Minha formação: ainda em formação.
Preciso lhe preparar para a história que a Mizaela de 26 anos vai lhe contar. Não será "romântica" ou descreverá o sonho de uma menina que queria ser pedagoga, só será uma vida que caminha para a morte e sabe disso agora. Alguém que não sabia mais o que fazer com o tempo que ainda tinha e está deixando a vida lhe levar. Quero avisar também que, em alguns momentos, as Mizaelas de outras idades falarão, elas vão tentar dizer como cheguei aqui, então, tente escutá-las (já que hoje escutar é o que menos fazemos).
A verdade é que não sei muito sobre o meu nascimento, como vocês devem imaginar, eu não me lembro dele. Mas vou contar o que me contaram e o que tem registrado sobre. Eu nasci no Amazonas, na cidadezinha de Lábrea, localizada às margens do Rio Purus. Sou filha de um filho mais velho que trabalhou muito desde os 12 anos para garantir comida para ele e seus seis irmãos (Meu avô ficou doente de hanseníase, teve uma das pernas amputadas além de vários dedos). Meu pai, Ontoniel, aos 18 anos, resolveu casar para ter a própria vida. Quanto à minha mãe, Franciele, é a filha mais nova de 6 irmãos. Ela viveu com as irmãs mais velhas, sempre cuidando dos sobrinhos em troca de ter comida e teto sobre a cabeça. Casou com meu pai aos 16, para ter uma vida melhor.
Pouco mais de ano depois dos meus pais decidirem se unir, eu nasci. A filha mais velha de (adivinhem só! Sim, sim, sim!) 6 irmãos, 5 dos meus pais e 1 que é filho somente do meu pai. Mas, para não antecipar a ordem cronológica dos acontecimentos, vou trazer a Mizaela dos 2 anos (ou as lembranças dela) para falar.
"Bem, eu brincava com a minha tia que era um pouco maior que eu, tinha uma panelinha igual a que a mamãe fazia feijão, um cordão muito bonito rosa e ela nunca me deixava pegar por muito tempo nos brinquedos dela. E eu ia para uma escola de crianças do meu tamanho, lá tinha um menino que brigou comigo um dia e eu...
Continuar leituraMinha formação: ainda em formação.
Preciso lhe preparar para a história que a Mizaela de 26 anos vai lhe contar. Não será "romântica" ou descreverá o sonho de uma menina que queria ser pedagoga, só será uma vida que caminha para a morte e sabe disso agora. Alguém que não sabia mais o que fazer com o tempo que ainda tinha e está deixando a vida lhe levar. Quero avisar também que, em alguns momentos, as Mizaelas de outras idades falarão, elas vão tentar dizer como cheguei aqui, então, tente escutá-las (já que hoje escutar é o que menos fazemos).
A verdade é que não sei muito sobre o meu nascimento, como vocês devem imaginar, eu não me lembro dele. Mas vou contar o que me contaram e o que tem registrado sobre. Eu nasci no Amazonas, na cidadezinha de Lábrea, localizada às margens do Rio Purus. Sou filha de um filho mais velho que trabalhou muito desde os 12 anos para garantir comida para ele e seus seis irmãos (Meu avô ficou doente de hanseníase, teve uma das pernas amputadas além de vários dedos). Meu pai, Ontoniel, aos 18 anos, resolveu casar para ter a própria vida. Quanto à minha mãe, Franciele, é a filha mais nova de 6 irmãos. Ela viveu com as irmãs mais velhas, sempre cuidando dos sobrinhos em troca de ter comida e teto sobre a cabeça. Casou com meu pai aos 16, para ter uma vida melhor.
Pouco mais de ano depois dos meus pais decidirem se unir, eu nasci. A filha mais velha de (adivinhem só! Sim, sim, sim!) 6 irmãos, 5 dos meus pais e 1 que é filho somente do meu pai. Mas, para não antecipar a ordem cronológica dos acontecimentos, vou trazer a Mizaela dos 2 anos (ou as lembranças dela) para falar.
"Bem, eu brincava com a minha tia que era um pouco maior que eu, tinha uma panelinha igual a que a mamãe fazia feijão, um cordão muito bonito rosa e ela nunca me deixava pegar por muito tempo nos brinquedos dela. E eu ia para uma escola de crianças do meu tamanho, lá tinha um menino que brigou comigo um dia e eu falei tudo para a professora. E no caminho de ir para lá, eu via a casa da minha vó lá do alto".
Vou explicar algumas coisas: Eu tenho uma tia que é 5 anos mais velha que eu. Eu ia à creche quando tinha 2 anos. E, no caminho para a creche, tinha uma rua aterrada que ficava bem mais alta que as outras e dela a gente via as outras abaixo, e uma das ruas mais próximas que conseguia ver era a rua em que a mãe da minha mãe morava.
Eu era muito ligada à família da minha mãe, pois todo fim de semana passávamos os domingos com minhas tias e os filhos delas na casa da minha vó. Lá nós brincávamos, brigávamos, deixávamos nossas mães bravas e ouvíamos o sermão juntos. Eu gostava tanto de estar com meus primos (os que nasceram no mesmo ano que eu: 1995, ou tinham idades próximas a minha) que queria ir estudar na mesma escola que eles, mas eu nasci em julho (dia 08) e eles nos primeiros meses do ano.
De tanto eu insistir, minha mãe tentou e conseguiu me matricular na escola dos meus primos. Fiz a alfabetização (era esse o nome na época) aos 4 anos, já que naquele ano faria 5. E sobre a experiência vou trazer a Mizaela desse tempo (as memórias dela):
"Eu estava muito feliz por poder estudar na escola dos meus primos. Mas quando cheguei lá, as crianças eram, a maioria, maiores que eu. Ficava com vergonha, e, às vezes, medo de falar com elas e com a professora".
"Mas tinha uma coisa de que eu gostava, as musiquinhas que nós cantávamos lá, e a professora era legal, e falava comigo mesmo se eu tivesse com vergonha de falar com ela".
"Um dia, quando eu ia para outra série, nós tivemos uma festa, com fotos, chapéus e uma roupa engraçada (a formatura). Aí, um dia antes desse dia, eu tirei uma foto vestida de juíza, porque eu quero ser juíza para prender os homens que são maus".
No ano seguinte, eu tive um pouco mais de dificuldade para socializar porque não estava na sala de nenhum dos meus primos. Naquele mesmo ano, em julho, nos mudamos para Manaus. Minha mãe estava grávida, e eu estava feliz porque ia ter uma irmã para brincar comigo (já tinha dois irmãos meninos), mas estava com medo da escola nova, de não conhecer ninguém e de não ter nenhuma criança para brincar comigo.
Eu passei o resto daquele ano não gostando dos intervalos, já que sempre passava eles sozinha, sem brincar, só vagando pela escola. Além disso, eu tinha medo de perguntar da professora quando não sabia algo, achava que ela brigaria comigo por não saber. Minha mãe foi chamada na escola porque eu chorava quando não sabia fazer as tarefas, e se me perguntassem o motivo para estar chorando, eu não falava nada, só me encolhia ainda mais na cadeira.
Nos anos que se seguiram mudei de bairro, depois, para um sítio bem longe de Manaus, entre o município de Rio Preto da Eva e Itacoatiara. Fiquei um ano sem estudar e, quando voltei a estudar, fiz a primeira série outra vez (pois meus pais não levaram a minha transferência).
Na nova escola, eu continuei com o velho costume de vagar sozinha pelos arredores. Demorei fazer amigos, ainda assim fiz uma que gostava muito.
Eu ainda queria ser juíza ou promotora de justiça.
Quatro anos depois, nos mudamos para Manaus novamente. Nesse período, eu me fechei ainda mais. A Mizaela desse período (entre 11 e 12 anos) achava muita coisa sobre essas mudanças:
"A gente mudou outra vez, nunca vamos parar em um lugar por muito tempo. Do que adianta fazer amigos? Não vou mais falar com ninguém, não vou mais me apegar a ninguém, vamos embora em pouco tempo mesmo".
Ela não estava errada, mas um ano depois fez uma grande amiga. Elas eram tão parecidas, gostavam das mesmas coisas. Conversavam tanto. Eu achei mesmo que seria uma amiga para vida toda, que não iria embora tão cedo, ou que se fosse não deixaríamos de nos falar (Eu estava errada).
Então, três anos e alguns meses depois, eu estava num barco indo para Porto Velho, de onde pegaríamos (minha família e eu; meus 5 irmãos já tinham nascido e meus pais ainda estavam juntos) um ônibus para o Acre. E é aqui que a Mizaela de 14 ou 15 anos protesta:
"O que vamos fazer no Acre? No fim do mundo, o que tem lá? Vou deixar meus amigos, minha melhor amiga para ir morar perto de tios e avós que nem lembro direito, nem gosto da família do meu pai mesmo, são uns chatos."
Em certos momentos, ela pensou:
"Devia me jogar na frente de um carro, não vão me deixar ficar mesmo que eu implore".
E na hora que ela viu as últimas luzes da cidade, já dentro do barco, navegando no Rio Negro, ela chorou e pensou:
"Como é morrer afogada? Vou ficar aqui nem que seja morta".
Eu tinha princípios que não me permitiram tirar a minha vida. Então, cheguei ao Acre, desolada e triste. Eu odiei tanto esse estado, porque me odiei por ser incapaz de decidir ou de ser ouvida pelos meus pais. Eu passei o que meus pais chamam de "um período de grande tristeza" (hoje sei, foi depressão). Eu odiava tudo e todos; chorava todo dia; não queria fazer o que mais gostava: ir à escola (e gostava não pelas pessoas, mas pelas aulas); e não tinha perspectivas para o futuro; eu só pensava sobre como seria morrer.
Eu fui tentando encontrar um motivo para continuar vivendo e seguir.
Preciso abrir um parêntese aqui para falar algo: talvez você esteja pensando "que menina mimada, ela não queria viver por causa de uma amiga, de uma mudança". Mas a verdade é que havia ali uma menina na adolescência que viveu até aquele momento com muita dificuldade para socializar e se expressar, mas que guardava tanta coisa para si mesma. Eu passei por algumas coisas que me permitiram dialogar com outras meninas e saber que de fato as estatísticas estão erradas, alguns números são maiores do que imaginam. Mas eu guardei esses segredos que seriam capazes de destruir mais de uma família. Guardei também as memórias das humilhações a que minha mãe se submeteu para manter a nossa família unida. Além de todas as chacotas e humilhações que ouvi e me submeti de outras crianças e até adultos. Eu tinha uma revolta tão grande dentro de mim.
Voltando...
Depois desse período, já no ensino médio, no último ano, eu não queria mais ser juíza ou qualquer coisa que precisasse cursar direito. Seria caro ou teria que estudar muito e não tinha mais certeza se queria trabalhar nessa área. Então, fiz um teste diagnóstico que um pessoal que cursava psicologia estava aplicando. Foi quando conheci uma moça que queria se especializar em psicologia criminal, ela aplicou o meu teste. Entre uma pergunta e outra, perguntei por que ela escolheu psicologia, e lembro de pensar que seria algo que eu iria considerar. Eu tentei responder o teste para a área da psicologia (tentei trapacear hahaha ), mas deu algo na área de contabilidade ou administração. Eu considerei a possibilidade, mas sabia que não gostava muito de números ou de liderar, não sabia falar bem para muita gente e ficava nervosa em ter que expor a minha opinião para várias pessoas que mal conhecia.
Fiz o Enem pensando que talvez tentasse administração. Mas me apeguei a uma frase dita pelo meu pai (talvez sem intenção de me fazer sentir mal), que me fez acreditar que eu não era capaz de conseguir passar no que eu quisesse. Passei cinco anos me auto sabotando, fiz quatro Enem, consegui uma bolsa de 50% na Uninorte para administração, mas deixei passar o dia para procurar saber como me matricular.
Nesses cinco anos conheci pessoas incríveis, mulheres maravilhosas que eram fortes dos seus jeitos. Uma me ensinou que precisamos lutar pelo que queremos, a outra me incentivou a estudar e me fez acreditar que eu era inteligente o bastante para cursar o que quisesse.
Nesse meio tempo, meus pais tiveram várias crises graves no casamento (Eu sabia que eles não seriam felizes juntos.) Por isso quis que minha mãe trabalhasse e estudasse. Ela terminou o ensino médio, na modalidade EJA e começou a trabalhar logo depois. Meu pai não gostou, mas foi se acostumando.
No ano em que fiz pela quarta vez o Enem, só queria entrar na Universidade Federal, depois que estivesse lá iria tentar me "transferir" para psicologia (naquele momento queria muito ajudar outras jovens e crianças a superar seus traumas). Então, me inscrevi para Pedagogia.
Em paralelo a isso, meus pais se separaram. Para que tudo ficasse pelo menos sustentável, minha mãe voltou para o Amazonas. Eu sempre fui muito apegada a ela, e ela sempre foi muito apegada aos filhos, mas só pôde levar os mais novos. Eu fiquei de coração partido, mas fiz o que faço de melhor diante dos sentimentos mais fortes e inquietantes: me fiz de forte e mantive contido dentro de mim, a tristeza por ela está indo para longe, a saudade, a revolta pela forma que tudo aquilo (a separação dos meus pais) aconteceu, e o medo de como seria a minha vida sem o apoio da mulher que virou minha amiga, inspiração e fã.
Foi assim que cheguei à Pedagogia, precisando tomar a decisão de ficar com meu pai, com quem não me dava nada bem e cursar uma faculdade que não era a que queria. Na verdade, naquele momento não tinha mais certeza do que queria, só deixei as coisas acontecerem e fui aceitando.
Pensava em mudar de curso no meio do ano (Lembrei-me de um professor do primeiro período que perguntou: vocês escolheram Pedagogia ou ela escolheu vocês? Ele explicou que ela nos escolhia quando entrávamos nesse curso por causa somente da nota de corte). Então, agora vou dizer: “A Pedagogia me escolheu".
Eu iria mudar de curso mesmo, não importava. Mas...
Os professores do primeiro período eram tão humanos, compreensivos, falavam sobre o curso com uma dose de amor de outra realidade, que me fizeram pensar que seria uma boa oportunidade de ingressar no mercado de trabalho.
A ideia de ensinar é meio vaga para mim ainda, contudo, eu quero tentar ajudar alunos a gostarem de aprender, de ler, de perguntar, de buscar respostas. Eu costumava ter muitas perguntas, tentava entender o mundo a partir delas, mas os adultos que conhecia nessa época me davam respostas vagas e me diziam que perguntava demais e isso era chato.
Acho importante não matar essa nossa curiosidade e vontade de aprender que parece nascer na infância e morrer em algum momento durante o nosso processo de formação.
Então quando me pergunto por que vou ser pedagoga, não sei ainda a resposta. Mas me questiono: “por que não pedagoga?"
Essas perguntas me fizeram lembrar de uma conversa que tive com meu irmão de 12 anos, há pouco dias. Ele me perguntou:" Por que você está estudando para ser professora? Você queria ser professora? Você vai mesmo ser professora?
Eu pensei um pouco, e respondi: " Não queria ser professora, queria ser psicóloga, na verdade, professora era a última profissão que eu pensei em ser. Mas vou tentar ser uma boa professora, talvez acabe me saindo melhor do que esperava, ou descubra que não gosto mesmo. Mesmo assim, é um começo, preciso ter um emprego e é isso".
Ele retrucou: "Professora Mizaela? Teu nome não combina com a palavra professora. Eu vi num vídeo que nosso nome tem que combinar com a nossa profissão. Teu nome combina com... Doutora Mizaela? Advogada Mizaela? Psicóloga Mizaela? Acho que uma dessas coisas !"
Eu sorri e depois falei: "Mas professora Mizaela não soa tão estranho assim".
Sempre achei a docência um desafio, e acho incrível quando me deparo com professores dedicados ao que fazem. Porque me parece nobre auxiliar na formação de outra pessoa, mas do que isso, acho muito interessante aprender e ensinar como o aluno pode aprender, ajudar nesse processo. Parece trabalhoso, cansativo (devo acrescentar desvalorizado no nosso país,) mas ainda assim é notável o esforço que muitos fazem para ser um bom professor.
Logo, vou me esforçar para fazer o melhor que puder como professora. Ainda que meu nome não combine com a minha profissão (segundo meu irmão), eu posso acabar percebendo que toda a minha capacidade para me empenhar e melhorar nas coisas que faço serão minhas aliadas nessa profissão.
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