P: Você podia me falar seu nome, o local e a data de seu nascimento? R: Meu nome é Luiz Carlos Duran, eu nasci dia 26 de janeiro de 1961 em São Paulo, Capital, mais especificamente no bairro da Penha. P: E você pode me contar um pouco sobre sua família? Como se chamavam seus pais, o que eles faziam? R: Minha mãe se chamava Wanda Rosa Duran e o meu pai Miguel Duran. Meu pai era barbeiro e a minha mãe era merendeira escolar. Ela trabalhou durante muitos anos na Prefeitura de São Paulo, numa escola em um bairro chamado Engenheiro Goulart e ela que era responsável pela merenda das crianças. Mas antes disso ela fez um monte de outras coisas; ela era dona de casa, até se casar nunca havia trabalhado, e depois quando se casou, a vida foi bastante diferente. Então do que eu me lembro, ela trabalhou num cinema, um cinema chamado Júpiter, ali na Penha, que não existe mais, e ela limpava o cinema e também fazia faxina e lavava roupa na casa dos funcionários do cinema e daí nesse período tinha um concurso público na Prefeitura de São Paulo e ela prestou esse concurso e foi aprovada e ficou até se aposentar nessa mesma escola. Ela ingressou nessa escola, que se chamava Edgar Cavalheiro, escola inclusive onde eu estudei do segundo ano do Fundamental até a oitava série, e minha mãe ficou lá até se aposentar. O meu pai era barbeiro, morreu exercendo a profissão, trabalhando como barbeiro, inclusive quando ele já estava bem doente, ele morava numa barbearia, mas do meu pai eu não tenho muito, muito, o que falar porque eles se separaram quando eu tinha seis anos, então eu não tenho muita memória, apesar dele ter sido sempre constante até o final da vida dele, a gente sempre teve contato, mas não havia um cotidiano, uma vivência. Sei que ele era comunista acirrado, segundo ele tinha viajado a Cuba e a Moscou em pleno período do regime militar, dizia que conhecia pessoalmente o Luiz Carlos Prestes, inclusive a origem do meu nome é esse, Luiz...
Continuar leituraP: Você podia me falar seu nome, o local e a data de seu nascimento? R: Meu nome é Luiz Carlos Duran, eu nasci dia 26 de janeiro de 1961 em São Paulo, Capital, mais especificamente no bairro da Penha. P: E você pode me contar um pouco sobre sua família? Como se chamavam seus pais, o que eles faziam? R: Minha mãe se chamava Wanda Rosa Duran e o meu pai Miguel Duran. Meu pai era barbeiro e a minha mãe era merendeira escolar. Ela trabalhou durante muitos anos na Prefeitura de São Paulo, numa escola em um bairro chamado Engenheiro Goulart e ela que era responsável pela merenda das crianças. Mas antes disso ela fez um monte de outras coisas; ela era dona de casa, até se casar nunca havia trabalhado, e depois quando se casou, a vida foi bastante diferente. Então do que eu me lembro, ela trabalhou num cinema, um cinema chamado Júpiter, ali na Penha, que não existe mais, e ela limpava o cinema e também fazia faxina e lavava roupa na casa dos funcionários do cinema e daí nesse período tinha um concurso público na Prefeitura de São Paulo e ela prestou esse concurso e foi aprovada e ficou até se aposentar nessa mesma escola. Ela ingressou nessa escola, que se chamava Edgar Cavalheiro, escola inclusive onde eu estudei do segundo ano do Fundamental até a oitava série, e minha mãe ficou lá até se aposentar. O meu pai era barbeiro, morreu exercendo a profissão, trabalhando como barbeiro, inclusive quando ele já estava bem doente, ele morava numa barbearia, mas do meu pai eu não tenho muito, muito, o que falar porque eles se separaram quando eu tinha seis anos, então eu não tenho muita memória, apesar dele ter sido sempre constante até o final da vida dele, a gente sempre teve contato, mas não havia um cotidiano, uma vivência. Sei que ele era comunista acirrado, segundo ele tinha viajado a Cuba e a Moscou em pleno período do regime militar, dizia que conhecia pessoalmente o Luiz Carlos Prestes, inclusive a origem do meu nome é esse, Luiz Carlos, por causa de Luiz Carlos Prestes, em homenagem a Luiz Carlos Prestes. Ele morreu, eu não vou saber precisar a quantos anos, mas há muitos anos, eu imagino que há mais de vinte anos ele tenha morrido, de câncer. E a minha mãe morreu a 11 anos de um AVC. Eu tenho duas irmãs, mais velhas que eu, uma se chama Anita, em homenagem a Anita Garibaldi e a outra Lenita, em homenagem ao Lenin (riso). Pouco comunista ele, né? P: E como seus pais se conheceram, você sabe? Sei. Meu pai era 11 anos mais velho que a minha mãe. E ele era amigo do meu avô, o Seu Ramalho, ele frequentava a casa do meu avô e conheceu a minha mãe ali. E eles tinham um, a minha mãe nunca tinha tido nenhum namorado, meu avô era uma pessoa muito rigorosa, era policial civil, em um período bastante autoritário, e um dia meu avô descobriu numa revista de moda, essas revistas de corte e costura que tem esses moldes, essas coisas, um bilhetinho do meu pai para minha mãe e daí ele... O meu avô perguntou o que era aquele bilhete, minha mãe não soube muito que dizer, não tinha muito que dizer, era um bilhete infantil, bobo, só dizendo que gostava dela, que simpatiza com ela, sei o lá o que. Só sei que meu avô chamou o meu pai, perguntou pra ele quais eram as intenções, meu pai disse que gostava da minha mãe e daí meu avô pegou um calendário, riscou na folhinha dia 13 de janeiro e eles se encontraram na igreja para casar depois disso, foi assim, namoro, noivado, foi exatamente assim. E meu avô não permitiu que fosse ninguém da família, levou a minha mãe até a porta da igreja e minha mãe entrou de braços dados com um cunhado dela, um irmão do meu pai. E a mãe dela, as irmãs, os irmãos, a ninguém foi permitido participar do casamento da minha mãe, porque meu avô se sentiu traído, porque eles eram amigos e como é que um amigo, sei lá qual era o nível de intimidade, de amizade deles, seduzia a filha dele? E ele não, aliás, não perdoou o meu pai até o fim da vida, eles nunca mais se falaram, nunca mais foram amigos. P: E sobre os seus avós, então, o que você sabe? Você falou desse avô Ramalho... Esse meu avô Ramalho, ele se chamava Sebastião Ramalho, era meu avô materno, era casado com a minha avó que chamava Dona Lazinha. Eram pessoas simples, eram pessoas com uma visão de mundo muito diferente da que a gente tem hoje, meu avô era extremamente autoritário, até o fim da vida dele, nunca foi de muita conversa com netos, não tínhamos... Não tínhamos uma relação de amizade. E a minha avó era uma mulher submissa, uma mulher que temia o marido acima de qualquer coisa, era muito doente e nós tínhamos bastante contato, férias todas eram na casa deles, Natal, Ano Novo, Dia das Mães, Dia dos Pais, eu nunca tive uma relação com a família do meu pai, mas com a família da minha mãe a gente sempre teve uma relação muito próxima, com as minhas tias, com meus tios, com meus avós, mas com meus avós, no que me diz respeito, nunca foi uma relação afetuosa, nem com a minha avó. Minha avó era uma mulher... Ela preteria uns aos outros, os filhos aos netos, enfim, não tínhamos uma relação. Tínhamos proximidade, mas no meu caso específico, não tínhamos uma relação muito próxima. Mas com meus tios sim, com a grande maioria dos meus tios, a gente era bastante, fomos sempre bastante próximos. P: E você sabe alguma coisa sobre a origem deles, dos seus avós maternos? R: Não. P: Eram brasileiros? Eram brasileiros, até onde eu sei, eles não tinham descendência europeia nenhuma. A descendência europeia da minha família é por parte dos meus avós paternos, ela era italiana e ele espanhol, daí inclusive vem meu sobrenome Duran. P: Mas com eles você disse que não tinha muito contato. R: Não. O meu avô paterno, eu acho que se chamava José, ou Miguel também, não sei, ele morreu antes de eu nascer, bem antes, ele morreu acho que logo depois que a minha irmã mais velha nasceu. E a minha avó não, eu me lembro dela, me lembro inclusive dos mantecais. Quando eu lembro da minha avó Elisa, eu me lembro de mantecais. Ela fazia toda vez que ia em casa, ela fazia aquelas fornadas de mantecal, muito, muito bom. P: E eles moravam em São Paulo? R: Não, moravam em Jundiaí, moraram a vida inteira em Jundiaí, num bairro chamado Vila Cica, porque tinha a fábrica da Cica ali, então o bairro recebeu o nome de Cica. R: O seu pai também era de Jundiaí? Jarinu, ele era natural de Jarinu. P: E aí, quando seus pais se casaram, eles foram morar também nessa região da Penha? R: Não sei, mas eu acho que não, eu sei como eles foram morar, onde eu não sei. Eles foram morar na casa de um meu tio, irmão do meu pai, chamado Henrique, que era casado com uma tia chamada Maria, e a minha mãe, ela falava que tinha uma expectativa, casou, vou ter minha casa... Era um quarto do meu tio e da minha tia dividido por um lençol, com móveis velhos de segunda mão que meu pai havia comprado e foi aquilo. Agora, se eu não meu engano, eu não vou saber dizer o bairro, era em São Paulo, mas não sei qual era o bairro. P: Mas na sua lembrança de quando você era criança, onde vocês moravam? R: Eu nasci numa travessa da Avenida Amador Bueno da Veiga, numa rua chamada Mirandinha e daí minha vida inteira foi na Zona Leste, eu sempre morei na Zona Leste, até mudar aqui para Juquitiba, minha vida inteira eu morei na Zona Leste. Morei nessa Rua Mirandinha, onde eu nasci, quando eu era pequeno acho que a gente teve algumas moradias, mas tudo por ali e daí, da onde eu me lembro, nós morávamos numa rua chamada Cumbé que é na Penha, em uma propriedade do meu avô, porque num período meu avô alugou uma casa para os meus pais morarem. Essa Rua Cumbé é paralela a uma rua chamada Coronel Meireles, então a casa do meu avô ficava para a Coronel Meireles e o fundo da casa, que era outra casa, ficava para essa Rua Cumbé e eram duas casas. Em cima ele alugou para minha tia Wandilza, que morava com o marido dela que se chamava Carmone, e em cima nós morávamos, eu, minhas irmãs, minha mãe e meu pai. E quando meus pais se separaram, quando eu tinha seis anos, nós morávamos nesta casa. Logo que eles separaram, meu avô chamou minha mãe para conversar. Como ela não trabalhava, disse que ela não teria condições de se manter ali e nós fomos morar no porão da casa dele até que nós tivéssemos algum lugar para ir. O meu avô muito generoso... Sugeriu à minha mãe, porque minha avó já estava doente nessa época, que, disse pra ela que jamais ficaria desamparada, porque ela era filha dele e que ele inclusive precisaria de uma pessoa para cuidar da minha avó e que ela poderia ficar ali morando com eles, mas os três filhos não e que ia providenciar um colégio interno para os filhos, porque com os filhos dela não tinha como ele ficar. E daí minha mãe, claro, não aceitou, daí fomos morar neste porão. A minha irmã já tinha certa idade e começou a trabalhar como manicure num salão, minha irmã mais velha, e logo, foi nesse período que minha mãe foi trabalhar no cinema e logo teve o concurso, ela passou e daí nós fomos morar num bairro bem próximo dali, dava até para ir a pé, chamado Cangaíba, minha mãe alugou uma casinha lá e nós fomos morar pra lá, saímos da casa do meu vô e fomos morar pra lá, moramos lá durante muitos anos, eu saí de lá quando eu tinha uns 15 anos e nós fomos morar no Belenzinho, na Rua Marcos Arruda, depois do Belenzinho, nós voltamos para a Penha e fomos morar numa rua chamada Doutor Cantinho. Depois da Doutor Cantinho, nós fomos morar no Tatuapé, num prédio na Avenida Celso Garcia, depois dessa casa na Avenida Celso Garcia nós fomos morar ali perto ainda, daí a gente morou mais em umas duas casas, mas sempre ali no Tatuapé, até onde minha mãe faleceu. Depois que a minha mãe faleceu a gente ainda mudou de casa e morou a umas duas quadras de onde morávamos antes e ficamos mais dois anos, eu com a minha irmã e minha sobrinha e daí eu vim para Juquitiba. Já morei em bastantes lugares. Tem gente que nasce e vive a vida inteira em um lugar só, né? Não foi a minha história de vida. Eu vivi em lugares muito próximos, sempre ali na Zona Leste, mas em várias casas... E a gente nunca foi despejado, aquelas situações daquelas pessoas que são despejadas, mas os alugueis acabavam ficando caros e não tinha como comprar uma casa Acho que da família da minha mãe, inclusive, nós éramos os únicos que não tínhamos casa própria, e a única filha que era desquitada, a largada do marido (riso), que para a época era uma coisa... Na época não existia divórcio, a minha mãe era... apesar que a minha mãe nunca foi desquitada, a minha morreu casada, morreu viúva né, porque o meu pai morreu antes, mas minha mãe nunca se separou legalmente, e é isso. P: E da sua infância, tem algo que você lembre, marcante? R: Muito pouco. Não. Tive uma infância... A minha irmã do meio cuidava de mim, a Lenita, minha mãe trabalhava. Nunca tínhamos festas de aniversário, Natal nós tínhamos na casa do meu avô, mas a gente tinha uma vida muito simples, mas nós éramos muito unidos, minhas irmãs, eu e minha mãe. Foi uma infância tranquila, não foi uma infância com muitos... Aliás, como era a infância naquele período. Não é como hoje que se tem acesso a muita coisa, hoje para você ganhar um presente é muito fácil, naquela época não tinha isso, não era nem hábito de fazer festa de aniversário, Buffet, não tinha essas coisas, era simples. Olha, eu não sei o que é passar fome, eu não sei o que é passar frio. Eu da minha infância o que eu acho que mais marca era a presença constante da minha mãe. Minha mãe era muito próxima, minha mãe nunca teve um namorado depois que se separou, eu nunca tive padrasto, nunca, minha mãe vivia conosco ali, mas era uma mulher muito alegre, uma mulher muito de bem com a vida, ela era muito feliz com a vida que ela tinha conosco, a minha mãe não era frustrada em nada, minha mãe ria muito, minha mãe era muito luminosa, então se eu penso na infância eu lembro disso... Viagens a São Vicente, a Serra Negra, que foram cidades que meus avós moraram depois que saíram da Coronel Meireles, primeiro em Serra Negra, não, primeiro em São Vicente, depois em Serra Negra, viagens que fazíamos para lá em época de férias. P: Brincadeiras? De infância? R: Todas essas de menino, carrinho de rolimã, empinar pipa, balão, bolinha de gude, jogar futebol, eu desconheço. Nunca brinquei de nada disso. Nunca subi num carrinho de rolimã, não sei como é. O meu universo sempre foi muito feminino porque tinha só mulheres no meu universo, minha mãe e minhas irmãs, então pra mim era muito natural achar bonito as coisas que as mulheres achavam. Eu não tinha esse filtro de não dizer, por exemplo, se eu visse um homem bonito e dizer que ele era bonito, para mim não era problema porque eu estava habituado a ouvir aquilo, mas em contrapartida depois de adulto, nada do universo feminino me fascina, essa coisa de moda, tem caras que veem moda, que entendem de roupa, sapato, nada disso. Eu por exemplo não gostaria de ser mulher, não há nada no universo feminino que me chame a atenção, ah, eu gostaria... Não tenho nada disso não. P: Você falou que morou em vários bairros, mas todos na Zona Leste, até se mudar para Juquitiba. E a sua lembrança da Zona Leste? R: Como é hoje para mim? Minha lembrança? É minha casa. A Zona Leste é minha casa. Eu sei onde tem tudo, eu sei andar em tudo, me reconheço ali. Eu não sou naturalmente uma pessoa saudosista, então quando eu estou aqui eu não fico lembrando... Porque a vida aqui em Juquitiba é extremamente diferente da vida que eu tinha quando eu morava no Tatuapé, mas eu me reconheço ali. Mas não tenho a menor intenção e nem vontade de voltar morar lá. P: Mas como você me descreveria a Zona Leste? R: A Zona Leste? A Zona Leste é muito grande, né? Porque eu nunca morei além da Penha. O máximo que eu morei além da Penha, que na verdade não é além é paralelo, é esse bairro do Cangaíba, que é bem início do bairro, onde eu tenho uma tia que mora até hoje. Como eu descreveria emocionalmente ou como eu descreveria... P: Da sua lembrança. De como era a vida por lá. R: A vida era mais movimentada, tinha acesso a tudo com muita facilidade, coisas que aqui não tem, mercado 24 horas, bancos quais eu queira, se tivesse com fome podia sair a qualquer hora que eu ia encontrar algum lugar para comer, eu saía mais, eu conhecia mais pessoas do que aqui, acho que é isso. Mas é um lugar, é apenas um lugar. O meu universo não tá ligado ali, é um lugar que ajudou a construir o que eu sou hoje, mas é só um lugar. As mesmas lembranças que eu tenho de Salvador, que é um lugar que eu gosto muito, ou de Milão, ou de Roma, ou de Lisboa, dos lugares por onde eu já passei... São lugares... Não tenho uma coisa assim, oh... Como aqui, aqui também é um lugar, é um lugar especial para mim, porque meu universo está aqui agora e agora em caráter definitivo, aqui eu sei que daqui eu nunca vou sair, aqui é para eu terminar os meus dias. Mas é um lugar, é o lugar onde eu vivo, não tem... É uma coisa inanimada mesmo... O que eu vivi ali é que... As coisas que eu vivi em Juquitiba, ou que vivi no Tatuapé, ou que eu vivi em Roma, ou que eu vivi em Lisboa, são coisas que eu vivi que são independentes dos lugares, os lugares eles eram cenários. P: E a escola? R: Como aluno ou como professor? P: Você é professor, mas como você se tornou professor, o que se lembra das escolas que estudou? R: Eu fiz, eu estudei o primeiro ano em uma escola na Penha, ali na Coronel Meireles, se eu não me engano se chama Campos de Camargo, fiz só o primeiro ano ali. Do segundo ano à oitava série, eu fiz na escola em que minha mãe trabalhava. O Ensino Médio eu fiz numa escola que era muito tradicional na época, que hoje não é mais escola, é uma Delegacia de Ensino, Padre Anchieta, ali perto do Largo da Concórdia. E quando eu terminei, fiz um ano de Economia na Universidade São Judas, inclusive encerrei o ano. Nessa época eu já trabalhava no Banco Itaú e a minha família, porque eu nunca quis fazer Economia, eu queria fazer Propaganda e Marketing, eu queria fazer alguma coisa na área de Humanas, mas como eu trabalhava no banco e naquela época trabalhar num banco era quase que ter já emprego garantido, então eu acabei... E aí foi muita pressão da minha irmã, principalmente, minha irmã mais velha, pra que eu fizesse Economia e daí eu fiz, eu passei, mas eu não me lembro nem as disciplinas que eu estudei naquele um ano, não significava nada para mim, era uma coisa muito chata. E daí no final do ano eu fiz inscrição na Faculdade Ibero-Americana pro curso de Tradutor e Intérprete, na verdade eu não queria ser professor, eu queria ser tradutor, eu queria ser intérprete, queria trabalhar na área de turismo e daí eu fiz e era uma faculdade, hoje em dia acho que não é muito não, mas na época era uma faculdade muito concorrida nessa área de Tradutor e Intérprete. Eu fiz o vestibular para Inglês e a segunda opção Alemão. O Inglês ali você tinha que ter já um conhecimento prévio e eu não passei, ou melhor, eu passei, mas para estudar de manhã, porque tinham turmas pela manhã e pela noite e eu não podia porque eu trabalhava, não tinha como estudar de manhã, e daí à noite eu só podia fazer se eu fizesse alemão e daí eu fiz. A própria faculdade me orientou o seguinte, faz esse um ano, se você quiser você nem frequenta as aulas de Alemão, faz as matérias comuns e daí no segundo ano, você entra e começa só as matérias de Inglês. Mas daí eu estava ali e fui ter noção de como era o Alemão e eu acabei me apaixonando pelo Alemão, eu gostava bastante de estudar. Eu trabalhava no Banco Itaú nessa época, então quando eu terminei a faculdade o banco já, os bancos já estavam em crise. P: Isso foi em que época? R: Ai, eu sou tão ruim com negócio de ano... Eu fiz santo em 77. (pausa). 81, 82 eu devo ter entrado no curso de Economia, então 82, 83 eu comecei a fazer faculdade. E foi muito engraçado porque quando eu cheguei em casa que eu falei que eu tinha prestado a Ibero, porque eu fiz vestibular, eu fiz a inscrição, sem ninguém saber, e eles ficaram muito surpresos. A minha mãe, como sempre, me apoiou e a minha irmã que trabalhava na Nestlé, eles só contratavam secretárias que saíssem da Ibero, por causa da fluência no Inglês, no Alemão e no Francês. E daí como era Ibero ela acabou apoiando, na realidade não tinha que aceitar, e daí foi assim, eu fiz o curso, depois do curso de Tradutor eu fiz mais um ano com as matérias pedagógicas e eu tinha um amigo, na realidade um irmão de santo, que era diretor de escola e daí ele estava com duas turmas de terceiro ano sem professor de Língua Portuguesa, e ele me convidou para eu pegar essas aulas e eu já tinha saído do banco, trabalhava numa empresa, numa multinacional alemã e daí ele me chamou para essas aulas. Eu dei um tempo porque eu achei que aquilo lá não tinha nada a ver comigo, eu, dar aula? Não tinha o menor jeito para a coisa. E acabei indo, de tanta insistência dele. Eu falei que eu iria por umas duas semanas, para o pessoal não ficar sem aula, e eu acabei me apaixonando, acabei gostando. Quando você gosta você faz bem, os alunos me adoravam, é uma faixa etária que até hoje eu gosto, o pessoal do Ensino Médio. E daí no ano seguinte, acho que isso foi em maio, eu acabei dando aula até o final do ano e daí já ingressei e fiquei. Com o total de aulas que eu poderia pegar à tarde e à noite, era muito mais, quase o dobro, eu acho mais que o dobro do que eu ganhava nessa empresa na época, época em que o professor era ainda um pouco bem remunerado. E daí eu abandonei e estou até hoje, mas não houve um projeto, ou um dom, quero ser professor, ao contrário, era uma coisa que nunca me ocorreu, e daí fiquei. Agora falta um ano para eu me aposentar, espero, porque é tudo tão complicado para se aposentar, fazer a contagem de pontos, tudo isso, então não é uma certeza que no outro ano eu me aposente. P: Você falou de quando fez santo. Que foi... R: Em 1977. P: E como foi essa aproximação com o candomblé? R: Eu tinha um amigo dessa escola onde minha mãe trabalhava e ele estava num ano acima do meu e ele já era envolvido com essas coisas de candomblé, de umbanda, mais de umbanda na época, e daí ele começou a falar. Para mim era muito estranho, eu não conhecia nada daquilo, eram aquelas coisas que causavam medo. A minha família não era católica praticante, mas era católica, não tinha ninguém espírita, muito menos de candomblé, que há 37 anos não se ouvia falar... Fazer santo, raspar cabeça no candomblé... Se hoje é coisa do demônio, imagina há quase 40 anos? E daí eu comecei, a gente ficou muito próximo e ele começou a me apresentar. Eu comecei a perder o medo e me despertou um interesse instantâneo quase por essas coisas. A umbanda eu nunca tive muito uma relação, eu cheguei a ir a alguns terreiros de umbanda com ele, mas eu não me identificava e assim, só não me identificava, não era assim, não me identificava com aquilo por que... porque eu não tinha nenhum parâmetro de comparação, só que aquilo não me despertava o que o candomblé me despertou. E uma vez ele me convidou para ir num candomblé que havia perto da casa da gente e era uma saída de iyawo, que a gente chama hoje de perfuré, na época era sarapokã, porque era uma casa de Angola, e essa saída se chamava sarapokã. E quando eu vi o iyawo saindo, todo pintado, careca, com delogum, com os fios de conta, com mokan, quelê, na hora eu sabia que aquilo era definitivo. E o mais engraçado, para nossa prática, para a minha prática de candomblé hoje, era muito diferente... A gente não pode tabular nada em certo e errado, dentro de religião nenhuma, muito menos de candomblé, sim diferente. Era uma prática muito diferente porque era uma iniciação de um homem que estava sendo iniciado de Nanã, que na nossa tradição não é permitido, mas era tudo muito mágico e aí eu fiquei fascinado e comecei a frequentar esse terreiro de candomblé que era perto de casa. Daí em casa já começaram a perceber, eu comecei a falar e não aceitavam, iam lá me buscar no meio das festas, e eu ia como assistência, para assistir mesmo, não participava, não colocava roupa. E daí esse mesmo meu amigo, chamado Paulinho, ele trabalhava e um dia ele chegou e falou assim, ah, tem uma moça no meu trabalho que vai fazer santo, ela vai fazer Oxum, e daí foi me contando toda a trajetória, que ele ia ajudar, que ele ia dar um prato, uma caneca de Ágate pra ajudar na feitura dela... Hoje em dia isso não é comum, mas naquela época era muito comum, as pessoas faziam uma listinha e os amigos ajudavam com as coisas da iniciação, um dava uma coisa, outro dava outra... A condição financeira era muito diferente e o candomblé sempre foi uma religião muito cara, sempre foi. E daí ele contava, que ela estava de quelê, que ela comia com prato de ágate, com a canequinha, que ela batia paó no trabalho, que eles conversavam muito... E um dia, num sábado, ele chegou em casa e disse assim, ah, o pai de santo daquela minha amiga que fez Oxum ele tá tirando um barco de iyawos, vamos lá conhecer? E a gente foi. Era muito longe. Eu morava no Cangaíba nessa época ainda e era no Jardim Primavera, pra lá de Santo Amaro, num lugar que só devo ter ido aquela vez. Na realidade era uma primeira saída de iyawo, não era ainda o dia do nome, e foi aí que eu conheci esse pai de santo chamado Kaobaquecy, Edson Ribeiro Mandarino que foi quem fez o meu santo. Eu o conheci, eu não me lembro do dia, mas foi uma semana antes do dia 23 de julho de 1977, então 23 menos 7? Foi nesse dia que eu o conheci. E daí, dia 11 de agosto de 1977 eu entrei para fazer santo, um mês e pouco depois. Minha atração por tudo isso foi tão intensa, e eu acho que era uma coisa de orixá mesmo, pra fazer naquele período, de imediato, e daí eu fiz santo, com esse homem na nação de Angola e fiquei com ele durante muitos anos. Somos amigos até hoje, mas também há mais de 25 anos que eu não estou na casa dele, agora minha mãe de santo chama-se Dona Ana d’Ogum, uma agbá, uma senhora com muita idade de santo, iniciada em Salvador, na Casa de Oxumarê e é com ela que eu me cuido esses anos todos e continuarei assim até os últimos dias. Se eu for antes que ela, ela ainda vai cuidar dos meus rituais fúnebres. P: E desse período da sua iniciação, sua entrada no candomblé, tem algo que seja marcante, que você gostaria de contar? R: Tudo. Tudo, tudo. A minha vida, acho que ela começa a contar a partir daí. Quando a gente faz santo, a gente morre, para renascer. Com outro nome... E eu acho que esse meu renascimento em 04 de setembro de 1977 foi o meu ponto de partida. Até por ter entrado muito novo, eu tinha 15 anos, então, tudo o que eu tenho de memória é depois, de memória significativa, é depois da minha iniciação. A minha relação com o candomblé ficou muito intrínseca, eu de imediato comecei a aprender muito, ajudar muito na casa de candomblé, eu sempre fui muito participativo, sempre estava presente em todos os rituais, em todas as outras iniciações que vieram depois da minha. Não vou saber agora escolher um momento, porque foi uma construção, todos os momentos são muito fortes eu acho, e como são agora, na minha casa. Seria a mesma coisa que eu dissesse qual das festas de candomblé que você já fez que mais te tocou, ou qual dos filhos que você iniciou que mais te emocionou, difícil eleger. P: Quando você se torna pai de santo? R: Como eu disse, eu sempre tive muito envolvimento, desde que eu fiz santo eu sempre me envolvi muito com o candomblé e com a casa onde eu fui iniciado, então eu aprendi muito e nessa casa onde eu fui iniciado tinha por tradição, não sei dizer se são todas as casas de Angola, mas essa casa em particular tinha a tradição que não iniciava marido e mulher na mesma casa, ou com a mesma pessoa, então como eu era um dos mais velhos, eu fui o décimo primeiro iyawo dessa casa de candomblé, fui um dos primeiros, e com certeza um dos mais participativos, então teve um rapaz de Ogum que ele é marido de uma moça de Iansã que é filha de santo desse pai de santo chamado Kaobaquecy e nós éramos muito amigos. Eu não tinha a menor intenção de ser pai de santo, eu já tinha sete anos, eu já tinha tomado o deká, como se fala na Angola, que o deká é aquele ritual no qual você se transforma de iyawo em egbomin, um mais velho, eu já tinha feito isso, já podia fazer qualquer iniciação, mas eu não tinha vontade. Eu sabia como era a vida de um pai de santo e eu estudava, sempre gostei de viajar muito, não queria aquele vínculo pra mim, eu era muito satisfeito com a minha religião, mas não precisava ser pai de santo, eu podia exercer a religião enquanto filho de santo, e esse rapaz a gente se tornou muito próximo, a gente era muito amigo, da família toda, e um dia ele me disse que ele só faria santo se fosse comigo e eu falei pra ele se ele não se incomodasse de ser filho único, eu faria só ele, mais ninguém, e assim foi. Eu fiz o santo dele. Meu primeiro filho de santo foi dentro da casa do pai de santo para auxiliá-lo. Mas daí eu tinha um irmão de santo chamado Marcelo que tinha uma casa de candomblé, não, uma casa de umbanda, a avó dele tinha uma casa de umbanda e quando a avó dele faleceu, ele herdou essa casa, só que ele era ogã, feito de santo nos padrões de Angola, mas ele era ogã e ele não tinha autoridade para tocar um candomblé sozinho, uma vez que ele não tinha o processo de incorporação, de possessão, ele tinha que ter alguém que virasse no santo que estivesse ali do lado dele, e o pai de santo me incumbiu como nós éramos muito próximos, inclusive dentro dos rituais de Angola ele era ogã do meu Osoguian, então ele pôde abrir a casa de candomblé dele desde que eu estivesse ali ao lado. Então eu me tornei Pai de Santo mesmo nessa casa de candomblé que é um terreiro que existe até hoje no bairro do Ipiranga, na Rua Frei Durão, 802, que é de propriedade desse pai de santo chamado Marcelo de Moura e que tem o nome no candomblé de Odé Ofanilé, todo mundo o conhece como Pai Odé. E foi lá que eu fiz meus primeiros iyawos sozinho, sem a ajuda ou intervenção do Pai de Santo, aí foi lá que eu virei Pai de Santo, que eu posso dizer que eu virei Pai de Santo, que eu assumi uma responsabilidade, foi ali. Antes de ter virado Pai de Santo eu ia lá e atuava, tinha toda uma estrutura pronta, não era uma responsabilidade minha, mas daí foi. P: E como foi essa experiência que não foi planejada, então você estava contando que dizia que ia ter um filho único... R: Pois é... P: E aí veio a incumbência de auxiliar seu irmão. R: E também não era uma obrigatoriedade de eu me tornar Pai de Santo... Foi natural a coisa, aconteceu naturalmente, quando você se apaixona por alguém, quando você conhece alguém, você acha aquela pessoa atraente, bonita, você começa a se relacionar, quando você vê, já está... E foi assim, quando eu vi, eu já estava. E nunca, nem enquanto filho de santo, nem enquanto Pai de Santo, o candomblé foi um fardo. Nunca disse: ai, eu tenho que ir pra roça... ai eu tenho que fazer isso, não, pra mim é o que... Se tirar o candomblé da minha vida, enquanto filho de santo que eu ainda sou, bastante ativo, bastante presente na casa da minha Mãe de Santo, ou enquanto Pai de Santo aqui na minha casa, não sobra nada. Eu sou o candomblé. Não tenho muito pudor em falar isso. Algumas pessoas podem chamar isso de fanatismo, podem me chamar de obtuso, mas o importante é que eu esteja equilibrado com isso e eu estou. Eu tenho uma vida, eu saio, viajo, adoro cinema, gosto de ler, adoro ver TV, adoro namorar, tudo que as pessoas normais fazem, mas acima de tudo vem o meu candomblé, se eu tiver que fazer qualquer coisa e o meu candomblé, é o meu candomblé. É assim que funciona. Então não foi assim, ah... Eu preciso me adaptar a essa nova realidade, não. Casou, como uma roupa velha, um jeans usado que você põe e te deixa confortável, e te deixa bem... Foi assim, e daí a gente pode dizer que são as coisas do orixá. Eu não queria ser Pai de Santo, mas Osoguian já sabia de tudo que ele queria. Ele queria essa casa, ele queria esses filhos, ele queria essa conduta que eu tenho, ele sabia de tudo. Eu nunca entrei em atrito com meu orixá, nunca, nesses 37 anos, nunca, nunca houve nada que eu atribuísse, de ruim, que eu atribuísse ao meu orixá. Agora, tem muitas coisas boas que eu tenho certeza de terem sido providenciadas por ele. Eu conheço alguns países que eu tenho certeza de que se não fosse, tenho certeza não, tenho consciência, de que se não fosse através do candomblé eu não conheceria, porque o que me levou a viajar... Eu não fui como turista, nem fiquei em hotel, nem fiz um pacote. Todas as vezes que eu viajei para a Europa era relacionado ao candomblé. Então, eu acredito nos desígnios. Eu acho que as pessoas de candomblé não podem acreditar em coincidência, não existe coincidência para a gente. Tudo são sinais. Você recebe indicação o tempo todo de que caminhos seguir, basta você querer ver. P: E a sua vinda pra este terreiro, aqui na cidade de Juquitiba? R: Este terreiro. Nós tocávamos candomblé juntos, eu e o Pai Odé, esse meu irmão de santo, mas não existe um trono em que se sentem dois reis. Eu ouvi muito isso de muita gente com conhecimento e uma das obrigações que minha Mãe de Santo foi fazer, ela me disse: Osoguian não quer mais essa casa, ele quer uma casa só sua. Eu e esse meu irmão de santo nunca nos desentendemos, nós nunca brigamos, nunca tivemos nenhum problema, em todos os anos que nós tocamos juntos, mas eu antevia um desgaste dessa relação da gente porque eram duas casas que coexistiam dentro de uma só, com duas pessoas, com anseios diferentes, com personalidades diferentes... A minha personalidade é muito autoritária, muito... Arrogante acho que não é a palavra certa... É muito autoritária, sempre fui habituado a desde muito jovem a criar iyawos, a cuidar dos iyawos, barcos muito grandes, então eu adquiri esse jeito de impor o que eu quero dentro do candomblé, e esse meu irmão, ao contrário, uma pessoa mais omissa, mais submissa, então eu percebi que a gente ia ter estresse. Eu olhava e via, havia os meus, eu olhava e não via uma casa homogênea, era uma casa fragmentada, os filhos de santo dele e os meus filhos de santo, e eu achei que aquilo, com o tempo a gente poderia... E sei lá... Daí volto a dizer da magia do próprio orixá. Osoguian fez com que eu visse as coisas de uma maneira, que eu me sentei com ele um dia e disse que nós não faríamos mais o candomblé juntos. Eu reuni todos os meus filhos de santo, que já eram alguns, todos estão comigo aqui hoje ainda, e disse que ali a gente não ia mais ficar, que a partir daquele momento nós não teríamos mais uma casa. Eu fiquei acho que uns dois anos sem tocar candomblé. E eu tenho um filho de santo, que é inclusive o Pai Pequeno aqui de casa, que já tinha o terreiro dele, tem até hoje, aqui em Juquitiba, então eu estava habituado a vir pra cá, e um dia ele me falou que existia um terreno com uma pequena construção, mas que já tinha energia elétrica, que tinha abundância em água, eu vim ver, reuni todos os recursos que eu tinha na época e comprei. Mas não tinha nada, nada. O que vocês veem hoje aqui, quartos de santo, sagbagi... Tinha esse barracão aqui, que era aberto, chão de terra, não tinham as paredes, tinha só o teto e aqui onde é o roncó era uma cozinha, muito mal acabada e só, era o que tinha. A gente ficava em barraca de acampar... Fechávamos aqui com plástico preto dos dois lados, púnhamos as esteiras e dormíamos aqui no chão, foi assim que eu vim pra cá. P: E nessa época você não morava aqui? R: Não, durante uns bons anos, faz quatro anos, aqui tem 17 anos que eu comprei, faz só quatro que eu moro aqui, eu ia e vinha, sempre. Todos os finais de semana eu vinha pra cá, mas morava em São Paulo. P: E nesse tempo você continuou trabalhando como professor, mesmo tendo se tornado Pai de Santo? R: Até hoje. P: E como é essa experiência de ter um trabalho como professor e ter sua vida no candomblé? R: Eu gosto. Gosto porque é um momento em que eu posso sair. Qualquer coisa que você fique bitolado, fechado naquilo, não é salutar. Então eu gosto de poder sair, de conversar com outras pessoas. Não tenho menor problema que as pessoas saibam que eu sou de candomblé, mas eu também não fico pregando minha religião, é só minha religião e lá é meu trabalho, um trabalho inclusive que está muito difícil de realizar porque a escola hoje é muito diferente da escola que eu conheci. O interesse dos alunos... Então eu tenho certo desgaste em relação à escola, não é pela escola em si, mas é como a escola está hoje, uma escola muito diferente, os alunos muito agressivos, totalmente desinteressados, uma escola muito paternalista que oferece tudo e exige muito pouco, nem o aprendizado é exigido, pelo menos na minha visão, eu não sou muito moderno em relação a essas novas pedagogias que o cara vai, frequenta, não produz, mas ele tem frequência, então ele é promovido, não importa se ele não tem conhecimento, ele é promovido. A escola perdeu um pouco do encanto pra mim, mas o fato de eu ter esses dois universos coexistindo nunca, o que acontecia é que às vezes era muito desgastante, quando tinha obrigações aqui em casa, a escola acabava sendo penalizada, porque alguns dias eu não conseguia ir e eu tinha que faltar, não tinha jeito. Por exemplo, em um dia como hoje que a gente está com a casa em função, eu estou afastado, mas se não, não tinha como estar dando aula para chegar e fazer todas essas obrigações, a hora em que a gente foi dormir ontem, fazendo as obrigações... Então é difícil, mas possível. Apesar de que eu acho que o pai de santo, tal qual o pastor evangélico, tal qual o padre, tal qual o monge budista, deveria ter exclusividade, se dedicar exclusivamente àquela religião, porque o padre não trabalha, mas é lógico, agora o pai de santo não trabalha é vagabundo, explorador, vive à custa dos outros, não importa que você faça caridade, que você ajude, que os rituais do candomblé sejam muito, muito mais longos do que uma missa, do que uma liturgia qualquer... Aqui quando uma pessoa vai fazer uma obrigação, pressupõem-se três, quatro dias antes de trabalho, no mínimo, no mínimo. Se for uma iniciação, são duas semanas de envolvimento, dedicação direto, mas o pai de santo é sempre vagabundo, explorador, charlatão. P: E por que você acha que isso é visto assim? R: Porque o candomblé de maneira geral é uma religião de pobres, de desinformados, uma religião oriunda de escravos, num país colonizado por portugueses, por europeus. A religião chegou aqui na condição dos escravos que não eram considerados nem humanos, eram sub-humanos, sub-raça, não eram inteligentes, não podiam entrar na igreja... Então ainda é herança disso, então claro, a religião do branco ela é vista como superior e a religião do negro, nossa religião, é de maloqueiro, dos macumbeiros... Eu acho que é isso. Porque gente ruim tem em qualquer religião. Tem padre pedófilo, tem padre que se droga, tem pastor evangélico que rouba, estelionatário, tem em qualquer religião, como tem pai de santo de tudo quanto é tipo, que engana as pessoas pra pegar dinheiro, tem tudo. P: Tem mais alguma coisa que você queira contar, que você lembre sobre esses anos, são 37 anos... R: Completados agora dia 04 de setembro. Ah, o que eu tenho a dizer para a gente finalizar é dizer que eu sou muito feliz com tudo o que o orixá me proporcionou, com os filhos que eu tenho, com os irmãos que eu tenho, com a Mãe de Santo que eu tenho, com o Asé ao qual eu pertenço, eu sou muito realizado. No dia em que eu for embora, se eu olhar para trás, é só por saudades. Mas eu não deixei passar nada, tudo o que havia pra ser vivido, tudo que me foi oferecido, eu vivi. E eu devo tudo isso à minha religião, eu gosto demais do que eu construí, nem sei se isso é saudável, mas eu olho para o que eu construí e eu me sinto muito orgulhoso. Acho que ainda tenho muitas coisas a fazer, mas eu vejo a postura, a educação dos meus filhos, vejo os orixás dos meus filhos, dos mais novos até os mais velhos, como eles vão amadurecendo, como eles vão se transformando, como as pessoas vão se transformando... Aqui em casa a gente tem uma tradição de iniciar crianças, tem muitas crianças iniciadas. Muitas dessas crianças hoje são casadas, com curso superior, com profissão e foram todas iniciadas aqui crianças... Crianças que cresceram, aprenderam, tiveram diretrizes aqui dentro, aprenderam a diferença entre o certo e o errado, então eu acho que eu estou cumprindo meu papel. Tenho certeza que eu tenho muitas falhas, muitas, mas eu ainda pretendo voltar algumas encarnações, ainda no candomblé, pra eu aprender mais e ser melhor. P: E como foi contar essa história? Como foi lembrar lá de trás, da infância, da Zona leste, como é lembrar? R: Não é Bacana? Não é uma viagem que a gente faz? Tem coisa que nem eu me lembrava... Porque todas as lembranças, elas vem costuradas de emoções, elas não são simples lembranças... Tem emoção... Em tudo isso está embutido um sentimento... Épocas que já se foram, que a gente já sabe que não vai viver mais nada parecido, pessoas que não estão mais aqui, gostoso, uma viagem... Falar não é problema (riso)... Acho que eu ficaria aqui até amanhã... P: Então, muito obrigada! R: De nada, minha filha.
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