Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Davi de Gonçalves Peroni
Entrevistado por Thiago Majolo
Maués, 23/01/2007
Realização: Museu da Pessoa
MBMaues_HV008_Davi de Gonçalves Peroni Filho
Revisado por Paulo Ricardo Gomides Abe
P/1: Bom, deixa começar então, Davi. Eu queria pra começar que o senhor dissesse o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R: Davi Gonçalves Peroni Filho, data de nascimento dia 13 de maio de 1940, nascido em Maués, Amazonas.
P/1: E qual é a origem dos seus pais?
R: Meu pai é filho de sírio casado com italiana, não sei, um cruzamento de sírio com italiano. Nós moramos aqui em Maués desde a idade de dois anos, nunca saí de Maués. Nunca saí, não. Já saí de Maués, mas sempre permaneço aqui em Maués, sei contar a história dos guaranazais quando começou, como não começou, como é plantado, como é colhido ...
P/1: Seu pai isso e a sua mãe?
R: Minha mãe é Francisca Talita Peroni, meu pai é Davi Gonçalves Peroni.
P/1: E o que a sua mãe fazia?
R: Era doméstica.
P/1: E o senhor tem irmãos?
R: Tenho, dez...
P/1: Dez?
R: Dez comigo.
P/1: E eles seguiram seu pai, mais ou menos? O que que mais ou menos eles fazem, comerciantes?
R: Ficam vendendo e comprando coisinha aqui na cidade pra outros verem e vendendo, trabalham no mangueirão. Tem um comércio pequeno, outro tira madeira aí, os outros estão em Manaus, estão trabalhando lá com os outros irmãos. Agora só tem quatro, comigo.
P/1: Aqui em Maués?
R: É.
P/1: E eu queria que o senhor descrevesse Maués como era na sua infância?
R: Quando era na minha infância, só tinha três ruas. Quando eu me entendia, só tinha três ruas. Tudo era guaraná pra cá mais de julho era tudo guaranazal, depois a cidade foi montando, montando e foi acabando o guaraná daqui de perto. Depois o pessoal, tirando hoje os guaranás, estão lá longe, só nas estradas agora.
P/1: E como é que era a sua casa, você lembra? Pode descrever pra gente?
R: Minha casa? Coberta de telha de barro, uma parte alvenaria outra parte de madeira, o resto tinha tudo, três quartos, cozinha, sala, só isso. Quintal tinha, um quintal grande, tem até agora um quintal grande, que é maior que a área construída.
P/1: E quais eram as brincadeiras daquela época, do que o senhor brincava, os seus irmãos...
R: Bola, brincava de bola na rua. Eu lembro que era terra. A gente fazia aqueles campinhos na rua, brincava. Não tinha carro era bicicleta, a gente brincava na rua, fazia a trave e brincava de bola na rua, papagaio, bolinha de gude, peão, tudo isso eu brincava com outros garotos.
P/1: E o senhor trabalhava já na infância?
R: Comecei a trabalhar com 12 anos, mas ajudando o cara no comércio, depois eu me acostumei, com 16 anos eu comecei a trabalhar por minha conta, no comércio também. Morava no interior, comprava um produto no interior, voltando de uma cidade, eu tinha um barco de dez metros. Viajava lá de cima até a boca do caminhão, descia, trazia os produtos, chegava aqui em Maués e vender, assim que eu comecei a minha vida. Depois apareceu o pau rosa, pra tirar o pau rosa, fui tirar pau rosa, não deu certo. Então, voltei pra comercializar o guaraná e castanha. Me dei bem.
P/1: Falou, voltar um pouquinho antes dessa parte da sua vida de comerciante, queria saber até que ano o senhor estudou?
R: Até a quarta série.
P/1: E era difícil estudar na sua época?
R: Não era difícil, é que meu pai estava velhinho, os outros filhos saíram e eu fiquei só eu com meu pai. Então fui trabalhar pra manter meu pai e minha mãe, por isso que eu deixei de estudar, ainda tinha irmãos pra estudar, eu tinha de ajudar o meu velho, por isso que eu deixei de estudar. Depois no comércio, não fui mais estudar.
P/1: Mas tinha escolas aqui?
R: Tinha...
P/1: Boas?
R: Tinha, a São Pedro, tinha no tempo que eu estudava. Depois que chegou outras escolas, no ginásio.
P/1: E na juventude quais eram as suas diversões, você disse que aos 16 anos começou a trabalhar já de verdade, mas que outras coisas fazia, cinema? O que tinha que gostava de fazer?
R: Olha, tinha um cinema aqui que chamava, mas depois acabou, a diversão que tinha era brincadeira de boi, de pássaro em junho e, às vezes, tinha alguma festinha por aí, pra se divertir e ia passando o tempo.
P/1: É. Então o senhor começou a trabalhar com 16 anos e o senhor disse que fez várias atividades, pau rosa, castanha, conta um pouco dessas, descreve um pouquinho cada etapa, como foi?
R: A castanha tinha no interior. O freguês chegava pra outro freguês e perguntava se tinha o produto. Se só tem castanha, comprava castanha no dia, vendia assim nas latas, colocava, derrubava, quando completava a carga de lá a gente vinha para Maués, vender. Comprava mercadoria e nós voltávamos, a outra vinha. Borracha, a gente trabalhou borracha, castanha e o guaraná, sempre trabalhei com guaraná, fui levando, depois eu tive diversos carros, caminhão. Depois do Collor pra cá que começou a desvalorizar tudo e não teve condições de aguentar. Teve que vender.
P/1: Conta, queria que você contasse um pouco, descrevesse a atividade de comerciante, de quem você comprava, pra quem que você vendia, como que era esse transporte, você disse que tinha um barco também?
R: Eu tinha um barco. Quando eu comecei eu comprava, comprava... Eu pedia dinheiro dos usineiros e mercadorias deles pra poder financiar lá, mas depois que comecei a trabalhar com outros produtos, eu já vendia aqui, pegava o dinheiro e ia comprar em Manaus, na praça de Manaus, trazia a mercadoria e levava para o interior. Era rádio, gravadores, naquele tempo já tinha essas coisas, rádio Mitsubishi vendia muito, trocava com um produto, às vezes o cara não queria trocar, pagava com dinheiro e assim ia. Meu pai tinha uns guaranazais aí também. Às vezes se mantinha daquele guaraná, passava de ano em ano, ajudava. Na época, na fase que não tinha guaraná, quem mantinha a família era eu. Tive gado também, pecuária, tive bastante gado, depois foi acabando, meu pai faleceu, tive que vender o gado porque não tinha mais quem tomasse conta do meu comércio, tive que, ou bem o comércio ou bem pro interior, então foi acabando com o gado também. De lá pra cá, de 75 pra cá, eu fiquei só na cidade, tenho meus terrenos no interior, mas está parado ainda lá, tenho um castanhal no interior, grande...
P/1: Mas não vende mais?
R: Não, não estou vendendo, são 300 hectares de castanha.
P/1: E o que o senhor faz com ele?
R: Lá eu mando tirar um, o pessoal invade lá, vende pra outras, assim vai passando, esse ano que eu quero ir pra lá.
P/1: Tem uma figura famosa aqui na região, do comerciante que é a do ‘regatão’ é mais ou menos isso que o senhor fazia?
R: É ‘regatão’, naquele tempo falava ‘regatão’, ‘regateia’ no interior. É levar a mercadoria do porto pro freguês.
P/1: E como está a sua profissão agora?
R: Agora acabou. ‘Regatão’ mudou de linha agora, já vão lá e já vendem na cidade todo fim de semana pra cidade, pra poder ir pra cidade. E acabou mais porque a extrativa não tem mais castanha e guaraná, o resto tudo acabou, não tira mais, tira um pouquinho, e não dá pra comercializar. Mas acho que ficou parado por isso. Hoje até falta de dinheiro tem. A praça não está movimentada por falta de dinheiro, não tem madeira extrativa, tudo é proibido. Se o cara não fizer um manejo, ele não pode tirar copaíba, não pode tirar a seringa, não pode tirar nada. Fazer uma lei que dificulta a produção, vai se fazer manejo aqui, é uma burocracia, vai pra cá, vem pra lá, tudo paga em dinheiro, paga pra eles irem lá ver o terreno, tudo isso impede de evoluir a cidade. Se não tivesse muita burocracia, todo mundo fazia um manejozinho no seu terreno e ia produzir. Então isso impede a economia do município, que se fosse mais ou menos liberal, pouca coisa, tem de estradar, tem que marcar os paus tudo, emplaquetar tudo, nós temos. Meu irmão está fazendo um manejo aí, está com dois anos e até agora não saiu, então tudo isso empata, até já limpou o terreno de lá por baixo e não pode derrubar nem um pau. É pra preservação então nós fizemos isso e até agora não saiu, já gastamos o dinheiro lá e o dinheiro pra repor não saiu até agora.
P/1: Então o senhor acha que o problema do comércio também é o problema da produção, da falta de produção?
R: É que Maués vive da aposentadoria e funcionário público, quando recebe, tem um movimentinho, depois que acaba, pronto, além de todos aposentados, ainda vão emprestar dinheiro no banco e fica pagando lá, só retira metade do dinheiro e o resto fica pra pagar o banco. Então tudo isso dificultou, por isso que tira o dinheiro nem sabe o quanto vai pagar de juros, os bancos que apareceram aqui exigindo: “Ah, tirei tanto, mas olha quanto que saiu o meu salário, já cento e pouco”. Tudo isso foi acabando e hoje Maués está feia: a imagem, a economia.
P/1: Me explica um pouco melhor: no seu comércio era mais por troca ou também por dinheiro?
R: Dinheiro...
P/1: Dinheiro, sempre?
R: Sempre.
P/1: Produto trocando?
R: Eu nunca gostei de comprar, de pagar com troca de mercadoria porque era uma margem pro cara chegar e pedir o fiado, então pra ele poder, pagava com dinheiro. Se ele quisesse comprar de mim, ele compraria com dinheiro que eu paguei o produto dele, não tem margem, porque se eles comprassem fiado, eles não pagam mais. Então o cara vai ficar em dívida.
P/1: Então o seu pai era comerciante?
R: É.
P/1: Foi ele que te passou isso?
R: Meu pai era agricultor, depois ele montou um comércio, eu montei um comércio pra ele, porque eu trabalhava no interior e ganhava dinheiro e montei um comércio pra ele. A gente ficava tomando conta do meu comércio enquanto eu ia trabalhar no interior, depois que ele morreu, pronto. Tinha de acabar um ou outro. Se eu deixasse na mão de outras pessoas aqui, acabava e lá acabava também, então eu optei por vir pra cidade e deixei o do interior, fui vendendo o gado, vendendo até acabar.
P/1: Mas foi seu pai que te ensinou a arte?
R: É. No começo foi meu pai, hoje eu agradeço a ele, não está mais. Os meus irmãos diziam: “Ah, que não...” Não, o que eu tinha que fazer pelo meu pai eu fiz em vida, porque depois de morto não adianta o cara fazer mais nada, não adianta acender vela, não adianta chorar, não adianta rezar porque não vai ouvir mais, acabou. Eu acho... quando a gente morreu, acabou tudo. O cara tem que fazer em vida, eu sempre pensei assim, fazer as coisas em vida pra pessoa.
P/1: Eu queria que o senhor contasse onde ficava os pés de guaraná da sua família, porque os pés foram desapropriados pela prefeitura, conte essa história pra gente, onde ficava?
R: Aqui nós tínhamos guaranazal bem aí perto, eram 2500 pés, parece. Não estou bem lembrado a área. Papai deixou eu e meu irmão, foi pro mato, então a prefeitura pegou os documentos das nossas mãos e não tem mais guaranazal lá, só mato. Capim que plantava e ali na estrada nós tínhamos lá no quarto quilômetro da estrada, outro é no terceiro quilômetro da estrada, hoje é casa por lá. Tem alguns pezinhos de guaraná, a cidade avançou, foi avançando, avançando e foi acabando com os guaranazais. Lá no Centro ainda tem, meu irmão vendeu pra um senhor que ainda conserva lá, mas tem vários anos que o guaraná não dá, dá muitos anos, tem mais de 30 anos aquele guaranazal, ainda está dando fruto até agora.
P/1: Conta um pouco, todos os guaranazais então ficavam nessa região do Centro?
R: Ficavam.
P/1: Todos esses foram...
R: Foram acabando, a cidade foi crescendo e ficou dentro da cidade e acabaram com os guaranazais.
P/1: E quantos anos o senhor tinha quando seu pai foi desapropriado, as terras do seu pai foi desapropriada, você lembra?
R: Eu tinha uns 20 anos.
P/1: Você se lembra como foi pro seu pai isso, como pra sua família, o que isso causou?
R: Porque depois quando eu assumi tudo, era aquele jeito, tudo era eu que fazia. Assumi as contas dele, paguei tudo, tive que assumir a família, então tudo que meu pai queria era eu. Minha mãe queria uma geladeira, eu comprava pra ela. Queria isso, eu comprava e, depois que eles faleceram, meus irmãos vieram em cima e repartiram tudo, levaram e fiquei só eu. Hoje vive só eu na minha casa, com meus filhos e só tem aquele prédio lá, o comerciozinho, outros pontos comerciais eu tenho também, pra dar uma renda melhor, porque da cidade tudo se acabar, ter uma vida mais pacata assim pra descansar um pouco, quando chegar de 60 pra lá, eu quero andar, passear, fazer alguma coisa, se aparecer um dinheiro a gente vai dar uma volta por aí, é isso que a gente faz.
P/1: E na época que o seu pai tinha o guaranazal, o senhor participava do plantio da planta?
R: Plantio, colheita, fazia plantio, colheita...
P/1: Todo processo?
R: Aquele primeiro guaranazal plantado de filho, se tirava um filho do lado, atarracado, ficava assim na sombra e quando ele começava a brotar, tirava daí e botava na cova, cobrindo com pau ou com palha, daí começou. Depois comecei a plantar com a semente, plantava de semente, hoje já não é mais aquele guaraná natural. É a base, base de, como é que se diz, adubado. Se aduba pra poder produzir, pra não dá o bicho, pra... Antigamente, não, criava a natureza, era o guaraná mesmo sadio, dava pouco, mas não tinha agrotóxico, não tinha nada. Hoje não só é na base do agrotóxico, alguns, alguns que curtiam sem agrotóxico, os primeiros que cultivavam, que não têm condição de colocar agrotóxico, nem pulverizar, nem adubar eles, fazem natural mesmo. Eu tenho um parente lá do Paraguni que o dele é natural, nunca levou nada de adubo. E deu bem esse ano, é pequeno o guaraná dele, mas deu mais de 500 quilos e hoje nós temos o pó de guaraná que a AMBEV aí, ainda não teve nem a cota, não tem mais guaraná, ela precisava de 290 toneladas e acho que ainda não comprou 100, por quê? Porque falta incentivo, a AMBEV dá 60 mil mudas, doam pra prefeitura, mas ele distribuem, não sei se mal organizados, não tem acompanhamento técnico, bota lá na beira umas plantas, outros não plantam e cada vez a produção vem diminuindo. Maués já teve mil toneladas, já produziu mil toneladas de guaraná. Hoje não produz nem 200, 200 e pouco, 300 quando muito, então foi decaindo. E agora que a AMBEV está querendo o programa sem fiscalização, sem acompanhamento, eu não acredito que vá.
P/1: Queria saber com quem que foi que o senhor aprendeu as técnicas do guaraná? Foi com seu pai?
R: Com meu pai, eles fez os guaranazais e depois que ele me entregou pra eu administrar fui aprendendo a colher, como se colhe, como se faz a poda das árvores, podar árvore pra tirar o galho seco pra melhorar a produção. Hoje acho que com a poluição do tempo ficou tudo difícil, não produz mais aquilo que produzia, tem que ser, tem que ter, é adubado mesmo. Às vezes acho que o filhos, o velho sentiu mesmo que vai voltar aquela, fala: “Ah, é barato guaraná de nove reais”. Não é barato, a produção que é pequena. Se cada cara que tem dois hectares de guaraná tirasse uma tonelada, aí dava, mas tem dois hectares que tira cem, cento e poucos quilos, então guaraná é bom de preço agora produção que é ruim e não tem produção.
P/1: E como faz pra aumentar essa produção?
R: Incentivo, mas com fiscalização, a prefeitura precisa dar as mudas, não sei como é que é. Mas se der as mudas, levar, deixar pro caboclo, ele não planta tudo. Se não tiver um acompanhamento de uma pessoa pra ir lá e: “Olha, planta que eu venho aqui fiscalizar se já plantou”. Entrega na mão do caboclo e ele planta se quiser, limpa se quiser, pega lá o financiamento e vai gastar em outras coisas, não gasta lá no plantio, é difícil, por isso que eu dizia quando tem o ‘Regatão’, o ‘Regatão’ é o próprio fiscal, que a gente financiava pro guaraná e: “Quantos hectares tu tem? Tem tanto, então limpa, vou te financiar, mas tu tem de limpar pra poder produzir e pagar os teus credores”. E fazer porque a gente, comerciante do ‘Beiradão’, ‘Regatão’ é que fiscalizava e incentivava, por exemplo, eu reaproveitava, trabalhei e não reaproveitava?
P/1: Desculpa, então queria que o senhor contasse pra gente, pra continuar, porque e quando que o senhor deixou, resolveu parar o plantio do...
R: Do guaraná? Porque não tinha mais terreno aqui na cidade e papai vendeu os dele. Pra eu tornar, começar ficava difícil, ficou difícil, por isso que não interessei mais pelo guaraná, compro.
P/1: Mas foi a época da desapropriação que o senhor está dizendo?
R: Hein?
P/1: Foi na época que desapropriou a terra que...
R: É. Vendeu todas as terras e fizeram casa, já fizeram...
P/1: Teve muita gente, como a sua família, que decidiu parar de plantar nessa época?
R: Sim, porque quem plantou foi meu pai, quem ajudou ele fui eu. os outros irmãos não quiseram ajudar. Acabou, acabou vendendo, pegou o dinheiro e foi viajar, foi pra Belém, já estava velhinho mesmo.
P/1: E o senhor disse então que compra e vende?
R:Hein?
P/1: O senhor disse então que o senhor compra e vende guaraná agora?
R: Compro e vendo.
P/1: Então, como estava dizendo o senhor agora compra e vende, por que resolveu manter a atividade? E conta um pouquinho dela, descreve como o senhor faz, de quem compra, pra quem vende?
R: Compro de pessoa que produz sozinho, então mando moer pra vender o pó, um pouco e bastão eu compro pronto já. Depois a gente vai comercializando bastão. Bastão esse ano acho que vai ser pouco, até agora ainda não apareceu e vamos produzir pouco porque a safra foi pequena. E a procura foi muita. Deve ter alguém que vai fazer bastão, não sei se o Barroso já comprou alguns quilos, porque eu ainda não comprei nenhum quilo de bastão, só o guaraná em caroço mesmo. Agora em caroço eu beneficio, tiro a casquinha preta e levo pro moinho e faz o pó, e o pó a gente vai vendendo.
P/1: É o senhor mesmo que faz o processo?
R: É, eu mesmo, descascar, torrar e moer.
P/1: E quem compra do senhor, quem são os clientes?
R: É a população mesmo, às vezes alguém de fora pede algum quilo. E eles mandam o dinheiro e eu remeto pra eles, cinco quilos, dez quilos. Se dá mais, a fiscalização não deixa. Se vender mais de cinco quilos lá no aeroporto, a polícia pode pegar, pegar e pensar que é droga, é crime, é assim. Eu trabalho com guaraná, mel de abelha, copaíba, miratã. Miratã em pó também é um produto que serve pra reumatismo, dores no corpo que a pessoa compra, alguém coloca um pouquinho no pó de guaraná, mistura e toma, eu recomendo que bote por pó do pau, porque é uma madeira. pra usar com a água no guaraná que o pó, pó do pau pode fazer mal no estômago.
P/1: Então imagina que eu sou um paciente seu e o senhor vai me dar uma receita, como que eu faria assim com o guaraná pra tomar e pra que que ele me ajudaria? Qual seria?
R: O guaraná ele, dizem que é comprovado que a vida é longa, todos que tomam guaraná vão até os 90, todo mundo que toma guaraná de vez em quando dura, vida longa. Seu Negreiro que morava aqui era o maior produtor de guaraná aqui da região. Ele morreu com noventa e poucos anos por causa da próstata que ele não se tratou, morreu de câncer na próstata, mas era forte, trabalhava, tinha gado. Dizem que é porque ele tomava guaraná de manhã e de tarde, de manhã e de tarde. Seu Vitor, Doutor Vitor lá da AMBEV toma guaraná de manhã e de tarde. Está com 76 anos e está na ativa, vai lá pro mato, dirige trator, dirige tudo lá na fazenda. Acho que ele não tem 76 anos.
P/1: Quanto que é de guaraná quanto de água?
R: Colherinha de café de manhã, aquelas colherinhas de café cheia, bota num copo de água e mistura. Se quiser outra composição, mel de abelha, uma água de coco pode tomar, não faz mal, não. Eu tomo toda manhã, às vezes eu tomo com mel de abelha, às vezes eu tomo ele puro, não uso açúcar, tem muita gente que usa açúcar. Eu não, tomo guaraná puro sem açúcar.
P/1: E o que o senhor sente de beneficio?
R: Eu sinto que me faz bem. Dá mais disposição, acordo cedo, vou fazer as minhas tarefas na fazenda e não sinto dor no corpo, nem nada, graças a Deus.
P/1: E afora esse processo de rejuvenescimento do guaraná, qual mais, qual outro benefício que ele vai trazer para uma pessoa, remédio?
R: De remédio é bom pro estômago, por exemplo. Outra coisa, tu está com desarranjo no intestino, pode temperar um pouco de guaraná com suco de limão e um pouquinho de sal, uma pitadinha de sal, mexe e toma, se tiver... Então fica bom da disenteria.
P/1: Que mais? O senhor sabe alguma outra coisa?
R: Não, que eu sei é só isso, mas o guaraná é bom.
P/1: E de alguma maneira o guaraná pode fazer mal?
R: Se tomar muito, além da medida, pode sentir um tremor no corpo, uma agitação fora da medida. Ele mexe com os nervos, tomar muito fora de medida, por exemplo, uma colher, já tomou uma colher de sopa cheia, teve que ir pro hospital pra ajeitar, porque ele mexe com os nervos, ele é forte, ele dá aquela pressão, mas tomar na medida certa não sente nada.
P/1: O senhor conheceu alguém que passou mal?
R: Esse cara que eu estava dizendo que tomou uma colher cheia de sopa, passa mal porque altera os nervos e fica meio tonto. Mas tomar na medida certa não faz mal, que tem muita gente que não gosta de ensinar. Por exemplo, guaraná moído é forte, agora o de bastão ele é mais desidratado, não é muito forte, pode aumentar mais a dose um pouquinho, mas o moído, porque é novo, é forte e se tomar muito o cara sente tonteira.
P/1: Queria que o senhor voltasse um pouco contando sobre o comércio, queria que o senhor me contasse pra atividade comercial como se identifica o bom guaraná e o guaraná ruim para o senhor comprar?
R: O bom guaraná é aquele que o guaranazista pega, apanha, bota no depósito e só deixa demorar dois ou três dias pra ele amolecer a casca. Tem que cuidar, lavar ele pra poder torrar, se deixar demorado o guaraná vermelho, feio, já quase podre assim se demorar muito tempo, quase podre mesmo, vai torrar, fica aquilo lá feio e ninguém quer. Então é por isso que está dando pelo menos três dias, depois de três dias tem de lavar e torrar porque aquilo fermenta, fica muito amontoado num canto às vezes da casa, fermenta que fica se mete a mão é capaz de queimar, tem que ser no máximo três dias pra cuidar dele, pra torrar. E dá guaraná bonito, bom, mas, se demorar, o cara colhe muito, tem que ter gente pra tratar desse guaraná pra não fermentar muito lá no barracão em que eles colocam. O guaraná com três dias pra torrar sai guaraná bom, todo mundo quer comprar e em pó a gente tira a casquinha, tira tudo e não deixa nada pra poder sair um produto bom branquinho, sem casca, sem nada e se o cara vai com toda aquela casquinha preta, ou aquele umbigo da semente que fica, quando coloca na água ele boia tudo em cima. Então o cara sabe que tem mistura, com toda casquinha, por isso que se cuida direitinho, eu vendo bem porque meu produto é bem feito, é tirado tudo e qualquer casquinha, aquelas boquinhas que tem na cabeça do guaraná eu tiro tudinho e fica nada. Se compra dez quilos só vai dá oito quilos, porque tira toda aquela impureza, por isso que é mais caro...
P/1: E é um bom negócio aqui na cidade ainda?
R: É bom negócio que não se vende muito, antigo. E vendo o quê? Três, quatro quilos por semana, eu vendo mais quando me pedem de fora aí, mas o consumo aqui da cidade, todo mundo tem. a gente só vai comercializar bem quando todo mundo acaba o guaraná, não tem mais pra tomar, então eles vão compra da gente, a gente compra, mas tem um pouco, vai guardando. É isso que acontece, mas pra vender aqui mesmo é pouca coisa.
P/1: E esses pedidos de fora são constantes?
R: Sempre pedem, todo ano eu vendo, pessoa que foi daqui da Antárctica, está no Paraná, todo ano ele, esse ano ainda não pediu, mas todo ano ele pede dez quilos por meio do Vitor, traz pro Vitor, o Vitor conhece ele, manda pra lá e aí remete o dinheiro. E pra Manaus é dois quilos, três quilos.
P/1: Para o senhor, que é um comprador, o senhor vê diferença em comprar um guaraná clonado e um guaraná plantado da forma tradicional?
R: Bom, o clonado aqui tem pouca gente que tem. Só os serviços pra vender, a Embrapa e a AMBEV, agora que estão plantando os clonados de uns quatro, cinco anos, já tem gente produzindo no interior um pouquinho. Mas tem, é mais o natural no interior, agora que eles estão refazendo os guaranazais, daqui mais um tempo vai ser difícil guaraná natural mesmo, pra quem conhece vai ter que pegar.
P/1: E o senhor vê diferença entre um e outro?
R: Eu ainda não usei o clonado.
P/1: Certo. Desde que o senhor começou a mexer, a conhecer o guaraná, você acha que o jeito de plantar, de fazer bastão, o pó, fez diferença hoje em dia do que era antes?
R: Ele... Porque do pó não, o pó é a mesma coisa, agora os bastões fizeram diferença, porque hoje eles têm máquina a vácuo. Antigamente era os padeiros que pilavam, tinha pilação, era pilar o guaraná pra massa liguenta. Os padeiros iam lá e faziam o bastão na mão, hoje não, máquina a vácuo. Joga a massa aqui já ligada, liga a máquina, um caracol assim vai saindo lá, igual quase fábrica de tijolo, sai daqueles negócios o bastão, vão cortando tudo, mas não é, não fica mais feitinho assim por cima pra conservar. Este guaraná que eles fazem na máquina, se for lá pra fora que é frio, embolora rápido e aqueles que o caboclo fazia não embolorava, porque tinha aquela camada de fumaça em cima que protegia o bastão de guaraná. Esse agora não, ele sai meio branco, qualquer friadagem, que não esteja bem embalada, eles emboloram. Não tem nada do feito pelo caboclo, colocar no fuleiro pra ficar pretinho, porque aquela fumaça preta a gente pega um pano molhado tira tudinho e fica branquinho, pega a língua de peixe e rala...
P/1: Do pirarucu?
R: É.
P/1: Se faz ainda hoje com a língua do peixe?
R: Faz, porque se for no ferro, com poucos minutos ele está roxo, por causa do ferro e na língua não. Inclusive eu sempre tenho língua lá pra vender.
P/1: Afora o senhor, quem são os outros compradores de guaraná dos produtores?
R: Quem compra é o Barrô ali, compra o Sávio Rocha, compra, tem uma pessoa intermediária que compra na beira, intermediário Joãozinho Fonseca ali tem pilação, Paulista tem pilação compra guaraná, quem mais que compra? Expedito comprava, mas não sei, Pedrinho lá do armazém compra. Até mostrava a propaganda lá que está com o novo guaraná, ele pila também, beneficia e manda pilar pro Mato Grosso, quem compra a maior produção de guaraná de bastão é o Mato Grosso, Cuiabá lá.
P/1: E esse guaraná que...
R: Bastão...
P/1: De outros estados são melhores, são piores, são diferentes como é que eles são?
R: Porque dos outros estados não dão as ligas que dão aqui. A AMBEV gosta do guaraná daqui porque o teor de cafeína é maior do que os dos outros, até de outros municípios, aqui do município vizinho o teor de cafeína não dá quantia aqui dá 4%, às vezes até 6% e lá é dois, dois e meio, não sei o que que tem, o teor de cafeína é alto.
P/1: O senhor citou de passagem um pouco da família Negreiros, um pouco da história do plantio de guaraná em Maués. Conta um pouco o que o senhor sabe dessa família, dessa história?
R: Seu Negreiro era nordestino. Veio pra cá novo. Esta história que meu pai contava e se localizou. Ele tinha escritório de compras e vendas. Veio e plantou guaraná, parece que uns duzentos e poucos hectares. Era o maior produtor da região e incentivou outros. Depois que morreu, acabou tudo, não tem mais quem tenha guaraná. Alguns que tinham guaraná no quintal, hoje não sei se fazem o plantio, mas é bem pouco que tem guaraná cultivado, muita gente que tem guaraná, mas está no mato, não produz o que produzia, talvez agora com esse incentivo, mas se tiver fiscalização aí vai. Porque a AMBEV tem um convênio com a prefeitura até 2010. Parece que ela vai investir 60 e tantos milhões, não sei, eles dizem lá, mas se não houver fiscalização no plantio, ver se o cara está limpando bem, não aumenta a produção. Foi assim que eu conheço pessoal do interior. Eu conheço muito. Se não tiver incentivo, o cara estar em cima: “Vamos fazer isso, faz isso faz aquilo”. Não vai, planta 2 mil pés, se ele limpar 500 é muito e dá trabalho de limpar, produz em quatro anos, cinco anos é comercial, dois anos agora o ciclo renova e já dá com dois anos, já dá com dois anos, mas comercialmente é quatro, cinco anos, aí que está a história do guaraná. Não vê incentivo, se não tiver fiscalização, empenho, o pessoal fiscalizar pra quem der as mudas, se plantaram, se limparam, porque eles estão entregando aqui, leva pra lá, o prefeito dá o caminhão, embarca num barco, depois acho que eles não vão nem ver mais se o cara plantou, então é incentivo, assim falta de fiscalização que impede.
P/1: Davi, muitos guaranazeiros dizem que a década de 80 teve uma alta do preço do produto. O senhor lembra dessa época, conta um pouco?
R: Deu até 23 reais.
P/1: E por que o senhor sabe, conta um pouco dessa época?
R: Houve uma época áurea do guaraná, da história do guaraná em Maués. Vieram diversos concorrentes, trazendo preço que tem pela Antártica só que comprava, entrou concorrente Tibirice, Tibiriçá também comprava muito, fez concorrência, todo dia subia o preço, foi até chegar 23 reais o quilo. Então foi uma época que o guaraná deu dinheiro, todo mundo comprou seu barco, fez suas casas, depois caiu o preço, caiu a produção, que esse preço de nove não é tão bom, mas se tivesse produção dava. O cara planta 400 pés de guaraná pra dar 100 quilos, podia dar uns 400 quilos porque o guaraná, alguns pés dão quatro quilos, dão três quilos, mas tem pé que não dá nem um, outros só dão 100 gramas. Então é por isso que a produção é pouca, por isso que eu digo: “Tem que ter incentivo”. Se é pra fazer propaganda na televisão, que dê esse incentivo pro caboclo comercializar o adubo, ensinar como aplicar o adubo todo pra poder ter uma produção boa. Tem que adubar assim como manda o figurino, ensina ele. Então eu acho que vai dá bem o guaraná, produzir bem e não adianta, Maués tem 300 toneladas, o cara não vai sair lá do Sul pra vir comprar uma mixaria de guaraná aqui, quer comprar muito pra levar, pelo menos ele vem pra fazer uma experiência, que aqui não dá. Só dá aqui pro consumo de Maués mesmo...
P/1: Por que as pessoas não tentam adubar, por exemplo, como é ensinado?
R: Os técnicos tem de ensinar, a prefeitura tem muitos técnicos, mas traz lá do Sul, lá de Minas Gerais, não sei de onde, ele não conhece nada de guaraná aqui, o que ele vai ensinar tem que saber como que se aduba, a distância que se coloca o adubo do pé, ensina como podar o guaraná, limpeza também, tudo isso o cara tem que saber. Aqui o cara que mais entende de guaraná é o doutor Vitor Nogueira. Ele entende e aquele cara da Embrapa também já está entendendo um pouco.
P/1: Na década de 80 ou 90, ou meio termo, houve umas pragas em boa parte da produção, conta um pouco isso?
R: É a ‘vassoura de bruxo’...
P/1: Como é que é essa praga?
R: Ele enrola, enrola a folha assim cria um negócio, já viu cupunzeiro com vassoura de bruxo fica coelho? É aquela mesma doença, deu na Bahia...
P/1: Ela enrola?
R: Enrola e não desenvolve a fruta.
P/1: E é fatal?
R: É, tem que cortar, queimar aquilo, eliminar aquele guaraná, pra não poder passar pros outros.
P/1: Isso pra vocês comerciantes foi um desastre?
R: Sim, porque diminui a produção, se é uma doença, uma coisa na árvore, mas ela não dá fruto. Agora não estão combatendo o trípice. Esse daí quando tem a flor, se não tiver pulverização, ele queima a flor todinha, porque ele solta um ácido, a flor vai queimando. E o cara diz :” Ah, o sol queimou a flor toda do guaraná!” Mas não é, é o bichinho que solta aquele ácido que ele tem, e queima a flor. Não foi o verão, se fosse assim, não tinha guaraná, ela mataria tudo, é o bichinho o trípice que chama. Então pra tudo isso o guaranazista tem que ter condições pra comprar o veneno, pra pulverizar, pelo menos duas vezes quando tiver floreando, que a flor tiver, pulverizar duas vezes o guaranazal, cada cacho, faz dele assim igual o da AMBEV, mas isso quando tem um dinheirinho. pode fazer. Esse ano não deu muito guaraná, não.
P/1: Seu Vitor, queria que o senhor contasse assim em detalhes mesmo um dia da sua vida, que horas você acorda, o que você faz, como é a sua vida comerciante, conta pra gente em detalhes, que horas vai dormir?
R: Acordar cedo, dorme tarde e durante o dia a gente vai pra venda fazer compras, e vender aquele negócio. Eu trabalho com refrigerante, cerveja e outras coisas, guaraná também. Não tem só o guaraná, tem várias coisas variadas. Então o dia a dia é a luta, atendendo os fregueses. Dependendo do espaço que tem, a gente compra, a luta do dia, meu comércio é pequeno, só eu não posso colocar muita coisa, senão a gente não dá conta, só mais pra ir passando o tempo agora. Eu já fui comerciante grande, eu tive supermercado e, depois que meu pai morreu, acabou a vontade, não fiz muita coisa. Quando tinha muita coisa depois morre e fica tudo aí. Essa vida é passageira, só está de passagem, se fecha os olhos, pronto, acaba.
P/1: Então o senhor tem dois tipos de comércio: uma loja e, também, tem o comércio que o senhor faz com comerciantes de guaraná?
R: É só aquela, é dessa largura aqui comprido, uns nove metros de comprimento, por 13 e pouco de largura, onde faço o comércio.
P/1: Senhor Davi, os indígenas aqui em Maués foram os primeiros a se beneficiar, a usar as técnicas e tal. Queria que o senhor contasse primeiro um pouco como é o guaraná deles, qual a qualidade, o senhor conhece, gosta?
R: Fui uma vez em Marau. O deles é assim que nem de caboclo, natural mesmo. Quando chega uma pessoa, um branco chega, senta ali, eles pegam os caldos do guaraná assim, só cozido e quebra naquela cuia e o guaraná deixa lá de molho. Naquela cuia todo mundo tem que beber aquele guaraná, numa rodada, quem tiver lá tem que tomar. Agora não sei se é assim porque faz tempo que não vou lá e eles pegam depois aquela hora, ralam o guaraná na pedra, o bastão na pedra, ralam na pedra e numa cuia com água e todo mundo tem que tomar daquele guaraná lá. É assim, comer e beber, se alguém recusar eles ficam desconfiados com a pessoa, não está gostando deles.
P/1: E o guaraná é bom?
R: É, o deles é bom, é gostoso, é sabor mesmo de guaraná novo. Agora não que eles tenham uns.... Não sei se é americano, compra deles acima do preço.
P/1: E como é o relacionamento desses indígenas com a população de Maués?
R: É boa. Eu tenho um barzinho lá e eles frequentam muito, umas pessoas comportadas, pacatas, não fazem confusão. Se eles tomam uma cervejinha e pronto, acabou vão embora e o civilizado não, se beber muito começa a querer brigar, não sei o que é isso. O indígena não, não briga, todo mundo toma ali junto com eles, os próprios índios vêm lá, um chama o outro índio. Toma lá e pronto, acabou de tomar já vai embora, não se vê briga, não se vê nada, não dá trabalho pra policia. Agora o civilizado com má fé se não mata um ou dois não está satisfeito e o índio não, o índio se respeita, respeita a gente, respeita os irmãos deles, os próprios índios, não tem problema. O civilizado não, não se entende, o civilizado é perigoso, não se entende, qualquer coisa quer brigar, qualquer confusão já quer puxar uma faca, uma arma de fogo. É assim.
P/1: O senhor consegue identificar hábitos indígenas na população de Maués?
R: Aqui em Maués só tem ali a casa do índio e lá onde é hospital, a moradia deles lá na estrada ali adiante tem um hospitalzinho de primeiros socorros. E lá que vai pro hospital por cura da doença, de gripe, não tem outra doença, é a gripe, o índio se não tratar a doença ele morre da gripe, tem que tratar logo. A pior doença pra ele é a gripe, pegou a gripe, fica até tuberculoso.
P/1: Mas costumes deles que eles faziam, que eles comiam que a população hoje em dia faz, tem coisas?
R: Agora tudo que o civilizado come eles comem, porque só vem quase aqui na cidade, só vão pra lá de repente, todo fim de mês estão aqui pra receber, quase todo índio é aposentado, então todo fim do mês tão aqui na cidade, comendo, bebendo, recebendo o dinheiro dele. Então hoje em dia não tem mais quase mais classificação, a gente nem conhece mais quem é índio, está bem vestido, só conhece porque eles gostam de pintar o cabelo de vermelho, outros pintam de amarelo. Eu tenho sempre contato, eles me gostam muito. Eu nunca vi eles brigarem, fazer nada, não.
P/1: Na festa do guaraná, eles encenam a lenda do guaraná, o senhor poderia contar um pouco essa lenda pra gente?
R: Porque a lenda do guaraná é pouco índio que participa, é mais o civilizado que faz. Eu acho, esse ano parece que fizeram com mais índios, foi do palco da praia, lá pra dentro de uma balsa, fizeram a lenda do guaraná em cima de uma balsa. Fizeram com mais índios agora, agora já começaram a colocar mais índios. Deveria ser tudo índio. mas é mais civilizado.
P/1: E como que é essa lenda? O senhor pode contar pra gente?
R:É a história da índia Saporanga que casou com um índio da tribo, da tribo que não era, que não se gostavam, duas tribos rivais e o índio levou ela pro mato. Deu um temporal, com raio e tudo, o pau caiu em cima dos dois e morreram. Lá dizem que nasceu, lá onde morreram nasceu um pé de guaraná. Os índios dizem que era da índia, que aquele guaraná, começou a dar fruta, a semente disseram que era o olho da índia. E os brancos foram inventando todos aqueles negócios da índia porque nascia o pé de guaraná e assim que começou o guaraná.
P/1: Senhor Davi, o que muda na cidade de Maués na época da colheita do guaraná?
R: Na época da colheita, muda que o comércio, o comércio vende mais, compra mais guaraná, vendem, intermediário vende, compra e vende pra AMBEV comercializando. É a época que aparece mais dinheiro na cidade, no fim de ano. O comércio daqui só vive da renda de fim de ano, depois vem aposentado, de aposentado e funcionário, nós não temos indústria, só a AMBEV de indústria. Não tem nada, nenhuma fabriqueta. Não tem nada. Os políticos só fazem prometer, no fim não fazem nada.
P/1: Então, para o senhor, comerciante vocês esperam o fim do ano sempre?
R: É onde corre mais dinheiro, não diz, porque o cara está lá empregado ali numa fábrica tem isso, fábrica de rede, fábrica de vassoura, fábrica de qualquer coisa. Madeira nós temos muito, não tem uma fábrica de taco, nem nada, beneficiamento de madeira não tem, algumas movelarias que vendem uns moveizinhos pra Manaus, mas é pouco, porque o interior precisa de venda, de trabalho, emprego pro pessoal. Você vê que hoje em dia em toda cidadezinha, é droga que rola, porque falta trabalho, falta de emprego pro povo. A sociedade só quer pra ele, não olha pro lado dos mais necessitados, se todo mundo ajudar: “Ah! Porque o governo não faz nada!” Só o governo, tu tem também, tu pode ajudar, mas o empresário de hoje, principalmente daqui entre eles, não quer gastar nada, só quer colher, não abre uma industriazinha pra empregar. É trabalho, desemprego que existe, a miséria do interior é o desemprego.
P/1: Além do guaraná pra beber, tem outras finalidades como o artesanato?
R: Faz a figura do guaraná, aqueles brincos, colar com guaraná, a massa. Fazem a massa do guaraná, os artesãos fazem a massa e vão fazendo passarinho, tartaruga, lagarto e a árvore do guaraná assim em cima do negócio que eles fazem muito bonito. Tudo quanto é bicho eles fazem no guaraná, também é pouca, não tem, não dá pra exportar. Se tivesse incentivo as pessoas que fabricam, a prefeitura, o governo, você pode fazer toda a quantia que nós garantimos escoar o produto, mas não tem incentivo. Então fica por aí. Um faz 100 bichos, outro faz 50, tem saída quando está perto do guaraná, festival do guaraná, festival de verão e bota pra exposição, porque o pessoal que vem de fora compra. Afora disso fica aí, mesa cheia, aparecendo.
P/1: Esse tipo de comércio o senhor chega a comprar pra vender ou não?
R: Não, porque aí empata muito dinheiro e não tem saída. O capital da gente é pouquinho, se for empatar não pode mais trabalhar com outra coisa. Se fosse um produto que comprasse hoje, amanhã já tivesse comprador, mas se compra fica aí, tem que limpar, tirar a poeira até aparecer um quem compra. Barrô tem por aqui não tem?
P/1: A gente está procurando também alguns casos, histórias da cidade que estão na lembrança das pessoas pra contar um pouco, o senhor conhece alguma ou algumas? Queria contar pra gente?
R: Pessoal chama Maués de a cidade que já teve, Maués já teve Caixa Econômica hoje não tem, Maués teve banco do Estado e acabou com o Bradesco, encampou; tinha igreja ali na Praça, tiraram, derrubaram; tinha um mercado antigo também foi abaixo; tinha o prédio que funcionou os primeiros bancos de Maués, jogaram em baixo, então hoje não tem nada, não tem aquela coisa antiga do tipo mais “Olha isso aqui, esse prédio aqui foi antigo, foi onde funcionou os bancos, os primeiros bancos que criaram pra Maués”. Não tem mais história pra contar. Acabaram com a cidade de Maués, então tudo acabou em Maués. Aparece coisa nova só que não tem nem mais importância.
P/1: A cidade do?
R: Do já teve
P/1: Já teve
R: O pessoal que apelidou, cidade do já teve, tudo já teve e não tem mais.
P/1: Mais alguma outra história, outro caso que o senhor queira lembrar agora?
R: Caso de Maués antigo era esse, do pessoal desse povo pacato, que se divertia, andava em Maués sem estar olhando pra um lado pra outro, hoje não. Hoje existe pivete, hoje existe ladrões, é, aqueles marreteiros que chama? Tomando o dinheiro dos velhos, vai atrás que eles vão com relógio “Pô, compra esse relógio de mim, tu me dá a entrada agora que 30 dias...” ”Mas o senhor o conhece?” “Não, como é que ele vai vender a prestação pro senhor? O senhor está pagando o dobro do relógio já! Esse negócio de trinta dias o senhor me dá o resto, ele está lhe roubando!” Às vezes eu alerto muitos velhos, porque tem velho que fica assim, não tem noção do que vai fazer, pega o dinheiro, a gente orienta pra não ser muito enganado. Esses peruanos, esses marreteiros que ficam por aí, ficam enganando o pessoal, tomando o dinheiro do pessoal, então o pessoal orienta. Maués é isso, não tem mais nada de história aqui. História aqui é carnaval, festa do guaraná, festival de verão são realizados aqui anualmente e as praias são bonitas, que atrai os turistas e o turismo aqui e Maués também é muito devagar se toda a cidade investisse no turismo. Chega um pessoal de fora, o turismo não está nem ligando, pelo menos uma pessoa acompanhando, mostra a cidade, as belezas da cidade, mas não eles ficam aí ao léu. Isso porque falta incentivo ao turismo, incentivando o turismo há renda, mas aqui não, é parado o turismo, tem muita coisa que o turista pode ver, levar as estradas, ver os guaranazais, acompanhamento, porque Maués é bonito, ter um cara que acompanha, mostra tudo o que temos na cidade pra gente, mas não.
P/1: Essas lendas, como a lenda do guaraná, o que o senhor acha? O senhor acredita, qual a sua relação?
R: Eu acho que é uma história que aconteceu, mas não é assim que fazem. é uma história que inventaram, eles foram copilando dali, daquela história e foram fazendo até ficar mais bonita.
P/1: Está bom. Pra finalizar e acabar agora, quero que o senhor diga o que achou de participar, de contar a sua história?
R: É, eu achei que é uma coisa boa, por exemplo, levar as entrevistas lá pra fora pro pessoal conhecer mais o que é guaraná, como é que produz, como é que se colhe, como é que se torra, é um incentivo a mais. Pode ser que alguém interessado venha por aqui, comercializar o guaraná. Tudo que tiver divulgação é bom pra nós, tudo que tiver divulgado do nosso município é bom, é porque o guaraná, agora que está tendo uma divulgação, mas primeiro não tinha. Era só aqui dentro mesmo, circula aqui dentro, acabou, acabou, alguém que comprava só o Mato Grosso conhece Maués como produtor de guaraná, outras capitais não sabiam disso. Agora com essa divulgação já estão sabendo de Maués produz o guaraná, o melhor guaraná do país. Na Bahia experimentaram e não deu certo, o guaraná deles não dá liga, não dá essência, eles não sabem preparar, então Maués está de parabéns, só falta divulgação mesmo lá fora, no Brasil e no exterior pra todo mundo vir procurar e incentivem o cara. Até eu se tivesse assim, eu ia me animar a plantar uns pés, mas não tem incentivo, vende pouco, é pouco procurado. Quando acaba a época nesse mês, outro acabou, o que tinha que colher já colheu, pronto fica mais na mão de terceiro, aí que vão vender bem vendido. Por exemplo, Seu (Sávio Rocha?) tinha, parece, eu acho que umas 30 toneladas, ele vendeu melhor pra AMBEV, porque paga o mesmo preço da AMBEV, com certeza a AMBEV deu mais pra ele, mas o caboclo não ganhou isso. É isso que eu tinha a lhe dizer.
P/1: Está bom. Obrigado então...
R: Na próxima a gente melhora mais a entrevista...
P/1: Está ótimo.
R: Muito obrigado
P/1: Obrigado o senhor.
R: Prazer.
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