Sou Raimunda Rodrigues Teixeira e nasci em 24 de novembro de 1944, no município de Caucaia-CE. Sou Pajé dos índios Tapeba que vivem na margem do rio Ceará, também no município de Caucaia. Sou bisneta do nosso antigo Cacique que já morreu, o Zé Isabel Alves dos Reis, conhecido por Perna de Pau. O meu pai era Francisco Alves dos Reis e morreu há cinco anos. A minha mãe, Julieta Pereira da Silva, não era índia.
Eu nasci e me criei na comunidade do Trilho, Capuã, que fica próximo à aldeia onde mora o (Cacique) Dourado, meu ex-marido. La só era mata - aqueles paus brancos, com aquelas ocas dentro da mata. Era uma aldeia com as ocas redondas de palha, só com uma portinha para entrar e sair. Não existia a rede naquela época. Eles faziam uma esteira da palha da bananeira que estendiam para que todos os índios dormissem. Roupa não existia, eram só os penachos. Eu me criei nessa cultura, nessa tradição, mas os meus filhos não. Quando eu ia pescar, o Cacique Perna de Pau, que era o meu bisavô - o nome dele era Zé Isabel Alves dos Reis, mas como ele fez uma fogueira no São João e colocou uma bomba dentro duma lata e, quando a bomba explodiu, a lata estourou o joelho dele. Ele mesmo colocou remédio e se cuidou. Fez uma perna de pau e andava por todos os canto com essa perna. Por causa dessa perna ele ficou como Cacique Perna de Pau. Ele levava adultos e crianças para pescar. Iam todos juntos pescar e caçar com aqueles embornais nas costa. As índias dentro de uma rede, com uma tipoia atrás. Ele levava nas costas. Passávamos o dia na mata caçando, pescando, tirando as raízes de pau e pegando passarinhos para vender. Aqueles bichos verdes, os camaleões - ele vendia novinho para uns viveiros. Passávamos o dia da mata e, quando era noite, de cinco para seis horas, retornávamos às aldeias, às ocas, para colocar aquelas caças no fogo para comer. Eles faziam um buraco fundo no chão e colocava as lenhas lá dentro. Ele pegava uma lata,...
Continuar leituraSou Raimunda Rodrigues Teixeira e nasci em 24 de novembro de 1944, no município de Caucaia-CE. Sou Pajé dos índios Tapeba que vivem na margem do rio Ceará, também no município de Caucaia. Sou bisneta do nosso antigo Cacique que já morreu, o Zé Isabel Alves dos Reis, conhecido por Perna de Pau. O meu pai era Francisco Alves dos Reis e morreu há cinco anos. A minha mãe, Julieta Pereira da Silva, não era índia.
Eu nasci e me criei na comunidade do Trilho, Capuã, que fica próximo à aldeia onde mora o (Cacique) Dourado, meu ex-marido. La só era mata - aqueles paus brancos, com aquelas ocas dentro da mata. Era uma aldeia com as ocas redondas de palha, só com uma portinha para entrar e sair. Não existia a rede naquela época. Eles faziam uma esteira da palha da bananeira que estendiam para que todos os índios dormissem. Roupa não existia, eram só os penachos. Eu me criei nessa cultura, nessa tradição, mas os meus filhos não. Quando eu ia pescar, o Cacique Perna de Pau, que era o meu bisavô - o nome dele era Zé Isabel Alves dos Reis, mas como ele fez uma fogueira no São João e colocou uma bomba dentro duma lata e, quando a bomba explodiu, a lata estourou o joelho dele. Ele mesmo colocou remédio e se cuidou. Fez uma perna de pau e andava por todos os canto com essa perna. Por causa dessa perna ele ficou como Cacique Perna de Pau. Ele levava adultos e crianças para pescar. Iam todos juntos pescar e caçar com aqueles embornais nas costa. As índias dentro de uma rede, com uma tipoia atrás. Ele levava nas costas. Passávamos o dia na mata caçando, pescando, tirando as raízes de pau e pegando passarinhos para vender. Aqueles bichos verdes, os camaleões - ele vendia novinho para uns viveiros. Passávamos o dia da mata e, quando era noite, de cinco para seis horas, retornávamos às aldeias, às ocas, para colocar aquelas caças no fogo para comer. Eles faziam um buraco fundo no chão e colocava as lenhas lá dentro. Ele pegava uma lata, colocava no fogo cheia d’água e trabalhávamos com aqueles alguidares grandes de barro. Ele colocava a farinha. Tínhamos um roçado em que plantávamos mandioca. Ele tirava a mandioca, relava, fazia farinha no caco e torrava. Ele colocava dentro do alguidar, fazia aquele pirão escaldado com aquela água sem sal. Ele não colocava sal nem na farinha. Fazia o pirão e, quando acabava, pegava aquelas caças salgadas e as colocava na brasa para assar. Partia para aquela fileira de índios e cada qual pegava um tibuguinho de barro com a colherzinha de pau - porque não tinha colher nessa época. E comíamos. Depois que acabava, bebíamos água, estirava a esteirinha e íamos dormir. Quando não, ia dançar o Toré a noite toda, com as maracas ao pé duma fogueira.
Eu sinto muita falta dessa época, porque eu acho que não vai voltar mais. Fui criada numa cultura tão bela, tão maravilhosa, tão pura, com tanta honestidade e com todos respeitando uns aos outros. O meu avô dizia: “O que eu posso ensinar pra vocês é a história: não sei ler, não sei escrever, mas a história eu vou ensinar, vocês têm que aprender. Algum dia eu não estarei mais no meio de vocês, que vão contar o quê para as pessoas que vierem fazer uma pergunta? Vocês têm que colocar na cabeça, na memória e prestar atenção no que eu digo a vocês”. Eu prestava atenção e escutava muito bem tudo aquilo. Se ele estivesse aqui, ninguém passava no meio, porque ele não aceitava. Bastava só espiar com o rabo de olho e já estávamos voltando, porque não era permitido passar na frente, tinha que voltar. Fui criada nessa cultura. Lembro-me das cumbuquinhas de barro. Trabalhávamos juntos no artesanato, na pesca, na caça e em tudo que se ia fazer era desse jeito. Quando ele saía de manhã, ia na frente e todos os índios tinham que pisar no rastro dele. Ele tinha uma experiência tão grande que, quando voltava, olhava se o rastro estava correto, assim como ele tinha saído. Se tivesse um rastro fora daquela trilha ele dizia que tinha entrado gente branca ali dentro: “Entrou gente branca aqui dentro. E vou caçar quem entrou.” Tínhamos que ir o tempo todo naquela trilha. Na volta, ele olhava se tinha algum rastro diferente ou se tinha entrado alguém na aldeia. Ele era muito experiente, muito sábio das coisas que ele fazia. Ele era marido de duas irmãs. A Teresa Teixeira de Matos era a mulher verdadeira e a Paulina Teixeira de Matos, que era a irmã dela, era a sua segunda mulher. Quando uma estava de resguardo, a outra era quem cuidava. Quando acabava o resguardo, a outra tinha o nenê e ia cuidar do resguardo da outra. Moravam todos juntos, dentro de uma casa - as irmãs com o mesmo marido. E eram todas unidas. Ele teve vários filhos com as duas mulheres. Dos filhos dele só existe um vivo, que é o Geraldão, que mora perto da Vila Nova. Ele já está bem velho, não está nem andando, quase paralisado dentro de uma rede.
A nossa vida era desse jeito, dentro dessa aldeia, na Comunidade do Trilho, lá dentro da mata. Hoje em dia eu moro aqui. Saí da comunidade do Trilho. Casei-me com 17 anos. O casamento era feito pelo cacique e o pajé dentro da aldeia. Só que quando eu me casei não foi feito mais pelo meu bisavô, porque quando ele morreu eu tinha dez anos de idade. Fui casada pelo cacique e outro pajé que ficou no lugar dele, que também Deus já o levou. Quando eu me casei eu não tinha nenhum canto para morar, pois estávamos sendo expulsos da terra. Os antigos estavam morrendo e apareceram os fazendeiros dizendo que eram os donos, trazendo os arames para cercar a nossa terra e expulsar a nossa gente. Ficamos na beira do trilho de ferro, onde passa o trem, com as nossas ocas abandonadas dentro da mata, porque não podíamos entrar. Aí, eu disse: “O que eu faço é ir para a beira do rio”. Cheguemos aqui e colocamos o nome de rio Ceará, porque ele se chamava rio do Picu. Quando eu vim morar aqui, eu trouxe três filhos: a minha filha mais velha, que já tem 50 anos; o meu filho mais velho dos homens, que tem 44 anos. Esse que estava aqui se pintando tinha três meses quando eu vim para cá. Ele já fez 40 anos. Quando eu cheguei aqui, a ‘negada’ dizia: “Essa mulher parece que é doida. Tem uma mulher doida colada dentro do mangue com um bocado de menino e um homem”. Entraram de lá pra cá olhando, assombrados, com medo, porque nunca tinham me visto. Depois que cheguemos, limpamos um canto na beira do rio, debaixo do manguezal e eu coloquei um pedaço de lona e de papelão para colocar os meninos para dormir em cima. “Como é que a senhora vai dormir com esses menino aqui?”. Eu disse: “Minha senhora, eu sou índia, eu sou filha da natureza, sou filha da mata. Vou dormir aqui com os meus filhos e nada vai me acontecer”. E ela: “Mas tem muita cobra, caranguejo”, e eu dizia: “Nada vai me acontecer. Deus vai me proteger e eu vou dormir aqui com os meus filhos. Amanhã eu ganho um pano, tiro uns paus e faço uma cabana e me soco debaixo”. E dormi. Pela manhã, pegamos a foice, fomos tirar pau do mangue e fizemos uma cabana, onde coloquei os meus filhos debaixo. Na continuação, arrumei palha para ir arrodeando ela. Os outros parentes também vieram e começaram a fazer também: “Raimunda foi para a beira do rio, eu vou também”. E veio um bocado de gente para a beira do rio. Todos os índios Tapeba que moram aqui vieram de lá. O restante dos meus filhos eu tive aqui e acabei de criar esse daí, que veio com dois meses, porque nós fomos expulsos e obrigados a sair da mata, da terra de onde vivíamos, onde eu nasci e me criei, numa cultura, numa tradição junto ao meu povo.
Hoje em dia eu tenho esse trauma dentro de mim: ser obrigada a sair de onde eu nasci. Lembro-me de como foi que eu saí expulsa, de lá para cá, ainda bem jovenzinha. Hoje, já estou com 70 anos, mas eu nunca me esqueci disso. Quando vim morar aqui, a família do Zé Geraldo Arruda me disse que eram os donos dessa fazenda. Mas os verdadeiros donos são os índios, só não temos a posse da terra. Quando eu fui tirar olho de palha com as minhas duas filhas para fazer artesanato, as saias e os cocares, ele colocou o revólver na minha cabeça para eu sair de dentro da mata. Eu disse a ele que podia me matar, mas eu não saía porque eu não estava roubando. Eu ia tirar palha para dar de comer aos meus filhos. Era para eu trabalhar, fazer um dinheiro para dar de comer aos meus filho. “Eu não vim roubar”. E ele continuou mandando-me correr. Eu entrei e ele continuou olhando, com o revólver na mão, até eu tirar os olhos. Ele disse que eu não entraria mais, mas eu disse: “Amanhã eu venho de novo. Todo dia eu venho buscar. Por que eu não viria amanhã? Sumiu alguma coisa sua? O senhor disse que é o dono. Sumiu? Está tudo aí?” “Está”. Eu disse: “Pois então, meu amigo, eu vou tirar olho de palha.” Eu tiro olho de palha numa manta em quatro ou cinco, da carnaubeira. Ao tirar, nasce outro. Depois, ele me deixou tirar o olho de palha. Depois, apareceram com um carro aqui na frente para fazer teste de sangue para saber se éramos índios ou não. Eu disse: “Como é que você vai saber se nós somos índios ou não? Quem sabe que nós somos índio, somos nós. Nós é que asseguramos o que nós somos. Se eu sou uma coisa eu tenho eu dizer o que eu sou. Se eu não sou, jamais vou dizer que sou. E se eu sou índia - porque eu sou índia - ninguém vai tirar isso de mim. Não será outro político que vai me tirar isso. Só eu e Deus sabemos, os encantados. Eu sou da mata, sou da natureza. Ninguém vai tirar, ninguém vai me transformar em outra pessoa que eu não sou. Eu sou e vou morrer assim: índia”. Ele disse que eu era muito ignorante, muito bruta. Eu disse: “Não, o senhor que é bruto e ignorante, que diz ter tanto estudo, é um advogado, é um doutor. Como é que o senhor chega numa aldeia indígena com toda essa ignorância? Achei ignorante...” Eu disse a ele que ninguém iria tirar o que nós somos, porque somos índios, filhos da terra e da natureza. Os verdadeiros donos do Brasil eram os índios. Eu disse: “Quem sabe o senhor também não é um deles, porque o meu bisavô, quando era vivo, dizia que os povos indígenas tinha se casado com alemães, com portugueses. O nosso país é cheio de povos indígenas. Quem sabe, no passado, o seu tataravô ou a sua bisavó não era índia? Por que o senhor não procura saber a sua origem, a sua cultura e dos seus antepassados? O senhor veio discriminar os povos indígenas? Quem sabe o senhor não é um deles, um índio. O senhor é branco, mas tem índio branco, tem índio louro.” Às vezes, junta-se índio com não índio. E aí, aquela família, aquela tradição, aquela nação vai se misturando, vai indo em frente. O índio verdadeiro, que o pessoal chama de puro, que é filho de índio com índio, não tem mais. Todos somos povos indígenas, somos cearenses, somos brasileiros. Temos de ter respeito um pelo outro. Eu não sei ler, mas os meus pais me deram educação para eu saber falar e respeitar as pessoas do jeito que cada um é. Se hoje você não tem o que comer, mas eu tenho, eu tenho que lhe ajudar; amanhã, eu não tenho, e você tem. Você vai me ajudar. Assim é o modo de se viver, meu amigo. Não é expulsando da mata enquanto tira um olho de palha”. Ele parou e deixou. Mas ele atrasou a demarcação das terras.
O maior problema dos índios Tapeba é a demarcação de terra. Há 32 anos que nós lutamos por essa demarcação. Até hoje essa terra é impedida de ser demarcada. A Dilma assinou, em Brasília, a demarcação da terra. Publicaram no Diário Oficial, mas não podem demarcar a terra porque um ministro tem que baixar uma portaria e enviar uma decisão para a Dilma poder baixar essa portaria. Essa decisão está difícil de sair. Todo político que tem terra dentro de áreas indígena vai lá, contesta, para que essa terra não seja demarcada. Tem 41 pessoas que contestaram essa demarcação lá em Brasília. Eu espero que, mesmo que eu não alcance, mas que um dia ela seja demarcada para os meus netos que tão aqui, os meus bisneto, o meu povo que está espalhado por aí. São 7.000 índios espalhados dentro do município de Caucaia e que precisam desta terra para trabalhar, para plantar e preservar a sua cultura, as suas ocas, assim como era antigamente. Mas é difícil.
A minha história foi essa: dentro da mata, com o meu pai e com a minha mãe, com meus irmãos e com o resto do meu povo trabalhando. Hoje eu sinto uma grande tristeza porque esse rio, que era tão limpo, da onde eu tirava a minha sobrevivência, eu não tiro mais, porque ele não presta, está poluído. Eles vão às seis hora da manhã para a Barra do Ceará pegar caranguejo. Chegam às sete hora da noite, de pés, com a garrafinha d’água, pedacinho de rapadura pra comer. Temos que seguir em frente. Não é porque o rio está poluído que vamos cruzar os braços e morrer de fome. Temos que batalhar e ir atrás. Eu tenho uma tristeza por não ter criado os meus filhos na cultura e na tradição em que eu fui criada - dentro da mata com os meus penachos, sempre junto com aquele povo. Já tem gente branca que mora no nosso meio. Eu não tenho nada contra, porque todos somos gente, somos todos irmãos. Sou contra os meus filhos não terem sido criados na cultura e na tradição em que eu me criei. Eles têm a cultura, têm toda a tradição, mas é diferente da minha, que fui criada no outro modo, com meus penachos, dentro da mata. Hoje, eles são criados debaixo dessas casas de telha e de tijolos. Eu tenho muita saudade da minha época de criança, dentro da mata com o meu povo, pescando e fazendo as minhas coisa. Eu sinto muito essa tristeza dentro de mim. Espero que eu ainda alcance a terra demarcada, para eu voltar ao passado, para dentro do mato. Mas eu acho muito difícil por conta dessa perseguição. Deus é muito bom e Ele vai ajudar para que isso aconteça.
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