Projeto Museu Aberto
Depoimento de Tiana Vilar Lins
Entrevistado por Marco Aguimans e Gustavo Sampaio
São Paulo, 16/05/2007
Realização: Instituto Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV005_Tiana Vilar Lins
Transcrito por Augusto César Mauricio Borges
Revisado por Júnior César Oliveira Farias
P/...Continuar leitura
Projeto Museu Aberto
Depoimento de Tiana Vilar Lins
Entrevistado por Marco Aguimans e Gustavo Sampaio
São Paulo, 16/05/2007
Realização: Instituto Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV005_Tiana Vilar Lins
Transcrito por Augusto César Mauricio Borges
Revisado por Júnior César Oliveira Farias
P/1- Boa tarde Tiana.
R- Boa tarde.
P/1- Primeiro eu gostaria que você falasse seu nome, local e data de nascimento.
R- O meu nome é Tiana Vilar Lins, nasci em Salvador, Bahia, em 1978, 21 de julho.
P/1- A gente vai começar falando um pouquinho sobre a sua família. Eu gostaria que você apresentasse os seus pais. Seu pai e sua mãe, nome, por favor.
R- O nome de meu pai é Eugenio D’ávila Lins. Ele nasceu numa fazenda na divisa entre Bahia e Sergipe. Ele é arquiteto, mas ele não trabalha com elaboração de projetos, ele trabalha com restauração nessa área de patrimônio histórico. Ele trabalha hoje no IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) da Bahia e é professor na Universidade Federal. A minha mãe é administradora de empresas, mas logo que se formou ela entrou numa fundação empresarial chamada Fundação Odebrecht. Então ela hoje atua em fundações, empresas que tem um investimento social privado. O nome dela é Neila Coelho Vilar Lins. Ela nasceu em Salvador e tem descendência de um lado portuguesa e de outro lado bem baiana.
P/1- E o seu pai tem descendência de?
R- A família de meu pai - tanto do lado de minha avó quanto do meu avô - vieram para o Brasil há muito, muito tempo atrás. Tem uma descendência ali de espanhóis - até da cidade de D’avila - que é o nome do sobrenome de meu pai e que é dessa cidade na Espanha -, mas eles vieram para o Brasil há muito, muito tempo atrás.
P/1- Você teve contatos com os seus avós?
R- A minha avó ainda é viva, essa minha avó paterna. O meu avô morreu quando eu era muito jovem. Então eu não tive muito contato, mas era uma família de muitas fazendas ali pelo interior, norte da Bahia divisa com Sergipe, e eu tenho alguns tataravôs que eram condes e condessas há muito, muito tempo atrás, enfim. Então eles vieram pra cá há muito tempo atrás.
P/1- Você tem irmãos e irmã? Pode falar deles um pouquinho?
R- Eu tenho duas irmãs. Eu sou a irmã mais velha. A do meio se chama Maíra e a mais nova se chama Emanuela.
P/1- Fale sobre elas, por favor.
R- Maíra é psicóloga e morou um tempo comigo aqui em São Paulo, se formou na PUC (Pontifica Universidade Católica), mas ela nunca exerceu a profissão. Ela hoje trabalha com produção cultural em algumas organizações também de Salvador e voltou pra Bahia. A minha irmã mais nova, Emanuela, se formou em Direito. Hoje ela está fazendo mestrado na área de direito na Federal da Bahia e ela nunca quis vir morar aqui em São Paulo. Então ela é a que sempre morou com os mus pais e ainda está morando na casa deles.
P/1- Fale um pouquinho da sua infância, do bairro onde você morava...
R- Logo que eu nasci eu morei perto do Farol da Barra que é um lugar super bonito que tem em Salvador, mas eu não me lembro, porque eu saí de lá quando eu tinha uns dois anos de idade. E logo depois a gente foi morar num apartamento que era um apartamento de três andares que tinha sido construído pelo meu avô paterno e que a família sempre morou. Cada andar era um filho, enfim, e aí a gente acabou se mudando. Também perto da Federação, perto de onde o meu pai trabalhava que é na Faculdade Federal e a gente viveu lá até os 13 anos. Então tanto o nosso vizinho de cima quanto o de baixo eram membros da família. Não a família tão próxima, eram primos de terceiro grau, mas foi uma infância muito gostosa esse lugar que a gente morava. Fora isso a gente passava sempre as férias na praia ou na casa de meus avós maternos ou na casa de minha avó paterna. Então eram praticamente quatro meses na Ilha de Itaparica ou no Sítio do Conde que é no norte de Salvador. Essa presença dos meus avós maternos, principalmente, foi muito forte durante a minha infância porque o meu pai e a minha mãe sempre trabalharam muito e minha avó deixou de trabalhar quando eu nasci. Então ela sempre fez parte da nossa criação. Sempre esteve muito perto e nas férias era o momento que a gente praticamente ficava com eles na Ilha de Itaparica.
P/1- Que bom. Você pode descrever um pouquinho a casa onde você morava?
R- Era um apartamento amplo, um apartamento por andar. Não tinha elevador e a cozinha, sei lá, praticamente do tamanho dessa sala - o que hoje é bastante raro - e tinha uma varanda que dava para ver o mar do Rio Vermelho que é um bairro que tem em Salvador. Era um apatamento com três quartos. Um quarto que era de meu pai e de minha mãe, um quarto que a gente chamava de quarto da bagunça que era o quarto do meio (onde tinha televisão, onde ficava o nosso vídeo game, enfim). E o outro quarto onde dormia eu e minhas duas irmãs. Isso foi uma coisa constante, mesmo depois que a gente ficou mais velho e se mudou para outra casa a gente continuou querendo dormir junto, o que é raro, apesar de ter outro quarto a gente fazia questão das três continuarem dormindo juntas. E o meu quarto era interessante porque ele tinha um teto azul que emendava com a quina da parede e não tinha a quina da parede, era meio arredondado como se o céu estivesse um pouco descendo e tinha uma grande figura de um anjo que tinha sido a minha avó. Foi a minha avó paterna que desenhou com vários pedaços de retalho rosa. E as nossas camas ficavam fazendo um “U” assim: era a minha cama, a cama de minha irmã mais nova e a cama da minha irmã do meio. Então era um quarto gostoso onde a gente passou praticamente a vida inteira até os 13 anos.
P/1- Vocês sempre ficaram nessa casa?
R- Até os 13 anos.
P/1- Tá.
R- E aí depois dos 13 anos a gente se mudou pra uma casa fora de Salvador, que é uma tendência. A mesma distancia assim, mais ou menos, como se fosse Alphaville. Então na Estrada do Coco depois do aeroporto. E aí foi que a gente decidiu, mesmo indo pra uma casa maior, continuar dormindo juntas. Então foi a primeira vez que a gente foi morar em casa. A gente estava acostumada a viver em apartamento e era uma casa grande num terreno de mil metros quadrados. Então tinha gramado, tinham árvores... Que eram coisas que a gente tinha contato durante as nossas férias, mas que a gente não tinha o hábito de viver numa casa. Então foi quando pela primeira vez a gente teve cachorros, que antes a gente não tinha, a gente só tinha uma gata e depois a gente teve mais dois cachorros - que os gatos iam morrendo e a gente ia adotando outros. Então foi quando a gente teve essas experiências. Eu fiquei lá até aos 18 quando eu vim morar em São Paulo.
P/2- Queria saber se você tem alguma história interessante para contar da época que você ia pra Itaparica. Você se lembra de algum acontecimento?
R- Ai, são tantas coisas. Porque a gente passava, sei lá, um quarto do ano em Itaparica e era a casa de meus avós e eu acho que essa é uma história interessante. Na verdade tinha uma casa de pescadores. Quando os meus bisavós maternos começaram a frequentar a ilha praticamente não tinha casa nenhuma. Tinham apenas poucas casas de pescadores e a casa do meu bisavô foi praticamente a primeira casa que começou a ser casa de veraneio. Então é a mesma casa até hoje, a mesma estrutura. A gente reforma e tal, mas é uma casa do estilo bem antigo. E os terrenos que ficavam do lado dessa casa quando a minha avó herdou essa casa do meu bisavô paterno - porque apesar dele ter vários filhos e filhas ele quis dar para minha avó que não tinha um laço de sangue direto com ele porque ele percebia o quanto a minha avó gostava de veranear lá. Então, os terrenos do lado os meus avós acabaram dando para cunhados. Na verdade quando a gente ia para as férias eram as férias com milhares de primos. Todas praticamente primas. Era uma família bem feminina, bem só de mulheres. Então as férias a gente sempre passou lá com várias primas. Era onde eu aprendi a andar de bicicleta e é onde eu andei pela primeira vez na minha vida de skate, onde a gente jogava voleibol, onde a gente passava o carnaval. Tem uma história interessante que eu acho que foi o primeiro contato que eu tive com alguém que usasse drogas. Nós éramos muito, muito pequenas. Eu acho que eu devia ter, sei lá, 10 ou 12 anos e a gente estava no carnaval num trio elétrico que ficava na rua de trás da casa de minha avó. E a gente decidiu voltar para casa. A gente estava acompanhada de meu tio e saímos andando na frente e tivemos que passar por um beco escuro e tinha um cara que estava cheirando lança-perfume e saiu correndo atrás da gente. Foi uma loucura porque a gente nunca tinha tido contato com uma pessoa que tivesse de alguma maneira transtornada assim. E eles saíram correndo atrás de gente dizendo “vou pegar todas” e eu caí e saí ralando os dois joelhos no paralelepípedo - daquele de cimento bem crespo mesmo - e eu passei praticamente o resto das férias com as pernas duras sem poder dobrar porque a hora que dobrava o cascão da ferida meio que rachava. Então foi uma coisa que acabou sendo marcante para família inteira porque as minhas primas e irmãs não queriam entrar no banho de mar porque eu também não podia entrar. Enfim, a gente teve que mudar nossos hábitos de férias para poder cuidar dos meus dois joelhos. Eu tenho uma marca até hoje.
P/1- Quantos anos você tinha mais ou menos?
R- Eu acho que eu tinha entre 10 e 12 anos, não sei exatamente.
P/1- Dá pra falar um pouquinho das brincadeiras que vocês tinham com as suas irmãs, por exemplo? Com as suas amigas nessa época?
R- A gente brincava de várias coisas. Bonecas, principalmente Barbie, Bob, casamento, essas coisas. A gente brincava muito de fazer comidinha. Então a gente ia para o quintal com as minhas primas e fazia várias comidas com panelinha de barro, arroz, feijão, ia pegando as coisas do próprio quintal. Às vezes botava umas folhas de limão dentro das coisas para poder experimentar. Uma coisa que a gente fazia muito era pescar em noite de lua cheia porque é um mar tranquilo, que é da Bahia de Todos os Santos. Então quando era noite de lua cheia a gente levava gereré, que eu não sei se vocês sabem o que é. Gereré ele é um arame redondo que tem uma rede e no fundo da rede você coloca uma pedra e entre uma alça e outra desse arame você pendura - a gente pendurava pelanca de frango, de galinha - e puxa uma linha e você tem um isopor. Então a gente colocava vários gererés no mar, principalmente na lua cheia que era a melhor época para pescar siri e deixava lá. Então a gente passava a noite brincando na praia, brincando de bicicleta na praia e catando o siri para no dia seguinte comer. Isso era uma coisa bem gostosa que a gente fazia nessa época também.
P/1- Brincava na rua também?
R- Sim. Principalmente nessa época de férias porque em Salvador onde eu morava era uma ladeira. Então não tinha muito essa brincadeira na rua. A gente brincava numa área que tinha alguns primos que moravam em cima e embaixo. Mas essa época mesmo de brincar, de tomar conta da rua, era praticamente lá mesmo na Ilha de Itaparica.
P/1- A gente vai falar um pouquinho sobre a sua educação, seus estudos. Você pode falar um pouquinho da escola primária?
R- A primeira escola que eu estudei era uma escola que era na minha rua. E logo depois essa escola se mudou para mesmo bairro, mas ainda ficou próxima. Era Pequerrucho o nome da escola. E eu era uma das alunas mais antigas, eu era uma das alunas que eu tinha chegado bem nova. E eles só tinham até a alfabetização, né? Eles não passavam disso, era uma escolinha bem de bairro. E eu lembro que quando eu tinha cinco ou seis anos eu não tinha sala de aula porque todas as professoras me conheciam tanto que eu ficava pulando de sala em sala, e como as minhas duas irmãs mais novas também estudaram lá eu ajudava a minha irmã que chorava porque queria voltar para casa ou brincando na areia com a outra. Então eu não tinha uma sala fixa e eu acabei até fazendo a alfabetização antes do ano que eu deveria porque eu ficava pulando de sala em sala. Eu lembro que os diretores e os coordenadores dessa escola eram muito próximos. Teve um casamento de uma delas que para mim foi uma tragédia (RISOS) porque imaginar que aquela coordenadora estava se casando e que ia ter um marido era como se fosse perder ela de alguma maneira. Eu lembro que a gente por um tempo, mesmo quando eu mudei para outro colégio, ainda manteve o contato, mas logo depois a escolinha fechou. E quando eu me mudei pra esse outro colégio foi um choque muito grande porque eu saí de uma escola onde todo mundo me conhecia e onde eu tinha total liberdade pra andar, para ir para um dos maiores colégios de Salvador que era esse Colégio São Paulo que era dificílimo entrar, todo mundo queria entrar. Então precisava fazer lob com o diretor, com o coordenador pra você conseguir uma vaga. Tinha gente até que pagava pra conseguir colocar o filho dentro da escola. E era uma escola monstruosa, era uma escola que só de alfabetização tinham 10 turmas. Tinha 10 turmas de cada série: de primeiro ano, primeira série, segunda, terceira, enfim. Então quando eu entrei lá foi um choque absurdo. Eu lembro que quando eu estava na primeira série eu peguei uma professora que não sabia muito lidar com o meu jeito de ser, e eu chorava todo dia quando eu chegava em casa e minha mãe ficava preocupada porque eu estava chorando, enfim. O engraçado era que essa professora da minha primeira série - até hoje quando eu vou no Colégio São Paulo - lembra de mim como uma das melhores alunas dela, mas eu não sei, se você me perguntar o que é que acontecia de fato dentro da sala de aula, o por que eu não gostava dela ou que eu me sentia mal, eu não consigo dizer o que que aconteceu. Só sei que eu sofria muito e é interessante perceber se eu sofria como é que ela percebia que eu era boa aluna, sabe? É uma coisa que eu não consigo entender. Porque se eu era uma boa aluna teoricamente ela teria que me tratar bem. Teoricamente eu deveria me sentir bem dentro da sala de aula, mas, enfim. Esse foi o colégio que eu fiquei até o terceiro ano colegial. Então eu entrei de saí desse colégio. Percorri todas as séries, conhecia todos os funcionários, diretores, foi onde eu fiz grandes amigos.
P/1- Você pode falar um pouco sobre algum professor...
R- Então. Teve essa professora.
P/1- Positivo.
R- Ana Luisa, Ana Lucia que foi marcante. Depois disso eu tive um professor no primeiro, segundo e terceiro ano. Qual o nome dele? Flavio. Foi o meu professor de História muito marcante porque esse colégio, apesar de ser particular em Salvador, tinha professores muito ativistas no sindicato dos professores. Então praticamente sempre que tinha greve de escola particular - isso era uma coisa frequente em Salvador, agora não tanto - a minha escola era sempre a primeira a entrar em greve. Então ela, apesar de ser uma escola que tinha um... Era conservadora, os diretores eram pastores batistas, mas não tinha religião na escola, o corpo de professores era muito engajado. Então a gente sempre via questões da luta sindical lá dentro e isso acabou se tornando muito presente, principalmente no primeiro, no segundo e no terceiro ano. Então ele foi um professor que conectou a História que a gente tinha dentro da sala de aula com essas coisas que aconteciam no cenário político de Salvador, já que, às vezes, a gente não fazia essa relação. Então ele foi um professor bem marcante: Flávio Caetano.
P/1- Você tinha alguma matéria preferida?
R- Eu gostava bastante de História, de Geografia, Artes Plásticas quando tinha. E no terceiro ano eu fiquei apaixonada por Biologia, mas não segui nenhuma carreira na área de Biologia.
P/1- Dá pra falar um pouquinho das suas amizades no colégio?
R- Então. Tem uma amiga minha que a gente começou a ficar mais próxima na quinta série, Cláudia. E nós somos amigas até hoje. Nós sempre tivemos aquelas briguinhas que voltam, aquelas coisas de um amigo falar mal da outra, esse tipo de coisa. Mas a gente sempre foi muito próxima. Até que no ano passado, 10 anos que eu tinha saído de Salvador, fui madrinha do casamento dela. Então eu fui à Salvador só pra o casamento dela. É uma relação forte. E tem outros amigos que eu acabo mantendo o contato. Tem outra amiga que a gente ficou mais próxima na oitava série que ela está chegando aqui em São Paulo amanhã. A minha casa acaba se tornando, aqui em São Paulo, um ponto de chegada e de encontros de baianos que vem fazer alguma coisa. Então ela se formou em Medicina e está fazendo uma pós-graduação. Então uma vez por mês ela vem para cá e fica na minha casa estudando. Então são conexões que ainda são fortes.
P/1- A gente falou até o terceiro grau. E depois do terceiro grau você continuou?
R- Então. Quando eu estava na oitava série eu decido fazer Comunicação e nessa época eu me envolvi com uma organização chamada Children's International Summer Villages (CISV), que é uma organização que promove a paz mundial através de intercâmbios culturais. Então eu fiz alguns intercâmbios pra Dalas, no Texas, e alguns intercâmbios nacionais e depois eu me tornei diretora do Junior Branch em Salvador que era responsável por fazer as atividades locais. Então foi aí que eu tive muito contato com pessoas tanto de fora do país como pessoas do próprio Brasil que também faziam parte dessa diretoria júnior.
Então eu decidi que queria fazer Comunicação e que eu queria fazer Comunicação em São Paulo. Que eu queria fazer na melhor faculdade possível e em Salvador na época só existia Comunicação em Jornalismo; não existia Comunicação de forma mais ampla que eu esperava encontrar aqui. Então eu vim pra São Paulo. Eu passei numa faculdade chamada ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) e acabei me decepcionando um bocado com a faculdade porque eu queria ter uma visão de comunicação mais ampla e não uma comunicação voltada só pra propaganda e marketing. Então eu acabei fugindo do Jornalismo pra não ser uma coisa específica e acabei entrando em outra. A minha vontade já era trabalhar com comunicação para área social. Tentar utilizar metodologias, ferramentas de comunicação pra questões e objetivos sociais e isso eu não encontrei na faculdade. Então foi uma grande decepção.
P/1- E teve momentos interessantes na faculdade mesmo assim?
R- Sim, teve. No começo foi uma grande decepção. Então eu falava de terceiro setor, de ONG’s e ninguém conseguia me compreender. Os professores não sabiam o que era isso. Há 10 anos atrás se falasse em terceiro setor eles pensavam que era setor terciário e não o terceiro setor de organizações, investimento social privado. Então alguns professores foram mais sensíveis para poder me ouvir e se conectar com essas coisas que estavam começando a ficar mais aparentes na imprensa e tudo mais. Então foi aí que eu entrei a empresa Junior da faculdade e comecei, dentro da empresa Junior, a construir não só projetos. A empresa presta serviços para as empresas e são os estudantes que gerenciam a empresa com opoio dos professores. E aí a ideia da empresa Júnior era criar um núcleo para atender ONG’S que não existiam antes.
Então foi a partir daí que eu comecei a conhecer professores que estavam interessados em tocar isso também e onde eu encontrei amigos com os quais a gente acabou fundando uma ONG que se chamava “Marco três, Marketing e Comunicação para o terceiro setor”. Então ainda dentro da faculdade, no terceiro ano, a gente fundou esse OnG e começou a atuar primeiro voluntariamente. A gente praticamente pagava pra poder fazer esses trabalhos com organizações com redes e movimentos. E depois pouco a pouco a gente foi conseguindo financiamento e realizando os nossos próprios projetos. Então, na verdade a faculdade, apesar de não me dar uma bagagem do que eu estava procurando, foi um espaço onde encontrei as pessoas com as quais eu pude construir essa organização, e de qualquer forma, ela me deu uma bagagem também de conhecimento e planejamento estratégico que foram coisas fundamentais pra funda uma ONG.
P/1- A gente vai voltar depois para o lado profissional, mas antes vamos voltar à adolescência. Você praticava algum esporte nessa fase?
R- Não. Eu nunca pratiquei esporte. A minha mãe, apesar de ter um metro e sessenta, foi jogadora numa seleção baiana de vôlei e eu nunca... Ela era levantadora e eu nunca participei de jogos ou esportes assim. Eu fiz ballet desde os dois anos de idade. Então eu dançava. Eu fazia ballet clássico, dança moderna. Fiz até o terceiro ano quando no meio eu parei pra me dedicar mais ao vestibular. E a gente fazia todo ano apresentações no teatro Castro Alves que é um teatro monstruoso e eu me lembro do cheiro ainda do palco, do cheiro de ficar correndo entre as poltronas enquanto outras pessoas ensaiavam. Na minha adolescência o teatro Castro Alves ficou fechado por muitos anos porque estava em reforma. Enfim, eu não voltei a dançar lá depois da minha infância. Eu dançava em outros teatros que tinham ainda em Salvador. Então também uma coisa marcante.
P/1- E na adolescência você tinha amigos e turma e tal. Você começou a namorar, você tinha um namoradinho?
R- O meu primeiro namorado que eu chamei de namorado foi um paulista. Mas não foi o motivo de eu depois ter decidido vir para cá. Quando eu estava participando dessa organização do CISV ele também participou de alguns intercâmbios. O nome dele era Beto. Ele morava em São José dos Campos e participava dessa diretoria Junior de São José dos Campos. Então foi quando a gente começou a namorar, um namoro meio à distancia com muitas cartas, muitos presentes. A conta de telefone monstruosa. Não existia internet ainda. E com várias surpresas. Teve um dia mesmo que eu estava estudando, estava no meio da escola, sei lá, acho que era no primeiro ano, e quando eu saí de uma prova ele estava lá. Então as minhas amigas meio que arrumavam com ele todo um esquema pra fazer esse tipo de surpresas. Ele pegava o ônibus e andava 32 horas para vir para Salvador. Então foi uma época gostosa.
P/1- Vocês ficaram um tempo?
R- A gente ficou juntos quase três anos nessa loucura entre Salvador e São José dos Campos.
P/1- Você se formou depois de cinco de faculdade...
R- Depois de quatro.
P/1- Quatro?
R- É.
P/1- E a sua vida profissional tinha começado. Você pode contar um pouquinho como que foi o ingresso na vida profissional, por favor?
R- Foi uma coisa muito natural porque logo quando eu cheguei aqui, apesar de minha mãe e o meu pai me sustentar e me dar apoio pra eu viver aqui - sem o apoio deles eu não tinha como vir fazer uma faculdade particular e todos os gastos de morar em São Paulo - eu já comecei a fazer alguma coisa. Eu não conseguia ficar... Me agoniava essas questões de ter que depender deles. Então logo no primeiro ano eu já comecei a fazer pesquisa. Então eu trabalhei em uma empresa de pesquisa e ia fazer pesquisa de rua mesmo. Aquelas pessoas chatas que ficavam parando pra poder fazer pesquisa e já tirava uns trocados, enfim. Logo depois eu já entrei na empresa Junior. Então eu comecei na empresa Junior como consultora Junior. A gente já recebia pelas consultorias que a gente fazia. Eu lembro que depois de um ano e meio trabalhando lá eu consegui juntar dinheiro suficiente e consegui passar um mês na Espanha estudando espanhol que era a vontade que eu tinha e logo quando eu voltei me tornei diretora, e ao mesmo tempo em que eu me tornei diretora com esse projeto de ONG’s, a gente começou a fundar a organização. Então foi um trabalho que já começou paralelo em 1999 e foi uma coisa que parece que a gente decidiu: “vamos fundar uma ONG, vamos fazer isso, vamos fazer aquilo.” Mas não. Foi uma coisa que foi acontecendo. A gente queria fazer projetos sociais, queria trabalhar com isso e para isso era necessário CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) para receber recursos. Então foram coisas que foram simplesmente acontecendo e quando eu vi estava numa organização já com mais de 10 pessoas trabalhando junto com a gente. Enfim, foi um processo meio... Ao mesmo tempo consciente, mas que a gente não tinha a mínima noção do que significava fundar uma ONG, captar recursos, o quanto isso ia trazer para gente de aprendizado ou enxergar isso como uma carreira. A gente não tinha essa visão de enxergar aquilo como uma carreira. “Decidimos fazer isso e isso é a nossa carreira.” Era muito mais um impulso de fazer alguma coisa, contribuição para área social e de tentar colocar ferramentas e metodologias de comunicação e mobilização social a serviço da área social. Então isso foi acontecendo. Em 2001 nós fundimos essa ONG Marco Três com a outra ONG chamada Pró-Ação. A gente começou construir um projeto em Santos de imobilização juvenil chamado Gincana da Cidadania e foi o projeto que a gente teve mais funcionários. A gente na verdade acabou contratando pessoas que eram mais velhas que a gente e foi uma responsabilidade muito grande. Depois que a gente fez esse projeto juntos, nós fundimos as duas organizações e criamos a Aracati, Agência de Mobilização Social que tinha como objetivo trabalhar com mobilização social e participação com movimentos, redes e projetos sociais e só depois disso a Aracati deu um foco em juventude. Então hoje a Aracati trabalha com participação juvenil, mais focado. Mas foi muito pesado passar por esse processo. Não foi fácil. Você dar conta aos 23 anos que tinham, sei lá, 10 pessoas que dependiam da gente para gente captar recursos e quando o projeto acabou a gente teve que demitir essas pessoas e isso afetava completamente a vida delas. Foi um peso muito grande perceber que isso tinha chegado a esse nível de que a gente estava investindo a vida toda naquilo. Então em 2003 eu decidi saí da organização e experimentar ser responsável só pela minha vid. Eu tinha me envolvido com isso com 19, 20 anos e quando eu cheguei aos 23, 24 eu percebi que precisava ser responsável só pela minha vida. Então eu deixei a Aracati, terminei o namoro que eu tinha aqui em São Paulo e decidi me jogar no mundo. Eu tinha um grande objetivo, objetivo não, uma ideia de que eu queria experimentar como que era a vida na Índia, mas não tinha grana para poder comprar passagem para ir à Índia e ficar lá, porque com certeza eu não iria ganhar dinheiro lá. Então eu só ia gastar dinheiro na Índia. Então eu decidi ir morar na Europa e quando eu cheguei na Europa eu acabei indo parar em Londres em Londres o meu objetivo era esse: trabalhar e
ganhar dinheiro o suficiente pra eu conseguir me manter na Índia. E aí tem várias histórias interessantes.
P/1- Da pra contar essas histórias de viagens? Você foi ao Texas? Você foi à Espanha? Foi à Europa depois?
R- É. Na verdade dei uma linha aí de viagens. A primeira mesmo, a mais importante foi essa que eu fui para Dalas. Eu tinha 12 anos.
P/1- Dá pra explicar?
R- Eu era a mais nova de uma delegação de 10 pessoas de Salvador e era um intercâmbio onde a gente passava um mês lá e depois de um ano a pessoa que eu fiquei na casa vinha para Salvador e ficava na casa da minha família. Um programa de intercâmbio diferente. Na verdade não é para morar lá seis meses. E quando eu fui para lá eu caí numa família tortuosa, foi terrível. Eu falava pouquíssimo inglês na época e acabei ficando na casa de uma menina que fazia ballet também e então achavam que tinha que existir alguma sintonia entre eu e ela. Mas quando eu cheguei lá a família dela era terrível. A mãe dela era uma daquelas bem grosseiras que não deixava ela se expressar, que não deixava ela falar. Ela era muito tímida, todo mundo, inclusive o marido dessa mulher. Não deixava... Ela fazia o que ela queria na casa. Tinham muitos absurdos. Eu tentava ligar pra minha casa no Brasil - a cobrar - e ela não deixava. Fazia um escândalo dizendo que eu não podia ligar para minha casa, enfim, foi terrível. Mas no meio desse processo perguntaram se eu queria mudar de casa. Existia essa possibilidade porque eles viram que eu estava sofrendo muito. Mas eu não quis mudar de casa porque essa menina que iria pra minha casa no ano seguinte - o nome dela era Laura - ela também sofria muito com a mãe dela e ninguém - os americanos que participavam também do intercambio - suportava a mãe dela. Eu sabia que se eu saísse do programa quem ia sofrer mais era ela. Então as pessoas me deram suporte para aguentar ficar na casa dela e no ano seguinte Laura veio para minha casa. E ela se transformou. Longe da mãe dela ela se tornou outra pessoa e no dia que a gente se despediu aqui no Brasil ela só fazia chorar. Eu já tinha 13 anos e eu falava um pouquinho mais de inglês e ela só fazia chorar e agradecer. Pediu desculpa pelo o que tinha acontecido na casa dela. Então, apesar de ter sido muito traumatizante, por outro lado eu acho que foi muito significativo para mim viver nesse processo. Depois quando eu fui para Espanha já foi uma coisa mais independente. Eu já tinha 19 anos, queria experimentar como seria ficar na Europa um mês. Então eu estudei espanhol, fiquei numa escola de espanhol lá e morando sozinha com outras pessoas, indo para boate todos os dias. Salamanca é maravilhosa para esse tipo de coisa porque você entra em todos os bares e boates e você não precisa pagar para poder entrar. Então chegava em casa a qualquer hora, não tinha perigo. Senti um pouco essa liberdade porque apesar de estar morando em São Paulo eu não sentia porque aqui existe um perigo e lá não. Então lá em Salamanca foi muito bacana. Depois meus pais passaram por lá e eu e a minha família continuamos a viagem por outros lugares da Europa. Mas esse um mês que eu fiquei lá em Salamanca sozinha foi muito bacana.
P/1- Alguma lembrança significante pra você?
R- Tem. Eu estava na Praça Maior de Salamanca passeando e tinha esse meu ex-namorado, Beto, de anos atrás, eu sabia que ele estava passeando na Europa com mochila, fazendo uma viagem com mochila com um amigo meu de Salvador, Bruno, que também era do CISV. E teve um dia que eu estava passando pela Praça Maior quando eu olho e dentro da uma cafeteria está Bruno e Beto. Eu nunca iria imaginar que os dois estariam em Salamanca naquele mesmo lugar exatamente quando eu estava. E foi bacana. Encontramo-nos e saímos juntos e foi muito gostoso não planejar nada e de repente encontrar um ex-namorado de adolescência e um grande amigo. Foi muito gostoso.
P/1- E você estudou na Espanha?
R- Estudei. Estudei espanhol durante um mês.
P/1- E depois viajou.
R- É.
P/1- Quais são os outros países que você visitou nesse ano?
R- Portugal, que o meu pai estava fazendo doutorado em Portugal e aí eu passei em Portugal e depois fui pra Espanha. E aí depois a gente foi pra Turquia, uma excursão com a família toda. Então a gente conheceu bastante aquela região da Turquia e depois voltamos para Espanha já com a minha família. Visitamos outras cidades: Madrid, córdoba, Granada, outras cidades e voltamos para Portugal e viajamos um pouco por Lisboa, Porto, que era a cidade que o meu pai estava. E depois voltamos para o Brasil.
P/1- E essas viagens tiveram efeito na sua vida na volta ao Brasil?
R- Acho que sim. Foi a primeira vez que eu fui pra Europa. Acho que o mais marcante foi o fato de ter vivido lá um mês sozinha. O sentimento de liberdade, de independência. Acho que naquela época foi muito importante para sentir que eu tinha trabalhado aqui, juntado o meu dinheirinho, pago a minha escola lá, a minha estadia lá. Acho que isso foi muito significativo. Na Turquia também foi muito interessante, mas a gente estava numa excursão. Então é como se você tivesse um vidro entre você e aquela cidade, aquela realidade que você está vivendo só pelo fato da gente estar numa excursão turística. Então apesar de ter convivido com uma realidade muito diferente na Turquia - - de ver mulheres andando com véu - ainda existia essa distância porque a gente não se relacionava, não estava dentro do cotidiano dessa família ou daquela cultura. Mas foi importante também perceber como as pessoas viviam de uma maneira completamente diferente da minha.
P/1- Então Tiana, a gente estava conversando sobre as viagens. Eu gostaria de saber mais sobre o que te levou à área social.
R- É. Eu acho que para falar nisso eu vou acabar falando lá dos meus bisavôs. Os meus bisavôs maternos foram pessoas muito...
P/1- Pode dar os nomes?
R- É que nessas horas eu esqueço. É Arlindo o nome dele e Normélia o nome dela. Os meus bisavós paternos do meu avô materno. A minha bisavó Normélia ela nasceu numa cidade que fica na parte da Chapada Diamantina na Bahia que foi uma região muito, muito rica aonde as pessoas iam pra coletar diamantes. Fica no meio das montanhas bem no centro da Bahia e ela tinha aula de latim, de francês, tem um piano que chegou pra ela da Europa que chegou lá na cidade dela e esse piano está até hoje lá. Então ela tem uma formação bem clássica. E ela se apaixonou pelo meu bisavô que era uma pessoa que não tinha nada. O meu bisavô andava em cima de um jegue vendendo homeopatia. Naquela época era ele que fazia os próprios remédios e ele era pastor Batista. Então ela se apaixonou pelo meu bisavô, saiu e largou tudo. Largou a família inteira e foi viver com o meu bisavô. Porque existia alguma coisa na relação deles dois que depois passou para o meu avô de que era uma relação muito próxima de consideração ao outro de construir as coisas da maneira mais humana possível. Minha bisavó teve cinco filhos. O meu avô é o mais novo deles e eles foram criados dentro da igreja Batista. Sempre viveram em pobreza mesmo porque o meu bisavô não tinha nada e a minha bisavó não tinha levado nada com ela da família. Então o meu bisavô ficava viajando e o dinheiro que ele trazia era o dinheiro que os cinco filhos deles se alimentavam. Ele tinha algumas conexões com a igreja Batista o que fez os meus avós e meus tios avós estudar em colégios muito bons, mas não tinha nenhum tipo de luxo. O meu avô Vilar saiu da escola quando ele tinha oito anos de idade numa família que sempre valorizou a educação de uma maneira muito extrema. Uma professora bateu nele quando ele estava na oitava série e a partir dali ele não quis ir mais para a escola e a minha bisavó, em toda a sabedoria dela, conseguiu, apesar da importância que ela dava à educação, perceber o quanto era sofrido para meu avô voltar para escola e se relacionar de novo com aquela professora, com aquela autoridade dentro da sala de aula. Então eles passaram a estudar em casa. Praticamente tudo o que meu avô estudou foi em casa com os seus irmãos. E minha bisavó falou que o meu avô começaria a trabalhar. Então esse significado que teve para meu avô que ele teve que sair da escola porque ele não conseguiu ser compreendido por essa questão da autoridade e realmente ele ter conseguido estudar sem ter nenhuma formação, mas que foi uma coisa sempre muito presente na minha vida. Todos os meus tios avós são formados, o que naquela época era uma raridade, eu tenho uma avó que era formada em História, Geografia, a outra que é formada em Letras. Estão com 90 anos agora. Naquele tempo era raro. O meu avô era o único que não tinha tido uma formação, mas ele é até hoje a pessoa que minhas tias avós recorrem quando querem ouvir um conselho, quando querem ouvir uma palavra amiga. Então acho que esse histórico de meu avô sempre foi muito presente na minha vida na maneira que minha mãe cresceu também. Na maneira que minha avó criou a gente. Então a gente sempre teve uma relação muito próxima com as pessoas, independente de classe social, independente de cor de pele. Todas as pessoas que alguma vez trabalharam lá em casa, seja babá, cozinheira, a gente frequentava a casa dessas pessoas, passávamos, às vezes, um sábado e um domingo no meio de quase uma favela comendo junto com aquelas pessoas, brincando com sobrinhos e os filhos delas. Então nunca teve essa distância. E começar a perceber, quando eu estava na escola e quando eu entrei nesse movimento do CISV, que existia uma distância dentro da própria cidade entre as pessoas por causa dessas questões era uma coisa que sempre me marcou muito.
P/1- E tem um momento especial, um evento especial que te fez realmente perceber essa distância?
R- Eu não sei. Eu acho que eu não consigo perceber um momento exato. Eu acho que foi uma coisa que estava muito diluída durante a minha vida, a forma como eu fui criada, os valores foram passados e que a gente cultivou na família. Então foi uma coisa muito presente. Fora isso a minha mãe acabou trabalhando numa fundação. A minha mãe não foi para essa fundação com uma escolha profissional do tipo: “eu vou trabalhar na área social.” Não. Foi um trabalho que apareceu. Naquela época a Fundação Odebrecht era uma fundação para funcionários. Então ela não beneficiava público externo. Era uma fundação que beneficiava os próprios funcionários. Ela foi trabalhar lá porque ela tinha feito um mestrado em RH (Recursos Humanos). Perceber minha mãe trabalhando na Fundação Odebrecht - que depois também começou a trabalhar com público externo, começou trabalhar com sexualidade, foi uma fundação pioneira a trabalhar com adolescentes, é referência no Brasil em trabalho com juventude, com adolescentes. Foi começar a perceber que existia uma forma de trabalhar tudo aquilo como uma questão profissional. Eu acho que o fato da minha mãe trabalhar numa fundação empresarial me mostrava que existia uma possibilidade de unir todas essas questões que para mim eram importantes em minha vida pessoal com uma forma de contribuição e de me sustentar também. Então acho que foi fundamental também ter a minha mãe como referência. Uma pessoa que estava trabalhando, que ganhava o recurso dela, que sustentava, ajudava o meu pai a sustentar a família e que o trabalho dela tinha essa contribuição. Então acho que perceber a minha mãe nessa posição também foi fundamental pra perceber que eu poderia reunir essas duas coisas na minha vida. Então acho que por aí foi essa escolha.
P/1- Eu gostaria de conhecer o seu dia-a-dia no trabalho e também, de repente, um projeto que você realizou e que você tenha se orgulhado.
R- Tem esse projeto que na verdade teve tudo de bom e tudo de ruim ao mesmo tempo. Foi um projeto que a gente construiu em 2001, 2002 na cidade de Santos que foi quando a gente fundiu as duas organizações: o Marco Três e Proação e criou a Aracati. Então foi um projeto desafiador porque a gente quis envolver todas as escolas estaduais, públicas e particulares da cidade de Santos e a gente acabou trabalhando com 25 escolas e a nossa previsão orçamentária era trabalhar com 10. Então a gente teve que dar todo o sangue para conseguir tocar isso. Foi a primeira vez que a gente teve uma equipe que nós coordenamos. Então foi um espaço fértil porque os financiadores deram a liberdade para gente modificar todo o projeto. Antes era um projeto de voluntariado de jovens de dez escolas. Eles deixaram a gente mudar para um projeto de mobilização social com foco em juventude. A gente trabalhava com imprensa local, com empresariado e com jovens dentro das escolas. Todo mundo que passou por essas experiências (eu, Carlos, Luciana, Antônio, Fabiana) tudo o que a gente vai fazer hoje é como se tivesse tido alguma experiência que tenha acontecido dentro da gincana que iniciou esse processo de aprendizado muito forte. Mas ao mesmo tempo também foi um projeto que demandou demais de mim. Nessa época eu morava aqui em São Paulo e praticamente ia todos os dias para Santos, e eu comecei um curso de pós-graduação na USP (Universidade de São Paulo). Então eu estava completamente estafada porque tinha esse projeto em Santos, tinham outros projetos; projetos que a gente trabalhava com redes de organizações - alguns aqui na Zona Oeste de São Paulo e outros em Santos – que também era um projeto de unir organizações sociais para juntas ver o que elas poderiam fazer para ter um maior poder político, um maior poder de captação de recursos. Então foi um ano estressante, ao mesmo tempo de muitos e muitos aprendizados, mas o mesmo tempo um ano de ficar cara a cara com todos os meus desafios, tanto profissionais como pessoais. É trabalhando com pessoas que começamos a perceber nossas dificuldades em lidar com pessoas e começamos a olhar para gente e perceber quais são esses desafios, o que está gerando essas dificuldades. Então a gente trabalhou com um processo chamado grupo operativo em que se trabalhava muito isso: que a gente conseguisse enxergar como um todo naquela equipe. Não tinha nada que ficasse de fora, mesmo da vida pessoal que estaria afetando ali. A gente aprendeu a ler como é que o grupo funcionava e como que às vezes um comportamento, um hábito nosso, se mostrava na relação do grupo que estava trabalhando ali. Foi quando eu comecei a lidar com a minha autoridade - às vezes ela vinha de uma maneira muito forte e não respeitava o ritmo e o processo das pessoas. Comecei a lidar com a minha pressa em resolver as coisas, comecei a lidar com a minha obsessão por planejar e controlar todos os processos e ter todos os resultados alcançados. Eu comecei a lidar com todas essas coisas que existiam em mim e eu comecei a perceber que eu não queria ser assim. Foi um grande aprendizado profissional, foi um enorme aprendizado pessoal, mas foi tão intenso que foi logo depois da Gincana da Cidadania desse projeto que eu resolvi sair da Aracati. Porque ele tinha sido tão intenso eu tinha percebido tantas coisas que eu queria mudar em mim e se eu continuasse com aquele papel que era esperado de mim como uma das diretoras da organização eu não conseguiria resignificar essas questões em mim. Eu não conseguiria abrir mão de certos comportamentos porque como a gente era um grupo eu trazia algumas questões, outras pessoas outras. Era como se esse papel sempre fosse esperado de mim. Foi quando eu decidi sair da Aracati e passar um tempo fora do país. Foi quando eu decidi sair do país sem data para voltar. As pessoas perguntavam quando é que eu iria voltar. Eu só queria viver cada dia como um dia e poder se reconectar comigo e poder mudar, poder ter um espaço de liberdade onde, às vezes, as pessoas não esperassem nada de mim - porque se elas não me conheciam como é que elas podiam esperar alguma coisa de mim? Então foi quando eu fui para Europa, passei um pouco pela Europa e acabei conhecendo a amiga de uma amiga que estava na Inglaterra e falou que lá eu conseguiria, enfim, trabalhar e conseguir algum dinheiro. Foi quando eu acabei indo pra lá. Foi em março de 2003.
P/1- Dá pra contar essa história da Inglaterra?
R- Foi bem significativa porque na verdade eu estava nesse momento de uma nova vida, de morte de vários hábitos e de poder viver outras coisas. E nessa época o meu pai tinha acabado de apresentar o doutorado dele e estava com minha mãe passeando pela Europa. Fiz passaporte, comprei passagem e em um mês eu já estava na Europa. E aí eu aproveitei e fui encontrar com o meu pai e minha mãe. Passei um pouco com eles lá na Europa, em Paris, o meu pai e minha mãe estavam em Paris. E foi super significativo saber que eu estava chegando em Paris e que de uma certa maneira o meu pai e minha mãe estavam me esperando de novo como a 23 anos atrás, sabe? Foi muito significativo perceber essa conexão do renascer e o meu pai e a minha e minha mãe estarem ali me esperando de novo pra me acolher naquele momento de total desespero, de insegurança, mas ao mesmo tempo de uma forma muito grande de ver o que viria daquilo. Então eu os acompanhei um pouco pela viagem na Europa e depois eu entrei em contato com essa amiga de Londres e acabei morando lá. Quando cheguei em Londres eu não tinha lugar para ficar. Essa minha amiga não podia me hospedar porque, enfim, o esquema lá é super trash. Então ela morava em outra casa que não dava pra me receber. E minha irmã mais nova conheceu um cara que morava em Londres que era baiano, era arquiteto, tinha sido aluno de meu pai, mas meu pai nem lembrava quem era e ele se habilitou pra me receber na casa dele. No primeiro dia que cheguei lá eu encontrei Paulo, que eu não sabia quem era. Fui dormir na casa de uma pessoa que eu nunca tinha visto na minha vida e que ninguém que eu conhecia o conhecia pessoalmente. Dormi numa cama de casal com ele durante uma semana e eu estava bem. Em nenhum momento passou pela minha cabeça ter medo dele ou que poderia acontecer algo. Eu não consigo explicar, mas era como se eu tivesse tanta certeza que eu tinha que viver aquilo que para eu ir dormir na cama de casal com um desconhecido não era nada de mais. Foi muito bacana e foi assim que as coisas aconteceram em Londres. Eu não consegui visto de estudante. Então eu trabalhei ilegalmente lá.
P/1- O que você fazia?
R- Fazia de tudo. Eu passei um mês tentando emprego desesperada porque só estava me fazendo gastar e gastava em libras, que é um absurdo, tudo caríssimo. Comecei fazendo faxina e a primeira faxina que eu fiz foi na casa de uma indiana que era o lugar que eu queria ir. Então foi muito engraçado. Eu fazia faxina e alguns amigos iam conectando com outros. Comecei a ser babysit, cuidei de duas crianças que eram descendentes de franceses, nasceram na França, mas que depois estavam morando em Londres. Trabalhei como garçonete no restaurante do zoológico de Londres, que foi muito bacana também porque a gente fazia recepção e jantares no meio das jaulas dos leões, das girafas. Eles fazem isso: meio que vendem esse serviço de fazer recepção de champanhe, jantares, almoços e churrascos no espaço do zoológico. Então isso foi bem bacana. E também trabalhei num site que dá informações para os brasileiros que querem morar em Londres. Eu trabalhava mais na área de comunicação. Trabalhava vendendo anúncios para anunciantes de lá para sustentar o site. Então eu fiz de tudo um pouco em Londres e consegui o que eu precisava para morar na Índia. O engraçado é que as pessoas não acreditavam que eu fosse sair de lá, porque dificilmente você encontra uma pessoa. Eu fui morar em dez pessoas na casa em que eu morava. Eu dividi o quarto com duas pessoas: uma brasileira e uma vietnamita. Na casa tinha francês, tinha português, tinha um polonês, enfim. E foi bem gostoso morar nessa casa, mas todas essas pessoas que moravam comigo tinham um perfil muito diferente do meu. Eram pessoas que de alguma maneira não tinham conseguido fazer faculdade, que não tinham a vida muito certa no Brasil. Então quando eu falava que eu tinha me formado que eu tinha um trabalho eles achavam que era mentira porque eu estava dentro de um círculo de brasileiros que eram todos ilegais. A mentira é uma coisa muito frequente. Então eles duvidavam que eu fosse formada, duvidavam que eu tivesse largado o trabalho aqui. Eles não conseguiam compreender muito como é que eu, que trabalhava numa organização que eu fundei, tinha um salário, tinha uma casa aqui no Brasil, tinha largado tudo para poder ser faxineira em Londres e juntar dinheiro. Mas foi um dos momentos mais felizes da minha vida porque eu fazia faxina com prazer absurdo, sabe? Era como se eu começasse a perceber o significado das coisas nas mínimas coisas. E o fato de eu ser responsável só por mim ali e de ter toda essa liberdade era muito gratificante. Era mil vezes mais prazeroso do que era o meu trabalho aqui antes. E depois que eles começaram a acreditar que eu era a pessoa que eu era eles começaram a duvidar que eu fosse embora porque começou a surgir oportunidades de trabalho interessantes lá por causa do meu passado, da minha experiência e tal. A maioria deles acaba planejando passar um ano e juntar certo dinheiro e voltar para o Brasil, mas acabam ficando. Então eles duvidavam que quando eu chegasse e juntasse, sei lá, não lembro agora qual era o valor de dinheiro que eu precisava juntar para que eu fosse para Índia. Então quando eu comprei a minha passagem para Índia foi um momento meio especial.
P/1- Pode contar o momento? Como é que aconteceu?
R- Teve vários momentos. O momento mais especial foi quando eu consegui o meu primeiro emprego lá. Eu falei que quando eu tivesse o meu primeiro emprego lá eu iria dar uma feijoada para todo mundo da casa e todo mundo que eu conhecia. Então logo depois que eu consegui o meu primeiro emprego eu fiz uma feijoada monstruosa. Tive que usar as quatro bocas do fogão, a casa era muito pequena e então teve que fazer rodízio para as pessoas comerem e tal. Depois eles queriam até que eu abrisse um negócio de vender feijoada em Londres. Então esse foi um momento significativo porque é quando as coisas começaram a se realizar pra mim. Depois não teve um momento tão significativo de “ai, juntei isso.” Mas momentos com cada pessoa, muitos me levaram até o aeroporto onde eu embarquei e são pessoas que eu tenho contato até hoje também.
P/1- E a sua ida pra Índia?
R- A minha ida pra Índia... Eu entrei em contato com um amigo que era coordenador social de um trabalho da religião Bahai e tinham algumas organizações na Índia que eram organizações Bahai. Foi através dele que eu consegui organizações pra ser voluntária. Eu fiz alguns contatos durante esse tempo em que estava em Londres para ir ser voluntária nessa organização. E aí, quando eu cheguei em Déli a pessoa sabia que eu iria chegar, mas não me deu certeza que me buscaria. Então quando eu cheguei em Déli não sabia quem era a pessoa que ia me buscar e nem nada. Eu fiquei desesperada quando eu saí no aeroporto e não tinha ninguém. Então eu vi. Ele quem me identificou. Ele nunca tinha visto uma foto minha e nem nada. Eu não tinha dito qual era a roupa que eu estaria usando e nem nada, mas como eu era uma das poucas ocidentais que chegou lá ele veio na minha direção e perguntou: “você é Tiana?”. “Então, ok.” A partir daí a gente foi junto para outra cidade que foi onde eu trabalhei dentro dessa organização editando livros de jovens. Livros de participação de jovens. Eu trabalhei criando histórias, ideias e perguntas para reflexão para esses livros de jovens.
P/1- E a sua percepção da Índia? Teve algum efeito?
R- Teve muitas coisas na Índia. Se eu for falar tem que ser o dia inteiro. Aconteceram muitas coincidências na Índia. Eu sempre falo para as pessoas que querem ir para Índia que passar um mês lá é insuficiente para conhecer o país. Você precisa de tanto tempo pra desaprender e se desapegar dos seus padrões de pensamento, do que é uma coisa e do que é outra, do que é certo e errado... Então, acho que eu passei um bom período reconfigurando, imagens: como as pessoas viviam, oque significava ser feliz, o que significava isso, quebrando todos os paradigmas que eu tinha de olhar as coisas pra poder conseguir absorver a forma de existência deles. Acho que isso foi uma coisa muito profunda, esse processo de perceber. Era como se eu estivesse em outro planeta. Era como se eu estivesse em outro planeta. Você morar na Índia é como se você estivesse em outro planeta. Eu não estava em organização ocidental, não tinha nenhum outro ocidental junto comigo. Então era como se eu realmente estivesse em outro planeta. Eu tive que reaprender a fazer tudo: a forma de vestir, forma de falar, forma de caminhar, não podia olhar para as pessoas de certo jeito, não podia sair de casa sozinha depois de seis horas da noite, não podia beber água em qualquer lugar, enfim, foi um grande aprendizado. E aí, depois de ter desaprendido esses paradigmas foi muito bonito, muito leve. As coisas começaram a acontecer de uma maneira meio mística até. Eu ia visitar lugares. Uma vez eu fui lá ao Ganges, em Varanasi e eu estava na casa de uma pessoa - a pessoa não estava e me emprestou a casa. Eu fui ao Ganges e depois eu não sabia voltar, eu estava sem endereço, sem nada da casa e eu consegui chegar em casa. Sabe de você conseguir ir por intuição quebrando numa rua e na outra e você chegar em casa e falar: “meu Deus, como foi que eu cheguei aqui?” Coisas desse tipo... É o que eu espero viver um dia de novo.
P/2- Eu queria saber onde que você foi na Índia.
R- Fui à uma cidade que fica no sudoeste de Déli, mas bem acima de Calcutá. É uma cidade considerada pequena para Índia; uma cidade de dois milhões de habitantes onde eu andava na rua e eu era a única pessoa ocidental. Era a única pessoa que não estava vestindo o saarinen ou que não estava vestindo o punjabi, que não estava com o cabelo partido no meio com aquele símbolo que eles usam aqui. Enfim, eu passava na rua e literalmente todo mundo parava para me olhar. Se o cara estivesse dirigindo o carro ele parava, ou uma motocicleta ou bicicleta eles paravam pra poder me olhar e passar.
P/2- Ninguém vinha conversar com você, nunca aconteceu alguma coisa...
R- Eles não vêm falar com você. Se, por exemplo, quando eu tomava um jipe para ir para o meu trabalho as pessoas que estavam do meu lado tentavam, mas eles falavam hindu, pouquíssimos falam inglês. Eles entendem inglês, mas muitos deles não falam nada de inglês. Quando vinha uma senhora ou outra pessoa que falava comigo a gente conversava um pouco. Aí eles pediam para tirar foto, mandavam endereço para gente poder continuar sempre muitos amigos. Quando eu pegava trem todo mundo queria tirar foto comigo, todo mundo queria sentar do meu lado, todo mundo queria me dar comida, todo mundo queria que eu parasse na cidade deles pra dormir na casa deles um dia. Ofereciam-me todas as comidas que tinham no trem - e você tem que ter cuidado porque a comida deles é muito apimentada. Tem coisas que não faz mal pra eles, mas faz pra você e às vezes você recusar é uma ofensa, enfim. E, às vezes, as pessoas ficavam conversando comigo em hindu e eu fingindo que entendia. (RISOS) Porque para muitos deles também é inconcebível que exista outra pessoa que fale uma língua, claro que lá tem muitas línguas, mas nenhuma língua próxima da deles, sabe? Por exemplo, quando eu falava para as pessoas que a gente usava biquíni pra ir à praia uma amiga que trabalhava comigo perguntou: “sua mãe usa isso na frente de seu pai?” Quer dizer, aquilo para ela é inconcebível. Às vezes eles até tem TV a cabo em casa e veem programas de Hollywood, mas é como se fosse desenho animado para gente - que a gente sabe que não é realidade. Engraçado porque ao mesmo tempo em que alguns deles se conectam com o que existe no ocidente eles não conseguem pensar isso numa realidade cotidiana. Então eu mostrava as roupas que eu tinha trazido de Londres e que eu não vestia lá e eles ficavam abismados. Abismados em ver minhas blusinhas, as minhas sainhas, meu biquíni e tal. Eles não conseguiam imaginar que eu usava aquilo. São coisas muito, muito diferentes.
P/1- Você tem alguma imagem, algum fato marcante da Índia?
R- Eu tenho uma lembrança muito forte que foi esse dia que eu fui pra Varanasi. Eu queria passar o final de semana porque eu queria conhecer o Ganges. Varanasi é uma cidade turística e o meu chefe acabou conseguindo essa casa para eu ficar. E aí eu tinha decidido que eu ia ver o amanhecer no Ganges, que é uma coisa que todo mundo faz, que dizem que é lindo. E a pessoa que combinou de me levar não apareceu. Quando deram nove horas da manhã eu saí e fui para o Ganges. Você fala “Ganges” e todo mundo vai te levar até lá. Os barcos geralmente andam um pouco pelo Ganges e param na outra margem que não tem cidade nenhuma, é um barranco de areia e as pessoas ficam lá. Só que quando eu cheguei lá não tinha mais programa turístico porque os turistas só vão para ver o sol nascer ou o se por. Então todos os barcos que estavam saindo eram só de indianos. Uns barcos que você fala: “meu deus, esse negócio vai virar, né?” Mas ou eu fazia isso ou eu não ia passear pelo Ganges e aí decidi entrar. Entrei no negócio lá. E aí eles fazem um programa que é completamente diferente. Eles não ficam andando pra cima e pra baixo. Eles vão para o outro lado do Ganges e param. E aí as pessoas do outro lado do Ganges começavam a tirar os sapatos e entravam no rio com roupa e enchiam um monte de garrafa de plástico com água do Ganges e começavam a beber. E eu já tinha visto todo o crematório do outro lado, os corpos sendo jogados no rio, corpos de animais boiando. Eu já sabia que existia isso, mas ver isso acontecendo... As pessoas tomando banho sendo que do outro lado as pessoas estão sendo cremadas e jogadas no rio. E aí as pessoas - todos indianos, ninguém falava inglês - começaram a me oferecer água para beber. E eles não conseguiam compreender como é que eu não aceitava. E eu não aceitei. Eu acabei não bebendo a água porque pra mim aquilo era demais. E eu ficava tentando explicar, mas não tinha como eu explicar. Então ficavam querendo que eu tirasse o meu sapato, levantasse a calça e entrasse no rio, mas eu não tinha coragem de fazer aquilo. Então eu fiquei andando pela areia e tirando fotos. Mas eu não sei como é que eles me olharam, porque aquilo - pra eles - era tão absurdo. Pessoas vinham de tão longe para poder fazer aquilo e eu fui para conhecer e ao mesmo tempo não fiz aquilo. Enfim, eu era o centro das atenções dentro do barco. Isso foi muito forte para mim: a crença deles. E já foram feitos estudos de que as pessoas que bebem a água não adoecem, elas não pegam infecção, enfim. Eu acho que a fé e a crença é tão grande que aquilo realmente é purificador, sei lá, deve criar algum tipo de imunidade que a ciência não explica. Isso foi muito... A imagem dessas pessoas me oferecendo a água olhando nos olhos - porque eles olham nos olhos - você não pode encarar, mas depois que ele te encara e você tem alguma relação, que seja essa mínima de entrar no barco com eles, você pode fazer esse contato visual. Olhar o olhar deles e ao mesmo tempo essa incompreensão do que está acontecendo. Acho que é uma imagem muito forte.
P/1- E a sua volta ao Brasil depois?
R- A minha volta foi consciente. Teve um momento que eu falei: “não; agora eu quero voltar.” Eu avisei às minhas irmãs que eu voltaria numa data e avisei aos meus pais que voltaria noutra. Porque eu queria voltar e ficar um tempo e depois fazer o anúncio que eu cheguei. Minhas irmãs foram me receber no aeroporto porque durante esse período que eu fiquei fora a nossa relação se estreitou absurdamente. Eu não sentia saudades das pessoas, eu não senti saudades de ninguém durante o período porque era como se todo mundo que tivesse convivido comigo estivesse comigo, de alguma maneira que eu não conseguia explicar. E até hoje eu sinto que a minha relação de proximidade, principalmente com as minhas irmãs enquanto eu estava morando fora, foi uma relação tão próxima que até hoje eu não consegui ter esse tipo de proximidade novamente. Quando eu voltei minhas irmãs estavam aqui e aí eu passei uns dois dias encontrando amigos e tal e só depois eu liguei da minha casa aqui de São Paulo para avisar os meus pais. E aí imediatamente a minha mãe comprou uma passagem e fui para Salvador. Era véspera de carnaval e aí ela juntou a família inteira. O meu pai e minha mãe tinham se mudado de casa novamente e eu não tinha ainda conhecido a casa. Existia uma expectativa das pessoas me verem de maneira diferente, de me redescobrir também e eu tentei viver isso com o máximo de tranqüilidade possível assim. Eu tinha feito um rompimento tão grande, mas eu estava voltando para relações que existiam antes. Então ia sempre existir esse conflito entre a Tiana que saiu daqui e a Tiana que de alguma maneira se transformou durante essa viagem. E é uma coisa que eu vivo até hoje.
P/1- E o seu cotidiano. Você voltou a trabalhar?
R- Eu voltei a trabalhar. O primeiro projeto que eu comecei a trabalhar foi um projeto com o Museu da Pessoa. Foi um projeto na favela de Heliópolis com jovens. Foi a primeira vez que o Museu fez uma parceria com a Aracati, a Caren e a Luciana sempre quiseram fazer um projeto juntas, mas foi a primeira vez que a gente utilizou a história de vida não como o fim em si, mas como uma metodologia. A gente trabalhou histórias de vida para os jovens. Eles começarem a trabalhar a sua identidade, trabalhar a identidade de bairro. Todo diagnóstico que eles fizeram da comunidade para depois ver o que eles gostariam de modificar na comunidade foi feita através de histórias de vida. Então eles fizeram toda uma formação com a Márcia - que eu participei - e todo o diagnóstico da comunidade que eles fizeram foi através de histórias de vida. Foi muito bacana também. O interessante foi que como me voltei para uma comunidade que era tão pequena e que as relações eram tão diferentes da vida no centro de São Paulo encontrei muitas coisas similares com a Índia. Quando você vai pra uma realidade mais popular, de mais simplicidade, você encontra várias relações entre as pessoas que é muito próximo do que eu encontrei lá. E essas conexões ainda acontecem em momentos que eu vivo, em experiências que acontecem de sentir uma conexão com coisas que eu já vivi.
P/2- E hoje?
R- Na verdade hoje eu continuo trabalhando em vários projetos. O último projeto, de maior duração, foi um projeto também de juventude no interior de São Paulo onde eu trabalhei com 250 jovens e coordenei uma equipe de alguns educadores. Esse projeto está passando por uma transição agora. Então desde o ano passado eu decidi que eu não queria mais continuar nesse tipo de trabalho e que eu queria viver outra coisa. Eu não queria ficar só coordenando projetos de jovens. Eu queria experimentar outras áreas de atuação, mas ainda dentro da área social. Esse projeto está se tornando uma política pública pela Secretaria Municipal de Educação de Capão Bonito, que é no interior, quase divisa com o Paraná. Eu estou fazendo esse processo de transição para atuação dentro das escolas municipais, mas não vou continuar tocando. Estou procurando outros desafios profissionais agora. Acho que vivi um momento de ser diretora de uma organização, vivi um momento mais independente de não ter tempo integral em nenhum desses projetos. Vários projetos, eu coordenava vários projetos de diferentes organizações ao mesmo tempo e agora eu estou sentindo a falta de ter uma interferência, uma contribuição estratégica maior que eu tinha dentro da organização -que eu continuo como conselheira - Aracati, mas eu não quero mais ficar coordenando um projeto de juventude porque na verdade acho que os jovens são fundamentais em qualquer processo de transformação que a gente venha a querer viver no país.
Eles são mais de 30 por cento da população hoje, mas minha bandeira nunca foi juventude. A minha bandeira sempre foi gente. E então eu quero mudar um pouco essa imagem. Acabei trabalhando tanto com jovens que as pessoas acham que eu sou especialista em juventude e na verdade eu quero trabalhar com gente, jovens, adultos, velhos... Eu estou querendo fazer essa mudança agora.
P/1- Eu me esqueci de te perguntar uma coisa. Quando você saiu da Bahia para São Paulo, como que foi essa saída? Como que você viveu essa primeira separação dos seus pais, da sua família? A gente não falou da saída e nem da vivencia dessa situação.
R- Eu acho que eu não tinha consciência do que significava pra mim quando eu saí. Acho que cada momento da minha vida o que eu fiz muda de sentido. Então o que ficava na minha cabeça era “quero fazer a melhor faculdade do país, quero fazer a melhor faculdade do país”. Isso eu usei como uma grande desculpa pra vir para São Paulo e só depois de muito tempo que eu fui perceber o quanto não era essa. Hoje eu não vejo essa como a maior razão de eu ter vindo pra São Paulo. Eu acho que eu precisava mesmo me distanciar dos hábitos, valores da minha família. Por mais que eu compartilhasse deles para poder começar construir a minha própria identidade - que incluí a minha família, mas que também que é construída de várias outras coisas que não vem da minha família. Acho que sofri muito quando cheguei em São Paulo. Eu ficava morando sozinha e perguntando: “meu Deus, o que é que eu vim fazer nessa cidade? Eu não conheço ninguém, não tenho um amigo, não tenho nada. O que é que eu vim fazer aqui?” Eu entrava em desespero em alguns momentos, mas logo depois que eu comecei a trabalhar isso se tornou muito tranquilo. Eu comecei a gostar de viver em São Paulo, comecei a enxergar todas as outras coisas que aqui não tinha, mas que existiam tantas outras. Eu chegava às vezes andar na Paulista e no horizonte eu via o mar. Enlouquecer achando que eu iria ver o mar porque era tão comum passar em Salvador e ver o mar. Eu olhava de novo e “não, não tem mar nenhum”. Umas coisas meio estranhas no começo. Mas acho que essa relação com a minha família foi uma grande oportunidade de poder, à distância, olhar essa relação de outra maneira e construir as coisas da minha maneira. Foi muito significativo.
P/1- Tiana, a entrevista está acabando e eu gostaria de saber se você gostaria de acrescentar alguma coisa sobre a sua trajetória que a gente não falou na entrevista.
R- Eu acho que tem uma coisa que é importante. Acho que tenho visto na minha vida círculos de mudanças muito claros. Enquanto estou neles eu não consigo perceber, mas eles vão fechando e vão abrindo outros e vão abrindo outros e vão abrindo outros. E acho que aí depois de você passar por muitos desses círculos é que você percebe o que te dá força durante esse momento. Quais as coisas que ficam. Que essas coisas podem mudar de significado, mas elas estão sempre lá. Acho que tem uma coisa muito forte que é a relação com minhas irmãs. Mesmo as duas morando em Salvador é engraçado porque sempre que a gente está em processos muito fortes de mudanças a gente percebe isso na vida das três acontecendo em círculos próximos. São os momentos que a gente mais se aproxima. E essa relação também de resignificar toda a relação com os meus pais e com a minha família em geral. Isso tem sido uma constante. É como se ao final de cada círculo desse a relação fosse se tornando mais madura, fosse se tornando mais de pessoa para pessoa independente do papel de mãe, pai, filha mais velha. Às vezes tem também toda aquela carga que as minhas irmãs depositavam em mim de autoridade de ser a pessoa que é a referência. Essas coisas vão mudando sim. Acho que tem isso. E acho que nesses últimos círculos de vida que eu percebi, logo quando eu voltei da Índia, que eu encontrei o meu atual marido. Ele participou do CISV quando eu era jovem, e viajou com a minha irmã do meio para o México. Então, por exemplo, quando eu tinha 14 anos - ele é mais novo que eu - ele tinha 13 anos. Até tem uma foto que eu não achei para trazer que eu já sou dessa altura, tenho um metro e sessenta e aí cabe aqui debaixo do meu braço porque como ele tinha 13 anos tinha cara de criança. Mas a gente nunca foi muito amigos. E aí quando eu voltei da Índia ele tinha vindo morar em São Paulo para fazer Direito e ele tinha restabelecido a relação com a minha irmã e logo depois que eu cheguei a gente se reencontrou e foi tudo muito rápido. A gente começou a morar junto.
P/1- Qual é o nome dele?
R- Rafael. E acho que foi a última pessoa que entrou nesses círculos e que também não está saindo desses outros círculos que eu vivo, entendeu? São os círculos que mudam de significado, mas as relações com essas pessoas acabam sempre se fortalecendo e nunca se destruindo. Ele foi a última pessoa que entrou nesses meus círculos de mudanças.
P/1- E vocês se casaram recentemente?
R- A gente não casou oficialmente. A gente começou a namorar logo quando eu voltei em 2004 e depois de quase oito meses a gente foi morar juntos. Então não teve nenhum ritual de festas, de nada. Mas desde o momento que a gente foi morar juntos a gente se considerou como casados. Então estamos casados, digamos assim, morando juntos há dois anos e meio agora.
P/1- Gostaria de falar dele um pouquinho?
R- Eu não sei. Ele vai dar entrevista amanhã. (RISOS) Acho que ele pode falar mais. Mas ele também é uma pessoa que vive círculos de mudanças muito claros. Nós dois somos pessoas que tentamos respeitar muito os processos de mudanças de um e do outro porque a gente sabe que nada é pra permanecer igual e isso dá muita força para nossa relação porque não engessa. Não me engessa, não o engessa e não engessa o nosso relacionamento. Acho que qualquer coisa que venha acontecer entre a gente no futuro a gente vai saber lidar e aproveitar da melhor maneira possível.
P/1- Tem alguma coisa na sua vida que você fez e que faria diferente?
R- Acho que não. Acho que tudo o que - mesmo que tendo feito de uma maneira que poderia ter sido melhor teoricamente – vivi me tornou a pessoa que eu sou hoje. Com várias coisas que eu quero mudar, com várias coisas que eu quero melhorar e ser melhor, mas não faria ser quem eu sou hoje. Então acho que não tem nada que eu olhe pra trás e diga “ai, teria feito isso diferente.” Porque tirado um aprendizado que veio depois e que para mim também foi importante. Então eu não mudaria nada não.
P/1 - O que você achou de ter contado a sua história de vida?
R- (RISOS) Ah, eu gostei. Gostei bastante. Eu fiquei apreensiva no começo por causa da câmera, mas eu sabia que com o tempo eu ia me esquecer dela ali. Eu já tinha vivido várias coisas com o Museu: formação de coleta de histórias, técnicas, indexação e tudo mais. Mas nunca tinha passado pela vivencia de ter contado a minha história de vida. Tinha passado também pela experiência do círculo de histórias que a gente vai fazer a formação mais para frente. Mas eu nunca tinha passado por isso. Eu acho que vivenciar isso é importante para também entender como fazer isso depois. Então eu gostei muito. Obrigada pela oportunidade.
P/2- Obrigado você.
P/1- Obrigado você.Recolher