PSCH_HV746_Salloma_Sallomão
Revisado e editado por Jonas Worcman
P/1 – Eu queria pedir pra você respirar profundamente, eu queria que você imaginasse, mesmo, toda a linha de antepassados que tem antes de você, até chegar em você. Pra que toda história seja honrada através da sua fala. E aí eu queria que você me dissesse o seu nome, local primeiro e data de nascimento.
R – Meu nome é Sallomão Jovino da Silva, eu sou conhecido atualmente como Salloma Sallomão, eu tenho 58 anos, eu nasci no dia primeiro de agosto de 1961, na cidade de Passos, que fica na região Sudeste de Minas Gerais.
P/1 – O que você sabe da história dos seus pais? Bem resumidamente, o que você conhece da história dos seus pais? Como eles chegaram lá?
R – Meus pais nasceram em uma cidade também da região Sudeste ou Sudoeste de Minas, em Boa Esperança e migraram pra cidade onde eu nasci pouco antes do meu nascimento, em uma crise grande de trabalho, no final da década de 60. No final da década de 50, início da década de 60. Tida como uma era de grande prosperidade, quando se lê sobre a história nacional. Mas o que eles viveram, eles eram lavradores e viviam, trabalhavam pra fazendeiros para os quais os seus avós haviam trabalhado e, em uma crise de produção de açúcar e café, eles migraram de uma região para a outra, no mesmo perímetro, digamos assim, que é Vale do Rio Grande, perto da Serra da Canastra. Migraram para uma fazenda chamada Fazenda Rio Grande, produtora de açúcar, onde eu nasci. Enfim, na região de Boa Esperança a história da minha mãe é mais difícil, mais inacessível, mas a do meu pai é que ele era descendente de uma mulher chamada Jovina e, por isso, o nosso sobrenome se tornou Jovino. E essa mulher foi violada por um italiano, talvez em 1870, algo assim. Mas os seus ancestrais haviam vivido nessa mesma região, trabalhado como escravizados nas mesmas fazendas da região de Boa Esperança. A minha mãe veio de um vilarejo chamado Córrego Fundo, era uma mulher negra de pele clara, de lábio fino e provavelmente uma mestiça com branco e com indígena e ela tinha uma memória relativamente vaga da sua avó indígena. Provavelmente, pelas narrativas um pouco truncadas, a sua mãe seria uma prostituta, de modo que houve muito preconceito da família do meu pai em relação a ela, primeiro por ela ter aparentemente a pele muito clara. Segundo os padrões, o meu pai era bastante retinto e a família do meu pai era bem retinta. E, talvez, por esse fato social conhecido em um vilarejo pequeno, que a sua mãe havia sido prostituta e que teria ficado louca na velhice, com sífilis ou algo assim. Mas não é uma memória muito nítida. Minha mãe falava disso, às vezes, em algumas situações, mas não com muita facilidade.
P/1 – Qual que é a primeira memória que você tem, primeira lembrança de imagem que você consegue ter?
R – Do quê?
P/1 – A primeira. A mais antiga. Qual que é a lembrança mais antiga?
R – Que eu tenho da minha própria vida?
P/1 – Isso.
R – Uma família de brancos que morava na frente da minha casa em um bairro chamado Carmelo e que as crianças ficavam nuas no frio. E ali, primeiro, foi uma descoberta que os brancos existiam. E que eles eram diferentes de mim. E que eles tinham o nariz sujo. Durante um bom tempo minha impressão é de que os brancos andavam sempre com o nariz sujo. E esse menino chamava-se Moisés, a sua irmã chamava-se Suelen e havia um que tinha o apelido de Chicuta. Eu não me lembro bem se era o Moisés que tinha apelido de Chicuta. E a mãe deles chamava-se Alzira e o pai era ausente. O pai aparecia de vez em quando. Mas, na minha memória, era um homem violento. Moravam na frente da minha casa, nesse bairro.
P/1 – E você tinha uma relação, assim, com eles?
R – Eram meus amiguinhos. Eram amigos de brincar. Eu devia ter quatro anos. Eu tenho imagens desse período. Devia ter quatro anos porque eu apareço com um certo tamanho e o meu irmão chamado João, menor que eu. E a gente tirou fotos nessa casa, nesse bairro, na pracinha do bairro. Então, um pouco, talvez, seja a presença dessas imagens fotográficas e um pouco seja a experiência, mas eu me lembro da casa anterior também, que era em outro bairro. Era um bairro de pretos chamado Penha. Bairro de congadeiros, de negros católicos. Então, isso é o que eu me lembro. São as minhas memórias mais remotas.
P/1 – Você tem memórias da congada?
R – Sim. Sempre. Desde sempre.
P/1 – Poderia nos contar como eram as congadas?
R – Os amigos do meu pai, alguns, eram congadeiros. Meu pai era presbiteriano, mas ele tinha amigos macumbeiros, congadeiros, da umbanda, do samba, enfim. Então, uma dessas pessoas era um velho, um senhor, já, com uma idade avançada, chamado Feliciano, que era, enfim, um chefe de Maçambique ou Moçambique. E esse homem brincava com a gente, falava as palavras dos antigos, cantava umas cantigas e era amigo do meu pai. E moravam nesse mesmo bairro, no bairro da Penha. Agora eu já não tenho muita certeza se primeiro moramos no Carmelo e depois na Penha, mais.
P/1 – Qual foi, pra você...
R – Ah, eu me lembro! Nós mudamos do Carmelo para a Penha porque o meu pai foi trabalhar nas obras da igreja da Penha. Eram obras da igreja. Meu pai era carpinteiro. Era lavrador e carpinteiro. E ele foi trabalhar nessa obra junto com o amigo dele, que era um mestre de obras, um preto carioca. Não sei se fluminense ou carioca, mas que mudou lá pra Passos e os dois se tornaram bastante amigos e era capoeirista e era compositor, enfim, tocador de berimbau e que esse senhor levou meu pai pra trabalhar nessa obra.
P/1 – E você acompanhava, assim, nessas obras? Você chegava a ir com seu pai?
R – Sim. Algumas vezes. Mas a minha relação com essa obra é menos por conta do meu pai e mais por conta dos meus irmãos que, quando eu devia ter uns seis anos ou sete, talvez, sete pra oito porque eu já sabia ler, eles foram montar uma peça de teatro no que seria hoje a garagem dessa igreja. E usavam esse espaço e ficavam lá ensaiando e a gente, que era pequeno, ficava assistindo. Então, mais por isso que eu me lembro da igreja e menos de ter ido com meu pai. Mas de ir provavelmente fosse domingo de tarde, sábado de tarde, algum dia assim de folga que eles ficavam lá horas lendo texto do Guarnieri e do Boal. Mais tarde fui descobrir o que era o texto do Guarnieri e Boal.
P/1 – Esse foi o seu primeiro contato com o teatro?
R - Foi. Depois disso, na escola, né, mas foi o primeiro.
P/1 – E o que você sentia? Tenta espacializar como é que foi pra você, uma criança, chegar e ver aquilo.
R – Era mágico, né, mano? Você vê uma pá de gente preta em um lugar, conversando, convivendo, construindo, elaborando, ensaiando, passando várias vezes o mesmo texto. Eu tive memória de fragmentos do texto e das canções até bem recentemente. Mas acesso ao texto eu só fui ter depois de adulto. Mas eu tinha memória de fragmentos, das cenas, do texto. Então, a minha primeira noção de que um bando de gente junta em torno de alguma ideia podem fazer coisas.
P/1 – O que mais você brincava na infância?
R – Futebol, bastante. Gostava.
P/1 – Era o quê? Era pelada ou tinha quadra?
R – Peladinha de rua, de bairro, com dois amigos de uma senhora, amiga da minha mãe. Que era Dona Maria do Nico, que era uma senhora negra, assim, de cabelo liso, com um cara branco que hoje parece personagem daquelas pinturas do final do século XIX, início do XX. Um branco caipira, assim. Meio indígena. E eles tinham três filhos. Uma menina cujo nome eu não me lembro, mais dois meninos que eram pretos de cabelo liso, que era um dado diferente, assim, de traço indígena. E esses meninos jogavam conosco, eu e meu irmão João. Fazíamos um campinho no final da rua, perto da casa deles, no final do bairro, no final da rua. Depois da nossa casa já era região rural. Nossas casas eram as últimas casas do bairro da Bela Vista. E final de tarde, depois da aula, depois da lição, a gente ia ali, que era perto de casa. Podia ir, a família não criava nenhum empecilho e ficávamos jogando até o escurecer. Então, era isso. Em Minas. E às vezes íamos no campo que ficava próximo umas três quadras, talvez, dessa mesma rua, que era a rua onde eles moravam, que eu não tenho certeza se era Rua Maranhão. O nome da rua que eu morava era Rua Paraná e o número da casa era 935.
P/1 – E você lembra como era o cheiro do lugar? Era mais mata, assim?
R – Ah, vários cheiros. Desde o cheiro do excremento dos porcos, até o cheiro da comida, mas o cheiro da comida é de um momento do dia, né? Tem um cheiro, que é o cheiro geral daquele ambiente, que é uma mistura do cheiro da merda da vaca porque passava uma boiada ali e os caras levavam os bois para aqueles sítios que ficavam no fim da rua, onde também a gente ia catar esterco ou gravetos porque tinha o fogão a gás, mas era caro o gás. Então, compensava com a lenha, com gravetos, lenha catada no fim da tarde. Então tinha esse cheiro, que é uma mistura do cheiro da bosta de vaca com o cheiro do excremento dos porcos, com o cheiro das folhas, das plantas todas que ficavam no quintal, das árvores, das plantas, das flores. Era um cheiro forte. Não sei se o tempo inteiro, mas talvez em um certo período do ano. À noite era um cheiro diferente, que era o cheiro de uma flor específica chamada “Dama da Noite” Cada tempo, provavelmente, era um cheiro. Mas um cheiro que eu gostava, ainda gosto, é o cheiro que a terra levanta depois da chuva. O mato e a terra soltam um cheiro, principalmente se é um dia muito quente. Depois da chuva sobe um vapor e um cheiro muito bom. Cheiro da terra. Esse era bonito. Mas o cheiro das vacas também não era desagradável, porque ele fazia parte da ambiência. Às vezes, um certo período da manhã passava um cara levando as vacas e a gente esperava, depois, que secasse, pra recolher e fazer esterco no quintal. Uma casa bem pequena, de uns cinco cômodos, em um quintal que devia ter dez metros de frente por 20 de fundos ou 30, talvez, mas era grande e eu tive noção de que era grande quando nós viemos pra São Paulo e fomos pra uma casa bem pequena, com um quintal bem pequeno.
P/1 – A gente já vai chegar lá. Vamos ficar um pouco em Minas ainda. Vocês vieram pra cá você tinha quantos anos?
R – Dez.
P/1 – Aí, até esses dez anos, você tem algum causo que marcou, assim, sua vida lá? Algum episódio, assim, que você lembra bastante?
R – Tem. Tipo festa na roça. Meus pais migraram dessa fazenda pra cidade, mas os amigos deles continuaram morando nessa fazenda, como colonos. Está ligado o que é colono? (risos) Colono, tem essa noção de colonos pretos, né? Agora, pra mim, está nítido isso. Colonos pretos.
P/1 – Me explica um pouquinho.
R – Moram na fazenda, consomem na fazenda, vivem na fazenda, não são escravizados, podem sair, entretanto, estão tão endividados que não saem. Esse foi o sistema que os brancos criaram após a abolição. Eles trabalham e vivem na mesma fazenda, podem sair, estão autorizados a sair, mas certamente devia ter um sistema de jagunços também, porque os fazendeiros mineiros sempre foram muito violentos. A História não conta isso, mas hoje eu sei o quanto eram violentos. Lendo o subtexto. Não o texto. O subtexto sobre a história das Minas Gerais. Dá pra saber o quanto eram violentos. Mas colonos eram essas pessoas que viviam e trabalhavam na fazenda e ficavam de tal forma endividados, consumiam tudo que o próprio fazendeiro comprava. Desde a roupa, até o açúcar que era produzido na mesma fazenda, por eles. Mas os amigos do meu pai, o Onofre, com a comadre cujo nome eu não consigo me lembrar, mas o apelido dela era Tutuca. O nome dele era Onofre e o nome dela era Tutuca. Eles tinham vários filhos, alguns da minha geração, da minha idade; alguns da idade dos meus irmãos mais velhos. E esse compadrio, pelo que eu sei, eles trouxeram lá de Boa Esperança. Migraram juntos. Vários casais jovens, com muitos filhos, migraram juntos pra esse lugar. Então, eles mantiveram uma relação de proximidade. Talvez fossem até parentes, tipo primo, algo assim. Então, tinha o Gabriel e agora não consigo me lembrar o nome dela, que era um casal... tinha o Gabriel, que era um mestiço de pele clara, mas eu acho que também era da mesma turma, era tratado como se preto fosse, a Rosa e a Tchana. Essas mulheres. Umas mulheres pretas muito bonitas, muito fortes. E muito amigas da minha mãe. Em férias escolares nós íamos pra casa deles. Tomávamos um ônibus na cidade e ficávamos uma semana, às vezes. E era muito especial porque podia brincar no pasto, correr, ir no córrego sozinhos, subir na mangueira, porque geralmente era em uma época que tinha bastante manga. Manga era a fruta do tempo. A manga era uma fruta de dezembro, janeiro. Então, um dia específico, as duas irmãs brigaram, a Rosa e a Tchana. E elas foram brigando até cair dentro do córrego. Então, alguma coisa lá aconteceu, meu pai intercedeu, minha mãe intercedeu, tal, que eram esses compadres assim bastante respeitados, mas as duas se pegaram. Isso é uma coisa que ficou muito forte na minha memória. Daquelas duas mulheres muito fortes, muito altas, falando muito alto, brigando e que se pegaram de pau as duas e foram brigando até o córrego. Isso ficou bastante na minha memória, bastante tempo, mas elas eram muito amáveis conosco, nos recebiam muito bem, nos acomodavam em uma casa bem simples, bem pequena, com esses meninos. Um deles que eu ainda me lembro o nome é Donizete. Essa família, depois, ganhou na loteria e foi embora pra algum lugar que a gente não sabe. Eu não tenho memória.
P/1 – E ganhou na loteria mesmo ou uma expressão? (risos).
R – Não. É um fato. É a única família que eu conheço na vida que ganhou na loteria. Uma família, lá, de amigos dos meus pais. E eles foram embora. Me lembro disso, nós ainda morávamos lá. Ainda na minha infância. Antes de 71, que é antes de virmos prá cá.
P/1 – Eu já estava vindo pra cá, mas eu queria saber se tem alguma coisa mais que você quer contar?
R – Não. Esse é um fato que eu tenho de memória. Mas tem um outro fato que foi muito interessante e me influenciou muito, que foi a participação do meu irmão, que morreu em 2004 em um festival de música. E que nós ouvíamos pelo rádio. O festival era transmitido pelo rádio. Eu era pequeno, não podia ir, meus próprios pais acho que não foram, talvez meu pai e minha mãe tenham ido, mas meus irmãos mais velhos ficamos até tarde da noite pra ouvi-lo no rádio. O festival era transmitido pelo rádio. Mais tarde eu soube que, nas cidades do interior, havia festivais da canção. Na mesma época que tinha o Festival da Record aqui, se reproduzia no interior, pelos interiores, festivais de canção. E o meu irmão participou com uma música e um grupo de amigos dele, que eram uns brancos cabeludos, meio hippies, assim, meu irmão também era meio hippie e ele teve uma boa performance, ganhou uns troféus, pá e nós aprendemos a canção porque ele cantava lá com a gente e nos ensinava. E isso foi uma coisa muito impressionante, que marcou muito pra minha família e mesmo pra mim. Deve ter sido 68. Ou 9. Não sei. Deve ter sido 69.
P/2 – Da escola tem alguma lembrança, ainda lá? Antes de vir pra cá. Algum professor, professora, colega? Alguma coisa que viveu na escola, que lembre?
R – Sim. Bom, eu estudava em uma escola, em um bairro que ficava perto da zona de meretrício, da prostituição. E estudei lá de primeira à quarta série. E tinha, basicamente, quatro amigos que eu tenho memória: a Célia Zaghi Borges, que era uma menina cujos pais eram proprietários de uma padaria e ela levava pão e dividia conosco. Uma menina que era estrábica e gorda, então ela era considerada feia por conta disso, a Célia Zaghi. E que é minha amiga até hoje, digamos assim. O Flávio, que se tornou um bolsonarista abominável e me mandava coisas do Bolsonaro pelo zap, cuja família era de uma cafetina. A mãe dele tinha um bordel que, na adolescência, eu frequentava, ajudava no bar, ia com ele, conversava com as prostitutas. O sobrenome do Flávio eu não me lembro. Um menino chamado Antônio Carlos, que era efeminado e era discriminado porque era efeminado. E uma menina bem preta chamada Edna. Eu, hoje, olhando pra trás, acho que nós éramos colocados juntos porque eu era preto e filho de lavadeira. A Edna era preta e pobre. Os outros eram filhos de prostituta. O menino porque era efeminado. Então, talvez, os professores nos colocassem pra conviver como aqueles que não devem ficar muito com a turma. Exceto em uma ocasião específica, que a professora fez um teste com todos os alunos da sala, pra ver quem tinha habilidades artísticas, algo assim. E ela escolheu a mim e a essa menina chamada Edna pra representar a escola em festival de música e eu devia estar na terceira série, por aí. Devíamos estar na terceira série em uma escola chamada Abraham Lincoln. E fomos representar a escola nesse festival, cantando uma música que mais tarde eu fui descobrir que era do Rolando Boldrin. Foi uma experiência muito marcante porque ela mandou, a Professora Lurdes, fazer uma roupa especial pra nós dois e nos vestiu e convidou dois músicos adultos, um senhor que tocava violão e outro que tocava violino, que nos acompanharam nesse festival, sei lá, algo assim, que foi no cinema da cidade. Isso foi muito marcante pra mim. Algo como despertou em mim... eu já tinha outros estímulos: a minha família era muito musical, meu pai tocava, minha mãe cantava, meu irmão mais velho compunha, tocava violão, esse um outro um pouco abaixo compunha também, fazia canções próprias, tocava na igreja, tocava, enfim, em festas, esse tipo de coisa. Eu tinha bastante estímulo musical. Mas esse evento conectou em mim uma outra disposição, digamos assim.
P/2 – Depois disso você pensa que saiu daquele círculo marginal (risos) e foi mais bem integrado...
R – Na escola?
P/2 – Você falou que acha que a professora deixou essas cinco pessoas porque tinham alguma coisa que parecia...
R – É uma análise posterior.
P/2 – Vocês deram um up grade?
R – Não, eu não posso te dizer, não sei. Não tenho essa memória. Mas o que eu tenho é uma análise que é feita a posterior, de que nós éramos confinados porque não éramos totalmente adequados para aquela escola, digamos. Mas pode ser projeção, pode ser um exagero.
P/1 – Você lembra de uma cena que você chegou... qual foi a primeira vez que você falou: “Nossa, isso é racismo”, você sentiu que você estava passando por situações racistas?
R – Ah, não tem um específico, mas nós recebíamos um treinamento em casa pra identificar. Nós sabíamos que éramos negros e que podíamos ser destratados por conta disso. Isso meus pais falavam. Meus irmãos falavam. Nos treinavam pra identificar. Nem sempre nos treinavam pra enfrentar, pra confrontar.
P/2 – Para aceitar mais bem?
R – Às vezes mais pra aceitar.
P/2 – Era uma forma também de evitar o sofrimento? Ou era uma forma de aumenta-lo?
R – Então, a intenção pode ser evitar, né? Porque, se você tem um sistema de domínio e ele é vigente, quando você, sozinho, vai confrontá-lo, você vai ser dizimado, deletado, impedido. Sozinho, digamos. Talvez fruto de uma experiência dos mais velhos, digamos. Ou mesmo um condicionamento psicossocial que o racismo instituiu ao longo do tempo.
P/1 – Como que foi sua vinda?
R – Meu pai tinha, ao sair da construção da igreja, ele veio pra São Paulo e começou a trabalhar nas obras do Metrô. E aí, em um certo tempo, minha mãe, desgostosa dessas idas e vindas dele e de ficar longe e tal, ela o força a nos trazer pra São Paulo. Viviam em São Paulo a minha irmã mais velha, que ia em casa todo final de ano, a Regina, que ainda é viva e mora no Embu e era empregada doméstica eu acho que na região do Pacaembu e o meu pai. Aí minha mãe decide vir. A casa que morávamos lá era da minha irmã e então ela vendeu, deu uma parte do dinheiro para o meu pai, para a minha mãe, pra gente sobreviver aqui um tempo e ela mesma se ocupou de arranjar uma casa pra gente morar lá nos confins do Jardim Miriam e nós fomos pra essa casa, mas era uma casa muito apertada, muito pequena, de dois cômodos, só. E nem as coisas que a minha mãe tinha de mobília couberam nesse espaço. Boa parte dos móveis ficou pra fora. Nós morávamos lá em uma casa bem modesta, como eu disse, de uns cinco cômodos. Mas que era bem mobiliada. Nós tínhamos camas individuais, enfim, uma vida relativamente confortável. Pobre, mas em São Paulo eu descobri que ser pobre em São Paulo era como se fôssemos ricos lá. Porque São Paulo nos impôs uma condição muito mais pobre e nós fomos morar em um perímetro assim que tinha a minha rua, um córrego e, do lado de lá do córrego, favelas de madeira, mesmo. Casas de madeira. Casas de madeirite, de restos de construção. E aquilo me deixou bastante chocado. Eu fiquei muito chocado. Eu não gostei de São Paulo. Nós viemos em dezembro e eles despacharam os móveis, eu acho, que de caminhão e nós viemos de trem, baldeamos em Franca e descemos na Luz e, na Luz, foi uma visão ao mesmo tempo mágica, né, louca, um monte de prédios. Na minha cidade só tinha um prédio que podia ser visto de qualquer ponto da cidade. (risos) E aí a gente desce no centro de São Paulo, com aquele puta barulho, aquele movimento, descemos no trem e fomos pra esse lugar, nos confins do Jardim Miriam. Porque minha irmã havia falado com uma senhora, que também era originária da minha cidade e vivia nesse bairro. Ela morava do lado da nossa casa e ela era proprietária dessa casinha pra onde nós mudamos. Nós ficamos lá acho que uns dois meses e depois fomos para um outro lugar na mesma região. Aí não mais Vila Santa Catarina, Cidade Ademar, nessa casa que eu descrevi, que era uma casa de uns três cômodos, geminada. Do lado da nossa casa era uma família de pretos também, depois era um casal sem filhos, paranaenses e depois era uma família de gente do Paraná bem brancos, da família da Sônia... não, Laudiceia. E o pai era mecânico e uma mulher jovem bem bonita e que tinha também uma renca de filhos. Eu acho que eles eram paranaenses. Chamava-se Rua das Laranjeiras. As ruas desse lugar tinham nome de frutas: Rua das Amoreiras, das Ameixeiras, das Laranjeiras. Na Vila Santa Catarina. Do lado de cima era uma família de brancos, um homem austríaco e uma mulher provavelmente alemã, que eram os Kohlschreiber, que tinham quatro filhos e um deles se tornou muito meu amigo porque jogava muita bola, o Ernesto e queria que eu torcesse para o Palmeiras, ele era palmeirense e, no fundo da casa deles moravam uns baianos que tinham vários filhos e um deles é meu amigo até hoje, chamado Gerson. E a gente jogava futebol na quadra do outro lado, que tinha um espaço, resto de construção, uma coisa assim. E a gente jogava bola ali. Nesse lugar eu fui me adaptando. Fui para uma escola que era a um quarteirão de distância. Não, dois quarteirões. E eles estavam construindo um conjunto de sobradinhos geminados, pra onde se mudou também uma família de cariocas brancos, mas que tinham um filho preto, um menino preto, chamado Paulinho, que era um filho adotivo. Era o Wolf, que jogava bola com a gente também, mas ele era ruim, bem ruim. Mas gostava de futebol. Coitado, ele era discriminado por nós.
P/1 – O que você fazia, assim, quando você chegou, que você estava nesse lugar? Como era o seu cotidiano?
R – Basicamente durante a semana era escola de manhã, à tarde um afazer doméstico, alguma coisa assim, pra ajudar na casa, ajudava com minha irmã que nasceu aqui, a Ione, que é a mais nova e depois, no fim da tarde, jogava futebol na rua, que era asfaltada, a rua do lado. A minha não era, mas a rua do lado era. Jogávamos futebol nesse gramado que tinha em frente, jogávamos dama, dominó e ficávamos por ali à tarde, até à noite. Uma certa hora tínhamos que entrar, tomar banho, jantar e dormir, pra ir na escola no dia seguinte. Às vezes, no final de semana... ah, lá na Vila Santa Catarina foi muito importante porque eu descobri os blacks, que eram os moleques da favela que andavam de calça boca de sino, com camisa colorida, com cabelo grande e falavam gíria e desfilavam na rua. Ninguém botava banca com eles. Os blacks. Já eram esses caras.
P/1 – Eles eram mais velhos?
R – Mais velhos, é.
P/1 – E como foi pra você encontrar com eles? Deve ter mudado.
R – Foi fascinante, né, mano? É outra coisa. Diferente. Minas, Passos é província, entendeu? Os brancos têm prioridade até pra andar na calçada, né, está ligado como era a tradição?
P/1 – Não. Como que era?
R – A tradição é: se tem um branco vindo na calçada, você desce da calçada para o branco passar.
P/1 – Era assim?
R – É a tradição. A tradição do racismo. Até tinha uma coisa de orgulho no ambiente familiar, na igreja, de ser preto e tal. Mas é diferente de ser malaco, né? É diferente de ter um lance ideológico. Esses caras, hoje, assim, projetando na memória, já tinha um lance ideológico, de preto com preto, de baile de preto, que até os caras que eram mais claros queriam se passar por pretos. Até os alemães, filhos da Dona Cristina, queriam namorar com as meninas pretas, porque tinha um peso, já, entendeu?
P/1 – E você também? Foi aí que você se...
R – Ah, sem dúvida. Não, não foi aí. É uma construção. Tinha esse ambiente familiar que já era propício, digamos assim. Ser negro era uma condição. Já estava posto. Já era motivo de conversa. Racismo era motivo de conversa. Tudo isso era motivo de conversa. De canção. De experiência. De condensar uma certa ideia pras crianças também entenderem. Mas lá tinha uma coisa do baile black no fundo da casa. Lá em Minas a gente não sabia que criança, adolescente, podia dançar colado. Ou mesmo dançar solto. Isso não era pra criança, lá em Minas. Não tinha essa possibilidade. Nas festas não tinha dança, lá em Minas. Quando tinha dança, não era pra criança, entende? Mas aqui, na primeira festa que teve na escola, a professora pediu pra gente levar comida, bebida, nãnãnã... bebida assim: refrigerantes, Q-Suco, química com pozinho... e colocou música na vitrolinha e nós pudemos dançar. Eu devia ter 11 anos. Dançar, sentir uma menina colada no meu corpo. Essa experiência também é maravilhosa.
P/1 – Qual foi seu primeiro amor?
R – Amor eu não sei, mas o interesse era uma menina, eu acho, que árabe porque ela era bem morena, tinha bastante pelo e tinha um nome árabe, mas eu não me lembro. Luciana chamava-se e morava na outra rua. Interesse, mas não era amor. Era interesse. Fascínio por uma figura feminina, uma professora japonesa pequenininha chamada Helena, que era professora de História. Ah, japonês não tinha na paisagem também. Essa descoberta da diversidade humana... em Minas ou você é preto ou você é branco. E os mestiços podem escolher onde querem ficar.
P/1 – Nem indígena você teve contato?
R – Tinha essas pessoas de traços indígenas, mas não era muito nítido. Não, talvez fosse. Esse senhor, que era o seu Nico, pai do Ronaldinho e do coisa, eu acho que meus pais falavam dele como índio. Ou como caboclo. Algo assim. Um caboclo casado com uma mulher preta. Eu acho que os meus pais falavam dele como caboclo. Mas não como índio. A figura do índio só aparecia nos livrinhos, né? Nos livrinhos de História do Brasil, recebendo a primeira missa, os brancos chegando, alguma coisa assim, né? Não tinha.
P/1 – Você, no caso do amor, foi esse fascínio por essa...
R - ... por essa professora, mas era um fascínio, uma coisa: “Como essa mulher é inteligente! Como ela é bonita!” E ela era jovem, era colorida, diferente dos outros professores. Provavelmente tivesse alguma proximidade e também eu acho que pelo tema, que era História, que ela começa com tomada de Granada, sei lá, uma coisa assim, essa professora. Professora Helena.
P/1 – Eu já queria entrar na escola, mas queria perguntar se você lembra do seu primeiro beijo, como foi?
R – Lembro. Foi em um desses bailes blacks, depois. Eu já tinha me mudado desse lugar pra um outro, para o Parque Santo Antônio e eu fui em uma festa com esse meu amigo, o Gerson. E depois que acabou, ele já era maior, já tinha vários namoricos e tal, mas ele e a menina que estava com ele arranjaram uma outra garota pra eu ficar. Devíamos ter uns 12, 13 anos, mais ou menos. E essa foi a primeira vez que eu beijei uma menina. Não, eu acho que eu beijei antes. Mas eu não gostei porque ela tinha gosto de feijão. E eu fiquei com uma impressão muito ruim de que: “Puts, falam do beijo e parece que é tão gostoso, né, para os adultos, mas é só saliva de feijão? É ruim, não é bom. Não é tão agradável” (risos). Mas com essa outra menina eu acho que ali já rolou um certo erotismo. Eu acho. Eu tenho memória disso. Porque aí já é posterior a essas dançadinhas na escola, sacou? Eu já devia ter uns 13. Aí, disso, eu fui, de fato, namorar com uma menina chamada Arlete.
P/1 – Que era de onde?
R – Que era do bairro do Parque Santo Antônio, pra onde eu me mudei.
P/1 – Você mudou para o Parque Santo Antônio?
R – Eu me mudei para o Parque Santo Antônio. E fiquei no Parque Santo Antônio até 18 anos.
P/1 – E como que era o Parque Santo Antônio, espacialmente, nessa época?
R – Eu morava no Parque, estudava em uma escola no Brooklin. Então, durante a semana toda eu ia pra escola, né, ficava, às vezes, quase o dia todo lá porque a escola também tinha futebol, tinha música, tinha várias coisas e o Parque era um lugar bem pobre, bem pobre mesmo. A gente ia até o Vaz de Lima, o ônibus não subia até o Parque. Ou até a Chácara Santana e acabava de chegar a pé. E subíamos o morro. Quando estava chuva era terrível porque tinha muita lama, enfim. Tinha que ficar evitando passar na lama também. Pra tomar o ônibus tinha que evitar passar na lama. E meus pais trabalhavam muito, a gente via raramente a minha mãe e meu pai, mas lá tiveram os amigos que foi muito importante, que eram meninos também assim, filhos de operários, o pai de um deles trabalhava na Sabesp: o Carlos, o Marcos e a Cristina. O Estanislau, que era filho de um racista filho da puta, seu Estanislau, era neto desse seu Estanilau e da Dona Angelina. Ele vivia com esses avós. Ambos eram bem racistas. O Beto – e nos discriminavam bastante e nos tratavam mal quando o Nenê não estava lá e a gente chegava pra chama-lo, eles nos xingavam e tal – Falconi, que o pai era um italiano velho, com sotaque ainda de italiano e a mãe era uma mulher preta, da pele clara, uma mulher muito bonita e muito interessante, assim, conversadeira, alegre, mas meio de altos e baixos. Ela era bem brava e batia nele. Na nossa frente, às vezes. A mãe do Beto Falconi.
P/1 – Isso era o quê? Anos 70, né?
R – Sim. Eu cheguei em 71, mudei para o Parque em 74, onde eu conheci essas pessoas. Ah, mas lá no Parque foi interessante porque a Dona Maria era uma católica meio fervorosa, mas ao mesmo tempo ela era ligada ao movimento social e ela nos levou para o movimento católico. E um padre lá, um franciscano que, coincidentemente, era também meu professor de História, começou a nos mobilizar pra participar de atividades da comunidade católica, mas de movimento de moradia, contra a carestia, todas essas coisas. Lá foi o segundo contato com arte, com música e com teatro.
P/1 – Então conta mais como é que foi.
R – O padre fazia atividades culturais na igreja e ele levou dois grupos: o Galo de Briga e o União e Olho Vivo. Eu não sei de qual dos dois era uma peça a partir das canções do Adoniran. Muito bonita. Foi muito chocante pra gente ver, né, uma comunidade bem pobre, periférica, bairro violento pra caramba, com muita morte, com muita violência mesmo. Não era um pé de pato ainda. Os pés de pato começaram a atuar depois de 77, quando eu fui pra Minas. Mas já tinha muita morte.
P/1 – Você lembra? As pessoas que você convivia, algumas morriam?
R – Muitas.
P/1 – Muitas?
R – Muitas. Mas morreram mais meus amigos no período que eu estava em Minas. Sabão de Coco, Zé Doido, Nego Dé, vários morreram. Muitos morreram. E a gente só foi tomar consciência de que aquilo era um fenômeno global brasileiro mais tarde. Parecia meio normal. “Ah, estava com maconha, fez um pequeno roubo, nãnãnã” e os caras que matavam eram nossos conhecidos também.
P/1 – Não era polícia?
R – Não. Pés de pato, né, mano? Contratados pelos comerciantezinhos do bairro. O cara que jogava bola com a gente, o Garrincha, carinha branquinho, paranaense das pernas tortas.
P/1 – Ele contratava?
R – Esse cara virou matador. Depois que eu voltei de Minas eu apenas soube que, entre os amigos nossos que morreram, foi ele que matou. Esse Garrincha. Mas ele jogava bola com a gente, até então.
P/1 – E depois continuou jogando?
R – Não. Depois eu não sei. Quando eu voltei de Minas, eu não voltei para o mesmo tipo de vida.
P/1 – Mas como chegava a notícia, a primeira, você lembra?
R – Não. A maior parte desse tempo que amigos meus, mesmo, foram mortos por esse Garrincha e outros matadores da região, eu não estava aqui. Eu estava em Minas. Mas eu sei, pelas histórias todas. Por exemplo: a morte do Marco Caveira, que era um menino muito gente boa, o pai tinha uma imobiliária que alugava e vendia casa, não sei o que, a mãe tinha uma fabriqueta, moleque branco, grandão, super bonito, gente boa, assim, maior ideia. Ele se envolveu com uma galera do tráfico, nãnãnã e os caras o abotoaram. Esse eu não sei se foi o Garrincha, mas nessa ocasião eu estava morando aqui. Isso deve ter sido 81. E como eu sei? Porque, na época, eu comprava roupa, camisetas que a mãe dele fazia, pra revender. Isso, dentro do nosso ambiente, foi um trauma muito grande. Provavelmente, eu não sei, ele devia ser um usuário. Ele não devia ser um traficante, devia ser um usuário. Então, no esquema lá, qualquer pessoa vista fumando no bairro, na quebrada, nãnãnã, merece morrer e pau. Era essa a lógica.
P/2 – Acha que contratavam os comerciantes pra ter paz ou eram também os traficantes?
R – Bom, os pés de pato eram contratados pelos comerciantes. Às vezes uma morte preventiva. “Esse cara, daqui a pouco, vai estar roubando nós, mata”. Eles íam e matavam. Denis, Zé Dimas, todos esses meninos. Até bem pouco tempo eu tinha uma memória disso, né? De todos. Uma certa listagem. Em 96 a gente estava fazendo uma pesquisa sobre rap e hip-hop e eu e o Amailton fomos lá no bairro, conversamos com algumas pessoas, conversamos com a família do Sabão de Coco, por exemplo, que nos deu o depoimento nesse sentido, que era um dos meninos amigos nosso. O Beiçola, que também era um dos meninos que dançavam muito, que eram esses. Mas eram garotada entre 15 e 18 anos, 20 e poucos. Era essa a média de morte. A idade que eles eram mortos. E, de certa forma, nós éramos bem, na gíria periférica, cuzão, né? A gente tinha aquela vidinha, ia no baile, mas nunca em quebrada muito pesada, preferia às vezes um salão ou uma coisa assim, ou casa de família e a maconha estava ali o tempo inteiro, né? Os meninos, pra ir trabalhar, fumavam. A maconha era bem forte, mas a gente mantinha uma certa distância. Eu mesmo só fui fumar maconha, eu acho, que com uns 19 anos. Mas desde uns 13 a gente já convivia com a galera, a maconha era parte da nossa cultura. Pra jogar bola, pra ir dar um rolé, pra ir na festa, fumava-se.
P/1 – Só porque a gente entrou nessa história de morte, bem forte, mas você estava contando como era o segundo contato forte que você teve com a arte, né, nesse que você assistiu uma exposição do Adoniran...
R – Não. Uma peça que era um desses dois grupos, porque eu memorizei o nome dos grupos. Os dois grupos que foram, que eram grupos de jovens brancos, um foi o União e Olho Vivo e o outro foi Galo de Briga. E que foram levados nessa igreja, por esse padre, que era um líder comunitário e pá, que mobilizava bastante as pessoas. Que tinha um movimento contra a carestia, nessa época.
P/1 – Como foi que você entrou, mesmo, de cabeça, nesse mundo mais de visão política e de criação artística? Foi mais tarde ou foi mais ou menos por esse momento?
R – Não. Foi em 81, quando eu voltei de Minas pra cá. Quando eu voltei de Minas...
P/1 – Só fala isso: “Eu fui pra Minas”.
R – Eu fui pra Minas em final de 77, fiquei 78 e 79 lá, estudando, terminando o ensino fundamental e fazendo artesanato, vendendo artesanato na rua, tal. Nessa época, lá em Minas, conheci um senhor chamado João Batista da Silveira, que morava na cidade de São Sebastião do Paraíso e ele me chamou a atenção pra essa coisa de cultura negra que, na visão dele, era folclore. Mas me chamou a atenção em um sentido de que merecia ser registrado, estudado e que as pessoas que faziam isso mereciam ter um reconhecimento social e esse senhor era um comunista, idoso já, aposentado do Banco do Brasil e que era amigo de artistas. Isso foi 78, 79. E ele levou pra casa dele Pedro Ivo, guitarrista que gravou com o Vandré em Londres, das terras do bem virá; levou o próprio Vandré; e um percussionista chamado Lorde Bira. Eu conheci essas pessoas na casa desse senhor. João Batista da Silveira, um poeta. Velho, comunista, folclorista, com várias ideias sobre arte e cultura e preservação e folclore e liberdade e comunismo e ateísmo. (risos). E vários ismos. Várias coisas. E esse cara se tornou meu amigo. Quando eu não estava trabalhando vendendo os artesanatos, eu ficava acomodado na casa dele ouvindo música, trocando ideia, escrevendo, estudando. Ele tinha um acervo maravilhoso de livros e de discos e se tornou muito meu amigo. Então, eu comecei a ir com ele, com um gravadorzinho cassete, pra outras cidades do interior lá de Minas, gravar congados, Moçambiques, folias. Então, quando eu volto pra São Paulo, eu volto um pouco com essa coisa: ouvir canções do Clube da Esquina, me entender ou querer uma certa mineiridade, digamos assim, querer uma coisa com arte, enfim, essas ideias foram se condensando. Aí eu volto pra São Paulo, digamos. De um lado eu tenho o movimento social, que era bastante forte, sindicalistas, movimento de moradias, movimento contra carestia, padres católicos que aí se tornam nossos amigos: o Padre Lourival, o Padre Pegoraro, padres lá da zona sul que estão nessa coisa do movimento. E o Padre Lourival me chama pra ir pra um grupo católico chamado Grupo de União e Consciência Negra e, lá, nesse grupo católico, eu conheço um padre preto chamado Batista. Então, o movimento social, pra mim, ganha essa dimensão a partir de 81, 82. E aí, em 81, eu fui morar também com essa pessoa que é minha companheira até hoje, que é a Ana Cristina. E aí eu saio do Parque, inicialmente volto para o Parque, em 80, vou trabalhar em uma vidraçaria, com o pai de um amigo meu e eu moro na casa dele, mas era um cara violento, ele batia na mulher, aquilo era uma agonia de final de semana, ele era alcóolatra e pá e eu tinha que me envolver com aquilo tudo, era terrível. Aí eu saí de lá e fui pra casa da minha irmã, no Grajaú. E, lá, o marido da minha irmã era ligado a esse Padre Luiz, que era um italiano que coordenava o movimento de moradia, social, lá no Grajaú. E, nessa paróquia do Padre Luiz, a igreja era um centro cultural. Então, tinha os músicos sindicalistas, os ativistas de várias coisas, sei lá. Um líder que era muito importante é um cara chamado Carlos Novaes, que era muito amigo do meu irmão, que era percussionista e metalúrgico. Esse cara organizou grupos musicais, festivais. Tinha uma outra família que era importante lá, que era a família do Benedito Rosa, que se casou com a minha irmã e que a casa dele também agregava transeuntes, gente que estava vindo pra São Paulo e não tinha onde morar, enfim e eu fui morar lá nessa casa também. Seu Raimundo, que era um folião de Reis. Seu Raimundo e a Dona Ana.
P/1 – E você ia nas folias também?
R – Sim, tinha folia lá. Ele reunia a folia, fazia a folia. Tocava viola, cantava. Esse senhor. Mas, além da folia, tinha os grupos de MPB, tinham bandinhas de rock, tinham várias coisas, nessas igrejas.
P/1 – Nas igrejas?
R – Nas igrejas. Os centros culturais da periferia, nesses anos, em 80, eram as igrejas e as escolas. Não havia outros lugares. Em algumas circunstâncias, as praças. Em 83, um cara chamado Mauro Scarpinatti, que hoje é um ambientalista, organizou, junto com um grupo de capoeira chamado Corrente Libertadora, um festival de arte e cultura que era na escola e na praça da Vila São José, lá perto da represa. Esse Mauro Scarpinatti e os Tattos, que depois se tornaram políticos de rapina, eram os que organizavam isso. Tinha, já, uma coisa de discutir meio ambiente, luta por moradia, várias coisas. E eu me liguei a esse grupo Grucon, Grupo de União e Consciência Negra. Hoje entendo que os padres queriam que eu me tornasse seminarista. O Padre Lourival e o Padre Batista queriam me levar pra igreja. Me levaram na cura, me apresentaram Dom Paulo Arns, me apresentaram várias pessoas, me levaram para o Colégio Santa Maria, me seduzindo com uma coisa que depois eu poderia ser professor lá, alguma coisa assim.
P/1 – Só que você não estava nessa pegada?
R – Cara, a minha infância já era muito dentro da igreja presbiteriana! Eu ia sair de uma coisa pra ir pra outra. E eu estava meio descobrindo que eu podia viver sem culpa, né? A fé tem, como base, a culpa, né? Estava lá com as minhas leiturinhas, né, de materialismo dialético, já aventando a possibilidade de que talvez Deus não existisse, né? E vida casta não dá, né? Eu gosto de festa, né?
P/1 – Mas aí as festas continuavam, esses bailes blacks ou essas festas mudaram também?
R – Não. Os bailes blacks foram até a minha ida para Minas. Foram até 78. Até 77, na verdade. Que já não era mais, já tinha uma certa decadência, já não tinha aquele teor de etnicidade, digamos. Já era mais a festa, mesmo.
P/1 – Eu queria perguntar um negócio que é: qual foi seu primeiro trabalho, que você trabalhou, que foi trabalhar, mesmo?
R – Emprego? Foi como auxiliar de alfaiate, quando eu fui para Minas. Meu irmão, que era alfaiate, esse mesmo que era compositor, era alfaiate e fez contato com um amigo dele lá na nossa cidade e pediu pra esse cara me arranjar um emprego. Chamava-se Zé Gordo. E esse Zé Gordo era casado com uma mulher provavelmente de origem espanhola. Não sei se era sobrenome ou se era apelido deles, Pacote. Esse Zé Gordo era casado com a Nega Pacote. E eu fui trabalhar com ele, como auxiliar de alfaiate. Era uma pequena lojinha, uma alfaiataria bem simples, perto da rodoviária. Depois eu saí disso, fui raspar taco, arranjei emprego com um cara que tinha uma máquina de raspar taco e aplicar sinteco. Mas era um trabalho muito pesado, muito sofrido, de segunda a domingo e eu não suportei. Aí eu fui fazer artesanato.
P/1 – Aí que você foi?
R – Fazer artesanato. E comecei a vender o artesanato na cidade, depois no entorno, pedi para o meu pai, que vinha à São Paulo, pra comprar ferramentas pra mim, materiais, miçanguinhas, arame de latão, essas coisas.
P/1 – Onde você vendia? Era São Paulo, mesmo?
R – Não. Vendia lá em Minas. Andava pelas cidades. Que é quando eu conheço esse senhor. Essa foto foi feita por um fotógrafo lá, em um dia em que o próprio seu João Batista está desse lado aqui. Esse meu amigo velho que eu falei, comunista, está desse lado aqui. E esse fotógrafo era amigo dele. E resolveu fazer fotos minhas. Primeiro fez fotos minhas na rua, depois me convidou pra ir no estúdio dele. Então, eu andava onde tinha feira de gado, que era onde ia gente com grana, andava nas feiras de gado de finais de semana. Durante a semana estudava. Em finais de semana eu ia vender artesanato. Às vezes durante a semana. Eu estudava e, em algumas circunstâncias, eu ainda ia ajudar esse cara raspador de taco, que se tornou meu amigo. Mas fui fazendo as duas coisas pra ajudar em casa em um período de muito perrengue. Meu pai estava doente, desempregado e então, a minha família, em parte, nesse período, dependia da minha ajuda. Entre 70, final de 77, 78 e 79. Antes de eu voltar pra São Paulo. Minha família ficou lá e eu vim só.
P/1 – Mas você vivia igual viajeiro, assim?
R – Não. Eu viajava, mesmo, de finais de semana, feriados. Durante a semana eu ficava em casa. Estudava, estava fazendo final do ensino fundamental, tinha repetido dois anos seguidos, repeti a sétima e repeti a oitava.
P/1 – Mas por que você repetia?
R – A sétima, ainda aqui no Oswaldo Aranha, é porque eu estava mais interessado em jogar futebol. Mas pode ser que o racismo tenha atuado também, pra me deixar pra trás. O sistema racial brasileiro produz o fracasso dos negros, pra elaborar o sucesso dos brancos. Então, de formas bastante subjetivas, você oferece menos conteúdo, menos estímulo. Você, não, né? A escola, como um sistema escolar, no professor, no diretor. Então, une mais a criança negra do que a criança branca. Então, eu passei por essa experiência também, mas também eu posso dizer que nessa sétima série, eu repeti porque eu realmente joguei muita bola. A quadra era muito mais atraente que a sala de aula. Exceto as aulas de Artes e as aulas de Música e as aulas da professora Angelina, de Língua Portuguesa, que tinha bastante Literatura e Poética. Depois eu encontrei a professora Angelina em um ato de greve.
P/2 – Tinha professores negros na escola?
R – Não. Nunca tive professor negro. Nunca tive um professor negro. Desde a infância, até o ensino superior. Nunca tive um ou uma professora negra. Embora elas pudessem, até, existir. Na primeira escola, por exemplo, tinha professora negra. Mas nas outras escolas, nenhuma. Até o doutorado, não havia negros professores. Mas ainda falando sobre essa ideia dos blacks, né? Eu não fiz muita distinção, mas uma coisa é ser negro, né? Pra ser negro basta você ser descendente de africano, né? Mas o movimento black é afirmar-se negro, tornar-se negro. Que é um debate sobre identidade. Mas uma identidade que, pra ela se fazer no mundo, precisa cavar espaço. Ela precisa interditar os discursos vindos de fora, né? E criar espaço pra um discurso de dentro. Do nós. Então, ser black, naqueles anos, nos anos 70, a mim parecia ser mais do que negro: “Eu sou negro”. É diferente de “sou negro”. Então, quando víamos os meninos indo para o baile e, nessa época, a gente ia só nos bailes de fundo de quintal e esses estavam indo para o baile de salão. Esses estavam indo paras o baile de estádio. E o baile de estádio e o baile de salão era uma multidããããããão de negros e negras. Onde a beleza estava no corpo, na dança, no movimento, na linguagem, no palavreado, no que falar, em quais palavras usar pra comunicar um estado de espírito. Essa é a diferença. Então, descobrir a negritude é algo além de ser negro. Eu sei de onde eu venho. Eu sei quem são os meus ancestrais. Eu sei qual a minha história. Eu sei qual é a história do meu povo. E tenho direito a um lugar no mundo. Essa é a diferença. Tem uma foto aqui. Como não está em ordem... não são blacks lá da Vila Santa Catarina, são blacks do Parque Santo Antônio. Mas você, ao ver essa foto, é possível, pela foto, perguntar quem são essas pessoas e porque elas estão com essas roupas, esses cabelos e essa postura corporal. Eu não vou ficar pensando no tempo. O máximo que vai acontecer é eu, depois, ter que esperar até às oito da noite, pra ir embora. Aqui é o bairro do Carmelo, que eu falei. Sou eu e meu irmão mais novo, que desapareceu. Ele era usuário de crack e desapareceu em 96. Desapareceu, sumiu na metrópole.
P/2 – Em São Paulo?
R – Sim.
P/2 – E aqui?
R – Aqui são amigos da adolescência, um pouco antes de eu voltar pra Minas. Isso é ser black. Um estar entre negros. Em saber-se negro. E ter a festa, a dança, a música como uma forma de convivência. Estava procurando essa foto aí, propriamente.
P/1 – Muito bacana!
P/2 – Sim.
R – E isso se desdobra em outras formas de ser negro, mas nenhuma é inautêntica. Todas são autênticas. Mesmo quando sob influência de cultura que vem dos Estados Unidos. Porque nós somos negros, mas não somos negros estadunidenses. Nós somos outra coisa. Embora, o que gerou nossa condição global, seja a mesma coisa. O que é essa coisa? É o escravismo e é o tráfico de pessoas africanas. Esse era um sistema mundial, que deu origem ao capitalismo.
P/2 – As origens também podem não estar nos mesmos países?
R – Não estando nos mesmos países, passamos por experiências similares. Essas experiências são, no caso dos nossos ancestrais, terem sido traficados, terem sido utilizados como máquinas de produção pra gerar riqueza. E um terceiro nível ou quarto seria estar dentro de sociedades nas quais nós não podemos participar plenamente. Em que o poder, o prestígio e o mando pertencem aos descendentes dos colonizadores. E isso é naturalizado.
P/2 – Mas os ancestrais dos negros americanos e dos negros brasileiros vêm dos mesmos lugares ou vinham de lugares diferentes? Você sabe?
R – Não. Vêm de toda a África. Toda a África foi tocada pelo tráfico. Exceto o nordeste, da Somália pra cima. Mas ainda assim, da Somália pra cima, eles eram traficados para o Oriente Médio e para o extremo Oriente. O tráfico foi muito extenso no tempo, durou de 1450 até 1910. Ele não poderia ter durado tanto tempo, se ele estivesse extraindo pessoas da mesma região. Eles esgotariam a demografia.
P/1 – Eu queria te perguntar qual foi o momento que você decidiu que você queria ser professor.
R – Dentro do movimento social, lá na zona sul, houve um tempo em que eu fui voluntário de alfabetização de adultos. Talvez 83. Mas antes disso, quando eu terminei o ensino médio, em 82, eu tentei Fuvest pra História, queria ser professor de História. E talvez a ideia de que ser professor era uma boa atividade ou era uma atividade digna, eu tenha descoberto com a professora Helena. E ser um historiador, talvez, ou um professor de História, eu tenha descoberto com ela. Ela chamou a minha atenção pra isso. Mas uma influência boa na escola foi uma professora do ensino médio, que foi minha professora durante três anos no Oswaldo Aranha, que é a mesma escola que eu voltei quando eu voltei de Minas pra cá, chamada Alcione Abramo. Uma sobrinha da Lélia, desses Abramos famosos e ricos, esses italianos judeus, digamos assim, de São Paulo. Abramo, Abraão, Abramovitch, Abraham, Abraã. Abramo.
P/2 – Os nomes, às vezes, são um pouco diferentes, mas tudo bem.
R – Sim. Mas o que eu posso te dizer que Abraão é Abraão até no oeste da África. Até no oeste da África tem descendência de africanos de orientação judaica remota cujo nome é Abrum. Joseph Ki-Zerbo. Essa senhora, no ensino médio, que trouxe um conteúdo a mais. Uma ferramenta de análise. Essa Alcione Abramo. Pra pensar Brasil, negro, História e pra entender uma certa linha de pensamento que ajudou, inclusive, a superar a culpa. A estabelecer um padrão de entendimento do mundo que já não precisa mais da fé ou do cristianismo. Essa foi muito importante. E eu acho que, ali, naquele momento, eu falei: “Puts, ser professor pode ser legal”. E aí eu fiz Fuvest dois anos, não passei, larguei meio mão, aí depois fiz vestibular pra Música e fiz dois anos de Música no ensino superior, instrumento, abandonei, fui fazer um curso técnico na Fundação das Artes, em São Caetano e fiquei dois anos também. Depois fui fazer um curso de folclore no Museu do Folclore, fui fazer um curso de Tecnologia, um curso disso, disso e daquilo e daquilo outro e aí o Mário me disse que, talvez, se eu conseguisse entrar na PUC, poderia conseguir bolsa. Que o Dom Paulo tinha dito que ia fornecer bolsa pra estudantes negros, nãnãnã. Dom Paulo Arns, que era o reitor mor da Pontifícia Universidade Católica. Aquele mesmo Dom Paulo que eu havia conhecido lá, quando os padres queriam me levar pra ser seminarista. Então, nós fomos pra PUC, não só eu, mas um bando de jovens negros, achando que a PUC ia fornecer bolsas e a gente não conseguiu a bolsa ou conseguimos parcialmente, mas aí começou a ter crédito educativo. Então, eu fiz a graduação com crédito educativo. E, quando terminei, no primeiro ano eu consegui uma carga completa de aulas. Mas, na época, 40 horas aula daria o que hoje seria algo em torno de 900 reais. Não pagava nem a mensalidade da PUC naquela circunstância. Mas eu comecei a dar aula. Antes dessa experiência como professor da rede, eu já tinha outras experiências. Em 85 eu tinha ingressado como inspetor de alunos, que é um funcionário subalterno qualquer de escola. E um amigo me convidou pra ir fazer um trabalho de musicalização na Febem, que é uma cadeia pra crianças, né? A sociedade brasileira produziu bastante crianças excluídas e depois precisa prender essas crianças em uma instituição e eles criaram várias instituições municipais, estaduais, federais. Eu fui para uma instituição estadual chamada Febem. E fui trabalhar em uma unidade que era no Tatuapé, com jovens de 14 a 21 anos. E fiquei lá quatro anos, trabalhando.
P/1 – Você fazia o que, lá?
R - Eu entrei como inspetor, que era pra ficar guardando, mas eu estava fazendo faculdade de Música, aí eu comecei a fazer pequenos eventos lá, levar professores pra dar concertos, sei lá (risos), levar amigos pra tocar e comecei a ensinar também alguns jovens. Aí eles me tiraram dessa condição de monitor, inspetor e me colocaram em uma unidade cultural onde eu tinha turmas, mesmo, de iniciação à música, algo assim. Fiquei lá quatro anos. Quando eu saí de lá foi durante o governo Erundina e eu fui trabalhar em uma casa de cultura em Santo Amaro, como assistente de direção. Depois fui pra direção de uma outra casa de cultura, em Interlagos. E aí, lá, eu tinha mais autonomia e tinha bastante movimento cultural próximo, desde punks, anarcopunks, que ocupavam o espaço; os rappers, que faziam encontro regional de cultura de rua, uns meninos que depois fizeram uma banda que fez bastante sucesso, de rap com rock, chamada Pavilhão 5. E fiquei trabalhando nesse lugar até o fim do governo dessa Erundina, que foi o primeiro governo petista aqui em São Paulo. Isso foi até 92. Em 93 eu entrei na universidade católica e comecei a dar aula na rede pública, nas escolas lá dos fundões da zona sul e Itapecerica. E aí fui nisso até 2000.
P/1 – Nossa! Qual foi um episódio que te marcou? Nessa experiência toda, assim, deve ter tido algum momento que você lembra de algum causo, mesmo?
R – Não. Não tenho causos. Era tudo muito cotidiano, né? Mas foi importante pra mim, por exemplo, essa experiência de ativista de educação, de fazer greves contra o governo Mário Covas, de ocupar o Palácio dos Bandeirantes, de tomar bomba, de viver aquela adrenalina de movimento social, mesmo, de confronto de rua. Então, de mobilizar, fazer comando de greve, de fazer arrecadação de grana e de recursos para os professores que estavam passando, enfim, mais necessidade do que a gente. De entender um pouco o funcionamento do sindicato dos professores, de entender um pouco dessa política sindical, né? Então, isso foi muito importante, marcante, mas não é um causo, não tem uma historinha, assim, sintética, que revele nada. E também foi importante, assim, entender a relação com os jovens, né? Eu estava amadurecendo, estava deixando de ser jovem pra ser um homem de 30 anos, né? Então, foi importante entender como é a proximidade e distância, como é a relação com o próprio conhecimento, que pode ser uma aventura, que pode ser fascinante ou pode só sinal, horário, sentar, ouvir, escrever, reproduzir, mas que pode ser com perguntas, né, com música, com dança. A escola, mesmo, como ambiente, não permite muita experiência e é conservadora. Como instituição. Ela é racista, eurocêntrica. Então, tem certos padrões de comportamento que são adequados, tem outros que são inadequados e, quando você vai mudar, o grupo de professores reage, né? Eles não querem mudança porque eles têm uma visão de escola na cabeça, que eles aprenderam, que a escola é tal coisa e têm uma visão de conteúdo, de didática. Então, inovação não é bem vinda na escola. Mas, na última escola, sobretudo, eu conheci uma diretora muito interessante, uma mulher mais velha, experiente, uma mulher curiosa, né, porque a gente envelhece e a gente perde a curiosidade. Você tem explicação pra tudo, né, pra vida, quando você envelhece. Então, encontrar gente madura curiosa é bem raro, né? Mas essa mulher era muito curiosa. Fátima Blanco. Graça Blanco, aliás. Então, ela e um grupo pequeno de professores estavam interessados em experimentar coisas. Então, começamos a experimentar. Fiz uma rádio. A Natura entrou com recurso financeiro. A Natura era do lado dessa escola. BR 116, quilômetro 295. E a Natura estava interessada nessa coisa de responsabilidade social porque ela tinha infiltrado química no lençol freático da região e ela queria, um pouco, limpar sua barra e então ela financiou alguns projetos na escola e eu aproveitei essa ocasião pra inserir um projeto de uma rádio na escola. Então, parte da aula consistia em pesquisar temas, criar sínteses, criar trilhas sonoras, gravar os programas, pra serem veiculados durante o intervalo. Quatro caixas de som no pátio da escola e compraram um gravador digital que, naquela época, era um MD, começo dos anos 2000, era um sistema de gravação digital com disquinho digital e todo equipamento, caixas de som, mesa de som, gravador e pá e pá e pá. Então, a experiência dos alunos consistia nisso: em pegar temas das aulas de História, das aulas de Sociologia e de Filosofia, que eram as minhas disciplinas e transformar em programas de rádio. Rádio, assim, um jeito de dizer, que eram veiculados nas festas ou nos intervalos das aulas. Então, isso foi muito legal. Eu levei amigos meus artistas pra fazerem atividades lá, enfim.
P/1 – Eram jovens de que idade que você estava trabalhando?
R – Eu trabalhava com ensino fundamental e médio, de quinta à oitava e de primeiro á terceiro colegial.
P/1 – E que tipo de conteúdo eles produziram, assim?
R – Ah, eles produziram música para uma campanha de conscientização de destinação do lixo, por exemplo. Então, tinha um processo criativo, mesmo, que não era só adequar conteúdos da aula, né? E fizeram uma peça em torno do lixo. Fizeram uma outra peça em torno de uma experiência de uma das meninas mais velhas que tinha lá, que já tinha filho, que já tinha sido casada. Estavam tomando consciência dessa coisa da negritude. Então, tinha ali um embrião de uma visão sobre mulher negra, né? Então, fizeram uma peça a partir da história de vida dela. Então, a minha função era ajudar a trazer isso pra escrita, para o texto e refletir e pá. Fizemos uma pesquisa social no bairro pra ver a questão de memória, como é que os mais velhos tinham memória do bairro, que era um bairro bastante rural e, nessa época, ele já era um misto de periferia com zona rural, porque lá tem cavalos, vacas, nãnãnã e tem favela, né? É uma região assim, mista, né? Então, saímos pelo bairro pra identificar lideranças e fomos ao lugar que antes de existir a BR 116, era um lugar que as pessoas iam pra se deslocar, que era uma estação ferroviária que foi desativada depois da BR. O Brasil fez essa opção de transporte rodoviário, em detrimento das ferrovias, que eram bastante complexas e ficaram lá os resquícios de uma estação que foi construída nos anos 20. E fomos nesse bairro, entrevistamos os moradores e pá. Tem imagem disso. Fizemos um belo trabalho, unindo imagem, texto. Esse foi um trabalho financiado pela Natura. Depois a Natura financiou a ida desses jovens em espetáculos de teatro em São Paulo. O projeto da rádio foi uns três anos. Esse da Memória da Estação Aldeinha durou um ano. Um dia desses uma das ex-alunas me contatou na internet perguntando se era do meu interesse publicar, se a gente organizasse uma publicação. Essa é a escola e esse local aí. Esses alunos, que agora são professores. Esse é o território da escola. São alunos e professores de lá. Minhas amigas. Uma delas, essa de cabelo curto, é minha amiga até hoje. Chama-se Júlia Pinto. Uma professora de Matemática muito inteligente, de esquerda, porque geralmente os professores de Matemática são todos conservadores. Processo musical. A ida ao teatro. Isso, pra mim, foi muito marcante no sentido de que, quando você tem um campo favorável, um grupo de professores ativos, não burocratizados, o processo de escolarização vira uma outra coisa. Essa aqui chama-se Vilma Rainha. Os indígenas de lá, ela é descendente dos indígenas que moram lá desde o século XVII e eles foram nomeados Rainha no final do século XVIII. Eu achei os documentos. Eu trabalhei no museu. É importante dizer isso. Lá tem um pequeno museu, o museu histórico da cidade. Em 2004 a secretária de cultura me chamou pra dirigir o museu. E eu fui trabalhar nesse museu e foi uma experiência muito boa porque acessei muita documentação. Tudo isso que eu estava te falando sobre os alemães de Santo Amaro é a partir da documentação do Museu de Itapecerica. O memorialista levantou bastante documentação e deixou lá no museu. Ele não produziu análise, não fez muita coisa, mas ele deixou lá muita documentação. Um professor memorialista da cidade. E aí eu usei bastante esse material dele. Produzi um documentariozinho com um mini DVD e uma camerazinha. Bem simplão, com depoimento de memorialistas. Se você procurar Salloma Sallomão Itapecerica, você vai chegar nisso.
P/1 – E tu tem uma história com teatro também, não tem?
R – Tenho. Eu venho fazendo teatro desde 80. Tinha um grupo que tentava misturar teatro com música e dança, chamado Circo Nova Essência, em 80. Com esse meu amigo que tem uma história superinteressante. Ele saiu de São Paulo e foi até Paris a pé.
P/1 – Como é que é?
R – Ele não atravessou o mar, obviamente. Mas ele saiu de São Paulo com um violão nas costas e uma mochila. E foi até o Acre. Não, ele foi até Macapá. E do Macapá ele foi pra Guiana Francesa. Da Guiana Francesa ele foi pra Martinica. Da Martinica ele foi pra França.
P/1 – Mas ele tinha essa meta, de chegar na França ou ele foi...
R – Ele tinha essa meta. E, no meu entendimento, hoje, ele estava atrás de liberdade comportamental. Essa é a análise que eu faço hoje. O que é liberdade comportamental? É você poder ter um comportamento gay e isso não ser um crime. Você não será morto por isso. Eu acho que ele queria viver em segurança. Por isso ele fez essa viagem épica.
P/2 – Aqui não tinha?
R – Imagina! Se hoje não tem! Se hoje se matam os gays impunemente, imagina nos anos 80! Era um nível de intolerância absurdo! Absurdo! Um garoto preto, no interior de Minas Gerais, todo sensível, todo inteligente, todo delicado. Imagina! Era pra ser triturado. Aqui é na casa dos meus pais. Juntei os amigos em 83 e fomos fazer essa viagem onde meus pais estavam vivendo. Eles estavam vivendo em uma roça lá em Minas. E aí foi um fotógrafo entre nós, que é o Pedro Henrique, que fez essas fotos. Isso já com os amigos aqui de São Paulo.
P/2 – Seus pais estão vivos?
R – Não. Minha mãe morreu em 97 e meu pai em 93. Eu fui visitar o Satranga em 2004. Aqui é do trabalho na Febem. E esse é o Satranga de Lima, em 82.
P/2 – Você, dança não fez? Fez teatro, música...
R – Eu fiz dança, mas muito mal, muito pouco. Eu não tive saco. Os dançarinos são militarizados. Eles estão muito voltados pra uma noção de disciplina do corpo e eu sempre dancei por prazer, pra mim era muito difícil essa noção do povo da dança. Pelo menos nos anos 80, que é quando eu tentei fazer dança e não gostei. Aqui é da escola em Minas. Até a quarta série.
P/1 – Conta mais um pouco assim das suas experiências teatrais, do que você fez em teatro.
R – Olha só, eu fiz várias experiências de teatro, no sentido de procurar uma forma de expressão que fosse além do texto musical e poético. Então, em 83, com uma banda que eu tinha, chamada Circo Nova Essência, fiz uma primeira peça que tinha memórias da minha mãe, da relação que ela tinha com as plantas. Cantigas pra mortos. Essas coisas, nos anos 80. Depois, ainda em 80, fui para um outro formato de banda, que era uma banda de jazz rock, onde eu também introduzi esses elementos, né, lá com essa banda chamada Na Corda Banda. Então, foram dois espetáculos que eu montei. Um desses espetáculos chamava-se Raízes Aéreas e era a história de um cara... um pouco sobre influência do Itamar Assumpção, pra ser bem verdade...meio periférico, que uma hora pira e resolve fazer um grande assalto, mas vai sozinho. E se fode. Se ferra. Mas é uma história um pouco clichê, né, mas tinha a ver com a nossa percepção naquela ocasião, de música, da urbanidade, da cidade. Era bastante esse discurso sobre São Paulo, né? A metrópole. Como a metrópole tritura as vidas, como todo mundo vira suco, digamos assim (risos). De uma certa maneira, uma alusão ao cinema. Mas uma experiência bem fundamentada foi uma escrita dramatúrgica na qual eu ganhei um prêmio em 2006. 2004, na verdade. O prêmio Ruth de Souza, de dramaturgia negra. Em 2006. Essa peça é inédita, nunca montei, também não publiquei, eu estou revisando agora pra publicar. Mas eu venho trabalhando com repertório de música nesse sentido de construir uma narrativa que não seja apenas poético musical. Que tenha uma certa imagética, sabe como? Em 2015 eu fiz um texto novo a partir das memórias do Milton Gonçalves, das teses do Milton Santos e das canções do Milton Nascimento. E fizemos só duas apresentações, uma delas no Itaú Cultural, que foi quem financiou parte do projeto no auditório e em 2013 eu e Márcio Castro pegamos um texto inacabado... o Lima Barreto só escreveu duas dramaturgias: uma é completa e a segunda é incompleta, mas essa segunda incompleta ele queria tratar da história dos negros no Brasil. E é um texto belíssimo, que fala um pouco sobre escravidão. No fundo é um épico, uma fuga de escravizados de uma fazenda e eles chegam na beira do mar. E, ao chegar na beira do mar, eles descobrem que não têm barcos. Eles têm uma memória da África. Mas não dá pra voltar pra África. E atrás deles estão os capitães do mato. Então, eles têm o mar, os capitães do mato e um despenhadeiro. Eles têm que escolher um desses três pra enfrentar. É um texto maravilhoso que ele não terminou. Esse texto circulou entre os artistas pretos, mas jamais foi montado. Eu e o Márcio Castro, que é um amigo meu, diretor de teatro e ator, lá de Santo André, pegamos esse texto do Lima Barreto e fizemos uma outra história. Então, é o meta teatro, né, digamos assim, de reconstrução de um texto dramatúrgico. No meu entendimento, na minha interpretação atual, esse é o primeiro texto efetivo de uma dramaturgia negra. Por que é um texto de dramaturgia negra? Porque o seu autor se reivindica como negro e, ao construir uma narrativa, os sujeitos, os protagonistas sobre a qual a história é concebida, também são negros. Então, uma literatura feita por brancos com personagens negros não necessariamente é uma literatura negra. Ou uma dramaturgia negra. Mas uma literatura de negros que se reivindicam como tal e ainda constroem histórias onde os protagonistas são negros, é uma literatura e uma dramaturgia negra. Então, hoje, mesmo diante de doutos historiadores do teatro brasileiro, eu tenho sustentado essa ideia de que, se há um nascedouro da dramaturgia negra no Brasil, ela foi feita por Lima Barreto no final do século XIX, publicada a primeira vez em 1905. Republicada em 1947 na Revista Quilombo, do Teatro Experimental do Negro. Republicada em 1955, pelo Barbosa, que é um cara que estudou a biografia do Lima Barreto. E mencionada recentemente pela Lilia Schwarcz, no livro dela, publicado recentemente, sobre o Lima Barreto.
P/1 – No meio disso tudo, você ainda foi pai, né?
R – Várias vezes.
P/1 – E aí, como foi o nascimento do seu filho? Quando nasceu?
R – Eu tenho uma companheira desde 1981. A gente se conheceu em 80, em um festival de música lá em Itapecerica da Serra e nos tornamos, incialmente, amigos. Eu namorava com a amiga dela. Em 80 eu deixei de namorar com a amiga dela e comecei a namorar com ela. Ela chama-se Ana Cristina. Ela é branca e é descendente desses alemães lá de Santo Amaro, de 1840 e tals. A história é um pouco mais complexa do que isso, né, a biografia dela. Ela é diretora de escola, professora e é com ela... essa fotinho que eu mostrei aí, nessa viagem pra minha casa, ela é essa mulher aqui, jovem, ok? Em final de 80 a gente começou a namorar, em 81 nós fomos morar juntos, a mãe dela reagiu muito mal ao nosso namoro, de forma racista, que é a regra. Mas ela rompeu com a família durante quase uns dez anos, mas no final dos anos 80, começo dos anos 90, nós nos aproximamos da família dela e enfim, a convivência tomou um outro rumo. Mas durante dez anos ela rompeu com a família, de 80 até 90, né? De 1981 até 1990. E nosso primeiro filho nasceu em 85, chama-se Gabriel, agora ele tem 34 anos. Nossa segunda filha nasceu em 95, dez anos depois, no mesmo mês, diferença de um dia. É a Ana Raquel, que tem 24 anos agora, é estudante de História na Unifesp. E é artista, performer, curiosa, inteligente, um pouco arredia, mas é muito amável, muito educada e querida. A terceira filha é a Luiza, faz Geografia na UFMG, está terminando e pretende ser professora. Ambas querem ser professoras. E a mais nova é a Flávia, tem 18 anos, acabou de ingressar na Federal de São Carlos em Pedagogia e também quer ser professora. Essa coisa da escola, de professor, na minha família está bastante presente, meu irmão mais velho é professor de escola técnica, já aposentado, agora está bastante adoentado. Tem uma história de vida bastante complexa. E eu tenho algumas censuras morais sobre ele, então não vale nem muito a pena falar sobre isso. Não é agradável.
P/1 – Deixa eu perguntar...
R – Não, deixa eu só encerrar esse raciocínio. Então, esse meu irmão era professor, abaixo dele o Jansen, que também era músico, aquele das canções lá do final dos anos 60, fez Geografia e também era professor da rede pública municipal, até se aposentar por doença. Ele perdeu os rins e, enfim, ficou dependendo de diálise. Faleceu em 2004, após uma infecção hospitalar, que estava internado no Hospital do Servidor Público Municipal. Jansen, que é uma pessoa que me influenciou muito, assim, filosoficamente, culturalmente, nessa coisa da valorização da negritude, da arte, do pensamento. O Jansen. Abaixo dele tem a Margarida, que é assistente social, é viva e mora aqui em São Paulo. Ah, tem a minha irmã mais velha, que era empregada doméstica e foi faxineira, empregada doméstica, copeira, várias coisas, até bem recentemente, quando se aposentou. Também é viva. Meu irmão Abraão, que estudou só até o ensino fundamental, morreu em 83, foi o primeiro a morrer. Minha irmã, dos Santos, também foi a primeira das mulheres a morrer. E morreu em 2015, creio. Não tenho uma memória exata. A dos Santos morava lá em Minas. Abaixo da dos Santos veio eu, abaixo de mim vem o João, que era artista, assim, do corpo, mas que jamais exerceu nenhuma dessas atividades. Foi cabeleireiro, trabalhou em xerox, teve vários subempregos, até ser adicto de crack e desapareceu na metrópole. A gente crê que ele morreu. Então, não sabemos se ele morreu. Mas eu já procurei por ele várias vezes lá na Cracolândia, que é onde ele foi visto as últimas vezes. Até 2000 e pouco ele ainda foi visto, ele desapareceu em 1996. E abaixo dele tem o Daniel, que é advogado e que vive lá em Minas. E abaixo do Daniel tem outra que é professora, que é a Ione, que também é professora no Paraná e coordena um projeto de, enfim, pós-graduação em Língua e Literatura. Ou seja: nós acreditamos de verdade que a educação podia ser uma plataforma de deslocamento social, mas o que a gente não sabia é que, mesmo na educação, o racismo impera.
P/1 – Como influencia na sua experiência o racismo imperando na educação?
R – Primeiro a quantidade de negros que são sempre menores que a quantidade de brancos. E nós somos, brancos e negros, pari-passu no ponto de vista da demografia. A segunda é a ausência de professores negros em toda uma trajetória escolar. Significa que os negros podem seguir nos estudos até um certo ponto, mas no ensino superior eles são raros. E não pode ser incompetência ou desinteligência ou incapacidade. Deve ter alguma outra explicação, né, para as barreiras que se abatem sobre os negros. E depois experiências. Por exemplo: eu estava fazendo o mestrado já na PUC, terminando matérias da licenciatura e fiz dois trabalhos com a minha amiga Jaqueline, que é uma menina muito bacana, branca, de classe média alta, tal, mas a professora atribuiu duas vezes notas diferentes pra mim e pra ela, pelo mesmo trabalho. E eu fui falar com a professora e a professora já tinha indicadores problemáticos, por exemplo, debate em aula que ela sustentava que a homossexualidade era doença. Então, tinha algo de um indicador de uma visão conservadora, mas o racismo é vivido, pra mim, como experiência, como essa maneira de produzir, por exemplo, insucesso. Quando ela, pelo mesmo trabalho, dá duas notas diferentes pra eu e uma menina branca, ela está produzindo meu fracasso e ao mesmo tempo produzindo o sucesso da Jaqueline. Não é tão simples assim. Entretanto, quando eu fui falar com ela, ela disse: “Salomão, é que você tem um jeito tão, tão, tão, que eu fiquei com a seguinte impressão: a Jaqueline fazia os trabalhos e você colocava o seu nome”. Porra, passei madrugadas com a menina fazendo o trabalho. E a Jaqueline era uma menina muito bacana, mas ao mesmo tempo muito séria. Ela não colocaria meu nome no trabalho se eu não tivesse feito. E detalhe: eu, com muito mais experiência de vida, com muito mais leitura, com muito mais visão de mundo, com muito mais complexidade acadêmica que uma jovem que entrou na faculdade com 18 anos. Àquela altura a Jaqueline devia ter 25. Entende? E é uma professora doutora de Psicologia da Educação da PUC SP. Não é o Zé da Esquina. É uma pessoa imbuída de um poder de decidir quem poderia ir além daquela fase e quem deveria ficar pra trás. Mas quando nós narramos isso para os brancos é como se fosse uma espécie de um lamento ou uma acusação sem fundamento ou algo de natureza tão somente subjetiva. Tem um dado de subjetividade óbvio: o racismo também implica em subjetividade. Implica em subjetividade do racista e implica em subjetividade daquele que é racializado e subjugado com base nos valores de raça, entende? Mas o racismo não é operado por Deus, não tem uma mão divina que opera mecanismos de cerceamento, de discriminação, de impedimento para os negros. O racismo é operado por pessoas concretas e que operam em função da manutenção de um lugar de prestígio, de exclusividade. Então, não tem como você ter uma sociedade racista, se as pessoas não são racistas. Como é possível ter racismo sem racistas? Uma ideologia de formação da nacionalidade, da identidade, criou uma série de mecanismos explicativos de teorias de velar, esconder, de deslegitimar aqueles que lutam contra o racismo e que o denunciam. Pessoas que lutam e denunciam o racismo, geralmente, na nossa sociedade, na sociedade brasileira, são proscritas, são pessoas tidas como inadequadas, como rebeldes, como de comportamentos não muito bons para o convívio. Agora é que as mídias digitais produziram um efeito novo. Então, quando você vê lideranças como Djamila Ribeiro, por exemplo, que é uma jovem pesquisadora negra que tem tratado das questões raciais, circula em alguns espaços midiáticos corporativos convencionais como na Rede Globo, enfim, em alguns GNTs e outros espaços, significa que houve uma certa mudança, né? Porque a apreensão das mídias sociais pelos ativistas produziu algum deslocamento, mas até bem pouco tempo atrás a possibilidade de uma pessoa negra discutir racismo nos meios de comunicação de massa era zero, né? E os negros eram escolhidos a dedo pelas mídias. Normalmente os negros que também dão pouca relevância ao racismo. Esses símbolos, às vezes: um Pelé, né? Enfim, Antônio Pitanga. Que é um ótimo ator, tem uma filha que também é uma ótima atriz, mas recentemente lançou um documentário e o discurso da Camila Pitanga sobre o pai era de que ele era um negro que sabia gingar. Gingar é sabe negociar. Mas negociar o seu espaço individual. Performance individuais nós temos várias, desde o século XVIII. Pessoas negras que conseguiram um bom espaço social individual. A questão é a dominação, a hierarquia. A questão é um dos pilares de organização da sociedade. O racismo como sistema de dominação é um dos pilares dessa sociedade.
P/1 – Curiosidade: você tem mestrado e doutorado. O seu mestrado e doutorado são sobre isso?
R – Não. Se fosse sobre isso eu não teria obtido o título, né? O que você acha?
P/1 - Como é que foi? Você poderia contar?
R – Isso é uma sub narrativa do meu texto, nos lugares específicos. Só pra quem lê. E pra quem é alfabetizado em termos de racialidade consegue entender o que está ali. Mas eu falo sobre música. Sobre cultura musical urbana. Eu falei sobre isso no TCC. Como os grupos de baile se transformaram em gravadoras de música urbana e geraram a cultura do pagode e do rap. É isso que eu e Amailton Magno pesquisamos na graduação e gerou um texto não publicado chamado Mundo Preto Paulistano, sobre cultura hip-hop e gravadoras e entretenimento urbano, gente pobre. Classe C. Diversão e entretenimento de classe C e um mercado de música e entretenimento para essas pessoas em São Paulo. A partir do rap e hip hop. No mestrado operei em um campo, assim, de aproveitar a minha experiência com música, que foi sistematizar os discos que eu mais gostava e entender como é que esses artistas produziram um discurso sobre negritude. Martinho da Vila, Paulinho da Viola, artistas consagrados, digamos assim, do grande mercado, mas também artistas marginalizados pelo mercado: Itamar Assumpção, Lumumba, Jards Macalé, Beto Santos, enfim, artistas de São Paulo, do Rio e Salvador. Chama-se A Polifonia do Protesto Negro, musicalidades e identidades negras no disco, no espetáculo, entretenimento, entre 1970 e 1990. Doutorado foi sobre cultura musical africana no Brasil no século XIX, a partir de gravuras de viajantes. Um professor chamado Kazadi Wa Mukuna veio do Congo e fez o seu mestrado aqui na década de 70. Um belíssimo mestrado que saiu como livro sobre título de Contribuições Bantu à Música Popular Brasileira e ele foi o primeiro cara a usar a iconografia, pintura, gravura, iluminura de viajante pra identificar elementos musicais africanos. Eu tomei aula com esse cara na USP, fiz dois cursos com ele e com dicas e convivências e pá, eu elaborei o projeto de doutorado e reingressei lá na PUC e fiz, de 2000 a 2004, pesquisa no Senegal e em Portugal, porque eu queria acessar os instrumentos musicais africanos que estavam em duas coleções: uma no Museu de Etnologia e Arqueologia de Lisboa, mas também queria encontrar um acervo de instrumentos musicais africanos, que foram recolhidos no final do século XVIII no Brasil por um historiador português e haviam sido remetidos para o Museu Antropológico de Coimbra.
P/1 – Foi a primeira vez que você foi à África?
R – Em 2002.
P/1 – E aí, como é que foi pisar lá? O que você lembra?
R – Ah, tem uma dimensão meio simbólica, meio mística, enfim. A gente foi pra Cabo Verde, de Cabo Verde pra Guiné Bissau, da Guiné Bissau para o Senegal. A nossa descida em Cabo Verde já foi meio mágica, né? Porque a paisagem é muito diferente, né, de tudo que eu já tinha visto. Enfim, eu não conheço o Brasil inteiro, mas nunca tinha visto uma paisagem daquelas, sem árvores, né? Cheia de montanhas e areia, né? É um pouco impressionante. E nós chegamos no final da tarde e então tinha uma luz, uma coisa meio mágica, assim e nós fomos para uma casa noturna, eu e um bando de intelectuais brasileiros, pretos e brancos e lá eu fui abordado por um angolano que me chamou de mangolê. Essa foi muito especial. Ele achou que eu fosse angolano. E me abordou como mangolê. “Mas essa gíria”, eu falei, “é muito impressionante porque não parece ser uma gíria de Angola, mas uma gíria da diáspora, eu acho”, né? Mangar. E angoleiro. Angoleiro é um dos termos que os capoeiristas se chamam, né? Ou são malungos ou são angoleiros. Ele me chamou de mangolê. Eu falei: “O quê?” “Você é mangolê”. Ele chegou e ficamos conversando horas a fio, porque a gente tinha que esperar para o voo que ia sair de madrugada. Então, nem dava tempo de dormir. Nem valia a pena dormir. E aí ficamos nessa casa noturna lá. Isso na Ilha do Sal. Mas pra mim já foi um choque, ao entrar no avião, que era linhas aéreas de Moçambique e ver toda a tripulação negra. Isso, no Brasil, é impossível. Porque, como os brancos dominam tudo, até esses serviços especiais, que são serviços onde a renda é relativamente boa, é feita por brancos. Então, ao entrar no avião e ver toda a equipe da aeronave de negros, já foi um choque. Mas mais interessante foi quando nós descemos em Dakar. Andar pelas ruas. Eu já tinha lido uma memória do Nei Lopes, de uma viagem que ele fez ao Senegal nos anos 60 e é muito interessante. Eu fui me lembrando o tempo inteiro do Nei, das descrições do Nei andando por lá. Ver os senegaleses com aquelas roupas de influência árabe, aqueles bubus, aqueles filás, os chapéus e as roupas compridas, os homens, as mulheres e as ruas. Ao mesmo tempo é uma cidade porque o oeste da África é urbano desde o começo do século M, né, que são cidades e Dakar é fonte, tem na origem um centro do reino Almorávida, de parte do reino, que ia do rio Senegal até o norte da Espanha, o império das duas margens, né? Então, puts, é muita história, né, mano? De ir a uma feira dos artistas andando e vendo os caras trampando, esculpindo, as mulheres vendendo, passar nos mercados, ver o que estava disponível pra venda, né? Tudo é estranhamento.
P/1 – Como era o cheiro?
R – Ah, não tenho memória. Não, não. Da comida, sim. Das primeiras comidas, tal. Tempero maravilhoso, mas tudo muito apimentado. Eu não tenho o hábito de comer pimenta, né? Então, nós tivemos que pedir lá pra eles darem uma diminuída ou fazer alguma comida separada pra nós. E nós fomos pra Ilha de Gorée, que é muito impressionante, que era um entreposto de escravizados. Então, é chocante você ir ao Museu da Escravatura ou da Escravagem. A sensação tem um quê de sobrenatural, né? De místico, né, de falar: “Caralho, meus ancestrais vinham daqui, mano, faziam esse caminho pra atravessar o mar no sentido contrário, fazendo uma viagem que, pra eles, durava dois, três meses, fazer em 15 horas”. E a hora que desci olhar pro chão, né, sentir o chão. Ao mesmo tempo essa percepção, né, de que nada é definitivo, nem mesmo o sofrimento, né? Sacou? Porque as coisas podem mudar. Se a gente quiser, se a gente fizer esse esforço, se a gente se concentrar, arranjar outras pessoas que estejam vibrando na mesma energia, né? Sozinho você não faz nada. Sozinho você se acaba, você pode se explodir sozinho, né? Você pode ser um homem bomba. Pode matar vários outros, mas essa explosão, às vezes, não muda a coisa, a relação.
P/1 – Qual que você acha que foi um livro que marcou muito a sua vida?
R – Não sei. É muito difícil.
P/1 – Tranquilo.
R – É muito difícil. Um livro? É muito difícil. Eu já li muito.
P/1 - De época a época.
R – É. Desde Herman Hesse, aquelas coisas lá, sei lá, Carlos Castañeda, que eram leituras que meu irmão, de certa forma, me induzia porque ele achava que tinha que ter uma reflexão filosófica e que essa reflexão filosófica tinha que passar por uma coisa não europeia, sabe? Americana, assim. Mas também esses livros mais contemplativos, né? Um Sidarta e outras coisas que eram muito próprias do pensamento hippie dos anos 70. Que meu irmão ficava me pentelhando porque ele achava: “Esse argumento está muito fraco, mano, você está reduzindo tudo, tem que ser mais complexo, tem que pensar mais, tem que fritar mais, não pode ficar nesse nível aí, não. Vou te dar mais uma coisa, lê aí O Presente da Águia”, sabe uns lances assim? (risos). Dessas coisas místicas, de antropólogo tentando entender cultura nativa. Quer dizer: um cara de origem espanhola, descendente dos colonizadores, tentando fazer contato, né? No fundo é um pouco isso o Castañeda, né? Quer dizer: operando tudo com uma visão de antropologia e de ciência ocidental, mas tentando, de alguma maneira, entender o que é aquilo, né? Sei lá! Encontro com Homens Notáveis. de Rajneesh, Osho, sei lá. Essas coisas todas, né? E depois de um certo tempo História, Antropologia, Sociologia, poesia. Não sei. Um livro que, pra mim, ainda traz um certo mistério e um desafio de entendimento, mas que me ajudou muito pra elaborar uma escrita acadêmica sem complexo de inferioridade foi O Atlântico Negro, do Paul Gilroy. Quando ele compara Frederick Douglass e Friedrich Nietzsche, quando ele diz que os dois estão falando de liberdade, de individualidade, de individuação, de modernidade, isso é... a primeira vez que eu li eu falei: “Caraca, mano”.
P/1 – Se você, na hora que você fizesse sua passagem...
R – Está querendo me matar, irmão?
P/1 – Não. É uma pergunta, mesmo. E falassem assim: “Você só pode levar uma memória dessa vida”, qual memória você levaria?
R – Nenhuma. Apagar o disco.
P/1 – E como foi contar sua história aqui, um pouco dela?
R – Eu posso te dizer que foi legal, entretanto tem todas essas ressalvas que eu fiz antes de entrar aqui nessa sala. Ou seja: vocês, brancos, precisam compreender que o extrativismo cultural tem que acabar. Vocês precisam descer para o chão, para a terra dessa sociedade, conviver conosco em pé de igualdade, sonhando, desejando que haja justiça, que vocês não podem continuar extraindo tudo, extraindo, extraindo coisas materiais e coisas simbólicas, transformando em produtos caros, em mais poder material, bélico, econômico, mais concentração de riqueza, de poder e de prestígio e não dividir conosco. E eu, quando eu entrei aqui, por um momento eu tentei deixar o confronto e as coisas que eu te falei lá fora. O que eu tinha pra te falar, eu te falei lá fora. E estou falando novamente, pra que você tenha uma memória muito nítida de mim. E que, quando você olhar pra mim, hoje ou no futuro, que você se lembre disso, dos seus privilégios como um jovem branco, de pais ricos, de origem judaica e de judeus brasileiros, que têm sido ricos e fechados sobre suas próprias riquezas.
P/1 – Eu só gostaria que você pode dar toda sua opinião, mas pra você falar da história do meu pai, tem que conhecer um pouco mais.
R – Não, não. Não estou falando especificamente da história do seu pai. Os brancos também têm isso, eles são poucos auditivos e tendem a pessoalizar as críticas políticas que nós, negros, fazemos. Não tem nada a ver com você, pessoa. Estou falando de uma condição social que não é minha. É uma condição do meu povo. Estou falando do seu lugar social, que não é seu. É dos brancos brasileiros. Mesmo aqueles desempoderados também acreditam que esse poder tem que ser mantido. Pra uma relação efetiva e afetiva e talvez hoje seja uma condição de sobrevivência dessa mesma sociedade. Ela não vai se sustentar desse jeito por mais tempo. Essa é a questão. E não tem nenhum toque de pessoalidade. Eu não o conhecia. Você não estava na minha paisagem até hoje. Não tem nenhuma pessoalidade. Nenhuma. Nenhum prejulgamento individual.
P/1 – Tem mais alguma coisa que você quer falar?
R – Olha, quero agradecer a vocês dois, especialmente à Pilar, por me criar essa oportunidade de falar, de pensar, de elaborar sobre a minha trajetória de vida no momento em que eu estou gostando muito de viver. Eu não estou feliz porque as condições gerais da minha sociedade e do mundo não me permitem deixar feliz, não estou feliz, mas eu estou gostando muito de viver, estou gostando muito de me relacionar com as pessoas, estou gostando muito de trabalhar arte e cultura. Tenho um ganho subjetivo enorme no que eu tenho feito. E tenho também um sentimento de extrema positividade diante desse quadro que é negativo em quase todos os aspectos porque nós temos aqui uma condição política de opressão grande, de exacerbação da violência. Cinco pessoas são mortas no Rio de Janeiro desde janeiro desse ano, por dia. É mais do que foi na época mais radical das UPPs, no governo Cabral, que era pra produzir a faxina social pra fazer os eventos da Copa do Mundo e das outras coisas lá, pra ele poder ganhar bastante dinheiro. Mas esse ano foram mortos homens negros a uma base de cinco por dia no Rio de Janeiro. Nós podemos conviver com isso, mas isso vai nos atingir. Então, há essa exacerbação da violência estrutural, do racismo estrutural, da violência de Estado, mas também há um nível de mobilização e de consciência social, étnica, pública, que está sendo engendrado e que vai, no momento certo, evoluir para a luta política.
P/1 – Gratidão.
R – É isso aí. Obrigado!
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