nos autocarros, nos descapotáveis e… conheci uma brasileira, intermédio de um indivíduo, tive uma relação enquanto tive aqui, depois voltei para o Algarve, já lá tinha estado, quando me separei da minha mulher fui para o Algarve, trabalhei lá na TRANSOL, falei com um indivíduo, tinha o contacto dele [impercetível] pronto, para voltar ao Algarve, “o trabalho ta aí, se apareceres, de certeza que arranjas trabalho” e então eu voltei para o Algarve… e durante esse período a trabalhar não sei o quê, conheci uma senhora, a senhora gostou muito… da minha maneira, ela organizava… local… para ir a Fátima, para ir fazer passeio do Dia da Mulher e não sei o quê e ainda hoje é minha amiga, depois arranjou maneira de eu conhecer a filha, que tava divorciada e não sei o quê, só que não deu… [silêncio]
E: E… tem filhos?
e: Não. A minha mulher ficou sem o útero por causa de um acidente quando era nova, um indivíduo que ia de mota… caíram e ela rasgou o ventre e teve… não é… e prontos. Mais? Não sei…
[Risos]
E: E hoje, como é que é a sua vida hoje aqui… aqui no Porto?
e: Esta vida já a conheço desde 2017. Aliás, eu cheguei a este ponto aos… há pessoas que têm a crise de meia-idade, não é, eu tive uma crise existencial, que tem a ver com… em geral, porque é que nós somos, em geral, maus uns com os outros. Os patrões tratam as pessoas conforme tratam, pensam que uma pessoa… por o momento que assina um contrato tá disponível pa… para fazer acontecer e não há respeito por ninguém, porque é que os colegas por trás fazem o que fazem, quando deviam ajudar uns aos outros e andam… mais preocupados… e depois é territorial também… este é do norte… e depois uma pessoa também sente isso muito. Uma vez no estrangeiro, com a minha mulher, porque era português, levava na cara até de familiares “vocês estrangeiros vêm para o nosso país, roubam-nos as mulheres, roubam-nos o trabalho” e não sei o quê… até cheguei a dizer “olha vai tu para as festas que eu fico em casa” e… e prontos também a nível nacional acontece isso, independentemente de ser português, eu vou para o Algarve e os algarvios dizem “vem este do norte” e não sei quê, “vão roubar trabalho” e não sei quê, não sei quê… e prontos. E as pessoas têm a mania que são donos de alguma coisa e ninguém é dono de nada. [silêncio] Onde é que eu queria chegar?
E: Era sobre a sua vida nos dias de hoje.
e: De?
E: A sua vida, nos dias de hoje.
e: Ah nos dias de hoje… ah então tive essa crise e tirei um período sabático, ainda dura, já lá vão não sei quantos anos. Depois vim para o Porto, tinha o meu primo que já vivia como sem abrigo, infelizmente, ele fez asneiras, teve preso, ainda cheguei a ir visitá-lo várias vezes, mesmo quando ele tinha precárias, eu ia buscá-lo e… e ele tava aqui no Porto, tinha um quarto alugado e eu pedi-lhe até me desenrascar, ele fala com a senhoria não sei quê… mas antes disso vim ao Porto ver o ambiente, vim ver se… como é que é, como é que não é, dá não dá, e então decidi vir para o Porto, porque prontos tive o fundo de desemprego, tinha condições para pagar a renda e não sei quê… depois chegou um período em que achei que prontos tinha de vir para esta vida, como sem abrigo, mas sem ter que ir como sem abrigo, infelizmente desta vez aconteceu-me o contrário em que eu tive aí um período de tempo na rua… mas prontos.
E: E de que maneira é que sente que não ter a sua habitação própria, a sua casa, influencia a sua vida? Se é que influencia, se acha que tem algum tipo de influência.
e: Infelizmente, a maioria das pessoas nesta vida, como diz o outro, batem muito mal… e, claro, feitios são feitios e maneiras de pensar são maneiras de pensar, uma pessoa prontos… nesse aspeto tudo bem, o que é mais difícil é quando as pessoas tão com a intenção de provocar e metem-se naquela e prontos… aí é mais difícil, mas pronto, fui ameaçado várias vezes e… adiante.
E: E como é viver aqui nos Albergues?
e: Para mim é tudo bem, mesmo na altura em que tive na Casa da Rua, ali na… como é que se chama? Alexandre Herculano, ali à beira… e… nunca tive problemas, por exemplo, lá uma pessoa consegue ter um quarto individual, aqui não, mas é um bocado como voltar atrás no tempo, quando andava no colégio era a mesma coisa, as camaratas é como tá ali, eram não sei quantos de um lado e doutro, até tinha um mijão em Moçambique, que ele às vezes acordava “deixa-me dormir contigo” e eu dizia “ah mas não faças xixi na cama, se quiseres eu vou contigo à casa de banho” e acordava mijado [risos] e ele dizia “não faço” [risos] e eu “oh que carago, tou tramado”, prontos, é assim.
E: Quais são as coisas mais importantes para si?
e: Importantes? Como exemplo?
E: Na sua vida, quais são as coisas que têm mais importância para si, mais valor para si, que o fazem mais feliz…
e: A vida interior… preencher-me, completar-me, saber quem sou… é isso. [impercetível] ah e a saúde, claro, agora com a idade, às vezes, começamos a ter problemas. Como eu tive os azares das pernas, agora estão-me a afetar o joelho… a saúde em geral não tenho problemas nenhuns, é só a coluna, na coluna também apareceu-me artroses e, às vezes, tenho… tenho de fazer caminhadas, manter o peso… e a musculação para… prontos para andar mais ou menos bem e evitar inflamar. A primeira vez eram dores horríveis, depois tive de fazer exames, saber o que é que era, tive de ter um tratamento que ele me deu com medicação durante um período de 3 meses e depois, claro, a partir daí nunca mais tive problemas, mas tenho que manter se não posso-me prejudicar outra vez.
E: E… tem sonhos?
e: Sonhos como?
E: Objetivos… coisas que gostava de fazer, de ter…
e: Não… é o oposto, quanto menos tiver melhor. Gosto de sentir que não tenho apegos a nada, não tenho amarras… não gosto de dizer que isto é meu, aquilo é meu, aquilo… as pessoas têm muito sentimento de ter… e ninguém tem nada, vamos todos morrer, mas, no entanto, temos que viver, não é. Tenho que tentar contentar-me com uma vida simples, quanto mais simples, melhor e… acho que é muito mais saudável, porque as pessoas quanto mais têm, mais querem e depois… o vazio está sempre lá. Então as pessoas quando se contentam com o pouco e vivem do essencial, ter onde dormir, ter onde comer, ter o que vestir, não sei quê, fazer a higiene básica… claro que tenho tecnologia, porque tenho que acompanhar os tempos, se não… tou atrasado e claro…, mas é a única coisa que tenho também… o resto é ler livros e… é o meu passatempo. Dar passeios, respirar o ar, sentir, beber água… coisas assim.
E: O que é que gosta de ler?
e: Leio um bocado de tudo, mas, às vezes, até quando tou a ler, se gosto do autor… prontos os meus heróis… Jesus Cristo, Gandhi e… quem mais? Mahatma Gandhi, que é… Tolstói, Victor Hugo… Sócrates também gosto muito, socrático… apesar de não ter escrito nada, mas prontos… Platão, Aristóteles… mesmo que não fosse discípulo de Sócrates, mas foi de Platão… pronto gosto dos clássicos, gosto de história, gosto de biografias, gosto de filosofia… Kant… sei lá, tantos outros… Khalil Gibran, o Profeta, é um pequeno grande livro, gosto, sei lá, tantos… e depois uns influenciam os outros, porque eles também leem… Shakespeare gosto muito também, porque retrata a natureza humana em várias situações, o amor, o ódio, a vingança, a manipulação, a amizade, é… e depois é um bocado nu e cru, como se costuma dizer, vai ao cerne das coisas, de como é que as pessoas são.
E: No fundo, como diz é cultivar-se interiormente e esses livros acabam por…
e: É, e esses preenchem-me, porque ao ler um livro uma pessoa tá a conhecer a pessoa e ver o nível da pessoa, da qualidade, da linguagem, da instrução, de tudo. Então é isso, a vida é para falar bem, fazer o bem, praticar o bem, pensar o bem, porque a dualidade está sempre presente, não é, se eu me foco num ponto eu torno-me mais… essa pessoa.
E: Próximo desse ponto…
e: É…
E: E gosta de escrever também ou só ler?
e: Faço, faço textos às vezes.
E: Porque me parece alguém que pensa muito sobre estas questões e às vezes também é importante deixarmos isto…
e: Às vezes, penso num tema e escrevo, vou buscar bocados aqui e ali e não sei quê e vou pensando e… como o Platão dizia, o plano das ideias, ou ouço e aponto, aponto e faço o texto, depois vou ajustando, até que acho que está bem e fica.
E: [Risos] como é que foi contar a sua história?
e: Sei lá… não sei, é contar, mas houve muita coisa boa, boa e feliz… e com todos, hm-hm.
E: Hm-hm. Quer acrescentar mais alguma coisa?
e: Não, a não ser que queira perguntar.
E: [Risos] Acho que está, queres perguntar mais alguma coisa? Sim, é isso. Obrigada.
e: De nada.
E: Obrigada.
E: Foi muito bom conversar consigo.
e: Tá, igualmente.Recolher