Eu aprendi sozinha a rezar. Isso foi de mim mesma, sabe? Porque uma vez eu era bem pequenininha e um menininho se engasgou. Eu fui, rezei e ele melhorou. Eu sou assim, eu rezo pra qualquer pessoa. E quando a espinha não sai, quando ela é muito grande, eu dou um remédio pra pessoa provocar o vômi...Continuar leitura
resumo
Neste depoimento, Dulce nos conta primeiramente sobre sua infância. Sua mãe cuidou sozinha dela e seus irmãos, destino que Dulce mesmo repetiria em sua vida adulta. Dulce fala sobre as suas brincadeiras de infância e o trabalho com plantação de mandioca, extração de borracha, artesanato e tecelagem em palha. Além disso, vimos sua fala sobre os costumes dos arredores de Alter de Chão, como a culinária, as festas e as danças, elementos envoltos pela fé no catolicismo. Aqui sabemos também um pouco sobre seus dons de rezadeira e sua sensibilidade com o mundo espiritual.
história
Dulce Sardinha de Vasconcelos
legenda:Mulher sorrindo de pé próxima de uma mesa em uma cabana. Há exemplares de santos católicos na mesa.
Dulce Sardinha de Vasconcelos
legenda: Mulher mostrando um objeto feito de palha. Está sorrindo e em uma cabana.
Dulce Sardinha de Vasconcelos
legenda: Mulher sentada em um banco dentro de uma cabana. Está realizando trabalho com palha.
Dulce Sardinha de Vasconcelos
legenda: Mulher de pé mostrando bolsa e objeto feitos de palha. Há árvores e uma casa ao fundo.
história na íntegra
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- Ficha técnica
P/1 – Dona Dulce, eu vou começar fazendo uma pergunta muito difícil, que é o seu nome inteiro.
R – O meu nome é Dulce Sardinha de Vasconcelos.
P/1 – E por que o seu nome é esse, dona Dulce?
R – Olha, é uma resposta que eu não sei dizer, sabe?
P/1 – Onde a senhora nasceu?
R – ...Continuar leitura
P/1 – Dona Dulce, eu vou começar fazendo uma pergunta muito difícil, que é o seu nome inteiro.
R – O meu nome é Dulce Sardinha de Vasconcelos.
P/1 – E por que o seu nome é esse, dona Dulce?
R – Olha, é uma resposta que eu não sei dizer, sabe?
P/1 – Onde a senhora nasceu?
R – Eu nasci aí, em Alter do Chão.
P/1 – E quando foi isso?
R – Isso foi dia 3 de outubro de 1942.
P/1 – A senhora tinha muitos irmãos?
R – Não. Tive oito irmãos, morreram quatro e tem quatro.
P/1 – Como é o nome do seu pai e da sua mãe, dona Dulce?
R – Olha, o nome do meu pai não existe no mundo, que eu nunca soube. Agora o nome da minha mãe, no documento dela, é Alvina Sardinha de Vasconcelos. Mas, nos demais documentos que ela tirou, ela botou Ervina.
P/1 – Ervina?
R – É.
P/1 – Ela trocou?
R – Trocou.
P/1 – Por quê?
R – Eu não sei.
P/1 – A senhora disse que não lembra o nome do seu pai, por quê?
R – Porque a minha mãe nunca me disse quem era o meu pai.
P/1 – E os seus irmãos eram filhos do mesmo pai ou cada um...
R – Não. É assim, cada um tinha um pai. Não gostava de ter só um pai, gostava de cada um ter um pai (risos).
P/1 – A senhora chegou a conhecer algum pai de algum dos seus irmãos?
R – Eu conheci. Porque eu tenho uma irmã, Antônia, que ela é irmã da dona Benita, essa que fez a entrevista. E tenho um irmão que ele é irmão do Zé Sardinha, sabe? Da nossa família mesmo. O nome do pai dele era Alberino. Chamávamos Zinho pra ele.
P/1 – Então, ele é irmão só por parte de pai?
R – Só. E outra foi lá do Amaranaí, o seu Tércio, um que era seringalista, tinha muita seringa, né? Já morreu também. Agora, outro, ele era primo do Zé, que trabalha na prefeitura, Zé Araújo. O pai do meu irmão era irmão do pai do Zé Araújo. Agora do resto eu não sei, nem o meu eu não sei (risos).
P/1 – Mas explica pra mim, na sua casa a sua mãe é que era responsável pela criação?
R – É, a minha mãe era o pai, era a mãe, era quem mandava lá, tudo.
P/1 – E na época era muito comum ser assim?
R – Como assim?
P/1 – Várias famílias só tinham a mãe?
R – Era assim mesmo, tinha mais mãe do que pai (risos).
P/1 – E eram as mães que criavam os filhos?
R – As mães que criavam os filhos, como eu também criei com sacrifício os meus filhos. Porque esse homem, eu vou fazer 23 anos com ele, mas ele já é meu marido, porque já faz muito tempo comigo, mas ele não é de matrimônio, não, assim, casado em cartório e civil, não é não. O que a gente fala a verdade não merece castigo, então, eu falo a verdade, né?
P/1 – Fala a verdade pra mim.
R – Ele vive comigo, mas ele não é assim meu marido.
P/1 – Mas a senhora chegou a ter algum marido com matrimônio ou não?
R – Não, eu não tive não, eu não sou casada. Eu sou casada agora porque eu vivo com ele, né?
P/1 – Quantos filhos a senhora tem?
R – Tenho quatro.
P/1 – E a senhora também fez do mesmo jeito da sua mãe?
R – Do mesmo jeito.
P/1 – Me explica como é que funciona. A senhora decide que vai ter o filho, como é que é que a senhora tem o filho, o que é que acontece?
R – Olha, antes, tinha essa lei, mas não rigorava, né? Que a mulher tinha filho e colocava o pai na Justiça. Então, os homens faziam filhos, não queriam cuidar da mulher, a mulher se aborrecia e deixava o filho para o outro. Aí, ia levando a vida. Era isso que acontecia, né?
P/1 – E com a senhora era isso também ou a senhora já...
R – Era, porque eu criei meus filhos com sacrifício, como eu estava acabando de dizer ali, que eu cortava seringa, fazia a roça e tudo pra me manter com meus filhos, certo? Porque os pais mesmo só queriam fazer. Lá nos índios, falando em negócio de escassidão, é porque fulana é escassa. “Eu nunca fui escassa, se eu fosse escassa eu não teria quatro filhos”. Aí eles riram, sabe? (risos). “Por quê?” “Porque quando pediam, eu dava, né?” (risos).
P/1 – O que é escassidão?
R – Eles falavam assim, que escassidão é quando uma pessoa tem uma coisa e o outro não tem, sabe? Aí, eles vão pedir e não quer dar, né? Aí, eu falei essa besteira lá (risos), escassidão. “Eu nunca fui escassa.” “Por quê?” “Porque se eu fosse escassa, eu não tinha quatro filhos” (risos). Ah, como estou falando besteira aqui (risos).
P/1 – Mas o primeiro filho que a senhora teve, é a primeira filha?
R – É, a Rosa.
P/1 – A Rosa. Quantos anos a senhora tinha?
R – Quando eu vim pra cá, a Rosa estava com seis anos. Eu estou com 67 anos, então eu tenho 46 anos aqui. É isso? É. Ela está com 47.
P/1 – Quando a Rosa nasceu a senhora tinha...
R – Eu to com 41, né, porque ela tá com 47.
P/1 – Então, 61. A senhora tinha quantos anos quando ela nasceu?
R – Não, eu tenho 67 anos.
P/1 – E ela está com 47?
R – É.
P/1 – Então, a senhora tinha 20 anos.
R – Eu tinha 20 anos.
P/1 – E a senhora teve por acaso ou falou: “Agora vou ter um filho”?
R – Não, nesse tempo eu gostava de festa e aí me envolvia com homem, sabe? É isso.
P/1 – E não vivia?
R – Não, só fazia o filho e: “Vai-te embora que eu fico.” (risos).
P/1 – A senhora mandava o homem andar mesmo ou ele que saía andando?
R – Como eu estou acabando de dizer, naquele tempo existia lei, mas não era como agora. Agora as mulheres têm todo o direito, mas antes não. O homem fazia filho numa mulher e ia embora, não estava nem aí. E ela não tinha como castigar ele, né? Aí, ficava, se ela quisesse criar o filho ela tinha que trabalhar, dar o jeito dela.
P/1 – E era assim, a mulher que trabalhava e dava um jeito?
R – Não aconteceu só comigo, mas com tantas aí, né, Chico?
P/1 – E não dava conta de um dia o pai estar numa festa lá e falar: “Êpa, tu é o meu filho.” Ele sabia quando era o filho dele?
R – Olha, eu tenho um filho, ele está aqui, sabe? Quando o pai dele foi embora daqui, eu fiquei com quatro meses de gestante dele. Aí, ele disse assim: “Olha, eu vou pra Manaus, vou trabalhar e vou mandar um dinheiro pro teu parto.” Hum. Quando ele voltou aqui o meu filho estava com 24 anos. Aí, ele foi embora e nunca mais voltou pra cá.
P/1 – E os outros? Me conta de cada um dos pais.
R – E os outros estão aí. Eu tenho um filho que o pai dele é professor lá em São Brás.
P/1 – São Brás é aqui perto?
R – É aí na estrada. Eu nunca mexi com ele, ele nunca mexeu comigo, assim de raiva, de trocar palavrão, não. Até hoje ele fala comigo, ele diz assim: “Cadê o nosso filho?” “Tá aí”. Mas também nunca deu nada e eu nunca pedi. A Rosa, o pai dela mora lá em Belém, dessa aqui, a Rosinha, o pai morreu, era um sargento da PM. Aí, pronto, a vida ficou assim.
P/1 – Então, vamos voltar pra vida lá no início. A senhora nasceu, qual é a primeira lembrança que a senhora tem da vida? A senhora lembra?
R – Como assim?
P/1 – A primeira coisa que a senhora lembra, de quando a senhora era bem pequenininha?
R – Ah, eu lembro que eu brincava com as crianças. A mamãe trabalhava, aí, ela deixava nós. A gente ia na aula e quando voltava ela deixava as coisas tudo em cima, dentro de um paneirinho como aquele ali. Deixava comida, prato, colher, porque não tinha armário, não tinha nada. Aí, ela dizia: “Olha, eu vou pra roça, vocês vão pra aula. Quando vocês chegarem, não quero nadinha aqui mexido. Se eu chegar primeiro que vocês, nós vamos almoçar; se vocês chegarem primeiro, vocês me esperam, mas eu não quero nada mexido”. Aí, quando a gente chegava primeiro tinha que esperar ela, a gente não mexia, sabe? E quando chegavam pessoas que batiam assim na porta (palmas) ela não mandava nós atendermos, não. Ela que ia. Aí, ela dizia: “Olha, chegou gente aqui, então, vão brincar por ali.” A gente ia. A gente não escutava nada do que estavam conversando.
P/1 – Não podia escutar?
R – Não. Aí, quando o pessoal saía, ela dizia: “Olha, já foram embora, podem vir cuidar aqui em casa, fazer alguma coisa, isso, aquilo”. É isso que eu me lembro, sabe? Hoje em dia, quando as pessoas chegam (palmas), a criança quer mais é atender, sabe? Então, o meu passado, eu tive uma vida assim. Agora esse dos meus filhos é outro. Porque a mamãe dizia assim: “Olhe, o que eu já vi, vocês não vão ver. E o que vocês estão vendo, os filhos de vocês não vão ver”. E eu fiquei assim, sabe? É isso que eu me lembro. Então, a minha mãe dava uma ordem pra nós e a gente cumpria. E agora não, pode falar que ele não obedece.
P/1 – Mas ela batia, era brava?
R – Não, a mamãe só batia em nós quando a gente merecia mesmo. Mas negócio de maltratar, bater, não.
P/1 – Ela batia quando vocês faziam o quê de errado?
R – Quando a gente fazia malcriação, aí ela batia. Mas ela batia assim, ela tinha uma palmatória que era de cabo, sabe? Pegava a mão e olha aqui. Uma dúzia de bolo em cada um (barulho de batida na mão). Mas ela dava do primeiro até o último.
P/1 – Quer dizer, um fazia uma coisa errada, todo mundo levava palmatória?
R – É. Aí, eu fico assim, porque o justo paga pelo pecador, né? Eu fico lembrando isso, que um fazia e todos apanhavam, entendeu?
P/1 – Quando um fazia coisa errada, vocês brigavam com esse aí pra não apanhar por conta dele?
R – Não, ninguém brigava porque a gente não podia dizer nada. O que ela fazia, ela tinha que fazer mesmo, né? Agora, depois que meu irmão mais velho, ele já é falecido, ele ficou rapaz, e eu ainda era pequenininha, quando ela queria me bater, ele não deixava.
P/1 – Ele não deixava bater mais?
R – Não. Mas assim mesmo ela dava, mas nunca ela pegou na orelha, nunca cacetou, sabe? Quando não era de palmatória, era de cipó, ela dava duas, três lambadas, pronto.
P/1 – A lambada ela dava onde?
R – Nas costas da gente.
P/1 – E doía?
R – Doía. Doía que era de galho de cuieira (risos).
P/1 – Dona Dulce, e a senhora ia trabalhar com ela na roça?
R – Eu ia, desde os seis anos eu ia lá pro Mocotó. A gente vinha de lá, a gente ia pra roça, com baldinho de cuieira desse tamanhinho assim cheio de água e um pouquinho de farinha. Até duas, três horas da tarde, e a gente voltava.
P/1 – Vocês acordavam muito cedinho pra ir?
R – Acordava, acordava cedo. E aqui quando a gente pegava era um caminho só, não era Chico Mota? Esses meninos não se lembram, mas era um caminho bem pequenininho mesmo.
P/1 – Aí, vocês acordavam e iam marchando assim pra roça? Iam todos os irmãos?
R – Não, tinha uns que ficavam pra ir na aula, quando a aula era de manhã eles ficavam pra ir na aula. Aí, eu como não estudava, agora que já põe as criancinhas, né? Eu ia com ela, os outros ficavam pra estudar.
P/1 – Chegava na roça, ela fazia o quê? E o que a senhora fazia?
R – Às vezes ela ia capinar, eu ficava lá brincando. Ela capinava, eu só ia mesmo pra servir de companhia. Quando ela ia tirar a mandioca, ela mandava juntar a mandioca pra ela colocar no paneiro, porque a gente usava no paneiro assim, nas costas. Aí, nós vínhamos embora. Era todo dia, de segunda a sábado.
P/1 – Que ia pra roça?
R – Pra roça.
P/1 – O que tinha na roça?
R – Mandioca. Tinha mandioca pra ela capinar, pra mandioca poder crescer, pra fazer a farinha.
P/1 – Além da mandioca, a senhora falou que tinha borracha também.
R – Não, borracha era lá no Mocotó, lá em cima.
P/1 – Então, como é que era?
R – A gente ia primeiro lá cortar seringa, depois baixava pra ir pra roça.
P/1 – Então, a primeira coisa era ir lá no seringal.
R – É, cortava seringa.
P/1 – Como é que é? A senhora me explica como é que é cortar um seringal?
R – Olha, não tenho nenhuma faca aqui (risos). Mas a seringa era assim: a gente pegava, fazia o risco, metia a bica na seringueira, fazia o caminho dela até no bico pra escorrer, metia dois estrepes, botava a vasilha e dava o risco até na bica pra escorrer o leite. Ainda tinha uma coisa, a gente usava o tucupi da mandioca pra colocar no leite, pra ele coalhar. Porque muitas vezes a gente nem terminava de cortar, a chuva arriava e estragava todo o leite.
P/1 – Porque se entrar água no leite da seringa...
R – É, não presta mais.
P/1 – Então, vocês jogavam o...
R – O tucupi pra coalhar.
P/1 – E coalhava e ele virava o quê?
R – O sernambi, a borracha.
P/1 – Mas como é que fica? Explica pra gente, que a gente nunca viu.
R – A gente colocava o tucupi, aí o leite ia escorrendo e coalhando. Quando era no outro dia já estava coalhado. A vasilha enchia e a gente tirava, não era, Chico? Me ajuda aí nessa parte também (risos). A gente já tirava, fazia o mesmo processo que fez naquele dia. Por causa da chuva.
P/1 – E quantas seringueiras por dia?
R – Não tinha conta (risos).
P/1 – Muitas?
R – É. Às vezes eram muitas, às vezes eram poucas, né?
P/1 – E com essa coisa que saía da borracha vocês traziam pra cá pra fazer o quê?
R – Não, arriava de dia de sábado e vendia no comércio. Lá eles levavam não sei pra onde, faziam o que queriam. Agora, a borracha mesmo, borracha, que era feita na fumaça, Chico ainda viu. Eles pegavam um pau, iam enrolando o leite, iam defumando, até aquela borracha ficar desse tamanho assim. Mas era enfiada no pau, fazia aquela fumaça pra ir fazendo a borracha.
P/1 – E essa borracha era pra vender também?
R – Era, essa borracha era pra ir embora, pra lá.
P/1 – Vendia pra comprar o que com o dinheiro?
R – Pra comprar mantimento pra gente comer, beber. A gente trazia, vendia no comércio, eles compravam e a gente já ficava com aquele dinheiro pra comprar alguma coisa. Daquele dinheiro a gente repartia pra comprar, o pessoal que não tinha roça, comprava farinha, açúcar, café, comprava o que desse. Às vezes, não dava pra tudo, mas era um sacrifício mesmo. Está aqui as minhas pernas que coisam de tanto subir e descer.
P/1 – Quantos anos a senhora ficou subindo e descendo com a sua mãe?
R – Olha, até os 40... Vam’bora ver. Eu to com 67, até os 41 anos. Porque a minha mãe morreu, ela tava com 93 anos, aí ela já não ia mais, quem ia era só eu, né? Só eu com a Rosa, que é a filha mais velha. Uma vez nós pegamos um temporal aqui nessa coisa, e era relâmpago, era raio, era tudo. A gente se metia atrás de uma palheira, mas aonde? Só a providência de Deus. E a água, a água pegava na gente por aqui. Eu me lembro tão bem que o último raio, nós entramos lá na casa do Isaac, sabe? Quando deu o último raio. E nós deixamos o paineiro de mandioca tudo lá pelo meio do mato. É, eu já passei uma vida. Pra eu ter meus filhos, hoje em dia eu estou aqui, mas eu agradeço a Deus por isso, né? Que até hoje eu estou viva, com saúde. Mas o meu sacrifício foi muito grande para eu criar os meus filhos. Tinha dias que eu dava o que comer, tinha dias que eu não dava porque não tinha. Mas eu vou ser sincera pra vocês, nunca roubei um ovo pra dizer: “Eu vou cozinhar esse ovo pra dar de comer pra vocês”. Não. Quando a gente a gente tinha, comia; quando não tinha, passava por isso mesmo.
P/1 – Ficava como, quando não tinha o que comer?
R – Ah, passava o dia inteiro até arranjar comida.
P/1 – E o que a senhora fazia pra arranjar comida?
R – Ah, eu fazia qualquer coisa pra ganhar um trocado pra poder comprar. Quando não, o Chico não sei se ele sabe, esse menino não sabe, não. A gente cortava peixinho na beira do rio. A gente pegava peixinho lá pro lado do Jacundá, aqueles peixinhos assim, pra poder comer. Tu ainda se lembra, Chico? Se lembra, né, pois é. A gente se juntava de noite. Tem um mato que chamam de facho, sabe? Facho. Aquela árvore, a gente pegava, batia aquilo até esfachear mesmo, quando era de noite a gente acendia pra cortar os peixinhos, pra alumiar e a gente cortar os peixinhos.
P/1 – Como é que corta o peixinho?
R – Com o fechado. Às vezes eles estão dormindo e a gente vai lá e “tchá”.
P/1 – Dentro d’água?
R – Dentro da água.
P/1 – Nossa, mas é muito difícil.
R – Às vezes tinha cobra, a gente pegava e matava a cobra. E não queria nem saber, queria saber que a gente levava uma vasilha assim (risos) e trazia cheia de peixinhos pra comer no outro dia.
P/1 – E como fazia esse peixinho pra comer?
R – Ah, a gente fritava. Olhe, tem uma coisa no mato que chamam, que é da palha, a gente chama capunga. A gente fazia aquelas poquecas, temperava o peixinho, botava dentro, amarrava, fazia a brasa e colocava pra assar. A gente cozinha o ovo dentro de um saquinho plástico. A senhora já viu cozinhar ovo dentro do saquinho plástico? Tu já viu? Tu já viu? A gente põe ovo dentro do saquinho plástico e aí coloca a água e põe na brasa. Aquilo lá cozinha sem queimar o plástico.
P/1 – Como é que é isso, dona Dulce?
R – Olhe, às vezes eu não tinha vasilha pra levar pro mato, sabe? Aí, eu levava um ovo, dois ovos, ia com a Rosa que era a mais velha, e levava o saquinho. Chegava lá, enchia de água, colocava o ovo e botava na brasa pra cozinhar.
P/1 – E como fazia a brasa?
R – Ela cozinhava com o saquinho.
P/1 – Eu entendi, mas como a senhora acendia o fogo? A senhora levava fósforo?
R – Eu levava. Eu fazia o fogo, quando tava brasa, eu colocava os ovos dentro do saquinho, com a água e botava lá. Aí, ele fervia.
P/1 – Pra comer o ovo?
R – Pra comer o ovo cozido.
P/1 – E a mandioca que vocês capinavam, elas não serviam de comer?
R – A mandioca? A gente trazia pra fazer a farinha. Porque a mandioca cresce embaixo da terra, aí a gente tira, traz, coloca na água, depois tira. Que se chama mistura, da que tá mole com a dura. Aí, descasca, tira o tucupi, mistura, enche no tipiti, peneira, depois põe no forno pra torrar.
P/1 – E aí vira farinha?
R – Aí vira farinha.
P/1 – A mandioca pura vocês não comiam?
R – Não! Pra quê, pra nós morrermos?
P/1 – Depois de tirar o caldo, ela cozida?
R – Ah, mas só virando farinha. Porque da mandioca, se faz o beiju, o tarubá, o carimá, se faz a farinha. Da tapioca se faz o polvilho que faz aquele beijo de moça, faz a tapioca que a gente come com café. E tudo que a gente quer fazer. Faz o beiju também pra comer. Da mandioca se aproveita tudo.
P/1 – A senhora ainda tem o roçado da mandioca?
R – Eu tenho, mas é pouquinho, lá longe.
P/1 – Vamos voltar. Então, vocês iam ao seringal, depois no roçado ia quem, dona Dulce?
R – Eu e a mamãe, depois que a mamãe não andou mais, ela tava já ficando em casa, eu ia com a Rosa, com os filhos.
P/1 – E dos seus irmãos, nenhum ia mais junto?
R – Não porque os meus irmãos já casaram, formaram família.
P/1 – Não, mas quando a senhora era criança.
R – Ah, criança a gente ia tudo junto com mamãe. Como eu disse, quem estudava, ficava; quem não estudava, ia com ela.
P/1 – E quem que estudava? A senhora estudou?
R – Eu estudei até a quinta série.
P/1 – Em que ano a senhora passou a ir pra escola?
R – Eu já estava com dez anos, porque pequenininho ainda não estudava, né?
P/1 – Então, com dez anos a senhora foi pra escola?
R – É, eu estudei até a antiga quinta série (risos).
P/1 – No que a senhora começou a ir pra escola, parou de ir pro seringal e foi pra escola de manhã, é isso?
R – É, mas quando eu chegava da escola, a gente ia embora pra roça de novo. Eu to lhe dizendo, com sinceridade, a minha vida foi muito sacrificada, muito. Com a mamãe a gente trabalhava com ela, né? Quando eu tive a minha filha, Rosângela, eu levava a Rosângela pra deixar no toco da seringueira (risos). Eu cavava assim, deixava um pano, pra poder cortar seringa.
P/1 – Isso antes dela andar?
R – É. Às vezes, quando eu via, ela gritava, eram aqueles caratã, sabe? Que estavam beirando.
P/1 – O que era um caratã?
R – É um bichinho que dá na terra, bichinho preto. E tudo assim. A vida foi, mas contar, mana, não é ver. É... E hoje, eu to com 67 anos e ainda trabalho, e tenho vontade de trabalhar.
P/1 – A senhora gosta de trabalhar, né?
R – Gosto.
P/1 – Mesmo no roçado a senhora gostava?
R – No roçado, em qualquer coisa, eu gosto. Só não vou mais porque tenho esse homem aí, ele é paralítico quase e eu tenho que dar conta dele, sabe? Às vezes, eu quero ir pro movimento, mas não tem com quem ele ficar. E amor é uma coisa, né? Amor ao próximo é uma coisa, né, e eu tenho amor nele (risos).
P/1 – Dona Dulce, vamos voltar. Além de ir no roçado e no seringal, o que mais que a senhora foi aprendendo? Eu queria que a senhora me contasse um pouquinho como a senhora foi aprendendo.
R – Olha, a minha mãe não sabia tecer tanta coisa, sabe? Mas eu olhava pra ela porque ela nunca chamou pra aprendermos, não. Eu olhava assim, uma pessoa queria e não queria, naquelas horas assim. Isso que eu sei fazer, isso é da minha cabeça, mesmo.
P/1 – Mas ela fazia trabalho com palha...
R – Não, mamãe tecia só paneiro, panaco, abano, tupé, isso ela fazia, mas outras coisas de tala ela não sabia fazer, não. Mas tem a dona Casemira, que o pessoal de artesanato, dona Luzia Lobato, falou pra ela ensinar nós lá na Praça Sete de Setembro. Aí, nós fomos pra lá. As que erravam, ela não ensinava mais! Aí, quando foi um dia, ela se zangou e foi embora e nós ficamos lá. Aí, pronto. E cadê dona Casemira, cadê? E ela: “Ah, eu não vou mais voltar, porque esses diabos não têm cabeça pra aprender!” (risos).
P/1 – Ela ficava brava que o pessoal não aprendia?
R – Nossa! A gente ficou lá, sabe? Aí, os arumãs ficaram, o que a gente ia fazer, né? Cada uma foi fazendo da cabeça o que sabia. Pra ela voltar, nem a Luzia conseguiu fazer ela voltar, não. Ela disse que não voltava, não voltava. Ela também é uma das artistas, né? Dona Casemira.
P/1 – Quer dizer, todas as mulheres sabiam fazer paneiro?
R – Não eram todas, não. Algumas.
P/1 – A sua mãe fazia isso que hora? Que hora que ela chegava pra fazer, que a senhora via ela fazendo?
R – Ela fazia de noite, fazia uma hora que ela não estivesse ocupada, de domingo, feriado, ela fazia.
P/1 – Quais as coisas que ela fazia?
R – Pois é o que eu to dizendo. Ela fazia paneiro, cesto, tupé, abano.
P/1 – Tupé é o quê, dona Dulce?
R – Tupé é uma coisa que a gente faz de palha, faz de caranã, de tudo. O caranã... Pega ali, acho que ainda tem um verde ali, repara lá.
Chico – Arumã?
R – Não, o caranã. É um desses compridos que a gente faz tupé, sabe? Tem um aí. Olha, é, tá verde ainda?
P/1 – Deixa eu ver, dá na mão dela...
R – Eu tiro isso, olha.
P/1 – A senhora tira isso do mato?
R – É, que a gente tira as fibrazinhas, né. A gente tira essas fibrazinhas aqui pra fazer o tipiti, olha. Olha o tipiti como é, o tupé. Aí vai tirando tudo dessa largura aqui pra poder tecer. Ó, pega aí.
P/1 – Disso aqui a senhora tece o tipiti?
R – Não, teço o tupé, sabe? Tupé, paneiro.
P/1 – Mas o tupé serve pra quê?
R – Pra gente pisar em cima. Olhe (barulho mexendo no caranã). É uma esteira, sabe, é uma esteira.
P/1 – Dona Dulce, a senhora me mostra como tece isso aí? Com dois dá?
R – Não, precisa de muitos.
P/1 – Só me mostra, mais ou menos o que a senhora faz.
R – A gente faz assim. Pera aí, deixa eu tirar aqui. Mano, pega uma faca ali pra mim, por favor (barulho mexendo na folha). Tu sabe, Chico? Tu sabe fazer, Chico?
P/1 – Isso sua mãe fazia?
R – A mamãe fazia.
P/1 – E a senhora ficava vendo. A senhora ajudava?
R – Não, porque ela não consentia a gente a ajudar, sabe?
P/1 – Ah, não?
R – Só ela queria fazer.
P/1 – A senhora aprendia só de olhar?
R – Só de olhar ela fazendo. Quando eu queria olhar ela me ralhava, mandava eu fazer as coisas.
P/1 – E quem mais das suas irmãs sabiam fazer?
R – Nenhuma.
P/1 – Só a senhora?
R – Só.
Chico – Pode ser dessa?
R – Onde tá, Chico? Traga aqui.
Chico – Tem que ser daquela sem serrinha, né?
(barulho, trabalhando as folhas de caranã).
R – Olha, eu faço até casa de caranã, casinha.
P/1 – Com isso aí?
R – É. Casinha de brinquedo. Pega lá em cima da geladeira. Ainda nem terminei de fazer, deixei por lá, nem fiz mais.
P/1 – Quer dizer, a senhora via a sua mãe fazer as coisas, mas essa coisa de inventar casa e outras coisas, a senhora foi inventando da sua cabeça?
R – Foi.
P/1 – E por que a senhora foi fazendo assim da sua cabeça?
R – Porque eu tinha muita coragem pra querer aprender.
P/1 – A senhora tinha vontade de fazer?
R – É.
P/1 – Tinha outras pessoas que faziam? A dona Casemira fez também?
R – Olha a casinha, eu começo e não termino (risos).
P/1 – Ô dona Dulce.
R – Essa daqui é pra brinquedo do meu neto, sabe? Aí, eu pego o caranã, quando ele estava assim, agora falta encher, né?
P/1 – Agora a senhora pega isso aí e enche?
R – É. É essa a casa (risos). Agora isso aqui eu faço assim. Deixa eu pegar o negócio. Pra fazer as talas a gente faz assim, ó. Eu vou cortar elas no meio pra dar mais, tá? Peraí. Não importa, depois vocês me pagam (risos).
P/1 – Depois a gente paga (risos).
R – Olha, é brincadeira, tá? Eu gosto muito de brincar. A gente faz assim, ó. Eu não vou nem destalar, tá? Eu só vou mesmo fazer pra vocês verem como é. Pera aí que eu vou fazer certo aqui.
P/1 – A senhora tem que botar um dentro, um fora, né?
(pausa)
R – É. Olha, assim vai fazendo o outro pé. Aqui, é porque eu não destalei, tá? Ela tá grossa, ela tá dura, mas é assim, ó.
P/1 – Tá, aí vai fazendo e isso serve pra gente...
R – Vai fazendo até ele ficar grandão assim. Aí, a gente pega essa tala aqui.
P/1 – Cuidado com o fio aí, dona Dulce. A senhora tá presa.
R – Eu pensava que eu tava solta (risos).
P/1 – Tava solta, mas a gente prendeu a senhora (risos).
R – Aí, a gente pega essa tala aqui. Essa aqui é jacitara, sabe? Que é pra quadrejar ele, meter ele na beira pra quadrejar e ele ficar coisa, sabe?
P/1 – Isso daí é de outra planta?
R – Isso aqui é jacitara, que faz o tipiti.
P/1 – E aquele lá...
R – Aquele lá é tala de tucumã, que faz a cesta.
P/1 – Então, com a tala de tucumã a senhora faz a cesta, com esse aqui, como é que chama?
R – O caranã.
P/1 – O caranã a senhora faz...
R – O tupé.
P/1 – E com a ja...
R – Jacitara faz o tipiti.
P/1 – E sua mãe fazia o tipiti?
R – Não, mamãe não fazia tipiti, não.
P/1 – Tinha que comprar o tipiti?
R – Um dia, pra eu aprender, eu desmanchei um todinho.
P/1 – Foi assim que a senhora aprendeu?
R – Foi. A mesma coisa pra costurar, antes de eu fazer um curso lá em Santarém. Eu desmanchei uma calça para eu poder costurar. E era assim que eu fazia, sabe?
P/1 – A senhora ia desmanchando e ia aprendendo?
R – É. Eu ia desmanchando pra ver como era para eu poder fazer.
P/1 – Mas dona Dulce, o que dava na sua cabeça de ir aprendendo essas coisas?
R – Porque eu não tinha como viver, sabe? Eu não tinha quem me ajudasse, aí eu pensava assim: “Se eu fizer uma coisa dessas, eu vendo e já ganho um trocado”. Era o que eu pensava. E por isso que eu aprendi. E hoje em dia o meu saber eu quero deixar pr’aquele que não sabe, é por isso que eu vou fazer esse cursinho ali no Cajueirinho, que é pra compartilhar com os que não sabem, né?
P/2 – Dona Dulce, e as festas? A senhora disse que gosta muito de festa. Da sua infância, como eram as festas antigamente?
R – As festas antigamente não eram como agora, né. A gente ia numa festa, aí lá, tinha os bancos todinhos assim.
P/1 – Eu queria terminar essa coisa da palha. Então, a senhora faz todos esses que são palhas diferentes, né? E a senhora estava me explicando que a senhora pensava na cabeça como é que a senhora ia fazer pra ganhar dinheiro. É isso que fez a senhora ir aprendendo?
R – É. Porque eu inventava uma coisa, aí eu oferecia se queriam comprar. O que era? Um real. Um cruzeiro, é, um cruzeiro. Aí, daquele um cruzeiro eu já comprava um quilo de açúcar, comprava um café, uma coisa, porque era mais fácil. Repartia aquilo pra poder comprar o que comer, o que beber no dia.
P/1 – E a senhora fazia o comer e o beber daquele dia?
R – É... Não era tanto por causa de mim, era por causa de meus filhos, né? Criança já sabe como é.
P/1 – Mas saber diferenciar a palha, o que faz com cada uma, a senhora foi olhando e aprendendo?
R – É, eu mesma criava assim da minha cabeça, fazer uma coisa assim pra ver se dá certo. E dava.
P/1 – E vendia onde? Em Alter?
R – Não, vendia em Santarém, vendia por aí pros outros. Em Belterra, cansei de vender.
P/1 – Belterra é aqui perto?
R – Belterra é pra cá. Aí, por essas colônias os homens compravam paneiro pra mexer farinha, sabe? E eu vendia.
P/1 – A senhora ia como? Andando pela estrada?
R – Não, tinha um senhor que morava lá na colônia, ele era vizinho lá de casa e eu ia embora com as minhas crianças pra lá, e lá tem um galpão grande, cheio de arumanzal. É lá pro teu lado, Chico Mota, sabe? É lá pro teu lado que tem isso, arumã. Aí, lá eu tirava a quantidade que eu quisesse, o tanto que eu quisesse pra fazer. Eu fazia paneiro, aí o senhor que morava lá com ele, que já morreram tudo, ele pegava de mim e ia vendendo.
P/1 – Ele que ia vender?
R – É.
P/1 – A senhora não saía pra vender?
R – Não, porque ele também fazia, aí ele pegava junto com os dele e levava. Aí, ele chegava com dez cruzeiros, 20, e era assim.
P/1 – O que dava pra comprar com dez cruzeiros?
R – Mas a gente comprava muita coisa.
P/1 – Comprava na venda aqui de Alter?
R – Aonde?
P/1 – Comprava aonde?
R – Lá em Belterra mesmo. Eu dizia assim, o senhor divide o dinheiro que der pra comprar o açúcar, o café e tudo que era de precisão.
P/1 – Que mais que era de precisão, além do açúcar e do café?
R – A comida.
P/1 – Qual era a comida que a senhora comprava?
R – Era peixe, era carne.
P/1 – O peixe a senhora não pescava, não tinha que pescar?
R – Não, eu nunca pesquei, não.
P/1 – Tinha que comprar peixe. Arroz comprava?
R – Arroz. Mas nesse tempo era muito difícil, a gente só comia com pirão de farinha (risos).
P/1 – Comia o pirão de farinha com o quê?
R – Ah, cozinhava o peixe na água com cheiro verde e comia com farinha, caldo.
P/1 – Botava o peixe assim, explica como é o prato. É o peixe, esse pequenininho que a senhora falou?
R – Não. Era jaraqui, aracu, tucunaré, pirarucu que a gente comprava em Santarém. Esses peixes maiores.
P/1 – Botava no caldo.
R – É. Cozinhava.
P/1 – Com o quê que cozinhava o peixe?
R – Com água, sal e o cheiro verde. O cheiro verde é o coentro, né? A cebola, o alho, aí fazia aquele caldo com colorau e tomava com farinha.
P/1 – Isso era o básico que a senhora comia todo dia com as crianças?
R – Não, não era todo dia, mas a maior parte do tempo era assim.
P/1 – Fora isso, o que mais a senhora comia com as crianças?
R – Ah, eu fazia mingau de crueiro quando não tinha comida.
P/1 – Quando não tinha comida o que a senhora fazia?
R – Eu fazia mingau de farinha, mingau de tapioca, de arroz, inventava certas coisas pra não passar o dia inteiro com fome.
P/1 – Então, era água com a farinha, por exemplo?
R – Era, mas a água com farinha que a gente usa, sem ser o peixe, é o xibé.
P/1 – Conta, o que é isso?
R – Xibé, a gente chega cansada do trabalho, pega um pouco de água, coloca um pouco de farinha e toma.
P/1 – Não precisa nem esquentar?
R – Não. E é gostoso porque a gente chega cansada, faz aquele xibé e toma.
P/1 – Só a farinha com a água?
R – Farinha com a água.
P/1 – E catar frutas no mato pra ajudar? A senhora fazia isso também.
R – Eu fazia, às vezes eu fazia, ia pra Belterra buscar piquiá, inajá, sabe? Essas frutas. Uxi, pra gente comer. E mesmo por aqui tinha manga, porque a gente não compra, a gente pode juntar e comer. E era assim.
P/1 – A senhora morava nessa casa aqui? Quando a senhora teve o seu primeiro filho?
R – Não, não.
P/1 – Morava onde?
R – A primeira filha que eu tive foi lá perto da orla, lá pro lado da praia do cajueiro, descendo aquela rua ali, onde tem aqueles dois botinhos? Pro lado daqui é a casa da dona Flor, lá eu tive a Rosângela, primeira filha, numa casinha de palha tipo essa aí.
P/1 – E a senhora teve em casa?
R – Tive.
P/1 – Quem que veio ajudar?
R – Eu tive em uma quinta-feira, cinco horas da tarde, dia 26 de agosto. Quem me ajudou foi o avô do Marcos, porque eu não tinha condição de ter, ele me aplicou uma injeção, ele era enfermeiro em Belterra e me aplicou, foi que eu consegui dar à luz a ela.
P/1 – E quem ajudou a puxar a criança?
R – Foi uma senhora que já morreu, a finada Domingas Rodê.
P/1 – Ela era parteira?
R – Era parteira.
P/1 – E todos os seus filhos nasceram com ela?
R – Não, ela foi parteira da Rosângela. Eu tive a parteira do Luciano, que foi a finada Bárbara, que chamavam de Baruca. E do Rosilei foi uma prima minha, a dona Nice que também é enfermeira, ela mora em Belém. E da Roseane foi a dona Verônica, a mãe da dona Casemira.
P/1 – E elas vinham em casa e ajudavam...
R – É, ajudavam.
P/1 – E a senhora dava leite de peito pras crianças?
R – Dava. Até seis meses eu amamentava eles. Assim, só no leite materno.
P/1 – Só no leite?
R – Só no leite. Depois eu dava mingau de farinha, dava tudo que vinha (risos).
P/1 – Depois de seis meses?
R – É.
P/1 – Agora, dona Dulce, vamos voltar aqui pras festas. Quais eram as festas?
R – Olha, essa santa que eu tenho aí, quer dizer, não é essa mesmo, é outra, mas foi do tempo da vovó. Aí, eu posso contar do começo?
P/1 – Por favor.
R – Então, a vovó ficava gestante e não conseguia criar as crianças, morriam. Aí, ela fez uma promessa que se ela conseguisse, fosse filha ou fosse filho, ela ia trocar uma imagem. Se fosse filha, ela trocava uma imagem de uma santa e se fosse filho, ela trocava uma imagem de um santo. Então, ela conseguiu a mamãe. A mamãe disse que nasceu tudo com as mãozinhas enroladinhas, tudo. Aí, ela fez essa promessa. Então, a mamãe cresceu, se criou, aí, ela trocou a Santa Ana. Trocou a Santa Ana e disse que durante a vida dela, ela ia fazer as festas da Santa Ana. Depois que ela morresse, ela ia passar a Santa Ana pra mamãe e depois que a mamãe morresse, a Santa Ana ia ficar pra última neta dela, que era eu, filha da mamãe. Bem, aí, ela pegava, fazia as festas, andava por aí, tudo quanto era lugar. Eram oito dias de festa, iam pra lá, os músicos tocavam, comiam, bebiam, só vinham de lá quando queriam (risos).
P/1 – Onde era a festa?
R – Fazia a festa lá na Santana, ela tem uma ilha aqui com o nome Santana. Lá faziam a festa, faziam a festa lá pro São Luís, que é uma colônia muito distante, e depois faziam na casa dela aí.
P/1 – Mais ou menos uma semana? Durava quanto tempo essa festa?
R – Ela começava, levantava o mastro quinta-feira, o mastro do juiz e da juíza, mesmo que o Sairé. Aí, passava quinta, sexta, sábado, domingo. Segunda-feira já era varrição, que todo mundo já ia pras suas casas. Quando não ainda ficavam.
P/1 – Então, a festa durava quatro dias.
R – Era.
P/1 – E o que se comia na festa?
R – Oras, o que se comia? Era boi (risos).
P/1 – Tinha que matar um boi?
R – É, porque naquele tempo a vó fazia muita roça, era farta, sabe? E ela comprava um boi, farinha, beiju, tapioca, tudo, tudo ela fazia isso. Matava porco. Então, era farto, né? O pessoal ia pra lá, dançava, se divertia à vontade. Mas não tinha negócio de briga, nem nada.
P/1 – Tinha bebida?
R – Tinha bebida de tarubá.
P/1 – O que é bebida de tarubá?
R – Tarubá é uma bebida que a gente faz da mandioca. A gente tira a mandioca, rala, bate na gareira. Quando é no outro dia, a gente vai, espreme o tipiti, faz aqueles beijus desse tamanho assim, assa no forno. Aí, deixa esfriar, vai no rio, no igarapé, onde for, molha aquilo, pega umas palhas, dessas palhas verdes aí, abre ela, faz a cama, sabe? Põe uma pra cá e faz a cama. Aí, faz a puçanga da maniva, da manivera, sabe?
P/1 – O que é puçanga?
R – Puçanga são as folhas secas que a gente tira, quando a gente não tem o tarubá, a gente faz da folha seca. Tira um pouco do farelo do beiju que a gente torrou, já sobra aquele farelo, né? A gente mistura, torra bem. Quando a gente não tem tarubá pra puçanga, a gente coloca um pouquinho de açúcar. Aí, pisa bem pisadinho.
P/1 – Pisa com o pé?
R – Não, no pilão. Tá doida? (risos). Aí, pisa no pilão bem pisadinho, fica igual coisa de tempero, pimenta do reino. A gente põe na cama, primeiro aquela água que juntou do tarubá que a gente molhou, coloca e põe a puçanga, aquele polvilho, senta os pedaços do beiju. Depois torna a molhar, torna a pôr a puçanga. Pega os galhos da maniva viva e coloca em cima tudinho. Aí, põe a camada de palha em cima do beiju que já está, põe uns pesos. Hoje foi sentado, quando é amanhã, você enche de peso que é pra ele poder suar e ficar doce. Esse que é o tarubá. Com três pra quatro dias tira ele e, se quiser tomar naquele dia toma, senão enche em um garrafão, põe em uma vasilha.
P/1 – Mas ele é igual álcool?
R – Ah, ele fica igual álcool. Ele azeda, sabe?
P/1 – Ele dá aquela bebedeira?
R – Aquilo embebeda a pessoa. Mas logo nos primeiros dias ele é doce, doce, parece uma massa de banana. Será que eu contei certo? (risos).
P/1 – E depois vira igual a álcool. E na festa tomava essa bebida do tarubá.
R – É, ele porreia a pessoa.
P/1 – E o pessoal bebia muito?
R – Mas, todo mundo gosta de tarubá.
P/1 – E o que tinha na festa? A dança...
R – Tinha a dança, tinha a levantação do mastro, que o mastro é cheio de frutas, aí, depois o pessoal tinha o almoço, a janta, aí a festa ia pra frente.
P/1 – A festa virava a noite toda?
R – Mas! Era de três dias. Era dia e noite.
P/1 – E quem que cuidava da festa, dava comida, era tudo a sua vó?
R – Era a vovó. Assim como agora a gente faz, sabe?
P/1 – A senhora ficou com isso? Sua mãe fazia isso também?
R – Fiquei. Da vovó, a mamãe ficou; da mamãe, ficou eu. Mas hoje outros ajudam, né? Um dá uma coisa, outro dá outra, aí, a gente vai juntando pra poder fazer aquela festa.
P/1 – A senhora faz essa festa em que época do ano, dona Dulce?
R – Dia 26, eu começo dia 24 pra não levar muito tempo. Porque agora as coisas estão caras, né? Só se vocês me ajudarem depois (risos).
P/1 – Mas o que a senhora põe de comer hoje em dia?
R – A gente faz a mesa da fartura que é no começo da festa, na levantação do mastro. Tem tudo, beiju, farinha de tapioca, melancia, banana, é tudo, tudo, tudo.
P/1 – Onde fica a mesa?
R – Aqui.
P/1 – Lá naquela casa de farinha?
R – Não, aqui nesse pedaço.
P/1 – Fica aqui no quintal?
R – É. Aí, o pessoal vai, toma o café, leite, suco, munguzá, tudo o que eles quiserem tem. Depois continua a festa. Tem o almoço, tem a janta.
P/1 – E no almoço serve o quê?
R – No almoço serve frango, carne de boi, carne de porco, tudo.
P/1 – Peixe não?
R – Não, peixe, não.
Visita – E tem a questão do banho, né? Como foi que começou essa questão do banho?
R – Ah, ainda tem o banho da santa. Olha, é por isso que eu disse, me ajudem. Porque logo que começa a festa, primeiro a gente vai dar o banho na santa, lá no rio.
P/1 – Aqui no rio?
R – É.
P/1 – Leva a santa?
R – Leva a santa, começa o banho, de lá vem com a música, ficam aqui, é quando levantam o mastro, né?
P/1 – O que é a levantação do mastro?
R – Levantação do mastro é assim: tem esse pau enfeitado. Aí, vai daqui, vão pondo as frutas... Lá no fim, ela leva um litro de cachaça.
P/1 – Mas a santa tá onde?
R – A santa tá aí na frente vendo como é que estão levantando o mastro.
P/1 – E vão botando fruta em volta?
R – É. Lá em cima tem uma garrafa de cachaça e a bandeira. E os foliões estão aí, com as bandeiras, tudo. Depois eles dão uma rodeada no mastro e levam a santa pra dentro daqui. Assim, como elas estão aí. Aí rezam, vão beijar a santa.
P/1- Qual é a reza, dona Dulce?
R – Olha, é ladainha.
P/1 – A senhora sabe fazer?
R – Eu não sei, porque tem as rezadeiras, né?
P/1 – A senhora não é rezadeira?
R – Não, eu só sou rezadeira de espinha e outras coisas. E tem as cantoras.
P/1 – Aí elas fazem a cantoria.
R – É. Aí, depois, chega o movimento da festa, durante a noite, durante o dia.
P/1 – E o mastro com a santa a senhora leva pra onde? Dá o banho na santa, levanta o mastro. Primeiro levanta o mastro?
R – Não, primeiro dá o banho na santa. De lá vem com foliões, música e o pessoal que vai levantar o pau. O pau dos homens, das mulheres.
P/1 – Levanta e aí?
R – Aí, depois de estar já em pé eles fazem ao redor e entram com a santa pra deixar no lugar, aí rezam e começa a festa.
P/1 – A festa é comer, e começa a música?
R – É.
P/1 – Tem muita dança?
R – Tem. Só não dança aquele que não quer (risos).
P/1 – E todo mundo da comunidade que quiser pode participar ou tem os convidados especiais?
R – Não, aqui não tem convite pra ninguém, seja bem-vindo todo mundo.
P/1 – Vem muita gente?
R – Vem.
P/1 – Quantas pessoas?
R – Quanto mais ou menos, Marcos? É só que eu não lhe mostrei o amansa bravo, né (risos).
P/1 – O que é amansa bravo?
R – Quando querem brigar a gente põe naquele tronco.
P/1 – Hoje o que bebe? É a bebida do taperebá ou bebe cachaça?
R – É tarubá!
P/1 – Tarubá.
R – Agora tem muita gente que vem de lá, já bebe, já traz litros, e aqui vende cerveja, tem o bar. Aí, fica um porre, às vezes querem arengar e vão lá pro tronco.
P/1 – Como é que é? Prende a pessoa ali no tronco?
R – É, amarra eles com uma corrente. E de lá eles não podem sair e ficam assistindo quem está dançando (risos). É. Porque quando os policiais chegam, eles ficam revoltados, sabe? Então, esse aí é só um tronco, amansa bravo (risos).
P/1 – Os policiais?
R – É pior se tem polícia porque aí o pessoal se revolta.
P/1 – O pessoal não gosta quando a polícia chega?
R – Não, porque polícia não vai perguntar quem tá brigando, quem não tá, e vai batendo, né?
P/1 – Mas fica com polícia na festa?
R – Às vezes, quando a gente convida. Dois anos já que não vem.
P/1 – Por quê? Não deu certo chamar a polícia?
R – Não, porque a gente não convida, eles só são chamados onde convidam eles. Não é um caso assim de necessidade mesmo, a gente pode chamar eles. Mas enquanto isso, não.
P/1 – Dona Dulce, qual é o significado da lavagem da santa?
R – O significado é porque muita gente tem fé, sabe? Muita gente tem fé, os católicos. Então, na lavagem da santa levam as crianças e lá, mães, outras pessoas levam vasilha pra aparar aquela água e levam pra casa, põe na cabeça de doente, lavam as crianças embaixo da santa. Então, essa é a fé que existe, é por isso que a santa é lavada todos os anos.
P/1 – As crianças são batizadas na água também?
R – Não, separam aquela água pra coisar a cabeça, porque é uma fé que eles têm. E dá muita criança, muita criança. E eles vêm pra cá, eles têm fé na Santa Ana, eles ficam bom. Mas dá muita gente no banho, ih, aquela praia ali fica cheia de gente.
P/2 – E a festa é no dia 26 de qual mês?
R – De julho. É o dia do aniversário da minha mãe.
P/1 – Porque ela começou a festa no dia que a sua mãe nasceu.
R – Foi.
P/1 – Depois da sua mãe ela ainda teve quantos filhos?
R – Um, dois, três, quatro, cinco. É, seis com mamãe.
P/1 – Então a Santa Ana funcionou mesmo, né? Porque depois ela parou de perder os filhos?
R – Da mamãe ela parou de perder, mas a promessa que ela fez foi com a mamãe, que quando ela morresse a santa era da mamãe. Aí, quando a mamãe morresse, ficava pra última filha da mamãe que sou eu. E é por isso que eu faço a festa da Santa Ana.
P/1 – Mas dona Dulce, eu não estou entendendo. A sua mãe foi a primeira, ficou pra primeira. E por que a sua mãe passou pra última e não pra primeira?
R – Como assim?
P/1 – A sua mãe era a filha mais velha?
R – Ela fez a promessa e conseguiu a mamãe, entendeu. Ela fez a promessa que se ela criasse uma filha, ela ia trocar uma santa, ia fazer a festa enquanto ela estivesse viva. Mas ela trocou a santa pra mamãe, entendeu?
P/1 – Entendi. Mas pra passar, ela passou pra sua mãe, que fez a reza. A senhora é a última filha, né? Tinha filha mais velha.
R – Tinha, mas a herdeira da mamãe sou eu. Porque eu sou a caçula.
P/1 – Então a herdeira é a caçula?
R – É.
P/1 – A herdeira da festa da santa e a senhora foi herdeira do que mais?
R – Do que mamãe tinha, do que ela deixou. Mas ela era pobrezinha, não tinha quase nada.
P/1 – Então, dona Dulce, é sempre a última filha que fica com a coisa da mãe?
R – É, a última filha. Mas é assim, se a última filha cuidar da mãe até o último dia de vida dela. Porque eu passei com mamãe, a minha irmã passou seis meses com mamãe em casa, cuidando da mãe quando ela ficou paralítica das pernas. Com seis meses, eu levei mamãe pra casa, ela passou três anos e seis meses em meu poder, ela morreu na minha casa. Aí, o avô desse, do Marquinho, tio Ajuntino, ele fez uma reunião com os meus irmãos todinhos e disse que o que pertencia à mamãe ficaria pra mim, e eles concordaram. Aí, o tio Ajuntino disse que principalmente a santa, que quando precisassem, que fossem buscar a santa pra fazer uma ladainha, alguma promessa, mas devolvessem. Aí, tá, e foi por isso, sabe? Mas só que a santa mesmo que era da mamãe está lá na casa da minha tia.
P/1 – E por quê?
R – Porque eles não quiseram que eu ficasse com a santa. Essa que eu tenho aqui eu ganhei.
P/1 – A sua tia, irmã da sua mãe?
R – É.
P/1 – Ela quis ficar com a santa?
R – Foi, eu nem conto um monte porque eu não paro de contar.
P/1 – Conta um pouquinho. Teve briga?
R – Não, não teve briga, não.
P/1 – O que aconteceu?
R – A santa vivia aqui e eles vieram buscar e levaram pra lá.
P/1 – Mas a senhora ficou brava, não foi?
R – Eu não fiquei brava, eu fiquei triste porque aconteceu isso.
P/1 – Mas eles vêm na festa também?
R – Não, eles já fizeram a festa, já trouxeram a santa pra cá, junto com a minha. Mas só que acontece que nem termina bem a festa e eles levam correndo. Mas eu não faço questão, não.
P/1 – Mas os seus irmãos não ficaram bravos com isso, de eles levarem a santa?
R – Não, porque foi um irmão meu que fez essa coisa para eu entregar a santa, sabe? Aí, eu entreguei.
P/1 – Mas eu não entendi, dona Dulce, qual foi o motivo, se tinham decidido que a senhora ia ficar com tudo.
R – Eu vou contar só um pouquinho, tá? A santa, o pessoal daqui queria que ela fosse padroeira do Jacundá, como essa é, sabe? Padroeira do Jacundá porque lá pro Alter do Chão é muito longe a igreja pro pessoal ir. Como agora estamos fazendo o culto de domingo, assim eles queriam que a santa ficasse aqui pra juntar o pessoal daqui e a gente rezar, né? Aí, eles souberam e vieram tomar a santa, porque não sei o quê, porque torna, porque deixa. Aí, a titia dava passamento, um atrás do outro, que ela ia morrer se não entregasse a santa. Aí, o meu irmão veio e disse que era pra entregar a santa, sabe? “Mas como? A santa não é minha?” “Não, porque tem que entregar, se a titia morrer tu vai ser responsável”, não sei o quê. Foi aquele para pra acertar, sabe? Aí, quando vi a confusão entreguei, né? No dia que eu entreguei a santa, vieram aqui buscar, eu estava bem ali, aquela casa era minha. Ali chegaram, eu tava lavando roupa e disse: “Hum, vieram passear?” “É”. Aí, veio o filho dela, o meu irmão e meu outro primo. Eu fui pra lá, o meu irmão disse assim: “Olha, tu vai entregar a santa” “Mas como eu vou entregar a santa, a santa é minha” “Não, tu vai entregar a santa”. Aí, o filho da titia disse pro meu irmão: “Emílio, vai”. Eu achei que foi uma coisa, sei lá. Mas só tava eu, não tinha nenhum filho meu. “Vai pegar a santa”. E ele entrou na casa, acho que isso não devia ser, né? Entrou, pegou a santa, levou. Aí, o Ormindo disse assim: “Olha, nós vamos levar a santa, quando a mamãe morrer a gente vai resolver isso”. Eu tava tão indignada, de raiva. Eu disse: “Não, quando a tua mãe morrer, vocês põe a santa com ela no caixão”. Eles foram embora.
P/1 – E a sua mãe estava onde?
R – Mamãe já tinha morrido, por isso que a santa ficou pra mim, mamãe já tinha morrido. Quando foi um dia, eu cheguei na casa da vó do Marcos, ela disse assim: “Olha Dulce, a sua tia tá ruim, tá passando mal, tu não vai lá?” “Não, tia Grazita”, é Leucádia o nome dela, mas a gente chama de Grazita. “Eu não vou, não, titia não vai morrer. Ela só ia morrer se eu não entregasse a Santa Ana, eu entreguei, ela não vai morrer”. Porque eu sou uma pessoa que espero a minha vez, sabe? Eu não vou discutir, mas eu espero a minha vez pra eu poder falar aquilo que eu sinto. Eu disse: “Não, ela não vai morrer, não. Ela só iria morrer se eu não entregasse a santa, a santa tá lá, ela não morre”. E foi isso que eu disse. Disse, digo e não tenho medo de dizer pra qualquer pessoa que o que eu disse pro Ormindo aí, que quando a titia morresse, que ele botasse a santa junto com ela. Isso eu disse, eu não me acuso, porque eu falei. Agora, se chegam aqui: “Tu falaste?” “Não”, isso já era um caso de mentira, né? Mas eu confirmo o que eu falei.
P/1 – E aí, ela morreu?
R – Quem?
P/1 – A sua tia.
R – Não, ela não morre, ela tá com a Santa Ana (risos). Ela passa mal, mas não morre, não.
P/1 – Ela tá com quantos anos?
R – Ela tá com 95 anos.
P/1 – Nossa, mãe.
R – E a mamãe morreu com 93.
P/1 – Puxa, pessoal vive muito, né? Sua mãe viveu muito.
R – Pois tinha uma mulher que morreu com 130, né? 128 anos. E tem outra que já está com 106. Sabe quem é? É a mãe que era do finado Prego, a dona Idalina. Ah, o Chico Mota foi embora, te enxotei, mano? Pois é, é isso que aconteceu na minha vida. Agora eu sou positiva, se eu quero dizer uma coisa pra você, eu digo pra você. Eu não vou dizer pro Marco, pra ninguém te contar, não.
P/1 – A senhora é brava, vou botar a senhora ali no amansa bravo.
R – Mas lá não é o meu lugar, não.
P/3 – Dona Dulce, e a questão da reza de espinha, de puxar, como é que a senhora foi descobrindo isso?
R – Isso aí, eu acho que foi, como é que se diz? Isso foi de mim mesma, sabe? Porque uma vez eu era pequenininha, um menininho se engasgou e eu fui e rezei, né? Mas eu rezei aquela reza que... Vai buscar aquela boneca lá dentro pra mim, Ci, traz aqui. Depois eu falo. Pede pra Rosinha aquela boneca que veio de Manaus. E eu sou assim, sabe? Sou assim. Eu to com esse homem vai fazer 23 anos, mas haja paciência. Aí dizem: “Mas deixa ele!”. Como eu vou deixar, quando eu me meti com ele, ele era bom, né? E é uma covardia agora eu deixar ele desse jeito.
P/1 – Então, me conte antes de chegar a boneca. A senhora nunca ficou com homem dentro de casa antes, né?
R – Não.
P/1 – O que deu que a senhora botou esse pra dentro de casa?
R – Porque eu acho que era meu destino, sei lá.
P/1 – A senhora gostou dele?
R – Eu gostei dele, ele gostou de mim.
P/1 – Como é que ele chama?
R – José Silas Chagas.
P/1 – Ele era daí da região?
R – É daqui mesmo, a gente se conhecia muito (risos).
P/1 – E o que aconteceu? Como é que foi que a senhora foi...
R – O que aconteceu foi que, eu conheci ele com 25 anos. Só que ele tinha uma mulher, tinha filho, era ele para um lado, eu pra outro. Depois a mulher morreu, ele ainda se amigou com uma mulher aí. Depois ele veio para o meu lado e eu fiquei com ele até hoje, não sei amanhã.
P/1 – A senhora gostava dele, então?
R – É.
P/1 – Aí, juntou com ele.
R – Põe aqui. Amassa bem no peito dela que essa foi a reza que eu rezei.
P/1 – Dá a boneca aqui pra ela.
R – Essa foi a reza que eu rezei pra espinha (boneca reza): “Pai nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso nome, venha a nós ao Vosso Reino, seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tenha ofendido. Não nos deixei cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém”. Então, essa foi a oração que Jesus nos ensinou, foi isso que eu rezei. E depois eu aprendi a oração do São Brás, né? É das espinhas. Aí, eu rezo pra qualquer pessoa.
P/1 – E a espinha desce?
R – A espinha desce, a espinha sai. Outro dia desses eu fui na tia do Marcos (risos), fui rezar, mas ela que insistiu. Eu disse: “Olha, a espinha é muito grande”. Não, porque ela queria que entrasse. Eu rezei e a espinha baixou, ficou no peito dela. Aí, foi preciso ela ir no médico pra tirar, que a espinha era grande. E assim...
P/1 – A senhora põe a mão aonde pra fazer a reza?
R – Eu rezo assim, benzendo.
P/1 – E a espinha vai descendo?
R – E a espinha vai descendo. Quando não, ela sai. Quando ela é muito grande eu dou um remédio pra pessoa provocar o vômito e sair, sabe?
P/1 – Qual remédio a senhora dá?
R – Qualquer óleo que dê pra enjoar, provoca e a espinha sai.
P/1 – E além de rezar a espinha, o que mais a senhora reza?
R – Eu amanso de mantedura, benzo quebranto de criancinha.
P/1 – Como é benzer quebranto?
R – A gente benze e a gente reza, agora eu não vou ensinar porque se ensinar não vale mais, né? E aí a criança fica melhor, eu ensino o remédio pra dar pra criança ficar boa.
P/1 – Com quem a senhora aprendeu os remédios?
R – Olha, eu não aprendi com ninguém, sinceramente, eu estou lhe falando a verdade. Eu não aprendi com ninguém.
P/1 – Como é que foi? A senhora sabe isso desde que idade?
R – Sabe o que é? Porque aquilo vem na minha cabeça, parece que eu tenho uma coisa que me conta o que é bom. Aí, eu fico pensando, assim. Quando a gente benze, que a gente é médium, aquilo conta pra gente pra quê o remédio é bom, tudo. Porque eu tenho uma pessoa que me guia, sabe? Agora que eu estou contando. Então, é quando eu saio fora das coisas, ela me castiga muito. Mas quando não, ela me acompanha pra tudo quanto é canto. Ela me livra de tudo quanto é mal, me protege na minha casa, é assim. Mas quando eu faço as coisas contra ela, ela me castiga.
P/1 – O que é coisa contra ela?
R – Ela me faz adoecer, ela faz eu ficar com raiva, é assim. Uma mulher morena, bem morena mesmo, ela me ajuda, ela me livra de todas as coisas.
P/1 – Ela tem nome?
R – Não, ela tem nome, mas eu não digo, tá?
R – Pois é, daí eu conheço as pessoas que gostam de mim, as pessoas que têm raiva de mim. As pessoas que falam de mim por trás, tudo eu sei. E eu sei mesmo, sabe?
P/1 – A senhora sabe olhando pra pessoa?
R – Sei olhando pra pessoa.
P/1 – E essa senhora, que protege a senhora, ela apareceu quando?
R – Ela apareceu desde a minha infância, desde pequenininha, porque esse dom que eu tenho é de nascença. Eu não aprendi com ninguém, então é desde quando eu nasci.
P/1 – Mas o dom veio junto com ela? Ela que trouxe o dom?
R – Veio. Aí, ela foi crescendo.
P/1 – Ela era criança também?
R – Era criança.
P/1 – E ela cresceu como a senhora?
R – Como eu. Agora ela tá do mesmo jeito, morena.
P/1 – Dona Dulce, ela conversa com a senhora ou ela só aparece e diz o que tem que fazer?
R – Às vezes ela vem em sonho comigo, sabe? Eu enxergo as pessoas aqui no meu quintal. Olha, um dia eu vim lá de Alter do Chão (risos), aí, veio um senhor trabalhar aqui pra mim, eu ainda morava naquela casa ali. Eu disse: “Zildo, se tu chegar lá que eu não tenha chegado, pede a chave do meu filho e põe as terras aí pra aterrar”. Ele disse: “Tá”. Quando eu cheguei, ele já tinha carregado três carrinhos de mão pra lá, bem ali no toco daquele pirirema, onde tem aquela escada. Cheguei lá, aquela criança estava em pé, só de shortinho, lourinho, branco. Estava em pé. Também não falei com ele. Entrei, aí eu disse: “Vou fazer um café aqui pro Zildo”. Fiz o café, cortei um pão, botei lá e chamei ele. Quando eu olhei, a criança não estava mais aí, já tava lá atrás do Zildo. Ele veio e eu disse: “Zildo, venha tomar café. E chama a criança que tava contigo” “Criança? Eu não trouxe criança nenhuma” “Menino, a criança que estava aí, atrás de ti”. Ele disse: “Não, eu vim sozinho”. Aí, pronto, a criança desapareceu. Quando foi uma noite, a cachorra rosnou pra cá e eu vim ver. Eu brechei por aquela janelinha, ali, aí ele vinha passando, tava grandão, assim alto. Aí, ela me disse que é filho dela. Quando eu chego bem defronte da janela, ele parou. Eu falei: “Ah...”. E saiu de costas. Só de shorts, sem camisa.
P/1 – A criança tinha crescido?
R – Já tá grande, rapazinho assim, baixinho. E um dia o Dozani que mora ali, ele disse que esse rapazinho saiu daqui uma noite que a gente chegou.
P/1 – Ele é o filho dessa senhora?
R – Ele é o filho dela.
P/1 – E ela veio em sonho pra senhora pra falar que é filho?
R – Ela me disse que é filho dela.
P/1 – Ela conta também, ou diz no sonho, o que vai acontecer?
R – Não, às vezes no sonho, não. Mas eu escuto por aqui, sabe?
P/1 – Mas ela avisa se alguém vai morrer, como é que é?
R – Eu tenho aviso quando a pessoa vai morrer.
P/1 – E a pessoa morre mesmo?
R – Olha, morreu um dia desses um rapaz, bem aí defronte. Eu fui no enterro dele no sábado. O Renato. Eu passei a noite inteira na casa deles fazendo o velório dele. Eu fui no enterro e disse: “Agora eu vou dormir bem”. Quando eu olhei no relógio, passavam 25 minutos de meia-noite. Eu disse: “Mas por quê eu não durmo?”. E naquela hora parece que me amorteceu, sabe? Aí, eu tava ressonando, eu tava ali sentada naquela cadeira. Quando eu dei, ele vinha andando. Vinha andando só com uma bermuda cinza, sem camisa. Chegou bem ali e disse: “Ê, dona Dulce”. Eu não respondi. Ele chegou mais pra cá, quando chegou bem ali no topo desse cajuri, ele disse: “Ê dona Dulce”, eu disse: “Ê, Nato”,
eu chamava ele. Ele veio, escorou a mão bem aí: “Dona Dulce?” “Que é?” “Me venda um frango que eu to com uma fome”. Eu disse: “Eu não vou te vender não, porque os meus frangos estão magros”. Ele tirou a mão daí e disse: “Não”. Agora, aquele não eu não sei o que era. Ele olhou assim pra mim, por baixo, porque quando tá morto não olha assim, de cara a cara. Ele disse: “Dona Dulce, não foi doença que me matou”. Eu disse: “Hum” “Na hora que eu fui pegar pedra, o puraqué me bateu. Ele me bateu, onde ele me bateu, ficou roxo. Aí, eu fui reagir pra subir na água e não teve condição. Tornou a me bater e eu não pude mais”. Eu me acordei e disse: “Luci, Luci!” “Que é?” “Puraqué mata a gente?” “Mata”.
P/1 – O que é puraqué?
R – É um bicho dentro d’água, elétrico. Ele me contou que não foi doença que matou ele, foi o puraqué, na hora que ele foi pegar pedra, o puraqué bateu nele. Ele quis reagir pra subir e tornou a bater. Ele disse: “Onde ele me bateu ficou roxo”. E só deu afogamento no laudo, não foi?
P/1 – Ah, deu afogamento, mas foi o puraqué.
R – Isso foi um sonho, né? Porque o pessoal diz que ele sofria da coluna, não sei o quê.
P/1 – E ele foi embora nesse dia, depois que ele falou isso ele foi embora?
R – Foi. Foi embora porque eu me acordei, sabe? Porque eu gostava muito dele, ele tem um filho muito parecido com ele. Quando eu topava com ele eu dizia: “Nato, cadê o xerox?”, ele dizia “Tá pra aula”, ou então, “tá em casa”. Era assim. Ele ia fazer 29 anos. Eu tenho ele. Diz pra Rosinha pegar ele lá dentro daquela bíblia pra mim. E é assim. Eu tenho aviso quando a pessoa vai morrer, eu sei. É assim, tipo o que os antigos diziam, o agouro. Quando esses começam a cavar aí, a fazer aquelas valas, pode contar. Quando a rolinha tá em cima da casa é sinal de que vai morrer gente.
P/1 – A rolinha tá em cima da casa da pessoa? Ou na sua casa?
R – Na minha casa, ou quando é um estranho, ela fica assim longe. E aquele urubu chorando, a suinara, ela faz aquele “Iááá”. Pode contar.
P/1 – Mas a senhora sabe quem ou a senhora fala: “Vai morrer alguém”.
R – Vai morrer alguém, agora, não se sabe quem, né?
P/1 – Deixa eu ver.
R – Era esse aí. Isso aí é lá no Marai.
P/1 – Ele era bonito, hein?
R – Tá aí os dados dele, ele não teve nem tempo de se despedir, né? E é assim, sabe? A minha vida é essa. Quando eu saio de casa eu tenho uma oração que eu rezo, eu me benzo assim e rezo. “Santo Antônio pequenino, me guiai em bom caminho. Sete estrelas me alumiam, sete anjos me acompanham. Das três pessoas que foram pregadas na cruz, que o do meio seja por mim. Jesus Cristo, filho da Virgem Maria”. Eu rezo e vou embora.
P/1 – Isso é pra proteger?
R – É, me proteger. O do meio não é Jesus Cristo? Pois é.
P/1 – E a senhora acha que essa oração segura a senhora contra o...
R – Eu posso andar o dia inteiro por aí que não tem nada que me atinge.
P/1 – A senhora já passou por uma situação que a senhora quase foi? E a senhora sobreviveu? Quando foi?
R – O meu sobrinho até comprou o forro do meu caixão, camisola e tudo.
P/1 – O que a senhora tinha?
R – Eu tinha... Quando a mulher fica gestante, ela não cria um bicho que se chama mola? Que destrói a criança no útero da pessoa? A senhora já ouvir falar isso?
P/1 – Nunca ouvi falar disso, dona Dulce.
R – Então, eu criei isso. Porque isso é de vir a menstruação da mulher. Quando a mulher menstrua, que ela pisa na casca de mandioca, que ela pisa no carvão, gera aqueles bichos, que chamam de mioma, né?
P/1 – Ah, mioma, tá.
R – Aí, eu escapei de morrer, né?
P/1 – A senhora estava com filho?
R – Não, não tava não.
P/1 – Só com o mioma.
R – Só. Então, eu comecei a provocar o sangue, sangue, sangue e foi descoberto. Aí, me deu dois passamentos em casa, o pessoal pensava que eu tinha morrido mesmo. O meu sobrinho comprou o forro do caixão, tudo e eu não morri, não. Estou viva até hoje e ele deu pra forrar o caixão do outro (risos).
P/1 – Mas a senhora lembra que estava quase no passamento? A senhora lembra desse dia?
R – Eu me lembro que eu tava mal, mas o passamento, a morte disse que é coisa do sonho. Então, a pessoa fica que não se sabe, né?
P/1 – Mas a senhora lembra desse momento? Porque tem gente que lembra da hora que tá quase morto, lembra de ter saído e visto tudo.
R – Não. Eu lembro que eu fui amortecendo. Depois, não sei o que me fizeram, aplicaram injeção, não sei o quê, aí, eu retornei.
P/1 – Então, a senhora não foi. Não tá na hora, né, dona Dulce?
R – Eu acho que não, porque mandaram eu voltar (risos).
P/1 – A senhora acha que ainda tem muita coisa pra fazer na vida?
R – Eu tenho pra mim que eu ainda vou fazer muita coisa na vida, só o que me atrapalha é a minha vista, desse lado aqui. Mas desse lado eu enxergo bem. É a catarata, se eu fizer uma cirurgia eu fico boa.
P/1 – E o que a senhora quer fazer na vida? Ou tem que fazer?
R – Ah, muita coisa ainda para eu ensinar, pra eu deixar de lembrança.
P/1 – Tipo o quê? O que a senhora quer ensinar?
R – Olha, eu quero ensinar o meu saber de teçume. Eu tenho sete máquinas, eu falei aqui pro pessoal daqui, das crianças, pra virem aqui para eu ensinar. Pelo menos fazer um shortinho, costurar, mas não querem, não. Essas crianças não querem saber de nada. Eu faço crochê, eu faço as beiras de toalha, de guardanapo, tudo eu faço. Então, eu queria que as crianças viessem aprender, porque eu não sei o meu dia de amanhã como é que vai ser. Então, isso que eu tinha vontade de deixar pras crianças, pros adultos. Mas, tá difícil.
P/1 – Por quê? O pessoal não se interessa?
R – Não. Porque eu penso que eles pensam que vão pagar pra eu ensinar. Não, só quero ajudar. Agora que eu achei pessoas pra me ajudarem, mas antes não.
P/1 – Algum dos seus filhos aprendeu tudo isso que a senhora sabe?
R – Eu tenho um filho que trabalha em construção.
P/1 – Aqui mesmo em Alter?
R – É, mas vou falar a verdade pra você. Ele se dedicou na cachaça e agora não presta pra nada. Agora, eu tenho um filho que é pintor, que é esse que mora aqui.
P/1 – Ele mora onde, dona Dulce?
R – Aqui nessa casa.
P/1 – Nessa aí da farinha? Ou lá pra baixo?
R – Não, lá naquela casa ali.
P/1 – Aquela casa ali... Ah!
R – Ele faz qualquer arte de pintura, sabe?
P/1 – Mas pintura da parede?
R – Pintura de roupa, de parede. Ele faz qualquer pintura. Se você quiser que ele faça uma paisagem, ele faz. É assim.
P/1 – Ah, ele pinta desenhos mesmo. Ele vive disso?
R – Ele vive porque ele não é empregado. Ele era empregado, mas não é mais.
P/1 – Ele era empregado onde?
R – Ele era professor.
P/1 – Na escola?
R – É.
P/1 – E ele saiu?
R – Saiu.
P/1 – Por quê?
R – Eu não sei o porquê. Eu acho que é porque é contrato, né? É.
P/1 – Então ele era professor e agora ele vive de pintura.
R – É, pra onde chamam ele, ele vai.
P/1 – E os seus outros filhos, fazem o quê, dona Dulce?
R – A Rosa trabalha lá no posto de saúde. Agora a Rosinha não é de nada (risos). Ela só trabalha em casa quando chamam ela pra fazer um trabalho e ela faz.
P/1 – De quê? De limpar uma casa?
R – De limpar uma casa, de fazer uma comida. Eu tenho um genro que sabe a arte culinária, é isso.
P/1 – Então, a Rosinha fica em casa, um pouco com a senhora aqui?
R – É, a Rosinha fica aqui, fica lá com a irmã dela.
P/1 – Ela é a última?
R – Ela cuida dos filhinhos dela, tem um casal de filhos. Tem um até que é assim da cabeça, ele estudava na Apae.
P/1 – E os outros, um é pintor, outro tá na bebida e a Rosângela?
R – A Rosângela trabalha no posto.
P/1 – Eles foram muito tempo pra escola, dona Dulce?
R – Foram. Mas esse aqui, ele tem o segundo grau. Agora o resto, não. Eu só tenho mesmo a antiga quinta série (risos). Quer ver a minha letra?
P/1 – Quero!
R – Então, me dá aqui que eu vou escrever o meu nome.
P/1 – Tá bom, pera aí. Você tem uma coisa dura aí pra mim?
R – Tu tem uma coisa dura, mano? Posso escrever aqui?
P/1 – Pode escrever aí.
R – Quero ver a minha letra como é. (pausa).
P/1 – O senhor mostra assim pra ele gravar na câmera? Mostra aqui a letra, assim. Pode segurar. Ah, que letra bonita. Isso a senhora aprendeu na escola?
R – Foi. A minha primeira professora foi a dona Benita Lobato, essa que vocês... Com o seu Servito.
P/1 – Ah, essa que nós já entrevistamos.
R – É. Foi a minha primeira professora.
P/1 – O que ela ensinou, além de escrever o nome?
R – Ela só ensinava mesmo a gente estudar.
P/1 – Mas a senhora, além de escrever o nome, a senhora consegue escrever, por exemplo, uma receita?
R – Como receita?
P/1 – Por exemplo, como faz um bolo. Se eu pedir pra senhora, a senhora sabe de cabeça, mas a senhora escreve pra mim?
R – Não, eu não sei receita de bolo, não (risos).
P/1 – Mas a senhora escreve mais, escreve bastante?
R – Escrevo, eu leio.
P/1 – A senhora lê o quê?
R – A minha bíblia.
P/1 – A senhora lê a bíblia. A senhora lê todo dia a bíblia?
R – Eu viciei em ler a bíblia toda noite.
P/1 – Aquilo dá paz pra senhora?
R – Dá, porque eu acho uma leitura muito bonita aquela que diz: “Jesus é o caminho, a verdade e a vida”. Ninguém vai ao Pai a não ser por ele. Eu acho lindo. Eu não lia a bíblia, eu não sabia de nada. Aí, um dia eu fiquei pensando: “Meu Deus, um dia eu vou ler na bíblia que diz assim: “Deixa que vem a mim os cansados e sobrecarregados que eu vos aliviarei”. Agora eu viciei na bíblia, eu leio.
P/1 – Depois que a senhora leu isso?
R – Foi. Porque eu acho que os cansados e sobrecarregados são aqueles que tinham que ler a palavra de Deus pra ter um alívio na vida, né? Que vivem cansados, não sabem nem o que quer dizer uma bíblia. Eu to certa ou não estou, Chico? Pois é.
P/1 – Dona Dulce, a senhora está aqui com uma camisa escrita “Escola Indígena Borari”. A senhora é descendente dos borari?
R – Eu sou descendente, a minha mãe era índia. Ela era índia, como que dizem que tinha indígena aqui em Alter do Chão, né? Porque o meu avô era filho de português, e a minha avó era morena, morena mesmo, sepe, diziam que era borarina.
P/1 – A sua avó era borari e casou com um português? Quer dizer, teve filho.
R – Vovô era tipo um americano. Era um homem alto, bem branco mesmo, do olho azul, sabe?
P/1 – A senhora chegou a conhecer ele?
R – Eu conheci o vovô, o nome dele era Severino Herculano, né? É.
P/1 – Ele que tem esse nome Sardinha de Vasconcelos?
R – É a vovó. Vasconcelos era ele.
P/1 – Ele era Vasconcelos, ela era Sardinha. Mas ela era borari?
R – Diziam que ela era borari porque ela era bem morena. E a mamãe, era mais morena do que eu.
P/1 – Era bonita a sua mãe?
R – Não, mamãe era assim como eu. Porque no mundo não tem ninguém feio, né? Um dia um rapaz ia andando, mexeu com uma moça. Aí, ela disse: “Ah, feio!”. Ele olhou pra ela: “Eu não tenho culpa, não fui eu que me fiz” (risos).
P/1 – Mas a senhora sabe alguma coisa de como os boraris viviam? Alguma coisa do aprendizado veio deles, que a senhora sabe?
R – Eu não sei muita coisa dos borari, não. Eu só sei umas palavras que a mamãe chamava, né? Quando ela queria uma coisa depressa, ela dizia: “Da cá”, era pra trazer uma vasilha, né? “Aricatu, minha filha, aricatu!”. Era pra vir ligeiro. E certas coisas eu aprendi, mas eu esqueci e quero retornar.
P/1 – Mas a senhora lembra alguma das outras que a senhora aprendeu?
R – Eu não me lembro, não.
P/1 – A última coisa. Quem criou a sua mãe, a sua avó ou a sua avó e seu avô?
R – Foi a vovó. Eles eram casados mesmo, católico e civil.
P/1 – Eles eram casados.
R – Vovó era com vovô. O nome da vovó era Joaquina, e dele era Severino Herculano.
P/1 – Eles moravam aqui em Alter do Chão também?
R – Moravam. Primeiro eles moraram em Amanaraí. Depois eles vieram pra cá.
P/1 – Dona Dulce, antes que a senhora fique exausta de mim, fora os sonhos que contam o que vai acontecer, tem algum sonho que a senhora quer que aconteça ainda?
R – Eu quero ser muito feliz. Esse sonho é o que eu desejo. Eu quero ser mesmo feliz daqui pra frente. Sei lá, eu quero ajudar o meu próximo, assim.
P/1 – A senhora foi feliz até aqui ou a senhora quer ser mais feliz?
R – Eu fui feliz até aqui e quero ser mais feliz.
P/1 – O que é ser feliz pra senhora, dona Dulce?
R – Feliz. A minha felicidade é que eu viva muito tempo com esse homem que tá aí, com tudo que ele é, assim, mas ele é uma pessoa que me acompanha. E eu quero, além da minha casa, eu quero terminar minha casa, quero ter umas coisas assim, sabe? Pro fim da minha vida. E quero que Deus dê saúde e felicidade pro meu homem que me acompanha. E dos meus filhos, e de vocês todos (risos).
P/1 – Tá bom, dona Dulce, obrigada! Vocês querem perguntar alguma coisa?
P/2 – A senhora falou que a primeira lembrança da senhora, era brincando com os irmãos. Do que vocês brincavam?
R – Ah, a gente brincava de brinquedo, na terra, fazendo as coisas, porque não tinha brinquedo pra nós (risos).
P/2 – Vocês mesmo faziam os brinquedos?
R – E, nós mesmo fazíamos os brinquedos na terra, fazia as coisas, pegava uma latinha pra fazer comida... Assim, sabe? Porque brinquedo mesmo, como tem agora, ninguém tinha, não.
P/2 – E aquelas brincadeiras de pira?
R – É, de pira, de roda, né? A gente brincava. Na escola, a gente aprendia a jogar futebol. Aí, a gente apanhava da professora (risos), elas tinham uma régua assim, que era mesmo assim, olha, a régua. Fazia aqui com o dedo, mesmo. Aqui ela vinha assim, ó. Ela era bordada aqui, ó. Não vai sair bom, mas mesmo assim sai. Ela era mais fina, elas pegavam aqui, ó, e porrada na mão da gente.
P/1 – Com essa régua aí?
R – É. Uma vez nós fomos fazer a prova, tinha uma colega minha lá. Aí, ela queria colar a prova. O que eu fiz? Eu engasguei ela e ela gritou. Quando ela gritou a professora disse: “O que é isso?”. Aí, ela disse que eu tinha engasgado ela. “Por quê?”. Eu disse: “Porque ela queria colar a minha prova”. Aí nós apanhamos, as duas, ficamos de castigo (risos). E eu era assim, eu engasguei ela, eu me lembro tão bem.
P/1 – Como foi, a senhora pegou no pescoço e foi?
R – Eu estava escrevendo, né? Aí, ela veio por detrás de mim pra olhar. Aí, eu virei e peguei nisso dela e ela gritou (risos). Ela gritou, ela mora em Brasília essa minha colega. Toda vez que ela vem, ela se lembra que eu engasguei ela (suspiro).
P/2 – Obrigado, dona Dulce.Recolher
Título: Fé em Santa Ana
Data: 29/04/2010
Local de produção: Brasil / Pará / Alter Do Chão
Personagem: Dulce Sardinha de Vasconcelos Autor: Museu da PessoaO Museu da Pessoa está em constante melhoria de sua plataforma. Caso perceba algum erro nesta página, ou caso sinta falta de alguma informação nesta história, entre em contato conosco através do email atendimento@museudapessoa.org.
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