Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Glausirée Dettman de Araújo
Entrevistada por Marcia Trezza e Tereza Farias
Rio de Janeiro, 16/03/2018
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HTC_HV10_Glausirée Dettman de Araújo
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisã...Continuar leitura
Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Glausirée Dettman de Araújo
Entrevistada por Marcia Trezza e Tereza Farias
Rio de Janeiro, 16/03/2018
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HTC_HV10_Glausirée Dettman de Araújo
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisão/Edição - Paulo Rodrigues Ferreira
MW Transcrições
P/1 – Gal, só para começar, diga o seu nome completo, onde você nasceu, e em que data.
R – Meu nome é Glausirée Dettman de Araújo. Eu nasci em Belo Horizonte, no dia 21 de dezembro de 1995.
P/1 – Gal, vou te chamar de Gal, tá? Bom, como é que veio esse Gal? Como começaram a te chamar de Gal?
R – Gal é apelido de infância porque Glausirée fica complicado, então, na escola, em casa, era sempre Gal. Só quando a mãe xingava, aí era Glausiréeeeee! (risos)
P/1 – Você sabe por que você tem esse nome, Glausirée?
R – Porque minha mãe gosta muito de Francês; aí, baseado em Desirée. E eu tenho dois irmãos - são três irmãos lá em casa - e ela colocou todos com G. E aí ficou Glausirée, Gladston e Gleice.
P/1 – Um rapaz e uma menina você tem de irmãos.
R – Isso.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Meu pai, Milton José de Araújo e minha mãe, Vanda Dettman de Araújo.
P/1 – Quais as primeiras lembranças que você tem da infância? Bem no começo.
R – Muito contato com a avó, não é? A mãe trabalhava o dia todo, era professora também, então eu me lembro da gente ficar muito com minha avó, vir conversar, contar história. Então, lá em casa tinha horta também, adorava cuidar da horta, das galinhas, era bem
assim essa vida. Apesar de ser em Belo Horizonte, era uma casa de interior.
P/1 – Vocês moravam com seus avós também? Pai, mãe e avós?
R – Na verdade, só minha avó. Meu avô já tinha falecido, nem cheguei a conhecer. Então minha avó morava com a gente.
P/1 – E você disse que era uma casa, como se fosse uma casa do interior. Como era a casa? Conte um pouco.
R – Casa com quintal, aquele quintal de terra para você brincar, com pé de abacate. E hoje os espaços vão reduzindo, não é? Mas a infância era isso. De brincar na rua, a rua também era de terra, então você brincava na rua, rouba bandeira, então era o dia inteiro uma diversão.
P/1 – E você disse que tinha muita história que vocês ouviam. Sua avó que contava?
R – Contava as histórias, cantava muita música. Então assim... Era muito bom. Eu era muito mais apegada mesmo com a minha avó. Meu irmão até que não, porque brincava de carrinho, esses negócios.
P/1 – E a sua irmã?
R – A minha irmã não tinha nascido ainda, não. Nessa época, quando a minha avó faleceu, ela tinha três aninhos, era novinha, não é?
P/1 – Você lembra de alguma música que sua avó cantava para você?
R – São antigas, eu não conheço, não (risos). Não lembro assim, não.
P/1 – E você se lembra de algum acontecimento que foi marcante, ou uma arte que você fez, uma coisa que no momento foi bem difícil?
R – Ah, eu me lembro de uma coisa que marcou demais. A gente tem um centro de distribuição de alimentos, que chama Ceasa. E todo sábado, ou de quinze em quinze dias, a gente ia nesse centro, um varejão enorme, não sei se tem aqui também essa distribuição de atacado. E aí eu vi uma banca, que eu não sabia que era de pimenta mas era toda vermelhinha. E eu passei a mão naquelas pimentinhas, fui mexendo, mexendo e depois, lógico, criança, com seis anos, pus a mão onde? Nos olhos! E danei a gritar: “Mãe, socorro! Socorro!”. Minha mãe, desesperada, num lugar que não tinha muita infraestrutura. Eu lembro que ela correu, o povo lá do interior também, que vende os produtos: “Passa café!”. Aí ela pegou, lavou meus olhos com café e água. Então assim... Foi traumático (risos), a beleza da pimenta e do vermelho, e depois eu apimentei meus olhos. Nunca mais, eu falei, vou chegar nem perto de pimenta (risos).
P/1 – E você brincava com seu irmão, por exemplo? Como era?
R – Brincava na rua. Chegava da escola, cinco horas da tarde, era todo mundo na rua jogando futebol, rouba bandeira, essas brincadeiras de rua que a gente também não vê hoje.
P/1 – E escola? Você frequentou escola nova, perto dessa casa em que você morava?
R – Sim, sempre nesse bairro, que se chamava bairro Betânia. Só que não tinha escola tão perto, eu lembro que a gente andava mais ou menos uma hora para chegar à escola.
P/1 – A pé?
R – A pé.
P/1 – Você e o seu irmão?
R – Eu e o meu irmão. Ele é um ano mais velho do que eu, então a gente sempre ia junto, voltava junto. Eu lembro que era difícil estudar, mas a gente ia com a maior alegria, cortando caminho nas ruas, cantando, e ia embora; porque escola era uma felicidade.
P/1 – Só iam vocês dois, ninguém levava?
R – Não, porque a gente já sabia ir sozinho e tal. E também não tinha como, minha mãe estava trabalhando nessa época.
P/1 – Qual a atividade do seu pai?
R – Ele era caminhoneiro e também ficava pouco em casa. A gente via uma vez por mês, assim, então era a mãe que cuidava mais.
P/1 – E quando ele chegava das viagens, como era?
R – Uma alegria, a gente ficava feliz, agarrava, ficava o tempo todo perto.
P/1 – E o caminhão, você gostava de subir?
R – Tinha medo. Muito alto, não é? E eu lembro que a gente fez uma viagem, ele queria levar a gente para conhecer o mar e tal. E assim... Não sei nem para onde foi, sei que a gente andou nesse caminhão, um calorão... Dormimos no caminhão. Nossa, isso aí achei engraçado também. Tirou até foto, bacana.
P/1 – Você, a família toda no caminhão?
R – É, eu, minha mãe, meu irmão, ele e só, não é? Todo mundo ali.
P/1 – Na cabine.
R – É. Eu sei que dormi com minha mãe e meu irmão e ele dormiu assim em cima do caminhão.
P/1 – Passava noites, a viagem demorou e vocês dormiam à noite no caminhão?
R – É. Lembrança assim, sei que foram dias, ir para a praia e tudo, aquela alegria, a primeira vez que você vê o mar.
P/1 – Você se lembra da primeira vez que viu o mar? Você se lembra da sensação?
R – Ah, o mundo de água, que a gente... Dá medo, a gente não tem essa noção. Aí, fica vai não vai, entra não entra, fica aquela água e vem uma onda. Nossa! E eu lembro que meu pai também colocou, ele gosta muito de nadar e eu, até hoje, não sei nadar. Ele me colocou num barquinho, junto com meu irmão. E foi passando assim. Na hora em que ele estava chegando, o barquinho, sei lá o que era, nem sei te explicar: “Olha a onda!”. Aí a onda virou o barco, eu saí rolando na areia, engolindo tudo. Eu lembro que meu pai me pegou, me arrastou pelos cabelos assim (risos). Eu falei: “Nunca mais eu quero saber de água, de mar, de nada disso”. Mas foi uma experiência assim terrível, não é? (risos)
P/1 – Com todos os sentidos, não é?
R – É, saí rolando assim, foi verdadeira milanesa ali. O caldo, que a gente fala que mineiro toma mesmo, não tem jeito. A inexperiência de mexer com o mar, não é?
P/1 – Muito bom. E aí, voltando para a escola, você disse que a escola era uma alegria, não é? Como era essa escola que deixava você feliz?
R – Nossa, eu lembro muito da alfabetização, quando eu descobri que havia aprendido a ler. Então, a primeira coisa foi conseguir fazer o R forte. E aí a professora - eu lembro que ela se chamava Trindade - contava as historinhas das letrinhas. Aí, no dia em que ela contou a história que o gato comeu a orelha do rato, aí eu consegui fazer o rrrr, porque a fonética encaixou, sei lá, a história dá um clique, não é? Aí eu fiquei: “Nossa, que delícia!”. E ficava o dia inteiro rrrrr (risos). Eu me lembro disso, que foi bem marcante assim. Aí passou essa primeira série, mas eu não achava que sabia ler, não. Aí, já na segunda série, a professora... Eu lembro que ela tinha umas unhas vermelhas enormes e ela chegava perto de mim, eu até tremia com medo dela me furar (risos). Ela era muito brava, mas continuei, tal. Quando foi na terceira série, a gente continuou. Aí, fala em leitura silenciosa, lê com os olhos. Gente! Isso para mim... Eu não conseguia entender o que era ler com os olhos. Aí eu abria o olho e ficava mmm (risos), com o dedinho, e não saía, silêncio, de jeito nenhum, não conseguia entender o que era leitura silenciosa (risos). Bom, chegou na quinta série e eu falei assim, achei que sabia ler. E tinha um livro que se chamava “Lúcia, já vou indo”. E as letrinhas vão assim... Aí consegui: “Não, agora eu sei ler, tal, estou ótima”. Quando foi na quinta série, primeiro dia de aula - o professor chamava Gonzagão. E abriu a primeira página do livro de Português, tinha lá um fragmento do livro: “O caso da borboleta Atiria”. No final, eu gostei da historinha e vi assim: “O livro tal, vá à biblioteca”. Eu cheguei, uma escola muito grande, a gente... Quinta série, aquele toquinho de gente. Cheguei na biblioteca, imensa, na hora em que eu abri a porta assim, eu falei: “Gente, o que é isso?!” Eu nunca tinha entrado na biblioteca. Aí fui, perguntei à moça, tal. Eu sei que eu saí com o livro “O caso da borboleta Atiria” na mão. Fui para casa, não desgrudei desse livro, peguei, li esse livro numa noite. Aí, nesse dia, eu falei: “Agora eu sei ler”. Porque é um livro que não tem desenho, é um livro que só tem palavras. E aí foi assim: “Agora eu sei ler”. Essa sensação que eu tive nesse processo. Mas escola sempre foi muito marcante, muito importante nas relações, fora as amizades, fora a paixão que a gente tem com os professores, que a gente carrega para o resto da vida. Então assim... Como é bom a gente ter pessoas que nos conduzem nos momentos mais difíceis. E também nos melhores momentos. Então, se não tivesse esse professor Gonzagão eu jamais teria ido à biblioteca. E a partir daí eu criei um caso de amor com a Coleção Vagalume. Então, todos os livros... “O Escaravelho do Diabo”, uma menina que era do canavial, não estou lembrando o nome, foi aquela leitura que me incentivou a conhecer a biblioteca, a buscar a leitura do mundo, não é?
PAUSA
P/2 – O Gonzagão era seu professor também dessa série?
R – Não, ele era só de Português. Aí foi o primeiro dia de aula. Porque você está na quinta série, aí você chega assim assustada, não é? Eu falo que é a ruptura, o parto da criança. Porque até a antiga quarta série a gente tinha aquela professora, levar merendeira e lanche. E daí, na quinta série, parece que é proibido, você não pode levar mais a merendeira e o lanche, então você já perdeu um pedaço de você ali. Aí chega, cinco professores, você já leva um susto. E eu me identifiquei com o Gonzagão. Primeiro, eu achei um nome muito engraçado. Ele: “Eu sou o Gonzagão”. E mesmo sendo homem, dando aula de Português, eu tinha só professoras mulheres, com aquele carinho, afetividade, é bem diferente. E foi o que me inseriu nesse mundo da leitura, da escrita, do conhecimento.
P/1 – Você falou: ‘mesmo ele sendo homem’. Você ia falar a relação...
R – É porque ele é mais firme, mais duro, não é? Não tem aquele afeto, aquele carinho. Também não tem como, porque trinta e cinco alunos numa turma não dá, você deixa de ser a queridinha da professora e passa a ser um número, não é? Mas mesmo assim ele conseguiu sensibilizar vários estudantes e tudo.
P/1 – Muito bom. E você fez todo o ensino fundamental na mesma escola?
R – Não. Essa era perto de casa, Escola Mestre Ataíde. Aí depois a gente mudou de bairro e fomos para Santa Efigênia, aí fui estudar na Escola Santos Dumont, que também é outra ruptura, porque essa era menor e quando eu cheguei lá tinha umas práticas, economia doméstica, práticas agrícolas, eu achei aquilo tão diferente! Tinha laboratório de Ciências! Eu nunca tinha entrado em um laboratório. “O que é isso? Laboratório de Ciências?”. E tinha escala, todas as regras para utilizar. Gostei muito dessa parte que vai ampliando esse conhecimento, aí me formei nessa escola Santos Dumont.
P/1 – E você disse que tem professores que também são marcantes pelos momentos difíceis. Tem alguma situação que aconteceu, que um professor foi muito significativo, além do Gonzagão?
R – Tem assim, na questão de despertar para o conhecimento. Porque aí eu penso na Matemática. Eu tinha uma professora que se chamava Graça, nessa escola Santos Dumont. Ela era muito rígida e tudo, mas muito paciente. Então é aquela questão, aluno achar que não sabe Matemática. Mas ela sentava, conversava e insistia para a gente aprender. Isso aí foi muito importante, porque eu passei a gostar da Matemática. E antes eu tinha uma aversão. Então, essa construção, esse escolher quem vai caminhar com você, e o professor ter essa sensibilidade, essa escuta, de perceber o que o aluno precisa, de como ele vai ajudar. Claro que não vai atingir a todos, mas alcança uns e outros, não é? E achei muito marcante.
P/1 – Gal, e além da escola, saindo da infância, já na adolescência, além da escola, que outras atividades você tinha? Na adolescência, mesmo na juventude. O que vocês faziam?
R – No segundo grau eu fiz o curso técnico, já comecei a trabalhar. Então, assim... Com empresas, na área de Química, fazendo produtos, produtos automotivos. Depois trabalhei em farmácia também. Então, não tem muito essa transição que a gente vê hoje, de uma juventude que fica mais assim por conta de festinha. A gente não tinha isso em casa, não. Já terminou o segundo, antes, acabando, a gente já começava a trabalhar e a pensar na faculdade. Então já foi tudo assim num ciclo de formação, constituição mesmo. Porque minha mãe, como professora, ela incentivava muito a gente a estudar, que é a única forma da gente realmente transformar a realidade.
P/1 – E no ensino técnico, você saiu dessa escola Santos Dumont e foi fazer que curso?
R – Eu fiz o curso de Química, no colégio técnico da UFMG. Então, tinha prova de seleção. Para a gente, já era o máximo a gente passar, porque é uma escola de elite. Os meus colegas eram todos de escola particular e o fato de eu ser de escola pública e conseguir, e logo depois estar trabalhando, formando nessa questão da identidade, foi muito importante.
P/1 – Você escolheu Química ou foi uma possibilidade de entrar?
R – Não, eu escolhi Química mesmo. Porque lá você fazia o primeiro ano básico. E tinha uma opção de Patologia Clínica, Química, Eletrônica, essas partes de Física, que eu não gostava. E aí eu queria era mexer com Química mesmo.
P/1 – É? Por que você curtia Química?
R – Eu acho que é isso. Primeiro é essa paixão pela Matemática. E gostar também de Ciências, da descoberta do conhecimento, da investigação, essa curiosidade que alimenta. E eu sempre gostei de várias áreas. Química, que era uma área desconhecida, aí você tem o encantamento, não é? E também a área de Humanas, porque dentro mesmo do curso a gente participou de iniciação científica e fez um projeto na área de Humanas, com cinema. Então, já tinha as duas coisas, sempre busquei outros horizontes, essa inquietude de conhecer sempre algo mais.
P/1 – Depois a gente vai falar aí desse projeto. Você entrou nessa escola que você disse que era bastante difícil. Como foi a relação, a convivência dentro dessa escola? Tem alguma história significativa com os colegas, com os professores? A convivência mesmo.
R – Convivência, a gente tinha que estudar muito e não sobrava muito tempo da convivência não, porque era muito puxado. E essa parte de Química tinha um professor que era... Não lembro o nome dele, mas a gente chama de Química Analítica. E o tempo todo a gente ficava estudando e a dificuldade. Então, a relação foi muito de um colega ajudar o outro, de ter essas parcerias. Eu tenho um amigo, que é o Mauro, nós dois éramos parceiros, na dificuldade a gente juntava e tentava aprender, ele ia para a minha casa, eu ia para a casa dele, a gente ficava o dia inteiro estudando para não perder média. Mas, no geral, o relacionamento com os colegas da turma era super tranquilo. Depois a gente encontra, alguns são médicos, outros já caminharam para outras áreas e tal, mas todo mundo conseguiu.
P/1 – Criar um vínculo.
R – É, criar um vínculo.
P/1 – E esse projeto, como é que apareceu?
R – Esse do cinema?
P/1 – É.
R – Foi porque eu gosto também da área de História, aí eu conversei com a professora, que eu gostava muito de cinema e ela indicou uma professora da Fafich mesmo, aí tinha esse projeto de iniciação científica e você escolhia a área que você queria. Eu escolhi cinema, fui estudar o surgimento do cinema, as técnicas, tudo ligado a essa questão da imagem também, o som. E aí aprender um pouco disso, não é?
P/1 – E depois tinha um produto assim, no final?
R – Na época, estava o plebiscito do Collor e a gente fez as entrevistas, filmava em nível do colégio, não era saindo do colégio. E para entender a opinião dos estudantes em relação ao plebiscito, e tal. Aí o produto era esse, esse questionário, que era uma iniciação científica, você tinha que produzir essa investigação, dar o resultado com hipótese e tudo, e interligar com o cinema.
P/1 – O resultado deve ter sido...
R – É que é uma produção já de áudio, vídeo, tudo nesse sentido.
P/1 – Quase um documentário, não é?
R – É.
P/1 – E um registro de uma época.
R – Dos caras pintadas, não é? Porque a gente estava bem nessa...
P/1 – Você ficou satisfeita com o resultado do trabalho que você fez?
R – Fiquei. Achei muito interessante, nessa lógica científica mesmo, não é uma observação por observar, é uma orientação no sentido de buscar a informação, não é? Isso é muito importante para a gente crescer e valorizar as outras áreas, entender.
P/1 – Você disse que começou a trabalhar estudando. Você estava em que ano, Gal, quando você começou a trabalhar?
R – Já no terceiro ano, porque aí começa o estágio; E depois do estágio já comecei, dentro do estágio já contratou mesmo.
P/1 – E qual foi o primeiro trabalho?
R – O primeiro foi com uma empresa de Geologia. Então, análise de terrenos, de pedras, componentes, o que você vai usar, tipo de adubo para correção do solo na produção, e tal. Depois eu fui para uma fábrica de fertilizantes, produtos automotivos, ceras, sabão em pão, mexendo com tudo.
P/1 – Essa mesma empresa?
R – Não, é outra.
P/1 – Ah, tá, uma terceira já.
R – Não, segunda.
P/1 – Ainda é a segunda que fazia tudo isso.
R – Aí fiquei um ano, quase dois anos nessa empresa. E aí fiz vestibular e não podia mais ficar naquele horário, permanecer nessa empresa. Aí fui trabalhar em farmácia.
P/1 – Mas antes, o primeiro trabalho, qual foi a sensação? Quando você começou a trabalhar?
R – Autonomia, daquela de você aplicar o conhecimento e ver que tem resultado. Ali o produto você tem que criar, ver as condições, isso é importantíssimo. Você vê o resultado do conhecimento no produto final.
P/1 – E teve alguma história nesse momento de trabalho inicial, alguma situação, ou difícil...
R – Nossa, várias situações! Uma que eu lembro assim que foi bem difícil. Porque eu ficava no controle de produção, então saem lá nove mil litros de detergente líquido para cá. A gente faz a ordem de produção e tal, e outras pessoas vão fazer isso num grande tanque. Aí você tira a amostragem no início, no meio e no fim do processo, e vai avaliando a qualidade, os índices do pH, senão queima a pintura do carro, várias coisas, queima a mão das pessoas, e tal. E aí, não sei o que o rapaz da produção errou, se ele colocou soda demais, e mandou essas bombonas, que são assim duzentos litros de detergente. E foi para a fábrica, minha filha, começou a queimar os carros todos. Aí eu falei: “Gente, volta”. Aí tive que ir para a Fiat, para mergulhar. E aí foi terrível, porque eu tive que corrigir o produto dentro de cada bombona, como uma receita de bolo, não é? (risos) E aí foi drástico. No final, acho que, de tanta reação, a minha cara ficou toda queimadinha, sabe? A mão toda ferida. Porque é muita soda, você usa soda para corrigir, porque o princípio do detergente é um ácido, quando junta. E aí o cara fez o sabão, mas ficou aquele sabão que estava matando, destruindo tudo (risos). Essa foi uma situação difícil para resolver.
P/1 – E que responsabilidade, não é?
R – É, muita responsabilidade.
P/1 – E você estava começando.
R – É, tinha dezenove anos.
P/1 – Estava ainda estudando, não é?
R – É.
P/1 – E deu certo?
R – Deu certo! Como que não? Aí voltou o produto certo, tranquilo, e foi tudo bem.
P/1 – E vestibular, o que você escolheu?
R – Ah, pois é. Vestibular, meu coração ficou dividido, não é? Eu falei: “Não sei se vou fazer Química, se vou fazer mais na área de Educação”. Porque eu gostava de Educação mesmo, de estudar. Aí eu fiz vestibular para Química, na Federal, e fiz para Pedagogia, na Universidade do estado. Aí passei nos dois, e minha mãe: “Gal, você tem que fazer o que o seu coração quer”. Eu falei assim: “Quer saber? Eu vou fazer Educação porque eu gosto é de gente, não quero esse trem de ficar mexendo em potinho, não” (risos). Então eu vou para Educação, eu quero falar, eu gosto de abraçar as pessoas, então é na Educação mesmo, não tem outro jeito, não. E fui para Pedagogia.
P/1 – Potinho não, potão (risos).
R – É (risos). Aí continuei trabalhando, mas mudei. Em vez de ser na indústria, a gente chama de Química fina, não é? Que é na farmácia. E aí fazia os produtos farmacêuticos, farmácia homeopática. Era mais tranquilo e dava para eu estudar, conciliava o horário que eu queria no momento.
P/1 – E você fez vestibular direto, nem fez cursinho, não precisou fazer cursinho?
R – Não, já fiz direto.
P/1 – Por que você gostava da Educação? Você lembra? Um pouco você falou, gostava de gente, mas o que mexia com você para chegar da Química para a Educação?
R – Essa questão da gente ensinar, não é? E, por exemplo: como eu sempre me destacava na turma, e aí os colegas pediam ajuda e tudo, a gente ia para os grupos, ensinava. Então era tão gratificante ver o colega aprendendo. Assim... O prazer de ensinar e o prazer de ver a pessoa aprendendo, isso era muito marcante. Fora o contato com as ciências humanas, que eu falei: “Gente, o mundo é humano! Não vamos mexer com esse negócio só de número, não. Não vai me agradar muito, não” (risos). Aí foi nesse sentido, por isso que eu tomei a decisão.
P/1 – E quando você começou a fazer Pedagogia, atendeu à sua expectativa?
R – Atendeu demais! Nossa! E aí eu não tinha experiência nenhuma de sala de aula com criança, nem nada. E a gente tinha que fazer um estágio lá na... Tipo, porque eu não tinha Magistério e o curso exigia o Magistério. Aí eu fiz um estágio dentro do Instituto de Educação, eu ia toda quarta-feira dar aula para as crianças, de cinco, seis aninhos. Gente, mas era uma diversão, eu achava aqueles meninos todos lindos, fofos, e o que eu propunha eles faziam. E a gente dançava, pintava. Aí eu levei café para a gente pintar com argila, então assim... Muito bacana a experiência. Foram seis meses de construção desse carinho com essas crianças, aí já aumentou muito mais a vontade de dar aula, de estar nesse mundo da educação. Porque uma coisa é ver só a teoria, e eu nunca tinha visto a prática da Educação. E aí, foi a primeira entrada.
P/1 – Quando você chegou, no primeiro dia, para trabalhar com essas crianças, ficou sozinha com elas?
R – É.
P/1 – Como foi esse primeiro dia?
R – Pânico! (risos) O que eu vou fazer? E olhava para eles assim. Meu Deus do céu! (risos). E a preocupação, menino que não escreve, não adianta você passar no quadro, você vai fazer o quê, gente? Eles vão me fazer fugir da sala? (risos) Então você tem que buscar na linguagem deles o que eles precisam. E eles são muito doces, criança é encantadora no sentido de trazer uma linguagem inocente, de falar com tanta pureza que você pode estar horrorosa que eles falam: “Não, você está linda, professora!” (risos).
P/1 – Eram muitos na sala?
R – Eram uns trinta pequenininhos.
P/1 – E o primeiro encontro deu tudo certo? Funcionou?
R – Deu tudo certo.
P/1 – Ficaram calmos?
R – Ficaram. Aí eu contei história, a gente já faz o grupinho, depois a gente leva uma atividade sensibilizando a partir da história. Então eles adoraram, foi um bom trabalho nesse primeiro dia. Do susto para depois sair a produção (risos).
P/1 – Deu tudo certo.
R – Deu, deu tudo certo.
P/1 – E conta um pouco desse percurso no curso de Pedagogia. Você foi trabalhar na farmácia, como foi essa transição para sua profissão mesmo?
R – Quando terminou o curso de Pedagogia, eu fiz concurso em Belo Horizonte e Ribeirão das Neves. Daí a primeira escola que eu fui trabalhar foi em Ribeirão das Neves.
P/1 – É perto de BH?
R – É bem longinho, eu tinha que pegar ônibus e tudo. Eu lembro que saía de casa às cinco horas da manhã, porque a turma começava às sete. Aí passei em Contagem também, era de manhã em Ribeirão das Neves e em Contagem, que é outro município. E chegava lá, então minha primeira turma era de meninos especiais, eu tinha dezesseis alunos. E foi para mim um desafio muito grande porque já era difícil uma educação formal e eu tive que trabalhar outras linguagens, porque a escola era também um pouco rígida. Tinha uma atividade – detestava isso – sete de setembro tinha que desfilar e obrigar os meninos a cantar o hino da cidade. Um hino horroroso! Que não fazia sentido para ninguém, nem para mim. Detestava. E aí como é que eu ia fazer esses meninos, com necessidade, cantar esse bendito hino? Quando você gosta é mais fácil, agora quando você já não gosta também, não vê sentido nenhum. E aí, menina, eu peguei esses meninos, comecei a dançar e cada palavra eu dava um gesto. E aí pronto, chegou no pátio da escola as outras turmas tudo certinho. E os meus meninos cantando e dançando. Aí a diretora... Eu falei assim: “Você quer o hino, eles aprenderam, ué, agora vou fazer o quê? Agora eles vão dançar lá, vai ser ótimo” (risos). Foi bem marcante. E o reconhecimento dos pais por esse carinho, por esse cuidado. Então, eu lembro que no final do ano teve a festinha. E a comunidade é muito pobre, mas é muito pobre mesmo, então, fica perto do presídio. Eles não têm condição de nada, eu que levava o material e tudo.
P/1 – Isso em...
R – Lá em Ribeirão das Neves. E no último dia de aula as mães trouxeram bolo, refrigerante, assim, foi tanto que deu para eu distribuir para a escola inteira, porque as outras turmas não tinham nada. Então elas conversaram comigo. Eu chamei as mães para a festinha, não é? E elas vieram: “Não, Gal, temos que agradecer a você o seu trabalho, como meu filho mudou em casa, e tudo”. Tinha uma aluninha que se chamava Brenda, ela falava assim: “Agora é pela ordi” (risos). Então é muito bacana o reconhecimento das famílias, depois também da escola em relação ao trabalho. Porque uma turma especial não tinha como eu adotar uma metodologia linear, não é?
P/1 – Se você pudesse sintetizar o que fez, dessa metodologia que foi adequada para eles, o que era o principal dela, que deu certo? Porque você foi aprendendo...
R – É, fui aprendendo.
P/1 – Por que funcionou?
R – Funcionou porque ela não passou uma única forma de ver o mundo. Por exemplo, eu tinha que explicar o alfabeto, mas esse alfabeto era cantado, era desenhado, era historicizado. Então, de uma maneira que contemplasse todos os tipos de inteligência que estavam ali. Então assim... Eu nunca tinha estudado inteligência emocional, nem fazia parte da Educação essas teorias, mas foi a aplicação da minha percepção a partir de cada sujeito ali. Então, se a Brenda era mais hiperativa... Por exemplo, eu tinha um aluno que se chamava Aleph, ele rastejava nas carteiras. Eu não podia nem ir ao banheiro, eu tinha que ir ao banheiro e pôr o meu pezinho assim, ele sentava. Eu falava: “Eu estou aqui, Aleph”. Então esse ouvir o outro. Tem o Matheuzinho, que também era pequenininho mas ele tinha hidrocefalia. E aí a relação que os estudantes construíram a partir do amor que foi com todos, respeitando essa diversidade, e eles se ajudando. No final, não tinha estudantes em suas especificidades, a gente era um grupo. Então acho que isso, quando eu falo da questão do hino e das músicas e da rodinha que a gente tem que fazer, essa cultura da... Como é que a gente fala? Da rotina, não é? Na educação infantil. E a rotina não era sempre a mesma rotina, mas eles entendiam a importância de estarmos uns com os outros. Porque diante ali da escola - acho que isso é muito forte - eles eram os excluídos, eles sentiam isso. Então eu era a única pessoa que os incluía, que eles se sentiam bem de estar ali. Isso é tão verdadeiro que, depois que acabou, a professora de educação infantil... No mesmo prédio da Secretaria de Educação funcionava a oitava série, e a professora da primeira série perguntou: “Quem é a Gal?” Foi lá me conhecer, porque o Aleph só falava: “Gal, Gal, Gal, Gal, Gal, Gal”. Por isso que eu falei da questão do nome, que para eu alfabetizar não podia ser Glausirée, eles não iam identificar nunca. E é isso, esse contato, essa percepção do outro, essa vontade de fazer alguma coisa.
P/1 – Você se lembra de alguma atividade que você fez com o Aleph, esse que andava assim no chão? Você se lembra de algum momento com ele, como você se aproximou, como ele realizou a atividade? Você ainda lembra?
R – Por exemplo, a gente tinha o tempo do parquinho. E aí esses meninos que têm dificuldade de locomoção, dificuldade motora, percepção do espaço, porque o mundo é um pouco fragmentado. Então, sabe aquele... Tem um brinquedo assim que é uma escadinha, que os meninos adoram? Que é tranquilo, vai, tchu tchu, tchu, normal, não é? E aí eu fui carregando ele. E aí: “Vai, Aleph!”. Eu ia com uma mão e segurava a outra e vai, vai, vai, até ele conseguir. Então, essa confiança de não estar sozinho e tal. E depois disso ele começou a ir para essa escadinha, caminhar. Isso eu tive que fazer com todos, mas o desenvolvimento dele, que era só rastejando, aí ele começou a usar o corpo ereto. Isso foi marcante para ele, eu acho assim.
P/1 – É de arrepiar, não é? Então a gente vai caminhando até chegar ao Telecurso.
R – Ok.
P/1 – Como você chegou lá? Pode ir contando um pouquinho, brevemente o percurso, para a gente depois entrar no Telecurso.
R – Aí eu passei na prefeitura de Belo Horizonte e fui chamada.
PAUSA
P/1 – Você retoma um pouquinho.
R – Eu estava trabalhando ainda em Ribeirão das Neves e fui chamada para assumir o concurso em Belo Horizonte. A escolha que eu fiz foi pegar uma escola mais ou menos próxima de Ribeirão das Neves, que eu não queria largar, não é? E aí fiquei em Ribeirão das Neves de manhã e uma escola, que se chama Daniel Alvarenga. Só que essa escola tem uma história de vulnerabilidade, empobrecimento das pessoas e eu não sabia da história. Cheguei lá, uma escola nova, um prédio maravilhoso, parecendo tudo luxuoso, mas as crianças muito pobres. Então você já chega, era uma região invadida, eles moraram em barraco de lona, em lona, e depois construíram as casas mais simples; então, eram esses alunos. E o marcante... Tinha a cantina com alvenaria, tudo, os meninos sentavam no chão, a primeira cena que eu vi foi essa na cantina, que eu já cheguei para assumir o cargo e eles pegavam e comiam com a mão, mesmo com os talheres. Então, chegava ao banheiro, passava a mão assim, porque era azulejado; na casa deles, não sabia o que era descarga. Então assim, muito vulnerável. E aí eu assumi a quarta série, que era aula de Ciências, porque eu já cheguei mais ou menos em março, já tinha começado as aulas, e passando em todas as turmas da escola. Então eu conheci todo o público e pude desenvolver uma aula de Ciências bacana. Eu lembro que fiz uma atividade que tinha que interligar a Literatura com Ciências, Geografia. Eu peguei a música da Cássia Eller (canta): “Quando a maré encher”. Eu falei: “Gente, vamos fazer um festival”. Peguei essa, “Quando o Segundo Sol Chegar”, e cada turma foi fazendo uma apresentação. Eu pedi o espaço para a diretora e falei: “Vamos fazer uma sexta da harmonia”. E foi, envolveu a escola inteira. Porque eu passava em todas, não é? Então foi o primeiro grande evento da escola unindo os estudantes. Daí desceu todo mundo para o pátio, todo mundo sentado. E eu lembro, gente, que a turma da oitava série, que era mais animada e tal, foi essa da maré encher. Eu falei: “Gente, nós vamos fazer o seguinte: nós vamos fazer mesmo essa questão dos excluídos e vamos mostrar a realidade”. “Posso trazer o cachorro? Posso trazer galinha?” Aí eu fiz encenação, sabe, dos muros da favela e eles ali, quando a maré vinha e jogava água para cima. E foi assim um evento na escola, todo mundo ficou: “Nossa, que bacana!”. E os meninos alucinados dessa cultura da diversidade, que eu sempre articulava música, literatura, para dar aula de Ciências também. Daí foi muito marcante. Depois disso, no ano seguinte, já me chamaram para assumir a coordenação da escola.
P/1 – Espere só um pouquinho, volte um pouquinho nessa cena: cachorro e galinha mesmo?
R – Foi! “Gal, pode trazer?” “Traz, gente, que nós vamos amarrar, vocês vão imitar o barraco da favela”. Aí a gente pôs as caixas de verdura, colocou lá, amarrou o cachorro, a galinha. Quando a maré enchia... Tinha a maré, eu pus as bacias d’água, eu falei assim: “Quando a maré encher vocês jogam água para cima!”. Eles adoraram, não? Foi super bacana. Fora as outras músicas. Quando o Segundo Sol Chegar eu fiz um simbolismo de uma roda acolhendo a população, o cuidado com o planeta e cada estudante fazia uma flor e entregava para um professor que estava ali naquele momento.
P/1 – Conta as outras.
R – Eu lembro só dessas. Ah não, tinha a do carteiro, aquela... acho que é ETC. Aí eu perguntava para os meninos: “O que é ETC?” “Ah, não sei o que é isso”. “Ah, é Et Cetera”. “Não é não, vocês vão fazer pesquisa para descobrir o que é o ETC” - até chegar à música do carteiro, não é? Que eu não estou lembrando a letra. Mas muito inovadora a prática assim com eles.
P/1 – Como é que você ligava essas atividades com Ciências?
R – Ligava tudo com Ciências.
P/1 – Dê-me um exemplo.
R – Por exemplo, no ano seguinte eu trabalhei a Adélia Prado. Falei: “Nós vamos pegar os poemas de Adélia Prado e vamos fazer uma teia de aranha”. E dentro, por exemplo, tem o Jonathan, que é o personagem da Adélia Prado. E uma das poesias que ela fala é: “Quando o Jonathan chega, eu passo peixe e a gente vai limpar o peixe”. Aí eu explicava a questão da Biologia, ligada para explicar dos mamíferos, dos peixes e tudo. Então pegava coisas na poesia. Como ‘sarça ardente’, que ela fala: o que é essa ‘sarça ardente’. E com cuidado, porque eu não podia trabalhar religiosidade, isso aí não, porque a poesia dela tinha um pouco disso. E aí, no final, eles reescreviam Adélia Prado e eu fiz uma teia de aranha com as poesias deles, pendurando de um lado Adélia, do outro lado a deles. E para dar uma dinâmica, mexendo o corpo, eu coloquei aquela música da Missão Impossível - tã tã tã tã - e eles tinham que passar na teia, no meio das poesias, mas não podia esbarrar senão eles perdiam. Então fez o maior sucesso na escola porque eu montei uma sala com a teia de aranha. Assim você articulava outras coisas.
P/1 – Várias turmas acabavam passando nessas teias.
R – É, porque eu dava aula em todas as turmas. Ciências, você tem uma aula ou duas aulas, então com todas as turmas eu tinha contato. Por exemplo, estava na construção da Linha Verde. E aí, cada viaduto tem o nome de um personagem da literatura, ou escritor famoso, ou um presidente. Então, Viaduto Itamar Franco. E aí eu falei com eles: “Vocês vão reproduzir na maquete, dividir, porque cada um ia construir a maquete até chegar ao Aeroporto de Confins”. E tinha que apresentar a história, não a biografia da pessoa ali. E construir a maquete. Então falei: “Aí vamos fazer exposição de todas as maquetes, as professoras vão escolher a melhor turma, e quem for a melhor turma vai comigo visitar o aeroporto”. Aí foi assim, também outra ação, sempre de mobilização. Então assim... Os pais carregando maquetes, os meninos doidos. Aí, nesse dia, não teve aula porque eles colocaram os carrinhos, tudo, os meninos não queriam sair de perto da maquete porque senão: “Como é que eu vou fazer com o meu carrinho? Não posso ir para a sala”. Então a escola parou com essa atividade. E sempre coisa inovadora, trazendo para a realidade essas experiências assim, articulando. Como, por exemplo, sair da escola: “Vamos dar a volta no quarteirão e vamos investigar as dificuldades para as pessoas se locomoverem. Como é que está o muro, como é que está o passeio, como é que está o degrau, se tem acessibilidade em tudo. Então eu falo: “Vocês são os pequenos cientistas, gente! Vocês têm que ter olhar de investigação”. Então minha aula sempre dava Ibope, não tinha.
P/1 – E como é que chegou no Telecurso, como é que foi esse encontro?
R – Fiquei nessa escola um tempo depois fui convidada para ser coordenadora, e tinha uma cobrança muito grande da comunidade porque os filhos estavam ali, e essa carência, não é? Uma carência humana. Então tinha muita briga na gestão anterior, de pai invadindo escola, nessa posição meio truncada. Aí eu assumi a direção da escola, mas já comecei mudando. Ao invés de ter um hino, aquela coisa, ter o sinal, uóóóó, eu coloquei aquela música da Adriana, do disco Partimpim. O hino da entrada da escola era (canta): “Avião sem asa, fogueira sem brasa”. Então os pais já escutavam lá da casa e falavam: “Bora! Que já está chamando, tal”. E a questão de chegar na escola, se não estivesse uniformizado a gente atender, dar o uniforme, procurar atender aquele menino, de sentir respeito, a valorização do espaço da escola, não é? E a construção também da relação com os professores, que estava muito abalada. Então promovia encontros, reuniões, encontros fora da escola também. Eu me lembro de uma atividade que eu fiz, nossa, essa eu passei aperto. Era Dia das Crianças e tinha um parque em Santa Luzia. Eu pedi orçamento: “Eu quero levar a escola inteira no parque”. Então saíram dez ônibus, tem que ter escolta da polícia e tudo, porque estava carregando a meninada do bairro. E aí, minha filha, as polícias chegaram, eles morrem de medo de polícia, muita gente, não é? E o policial, uóóóó, chega aquela sirene, tudo. E os meninos saindo naquela carreata de ônibus. Os pais ficaram impressionados que tipo assim, foram com segurança, alegria das crianças, que nunca tinham ido ao parque. Os meninos pequenininhos agarravam em mim, assim: “Ai, meu Deus, estou com medo do brinquedo”. Levei as cantineiras, auxiliares de serviço, falei: “Todo mundo, gente, vamos ser criança. Hoje é dia de parque”. Então foi muito reconhecido. Mas o mais engraçado foi já no segundo turno, porque isso foi no primeiro, deu tudo certo. No segundo, eu tenho essa preocupação, gente, até hoje! Estava faltando, a gente conta, conta, conta, está faltando uma menina no ônibus.
P/1 – Para voltar.
R – Para voltar. E eu comecei a correr esse parque igual uma doida, falei: “Cadê essa menina? Ela está escondida embaixo de um caminhão. Cadê essa menina?” E gritava. Não lembro o nome dela: “Meu Deus o que eu vou fazer, como é que eu vou chegar em casa sem a menina? Vou ser morta na comunidade! Que loucura!” E gritava, gritava, gritava. Eu falei: “Gente, pelo amor de Deus”. Pedi aos professores: “Confere dentro do ônibus, gente, tem alguma coisa errada, cadê a menina?” Aí os meninos, as histórias das crianças. “Gal, estava anunciando um passeio de balão, aí ela foi no passeio do balão”. Aí que eu já até tremia por dentro (risos). Eu falei: “Meu Deus, não tem passeio de balão, não, onde é que está essa menina? Será que ela fugiu?” Depois que eu corri meia hora, correndo, com o coração acelerado, tremendo as pernas, aí eu cheguei e a professora: “Acharam ela dentro do ônibus”. A professora não conferiu porque ela, gostando muito da coleguinha, em vez de sentar duas pessoas no banco, sentaram as três coleguinhas, de bracinho dado lá. Eu quase tive um infarto na minha vida. Eu falei: “Nunca mais eu vou levar ninguém para lugar nenhum, nunca mais vou fazer isso, gente! Esses professores não estão dando conta de olhar esses alunos, não vai ser eu!” (risos). E aí foi, mas aí deu tudo certo. Mas foi um aperto que nossa mãe! Eu falei: “Não quero mais saber de balão na minha vida” (risos).
P/1 – Só faltava ter ido com o balão (risos).
R – Um aperto. Aí, depois, eu mudei de escola porque saí de Ribeirão das Neves. Havia uma escola que tinha a possibilidade de eu trabalhar de manhã e à tarde, porque aí eu assumi um novo cargo na Prefeitura. Essa escola é a Acidália Lott, onde começou o Floração. Eu trabalhava de manhã com as turmas de segunda, terceira e quarta séries e à tarde eu peguei uma turma de alfabetização. E depois de um ano surgiu a oportunidade. Como faltava muito professor, uma escola longe, também comecei a dar aula no terceiro ciclo, meninos de quinta à oitava, que eu sempre gostei dos adolescentes. E surgiu a proposta de trabalhar com os estudantes que tinham dificuldades. Houve uma seleção, pela Secretaria Municipal de Educação, tal, eu apresentei proposta e fui assumir essa turma. E a dificuldade foi o seguinte: eu lembro que foi bem em dezembro, eles convocaram os estudantes: “Vocês vão ter oportunidade de concluir”, tal. Eu cheguei, a turma bem agitada, aqueles meninos: “O que é isso, aula em dezembro? Nós já estamos desistindo, o que é isso?” “Vocês não vão desistir, não”. Aí já cheguei no primeiro dia, já tinha aprendido toda a dinâmica da Fundação e já fui aplicando. E eles adoraram. Os professores saíam das outras salas, ficavam assim no cantinho olhando o que eu estava fazendo, porque os meninos mais levados da escola, que não ficavam dentro da sala, ficavam lá comigo. E assim foi nesse ano, depois o outro ano.
P/1 – Mas aí já era o Telecurso?
R – Já era o Telecurso. Que é o Floração. Toda a sistemática das equipes na sala de aula, funcionava demais. E aí, como trabalhar isso: socialização, avaliação, síntese, coordenação. Eles não conheciam muito o que é a palavra, mas eu fui trabalhando na perspectiva da ação, de cada um ser tudo, de ser coordenação, de ser síntese, ser avaliação e, qual é a outra que eu esqueci? Observação. E, ao mesmo tempo, estar com os outros, não é? E deu super certo essa turminha, essa dinâmica.
P/1 – Quando você falou Floração...
P/2 – É Telecurso.
P/1 – É Telecurso, não é?
R – É porque lá tinha o nome Floração.
P/1 – E o seu interesse foi por ser essa turma, é isso? Fale um pouquinho mais para a gente entender essa passagem.
R – É, o interesse meu.
P/1 – Por esse projeto, quando você foi.
R – Me candidatei? Inclusive, teve outro professor na escola que se candidatou. E aí a questão era: que tipo de professor poderia dar conta daqueles sujeitos ali? A diferença foi eu, com toda essa dinâmica, eles já conheciam o meu trabalho assim, e tinha o outro professor, que era rígido, sabe? Aí a vaga veio para mim, então criou também uma coisinha na escola, não ficou muito bom, não. Eles me jogaram no fogo assim: “Vamos ver se ela dá conta do recado”. Foi mais ou menos isso.
P/1 – Porque a escolha vinha da Secretaria.
R – É. Porque a escola queria um professor que já estava lá, ta ta ta, que já estava no turno da noite. Aí eu tive que mudar de turma também, para atender, porque os meninos estavam à noite.
P/1 – Esse grupo passou a funcionar à noite.
R – É.
P/1 – Você falou que já era dezembro. Como que ficou? Aí eles retomaram no começo do ano.
R – É. Retomei. Primeiro achei que não ia aparecer aluno nenhum, mas vieram todos, a turma lotada. Tinha trinta estudantes e eles não desistiram, nenhum. Já fui estabelecer vínculo no primeiro dia, essa questão do nome.
P/1 – Então o primeiro contato foi em dezembro com eles, aí vieram as férias e depois eles voltaram todos.
R – Todos.
P/1 – Como foi esse primeiro contato para que acontecesse isso? O que você fez? Conte um pouco.
R – Aí, seguindo a metodologia. Primeiro, a gente tinha a confecção do crachá. E nesse crachá eles poderiam... Eu falei: “Gente, vocês vão colocar o que vocês quiserem, uma coisa que identifica, tal”. Uns desenhavam folhinha de maconha, outros outra coisa, punha o apelido e tal. Aí, depois, a gente socializava, cada um ia falar de si um pouco. E também usei as brincadeiras que tinha, tinha umas dicas no livro. E também colocava outras, no sentido deles apresentarem o que eles eram. Porque aí, quando esse sujeito é excluído, ele tem muita vergonha. Então o aluno não queria se colocar, ele não queria se posicionar, muito difícil ele falar o nome, a história pessoal, ele não conhecia. Então assim... Foi um trabalho de construção em um mês para eles conseguirem essa confiança, essa relação e perceber que a escola que estava ali, que eu estava fazendo, não era... Que eu não cheguei com aquela coisa de copiar, de quadro, de encher caderno. Eu fui trabalhando naquela constituição da equipe, mas sem falar equipe. Eles percebendo, em cada um, as habilidades. Por exemplo, você colocar um pincel na mão de aluno, esses pincéis, eles pichavam a escola inteira. Eu falei: “Gente, o pincel está aqui, amanhã nós vamos precisar dele”. As revistas. A acolhida, eu lembro que eles chegavam, uns chegavam mais cedo, aí eu coloquei uma mesinha com café e o biscoito para eles, revista, revistinha, tudo o que eles pudessem ver assim. E cria também... Porque, como eu falei, eles eram discriminados pela escola. Aí, o que eu percebi? É igual mãe com os pintinhos, não é? Não pode sair porque eles fazem barulho, porque é adolescente, é a linguagem deles. Ahhh. E grita e fala, e chama: “Ô gostosa”, não sei o quê, fala com um, fala com outro. Aí eu comecei e falei: “Então vou trazer a água, vou pôr dentro da sala”. Então eu já colocava água na geladeira: “Agora nós somos top, agora tem até água gelada”. Coisas mínimas que para a gente não é nada, mas que para eles têm uma significação extrema de valorização. Então, essa questão de ter acolhida quando chega. Eu uso muito o nome brother, eu falava: “Vocês são meus brothers, não tem jeito”. Então chegava, cumprimentava, porque uns: “Não toca em mim, não! Não encosta a mão em mim, não”. Estavam tão acostumados a levar porrada, que aí eu fui quebrando isso. Aí, no final, eu abraço todo dia e pergunto como foi, não é? E aí, nesse mês, foi para isso, que é o que chamam da integração. Então eles foram percebendo: “Isso aqui é uma aula diferente”. Mas eles estavam aprendendo porque, ao mesmo tempo, eu tinha que articular uma Matemática, uma outra coisa de uma forma mais suave.
P/1 – Você se lembra de alguma história nesse primeiro mês? Algum aluno que manifestou alguma coisa? Como você falou, nos outros períodos, histórias assim que realmente mostram tudo isso que você falou.
R – Dessa turma tem várias histórias. No primeiro dia de aula, nesse da confecção do crachá, tinha um menino que estava com o olho roxo assim, assim embaixo, roxo. Qual é o apelido dele? Zoio, escreveu no cartão, z-o-o-i. Eu falei: “O que é isso? Zooi?” “Não, professora, eu sou o Zooi”. “Então tá, você vai ser o Zoinho”. E aí ele já pegou afinidade comigo e tudo. Depois eu fui ver a história dele, ele morador, o ônibus passou em cima do intestino dele, então ele andava com aquela bolsinha de colostomia, por isso que ele tinha... Era fraquinho, todo frágil. E como eu o acolhi dessa forma, Zoinho, mas não sabia de nada, bem tranquila e tal, e aí ele já pegou, minha filha, esse afeto, não desgrudou nunca mais. E ficou esse menino assim, super amoroso. Quando eu criei o blog e tudo, ele incentivava os meninos, era uma ligação da paz dentro da sala. Assim, sem eu perceber, não é? Tinha também os gêmeos, que eram o Deived e o Deivedson, que olhava para um... Gente, olhava para um e para outro nem sabia quem era quem. “Quem que eu sou?” “Ai, gente, sei não, Deived e Deivedson, esses dois aí” (risos). Que também muito descrentes da educação, quando volta para a escola e acha que não vai dar mais nada. Essa turma era aqueles meninos que não vai dar nada. “Não vai dar nada para mim, eu não vou ser nada, eu vou ficar no meio do tráfico, não vai ter nada para fazer”. E aí eu comecei a deixar eles como protagonistas da turma, incentivando o trabalho deles, elogiando uma coisa ou outra. Então eles foram crescendo e, a partir daí, as relações vão se constituindo - de amizade, de confiança: “Olha, vocês dão conta disso”. Na hora de passar um conteúdo. Porque aí já começa com os livros do Telecurso a responsabilidade deles, e eu falava muito isso: “Olha, gente, a gente tem que ter... Tem gente que aprende de todas as maneiras, a gente não tem que ficar só copiando do quadro. Então nós vamos combinar o seguinte: como a gente trabalha com música, com tudo, quando estiver explicando eu sou a Globeleza, vocês têm que ficar em silêncio total (risos), concentrar e tal”. E ficavam todos em silêncio, prestavam atenção, tudo, perguntavam. Minha aula é muito dialogada. Aí, na hora do exercício, é o seguinte: como cada um aprende de um jeito, vocês podem pôr fone de ouvido, pode sentar com o colega, vão fazer do jeito que vocês quiserem. E aí colocava, eles traziam: “Não, vamos marcar uma música boa”. Eles traziam as músicas de que eles gostavam, deixava tocar para a turma, eu trazia o vídeo, alguma coisa interessante, então eles foram participando, trazendo as coisas deles para a aula. Então, se tinha um rap eu trabalhava o rap. Aí depois eles foram construindo até que apresentaram, no final do ano, na formatura, o rap que eles fizeram para o Natal e tal, apresentaram na escola, foi super produtivo.
P/1 – Gal, tem na metodologia várias situações, várias propostas. Você pode descrever uma aula inteira? Se você puder escolher uma aula que tem situações que manifestam o resultado mesmo dessa metodologia... Tem algum?
R – Tem. No primeiro caderno de Ciências tinha. Aí você começa a leitura de imagem. Antes disso a gente já pegava a aula, você já via a teleaula, tinha o planejamento a ser feito, as atividades complementares, não é? E aí estava na aula de Ciências.
P/1 – Conta a aula toda.
R – Então... Você começava com a leitura de imagem, depois a discussão. Primeiro passa a teleaula - esqueci da teleaula (risos). Passa a teleaula, depois apresentar, fazer leitura de imagem com eles, pegar os pontos do conteúdo, a síntese dessas informações, depois a atividade. Aí depois a socialização dessas atividades e, no final, a avaliação da aula. E aí, nessa aula de Ciências eu estava trabalhando essa questão e eu falei dos ecossistemas marinhos, que aparecem lá na aula. Os costões, misturando um pouco da aula de Geografia. E um aluno falou assim para mim: “Gal, eu nunca vi o mar”. Eu fui para casa triste, falei: “Gente, como é que é isso? A gente fala de uma coisa tão impossível”. E lembrei de quando estudava, que a Química era tão abstrata, era tão numérico e, para mim, a Química é tão sensorial, porque você tem que provar, é o sal, é o açúcar, é o café. E eu falei: “Como eu vou trazer o mar para esses meninos?” Fui para casa pensando, e esse menino trabalhava no lixão. Tem um Projeto Asmare, em Belo Horizonte. E, no dia seguinte, ele traz para mim: “Gal, achei aqui no lixo um microscópio pequenininho, desse tamanho”. E trouxe um saquinho de conchas. E aí aquilo me sensibilizou mais ainda, eu falei: “Nós vamos para o laboratório”. Nessa escola não tem laboratório de Ciências. E aí eu falei: “Gente, eu vou ter que mudar, alguma coisa eu tenho que fazer. Escrevi o projeto para a diretora e para a Secretaria, apresentando a proposta deles conhecerem o mar. Mas não ir para o mar para nadar. Aí, qual o projeto que eu podia fazer? Então pensei: “Vamos estudar a tartaruga, porque ela viaja por todo o planeta e volta para o mesmo lugar para pôr seus ovos”. Eu queria que eles vissem esse processo. E o da própria utilização humana, não é? Que pegava a carne da tartaruga e comia. Hoje é um animal em preservação. Aí fui, peguei, escrevi o projeto e tudo, apresentei para a direção. Aí, depois,era questão de conseguir a verba. Tudo foi aprovado pela Secretaria e a gente foi sensibilizar o estudante. Primeiro fiz reunião com os pais mostrando a seriedade do projeto, a responsabilidade de que eu estava investida, de levar os filhos deles para outro estado, numa viagem longa. Aí tem a preocupação, que eu tinha só duas meninas na turma, acho que eram três, e o restante, todos meninos. E as meninas - me contataram as mães - ficam achando que vai acontecer alguma coisa. E essa responsabilidade. Falei com a direção, tal, aí toparam a ideia. Como se não bastasse, ao invés de pegar só a minha turma e ir com vinte e cinco, eu fui convencer a outra professora a ir com os dela também. Aí passei a dar aula para as duas turmas até a gente construir esse conhecimento, o respeito. Então se eu falasse, era verdade universal no sentido dessa questão da Globeleza aí. E coloquei esses meninos...
P/1 – Quantos ao todo?
R – Quarenta e cinco alunos dentro de um ônibus. E fomos embora. E com o Zoinho também, não deixei o Zoinho para trás, não. Ele: “Ah, não vou viajar porque eu tenho esse problema”. Eu falei assim: “Não tem problema, não! Isso é solução, a gente resolve, o que precisar, estamos indo juntos”. E foi. Esses meninos, cada vez mais eles reforçaram os laços de convivência. Porque, além da escola, aquele tempo em que você está só aprendendo é o tempo que você está vivendo, é conviver com a diferença, com a dificuldade do outro, e tentar fazer algo. Então, acho que isso foi muito marcante para essa turma.
P/1 – Como foi a viagem?
R – E aí essa viagem. Primeiro, já começa pela ansiedade, adolescente... Eu falei: “Gente, não comam nada à noite, não, vão passar mal, alguma coisa”. Teve menino que jantou uns três pratos de comida. E aí um já passou mal no ônibus. Então, na primeira parada, já tive que limpar o ônibus, não tinha ninguém para limpar. E aí o menino passando mal, eu tive que ajudar e tal. Beleza. Aí chegamos ao destino.
P/1 – Quantas horas, Gal?
R – Acho que foram umas dezesseis horas de viagem, mais ou menos, para chegar.
P/1 – Para que cidade vocês foram?
R – Foi Resende Costa, porque eu queria mostrar essa cidade preservada, que vivia da carne da tartaruga e hoje é a cidade que preserva, se construiu até um museu e tudo, preservando as tartarugas gigantes. E aí chegamos na cidade, fomos visitar, que é o encontro do rio doce com o mar, essa água doce com o mar. Primeiro, eles nunca tinham visto o mar, mas aí eu não levei direto para o mar não, primeiro foi um estudo desse ecossistema. Conhecer o museu, conhecer as pessoas na cidade, ver a típica cidade do interior, meio praia, meio roça. Então eles já ficaram encantados, e tudo. Chegaram, almoçaram, essa acolhida de sentir bem, tomar banho e tal. Aí, no dia seguinte, fomos ao Projeto Tamar.
P/1 – E eles dormiram no hotel na estrada?
R – É mais simples, não chega a ser um hotel, mas era uma pousada, uma senhora que fez vários quartos, e tudo. Então eles assim... Essa autonomia de dormir, de poder fazer, a liberdade, exercer essa prática da liberdade com o colega. E eu ficava vigiando, eles queriam aprontar, minha filha, não tinha jeito, não, vigiava e falava: “Se aprontar, no dia seguinte eu vou embora! Ninguém vai ver nada!” E aí a gente chegou ao Projeto Tamar. Foram super bem recebidos. Nossa, os biólogos, eles ficaram encantados e tiravam fotos e tudo, super bacana. Só que lá, como mar dá uma falésia, eu falei: “Pelo amor de Deus, gente, vocês não cheguem na beirada, não, porque vocês não sabem nadar e eu também não” (risos). Agora não é hora de entrar no mar não, aqui nós viemos só para estudar, depois a gente vai parar em outra praia. Aí eu fui e parei no SESC, na volta, não é? Conhecemos projeto e tudo: “Agora eu tenho que levá-los para entrar na água mesmo”. Aí, já no Espírito Santo, já estava mais próximo, paramos numa pousada ao lado do SESC ali, que tinha lá. E fiquei com esses meninos todos. No dia seguinte, logo seis horas da manhã, todo mundo fazendo caminhada e foi entrando no mar e tudo. E foi, menina, aí entrei com eles, e tal. O Zoinho já estava lá, na ponta: “Vai lá buscar o Zoinho, que você vai embora, Zoinho, nesse mar!” (risos) E foi super bacana, eles voltaram, contaram depois o registro dos relatos. Uma menina, aluna, conta a primeira vez que ela viu: “E o mar levou meu chinelo”. Que ela ficou tão assim, admirada, ficou lá na praia, queria entrar de todo jeito, que perdeu o chinelo. E esse respeito. Então, depois disso, essa turma volta, volta com uma união, com uma autonomia, uma cidadania constituída, sabe? Um exercício de valorização pessoal, e se tornaram referência da escola. Então, uma turma que nem queria estudar, que começou em dezembro, concluiu o final do ano em dezembro com louvor, com aprendizado, com cidadania, com respeito às relações com os outros. Aí, os gêmeos, juntados com outros dois coleguinhas, queriam já alugar uma casa para morar porque não queriam mais morar com os pais, eles queriam trabalhar, aí já montaram uma ideia lá de ter uma empresa de cartão e tal, tecnologia eles adoram, não é? E os pais: “Gal, pelo amor de Deus, você vai lá conversar com eles, que eles estão querendo sair de casa” (risos). Com quinze anos de idade, tal. Aí sentei com os pais, tudo. Dessa turminha, teve uma menina que casou com um estudante também dessas relações, então foi muito produtivo.
P/2 – Gal, com que frequência você fazia essas aulas-passeio? Porque a metodologia tem as aulas de passeio. Com que frequência? A cada módulo você fazia? Ou com que frequência?
R – Aí partia da demanda da turma. Porque surgia a ideia, aí eu pensava o como, não é? Então antes de... A primeira viagem foi essa.
P/2 – Você só fez essa?
R – Fiz outras. Aí, depois, já nos outros conteúdos, em que entra a História, levei os meninos para Ouro Preto. Era a oportunidade de entrar em uma mina realmente, de conhecer a história dos escravos. E assim... Porque eles viram na teleaula, aí tem aquela carruagem, não é? “Ah Gal, que legal, que bacana isso aqui”. “É, eu vou organizar para a gente ir”. Aí fomos para Ouro Preto. Mas não só isso, os espaços da cidade. Porque uma escola na periferia - chama bairro Paulo VI - que não tem nem uma quadra, não tem nada. O primeiro movimento foi levá-los para a cultura, levá-los ao cinema, levá-los ao teatro, levar às praças, Praça da Liberdade. Tem o Palácio das Artes. Aí teve uma bienal internacional, levei esses alunos. E eles não conheciam aquela arte abstrata. E, ao mesmo tempo, a gente vê o olhar da cidade para esse estudante. Porque eles chegavam lá, porque são negros, aquelas bermudas, eu falava: “Gente, essas bermudas pega fogo, essas correntes, vocês vão arrumar emprego, vocês não vestem isso, não. Vocês não vão chegar a lugar nenhum” (risos). Mas nas aulas eles iam com a roupa deles, não tinha nenhuma preocupação de ter uniforme. E aí eu os levei ao Palácio das Artes, o povo já olhava assim, achando que eles iam assaltar, entendeu? Aquela coisa. Eu falei assim: “Não, levanta a cabeça, gente! Vocês estão comigo aqui”. Participaram da atividade, não teve nada, deu tudo certo. Mesma coisa, cinema. Então assim... Foi um grupo bem... Se apropriou do conhecimento ligado à cidade, que eu acho que a escola… A escola começa ali, mas ela vai para a comunidade, depois ela vai para a cidade, depois ela vai ao longo da vida. Então, acho que essa ligação eles conseguiram fazer num ano, o que estava perdido.
P/1 – Primeiro eu queria que você contasse, e depois eu volto para isso para entender. Como que é isso? Como essas aulas-passeio dão um choque na metodologia? O que é esse gancho? Mas só se você puder lembrar - se não lembrar também não tem problema - mas de alguma reação de algum aluno quando viu o mar, ou mesmo durante o passeio para o Projeto Tamar, alguma expressão, alguma fala. Você lembra, Gal?
R – Nossa, eu lembro! A expressão deles era radiante, era uma alegria. Primeiro, a alegria de sair de casa, era como se fosse uma aventura, como se a gente fosse pegar um foguete, uma experiência assim para a gente, no mesmo nível, e parar na lua. Então, para eles, era isso, poder sair de casa na responsabilidade, sob a minha responsabilidade, e com a relação de respeito o tempo todo, respeito com os colegas e ganhando conhecimento, que eu acho que isso para eles...
P/1 – Você lembra de alguma fala deles, em algum momento assim que mostra, dá um exemplo disso?
R – Assim, além do entusiasmo. Por exemplo, no dia em que eu levei no encontro do rio com o mar, o que eu falei na sala, aí eles buscaram. Então um menino pegou e enfiou a mão na areia assim, pegou: “Olha aqui, Gal, o que você mostrou para a gente, um caranguejo não sei o quê, não sei o quê”. Então observaram. Eles olhavam para as plantas e falavam o que eu tentei trazer na sala, não é? Daí eles afirmavam: “Nossa, aqui, isso é de verdade”. E como eu falava da água salobra, eles pegaram, sem cerimônia pegavam: “Vamos provar essa água salobra aqui”, e tal. Para ver se era isso mesmo. O que era o salobra, porque era o sal e misturava. Então assim... Essas experiências. Mas, naquele vídeo ali, eu vou deixar e você vai poder ver que tem coisas que são experiências muito marcantes para eles, não é? E aí, na própria expressão, a gente vê essa felicidade dessa descoberta.
P/1 – O que seria a diferença de uma aula-passeio e de um passeio? Porque as escolas fazem passeio. Você percebe? Em relação à metodologia, traz para você as propostas? No que você observa dessa proposta, aula-passeio, com o passeio que a escola já faz. Ou não tem diferença?
R – Para mim tem toda diferença. Quando você propõe uma atividade que está ligada ao conhecimento que você quer que o aluno construa, então você não pode chegar lá como turista. Eu tenho que ir antes, tenho que conhecer, tenho que ver as possibilidades de aprendizagem, ver quais as estratégias de aprendizagem eu vou potencializar de acordo com as habilidades que o estudante já tem. Essa é a diferença. Então, se eu vou... Por exemplo, teve um filme, que era Preciosa, que eu levei eles para, primeiro, conhecer o espaço – aí eu estou falando de cidadania. Agora, eu trabalho o conteúdo do filme na sala, antes de chegar no filme: “Gente, nós estamos falando de relação, de racismo, da discriminação da mulher, a mulher que é gorda, que é maltratada, que ainda não tem conhecimento, e como é difícil isso na sociedade”. Eu falo: “Gente, você acha que não existe escravidão hoje no Brasil?” Aí vou trazendo. “Quando a gente não tem acesso à educação, quando a gente não tem acesso às possibilidades de transformação, a gente está sendo escravo, escravo por não conhecer e não saber o que buscar. Vocês estão tendo a oportunidade”. E aí tudo o que eu levava em aula-passeio eu tinha que discutir na sala antes. Tinha roteiro, tinha o que eu queria, tinha relatório, então tem o início, o meio e o fim. Não era esse passeio por passeio, que aí eu já chamo de atividade extraclasse. Eu quero levar os meninos para ir ao teatro; no teatro, eu escolhia qual a peça - a peça que eu queria era A Era do Rádio. Porque eles valorizavam muito, na época, o computador - era o Facebook e o Orkut, acho que era Orkut. Eu falei: “Mas antes disso, quais eram os meios de comunicação?” E a gente, na sala, trabalhava a televisão. Mas antes, a era do rádio. Então, como se dava a comunicação, as novelas do rádio, as propagandas do rádio, isso tudo interligado com a aula de Português. A aula-passeio é aula com ludicidade, eu até dei o nome “aula porta afora”, não é? Não é uma aula que acontece sem propósito. E aí vou citar o exemplo de outra aula-passeio que eu fiz, já como coordenadora da escola e tudo, mas mesmo trabalhando os professores. E que foi para o Museu da Língua Portuguesa, conhecer a Estação da Luz, aí trabalhando a questão até da Inglaterra, da história de São Paulo, a história do Mercado. Porque eles foram para o Mercado. Eu falei: “Nós vamos provar, como o paulista faz, comer lá aquele pastel paulista, ver os vitrais, depois ir na 25 de março, conhecer toda a parte, história de São Paulo, que é a história econômica do país”. E aí foram os professores que não tinham contato comigo, que a direção pediu assim. Eu falei: “Olha, gente, eu não dou conta de ficar tirando foto, tem que ter alguém para tirar foto e tudo, ajudar”. Porque, dessa vez, eu fui com dois ônibus. Ajudar a controlar os estudantes para ver se ficou um para trás. Pois você acredita que esses professores foram igual a turistas? Eles é que atrasavam, ficavam tirando foto do lugar, não chegavam. Os alunos todos comigo e os professores perdidos como barata tonta. Eles estavam na aula-passeio deles, entendeu? Porque os alunos sabiam os objetivos direitinho (risos). Eu falei: “Eu nunca mais vou com nenhum professor que eu não conheça!” (risos). Porque senão a metodologia não funciona. Então você tem que fundamentar, é uma ação pensada, fundamentada, com a construção de conhecimento. Nunca pode ser uma aula, porque senão o aluno passa a não ir. Para ele, não estou falando essa aula assim no museu, numa coisa assim, porque primeiro o museu para ele é tão distante, uma natureza morta ali, que ele vai observar: “Isso aí é chato”. Se eu não vender esse peixe antes, ele não vai admirar. Então tenho que orientar o olhar dele, nesse sentido de investigar, de ver: “Olha, você está vendo isso daqui? Por que será assim?” Então essas possibilidades é que a gente tem que construir.
P/1 – E o registro, como é feito depois?
R – Eu tinha o registro de...
P/1 – Assim... Como você falou que tem começo, meio e fim. Como é o fim?
R – O relatório. Quando retornava da atividade, a gente ia discutir na roda, no círculo da aula. E depois eles tinham que colocar por escrito, porque aí eu colocava no blog. Eu criei o blog Gal Radical para colocar as impressões deles, que era o memorial. Então assim... Interligada com a prática da Fundação. E que funcionava demais, porque eu tinha que melhorar a escrita deles. Então valorizava oral, que era uma forma da emoção borbulhante, não é? E depois o escrito. Falava: “Só vai valer por escrito”. E tudo tinha valor, e tudo. Então eu tinha também as estratégias, colocava assim: “Gente, todos vocês já tiraram cem, vocês já passaram, vocês são os melhores para mim. Agora o seguinte: você vai manter o seu cem ou você vai diminuir ele aí”. E aí colocava os atributos das equipes, porque depois já estava mais consolidada. “Avaliação foi assim: síntese, avaliação e coordenação, e tal”. No final do dia, ele dava a nota dele. E eu perguntava qual é a nota da turma para ele, hoje. Porque se ele fofocou demais, falou demais: “Atrapalhou a aula o tempo inteiro, professora”, aí ele diminuía a nota. Mas é claro que eu não ia pegar aquela nota ali e impedir ele de avançar. Mas era para ele se auto-policiar, tipo: “Em que medida eu contribuo, eu posso estar aprendendo para mim, mas eu também tenho que ter a responsabilidade do grupo, coletiva. Eu não posso estar aqui atrapalhando o outro o tempo todo”.
P/1 – E você falou que o registro, você aproveitava a proposta do memorial. Explica um pouco como é que fazia isso. Dê um exemplo assim, inclusive um aluno fazendo. Memorial era papel?
R – Não, primeiro não podia ser uma coisa assim simplória, não é? Eu tinha que dar um valor. Então eu já pedi à escola para comprar um caderno de capa dura bonito para ser o caderno do Memorial. E aí a primeira coisa era colocar a identidade deles, uma foto deles, uma coisa... Já que a capa era dura, então colocava dentro assim, na primeira folha. Aí eles começavam a contar e, a partir disso, timidamente. Eu falava: “Gente, vocês têm que contar para mim como é que foi o dia de vocês”. “Ah, foi bom”. Começavam assim: “O dia foi bom”. Eu falei: “Não, mas está com pouco detalhe demais, como é que eu vou saber isso?” Porque a timidez deles, do processo de escrita estar deficitário. Eu falo: “A oralidade de vocês está super desenvolvida, mas essa escrita não sai de jeito nenhum” (risos). Aí eles escreviam, mesmo errado eu não corrigia nada. “Não estou corrigindo Português, eu estou ouvindo vocês no papel”. Aí eu comentava, deixava recadinho: “Olha, bacana”. Sempre pegava isso diário, todos os dias eu olhava o memorial, tinha o tempo do memorial para escrever, dar resposta. Então eu levava para casa, dava resposta no dia seguinte. E foi estimulando, cada dia eles escreviam mais: as histórias da vida, as dificuldades, coisas que eles passavam na vida mesmo, dificuldade. Dificuldade com droga, dificuldade em casa, que a gente acha que não mas são meninos que sofreram abuso, têm dificuldade mesmo de passar fome.
P/1 – E eles começavam a trazer essas situações?
R – Relatavam isso no memorial. Mas era só eu que tinha acesso. E um não tinha acesso ao outro, não. Agora, depois das viagens, dos passeios, que eles começaram a relatar isso no memorial, aí eles começaram a trocar os cadernos entre os colegas para contar e tal. Aí também foi outro movimento do memorial. Mas importantíssima essa ferramenta desse registro, dessa memória diária e dessa possibilidade de escrita sem o viés do corte, da correção, da livre expressão, isso que eu acho bacana.
P/1 – E Gal, você, quando voltava das viagens, cada um escrevia as suas impressões. E depois tinha alguma coisa de síntese, de juntar tudo isso?
R – Pois é, ia acontecer no blog, não é? Eu pegava as melhores, sem interferência, do jeito que eles escreviam mesmo, e também tinha o meu memorial que fazia parte ali para eles, falava das minhas impressões e tudo, e eles tinham acesso. Então era muito dialogado, tem que ser.
P/1 – E você escrevia o seu blog. E eles tinham acesso ao blog?
R – Tinham. E aí, esse negócio rodou a escola. Porque eu criei justamente para dar visibilidade para eles, para eles comentarem. E aí era outra forma de melhorar a escrita. Eu falei: “Ó gente, eu vou postar todas as viagens, os vídeos e tudo, vai estar tudo lá”. E aí eles escreviam e passavam para a família. E teve o maior sucesso na escola assim. “Vamos acessar o blog”. Então tinha muitas visitas, mostrava para os parentes, para os primos, muita gente na família, não é?
P/1 – E eles tinham acesso à internet para ver o blog?
R – No laboratório da escola, de informática. Porque, nessa época, o celular ainda não era tão avançado, então era no laboratório de informática.
PAUSA
P/1 – Eu queria voltar um pouquinho, porque você comentou das fases da aula, que passa a teleaula, depois vocês fazem leitura de imagem, aí tem os conteúdos, depois a relação que você falou da aula porta aberta...
R – Aula porta afora, isso.
P/1 – E quando você, até para a gente fazer esse ciclo todo, antes da teleaula, ou do conteúdo que você vai apresentar, você falou que dialoga muito com eles. Você trabalha de alguma forma para depois trazer o conteúdo?
R – Sim. Na verdade, eu assistia a todas as aulas antes. Eu já tinha um planejamento na cabeça e procurava usar a metodologia e, além da metodologia, estratégias para sensibilizá-los para a aula seguinte. Então, qual o próximo tema? Eu sabia, eles não. Mas aí, na aula, eu já dava umas pistas. Só que era em forma de problemas, de questionamentos: “Gente, se acontecer isso o quê que faz? E como nós vamos agir dessa forma?” Em todos os conteúdos. Por exemplo, até na Matemática mesmo, com problemas muito ligados à compra, de lidar com dinheiro, dessa responsabilidade de você ter x reais nas mãos e ter que gerenciar o dinheiro até o final do mês. Porque eles têm um imediatismo muito grande. E aí a história começou com um aluno, esse menino que trabalhava no lixão, que era o único que trabalhava na sala, chegou na sala com um boné de duzentos e cinquenta reais. E aí o negócio dele... Ele andava já segurando o boné, com medo de alguém pegar o boné. Não da turma, mas da escola, porque tinha outras turmas de EJA que não era a nossa. E eu fui questionar, eu falei: “Gente, como que é isso, essa relação com dinheiro, que você não tem nem para você, você vai à loja e compra um boné de duzentos e cinquenta reais, dividido em dez vezes, e agora tem que andar segurando esse boné”. Não tem condição isso na minha cabeça (risos). E aí, partia para a valorização da pessoa. “Por que você usa o boné?” “Ah, porque o meu cabelo é feio”. “O seu cabelo é feio por quê?” “Ah, porque ele é mais enrolado, mais duro”. Ou tem que raspar a cabeça, não sei o que tem. Às vezes, o menino não tinha dinheiro para cortar o cabelo, ele vinha com o boné, entendeu? Então assim... A partir dessas coisas que eles traziam, que são pequenos olhares, é uma percepção que você tem que desenvolver, e aí você interligar com o conteúdo. A proposta é essa. Porque não adianta a gente pensar uma educação que não tenha significado para o estudante, que ele vai embora, ele desiste, ele fica desmotivado. Então, o processo educativo acontece quando ele identifica aquilo na vida dele e, a partir daí, ele vai construindo formas de completar esse desafio, mas não é um desafio que você nunca tem resposta, que está sempre no fracasso, senão a escola volta a reproduzir essa exclusão, essa evasão. Então, ele só se sente sujeito enquanto naquele processo eu construir esse caminho para um dia ele caminhar um pouquinho e vencer. Aí ele: “Ó, eu dou conta”. No outro dia, ele vai e vence outra coisa mais difícil. Então, eles falavam muito assim: “Eu quero aprender raiz quadrada”. Mas a dificuldade deles estava lá nos fatos fundamentais, na construção do número. E aí, para eu passar para porcentagem, regra de três, eu tive que construir essa relação a partir do dinheiro, que fazia, que é importante para eles a escolha: ou você compra um boné ou você vai comprar uma geladeira a prestação na Casas Bahia. E, às vezes, você pode comprar à vista, mas você vai... Essa escolha, essa autonomia da gestão financeira da própria vida. Então é sempre isso, escutando o sujeito e a partir deles eu construir o conteúdo, interligando com a proposta da Fundação.
P/1 – A gente vai começar a fechar aqui. Primeiro, a gente quer saber o que a metodologia da telessala, do Telecurso, mesmo deixando de ter enquanto projeto, mas o que é que ficou para você, que você leva para a sua prática?
R – Olha, eu acho que o conhecimento numa linguagem acessível ao jovem, e aí a gente pensar que se um livro, para você ler duzentas páginas você demora, um jovem com essa dificuldade de aprendizagem demora um ano, e olhe lá. E quando na teleaula você condensa isso com a imagem, depoimentos, coisas engraçadas, que a aula do Machado, aula de Ciências, então eles riam, eles comentavam as coisas que aconteciam lá porque, às vezes, era semelhante. E a própria participação da sociedade na construção do conhecimento. Porque a aula de Inglês também foi uma coisa que mexeu demais com eles. Eu acho que essa possibilidade de você ter o acesso ao conhecimento com os recursos midiáticos é fantástico. Eu acho que esse é o primeiro ganho, acho que tenho que ter a teleaula, às vezes talvez até atualizar um pouco os personagens, de acordo com o jovem hoje. Mas é fantástica essa construção. E também o desenho da teleaula que, depois, aprendendo um pouco mais... É que eu não me lembro dos nomes agora, mas tinha esse de apresentar o assunto, de problematizar, depois você voltar e rever aquela coisa de outra forma, então, a teleaula, eu acho ela muito importante. Em seguida, a questão dos livros do Telecurso. Porque não é aquele livro que tem cinquenta mil atividades para o aluno, essa questão da lógica que a gente só aprendia com cem problemas de Matemática. Não é isso. Então, às vezes, você pega dois que vão te dar o exemplo para resolver todos que aparecerem na vida; então, o livro é bem nessa constituição. E o apoio, o livro do professor, também achei fantástico. Acho que nesse caminhar, você ter uma estrutura para lhe dar pistas para você construir esse conhecimento, para você dinamizar sua própria prática. Porque, às vezes, o professor fica muito no mundinho dele e não ouve o outro professor, não ouve outras propostas de educação. E eu vejo que toda metodologia pensada tem muitos pensamentos e estratégias pedagógicas que são compiladas ao longo de anos dessa educação. Então, eu acho importantíssimo o professor perceber e conhecer a metodologia com o olhar diferenciado, com o olhar de abertura ao conhecimento. Porque a gente: “Ah não, porque é teleaula, porque é televisão”. Não, não é a televisão que ensina, o professor continua sendo o instrumento e a ponte na construção do saber dessa produção de conhecimento pelo aluno. Agora, o que a gente tem é uma estratégia, uma ferramenta diferenciada, de excelente qualidade, nessa construção.
P/2 – Os momentos de formação facilitavam o seu trabalho em sala de aula?
R – Nooosssaa, gente! Não esqueço da Antonita. É Antonita?
P/2 – É.
R – Antonita, fantástica! Aquela... Entender o trabalho de equipe e se predispor a fazer, você tem que ter aquele “vuco vuco” dentro de você para mudar isso, para você sair dessa inércia e estabelecer relação com o outro. Você entra no mundo do outro e deixa que o outro entre também no seu mundo, perceba a sua fragilidade. Porque o professor está lá na frente, a gente não sabe todas as matérias, a gente tem momento que fala: “Não sei, mas eu vou pesquisar. Vamos pesquisar juntos?” E essa construção, esses laços, então a formação foi riquíssima, com as possibilidades, as metodologias, os cartazes. Nossa, eu guardei muito isso, achei fantástico.
P/2 – Outra coisa, a gente tem como grande marco por uma educação para o desenvolvimento do ser. Você acha que esse fazer possibilita isso?
R – Educação é transformação. Eu sempre acreditei nisso. E pensar nesse sujeito, você não pode oferecer o mesmo prato para pessoas diferentes. E o Telecurso oferece possibilidades. Eu acho que é isso, essas diferenças são potencializadas no sentido de permitir essa transformação.
P/1 – Você podia - eu sempre falo se podia porque faz um tempo - alguma história de algum aluno em que você percebeu isso acontecer?
R – Dessa transformação?
P/1 – É. Eu sei que muitas coisas aconteceram, mas podia escolher uma que você pudesse contar para a gente, para fechar com essa história?
R – Ó, vou contar esse aluno do boné, que é o mesmo aluno que trabalhava no lixão. Depois ele saiu desse trabalho da Asmare e conseguiu um emprego mais formal, com carteira assinada. E depois de anos, ele me viu na rua: “Professora Gal!!!”. Eu olhei e falei: “Nossa!”. Ele me abraçou, agradeceu e tudo, falou como a vida dele se transformou. Agora já estava no ensino médio, já terminando para fazer o Enem, e com outra profissão, que não era essa de ser um separador de lixo, mas ele já estava hoje trabalhando no supermercado, com uniforme, com tudo, com outra possibilidade, e continuando os estudos. Eu acho que a Educação serve para isso, para a gente entender que não para de estudar nunca. E com isso, a gente também não para de crescer. Porque é a educação com a gente e a educação com o mundo, nessa convivência.
P/2 – E você, que legado trouxe para você, para a Gal profissional e para a Gal pessoa?
P/1 – Além dos materiais que você disse que são muito...
R – É, pertinentes. Excelente qualidade.
P/1 – Inclusive, mesmo sem material, o que dá para fazer, entendeu? Esse legado que está com você, independente de lugar, de material. A gente sempre fala como se tivesse ficado, a gente supõe, se ficou alguma coisa.
R – Ficaram várias coisas. E o que eu acho importantíssimo é que tem coisas que é igual tatuagem, você pode... Está impregnado na pele. Você pode passar o sabão, mas ela não vai sair. Então o Telecurso foi um marco para mim, para minha inserção no mundo da educação de jovens e adultos. E hoje perceber esse público excluído, que não teve oportunidade de estudar na idade certa, que, às vezes, é um público que por ter uma... Por ser adolescente não foi respeitado na sua identidade, na construção da sua autonomia. E hoje eu carrego esses estudantes todos como tatuagem. E com isso me permite hoje construir e pensar a educação para Belo Horizonte, porque hoje eu estou na Gerência. Então quando eu penso, hoje eu tenho lá doze mil estudantes sob a minha responsabilidade, pensar como fazer e o que eu vou fazer de melhor para que essa transformação aconteça com todos. Então acho que pensar a Fundação, pensar o Telecurso, é com grande orgulho, com grande alegria, porque é uma porta que se abriu para um conhecimento gigante, como foi a primeira porta da biblioteca, onde eu entrei num mundo do qual eu não conhecia nada, em que tudo era novo. E a novidade se transformou no alicerce para possibilidades. Eu acho que esse material não é só o livro, a teleaula, é a imaterialidade presente nas relações que foram construídas ao longo desses anos.
P/1 – A gente vai fechar com essa sua fala, que diz tudo, e agradecer muito a sua história.
R – Nossa, eu que agradeço, gente, foi um prazer!
P/1 – Parabéns!
R – Nossa, é muito bacana mesmo.
P/1 – E, além de tudo, teve umas partes muito engraçadas (risos).
R – Porque tem, não é, gente? (risos).
P/2 – Não teria graça, não é?
R – A Educação tem que ter graça, gente! Uai!
P/2 – A vida tem que ser vivida com essa leveza, bom humor, não é?
R – Bom humor.
P/1 – Muito bom humor. Então a gente fecha aqui, tá?
R – Ok.
FINAL DA ENTREVISTARecolher