Projeto: Indígena Pela Terra e Vida
Entrevista de Potyra Tupinambá
Entrevistada por Jonas Samaúma e Idjahure Kadiwel
Local: entrevista concedida pelo Zoom
Data: 7 de julho de 2021
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: ARMIND_HV004
Transcrito por Lidiane Ramos
00:00:11
P/1 - Então Potyra, novamente quero te agradecer por ter se disposto a vir aqui hoje e compartilhar um pouco da sua história. Eu quero começar com uma pergunta bem simples, você dizer o local onde você nasceu e o seu nome completo?
R - Eu sou Potyra de Tupinambá, nome de registro é Ivana Cardoso de Jesus, eu nasci em Salvador Bahia na capital do estado da Bahia.
00:00:48
P/1 - Potyra, agora eu vou fazer você puxar na memória mesmo, me diga qual é a primeira memória que você tem na sua vida, assim qual que é a primeira coisa que você lembra?
R - Eu lembro muito da minha avó, que é sempre a minha referência, eu não nasci na aldeia, mas sempre tive uma avó muito presente, que sempre esteve ali levando essa memória da resistência do povo, e a memória da ancestralidade mesmo indígena, muito forte. Eu ficava sempre esperando as férias, para poder ficar com a minha avó e poder caminhar pelas roças, como a gente chamava na época, para poder ter mais contato mesmo assim com a terra né, com o campo, com a floresta. Então essa é a minha memória, eu sempre lembro de estudar para passar de ano logo, para poder ter férias e ficar com a minha avó.
00:01:56
P/1 - Vamos aprofundar um pouquinho na sua avó. O que você sabe da história dela, que momentos marcaram esta convivência com ela?
R - É uma história muito dolorida, porque ela uma indígena que teve que sair do seu território, sair da sua terra, para viver num outro lugar, fugir na verdade para poder sobreviver, e chegar na cidade de Salvador, onde teve que inventar uma nova vida e aprender a viver naquele espaço, que não era o espaço que ela que ela nasceu e que ela queria estar, mas que foi obrigada a sair devido os conflitos de terra. É uma história dolorida, secreta né, que só ela sabe e ela não está mais aqui com a gente, mas ela contava pouquíssimas coisas sobre esse passado, justamente para que os filhos não quisessem voltar, ou não quisessem retornar para os seus lugar de origem, então uma história meio que escondida, meio que guardada por ela secretamente, que eu podia acessar aos poucos devido o meu interesse em conhecer mais da minha cultura, conhecer mais do meu povo, saber os porquês todos, mas assim muito escondido. Depois que eu estou aqui no meu povo Tupinambá, eu consegui entender mais sobre esse silêncio dela, porque muitos dos daqui do meu povo Tupinambá, não gostam de falar da época, dessa época, é um povo calado. Inclusive, a antropóloga que fez os estudos antropológicos, ela tem um livro editado que chama Terra Calada, devido essa dificuldade que ela teve de tirar dos nossos anciões as coisas do passado, das nossas memórias do passado, devido ser uma memória de muitas dores. Então eu tenho sim essa dor, de não saber detalhes, porque ela não quis contar por medo e por ser doloroso pra ela o sofrimento que ela passou.
00:04:24
P/1 - Interessante o que você falou, do seu contato com ela, você criança. O que mais te marcava, como é que era os momentos que vocês tinham juntas?
R - Visitar os parentes, visitar as pessoas, a gente ia para o interior, na época não era aqui em Tupinambás, mas a gente ia para o interior chamado Irará, onde ela foi bem acolhida e nas férias a gente ia visitar as pessoas. Eu ficava assim, confusa as vezes, a gente andava um dia inteiro de caminhada, naquela época não tinha ônibus fácil, andando por dentro de rio, passando por dentro de fazenda, para chegar numa casa e dizer; olha eu vim te ver, dar um abraço, e voltar. A gente passava um dia inteiro andando e voltava, nem dormia porque não tinha muito tempo para poder visitar as pessoas, então era mais ver a pessoa, saber se ela estava bem, não existia celular nessas áreas, não existia um celular ainda, tô falando de 1980 1985 1986 1990. Então não tinha telefone público nessas áreas, não tinha nem energia nessas áreas, mas ela ia lá visitar as pessoas, saber se estavam bem, dizer que tava bem, depois a gente voltava caminhando, e assim, tinha sempre um lugar que a gente dormia, que aí todo dia a gente saia para uma área para poder fazer essas visitas. Então assim... eu gostava muito, porque era um momento da gente tá ali em contato com a natureza, tomar banho de rio, de ver a mata, passava por muito pasto também, mas tinha muita mata ainda e poder ver as pessoas e ser acolhido também por aquelas pessoas, gostar de saber que a pessoa estava bem, então era essa rotina assim dessas viagens e também colher né, nos lugares onde a gente tinha o repouso, de ficar mais dias a gente plantava, ela colhia, fazia beiju, fazia vários tipos de beiju, bolachinhas de goma, tudo isso também pra presentear as pessoas. Ela fazia e quando ela ia até as casas ela levava um presente desses que havia preparado, e ganhava presentes também, amendoim, feijão, farinha, ela ganhava de presente também, era uma troca né que ela fazia.
00:07:22
P/2 - Eu queria, se você puder falar, Potyra, o nome da sua vó e dos seus pais também.
R - O nome da minha avó é Josefa, o nome da minha mãe é Indaiá Jaciguara, e o nome do meu pai é Ivan. Aí minha avó conheceu meu avô em Salvador, que é um tupinambar e todos os filhos deles, eles colocaram nomes indígenas, isso pra mim é marcante, até me emociono. Eu cresci ouvindo esses nomes, minha mãe chama Indaiá Jaciguara, essas memórias me deixaram muito emocionada, porque eu estou hoje aqui dentro de uma aldeia, meu filho nasceu na aldeia, uma oportunidade que eu não tive, isso foi tirado de mim. Minha mãe Indaiá Jaciguara, meu tio é Jaguarite Piraúna, Ubiraci Moema, Oraiai Camucé, Oiara Oiacuri, Jandira Itaquicé, eu vivi envolta dessa avó, que não quis contar sua história, mas por outro lado eu tinha esse povo todo aí indígenas, esses nomes todos indígenas, eles vão se assumindo indígenas de fato, porque minha vó não apoiava isso, mas ela colocava os nomes dos filhos dela indigena, o meu avô também que era Tupinambá, minha vó eu não sei a etnia dela porque ela nunca contou, ela não quis contar e isso me deixou muito resistente, me deu muita resistência por eu ter esses meus parentes ali mostrando uma história dolorosa, mas que tinha eles ali. Minha mãe Indaiá Jaciguara era resistência, não sabia nem o que era isso naquele momento, mas com 16 anos eu decidi fazer direito para que ninguém tivesse que passar pelo que a minha família passou. Ter que sair do seu território, da sua casa, para poder viver num lugar que não queria ver.
00:09:44
P/1 - A gente vai chegar nesse momento, mas conta um pouco melhor essa coisa da sua família tem que sair do lugar e morar em outro lugar, como é que foi isso?
R - Nessa parte eu não sei detalhes, é uma coisa muito escondida. Eu sei que teve que sair fugida, minha vó, eu não sei de onde foi que ela fugiu, nem ela nunca contou pra gente, eu era muito criança, quando ela faleceu eu não tinha ingressado na universidade, eu ainda estava estudando no secundarista para poder ingressar na universidade, então eu não tinha mesma consciência que eu tive depois, desse meu processo mesmo de retornar, de querer realmente buscar a história e de fazer esse resgate mesmo da história da minha família e da minha ancestralidade de fato. Está muito só nas contações de histórias, meu avô era um contador de história, ele contava muitas histórias e algumas eu nem acreditava, todo mundo falava seu avô é mentiroso, conta muita história mentirosa, só depois de adulta foi que eu vendo aquela história com meu avô contando não é mentira porque eu vejo outra as histórias contadas também em outros territórios que eu já passei, sobre essa questão da resistência indígena e dos conhecimentos tradicionais. Mas é uma história que eu não sei te dizer, porque não foi contada para a gente.
00:11:39
P/2 - Potyra, você consegue recordar, lembrar um pouquinho e contar para a gente alguma história dessa que seu avô contava, e que tipo de história era essa?
R - Tem muito tempo mas, deixa eu ver se lembro alguma. Dessas histórias do mato, de caçada, de se perder no mato, de precisar usar as ervas, para poder sempre que entrava na mata tinha que colocar uma erva para os seres da floresta, para poder não se perder. Ele passou dias perdido no mato, de não ter seguido essa tradição de pedir licença e de se conectar com aquele espaço, e deixar um presentinho para os seres da mata, é que ele passou dias na mata perdido, as histórias assim. Eu mesma já fiquei perdida também.
00:12:47
P/1 - Como foi que você ficou perdida? Conta essa história pra gente.
R - Eu fui para um lugar que é aqui perto, eu moro perto da praia, e na frente tem uma área só com coqueiros e árvores da mata aqui da restinga. E aí eu fui num lugar que eu sempre passava, e eu fui assim sem prestar atenção no que estava fazendo, sem pedir licença, sem nada, eu entrei nessa matinha e fiquei dando voltas, e voltas, e voltas, passando umas 3 horas tentando sair desse lugar. E não consegui, quando já estava escurecendo eu caí assim nas tiriricas e falei assim; ô meus encantado me ajuda que eu não quero dormir aqui não. Quando eu levantei a estrada estava assim, na minha frente, eu consegui sair, mas cheguei aqui toda arranhada, caindo dentro de um riachinho que tinha lá, tem que subir e descer uma altura assim de uns 2 metros, foi bem difícil mas, eu consegui com a ajuda dos encantados retornar pra ali.
00:14:06
P/1 - Eu queria aproveitar e perguntar isso Potyra, o que essa coisa assim dos encantados, eu reparo que os Tupinambás sempre falam muito dos encantados. Então eu queria saber se você já teve alguma experiência dos encantados, ou o que seu avô falava dos encantados.
R - Meu avô não falava muito dos encantados, minha avó né, que ela rezava, então ela falava um pouco sobre isso, sobre os encantados. Mas os encantados pra nós são os nossos guias, nossos amigos, nossos parentes que não estão mais aqui, mas que estão aí nos orientando, alguns parentes mais próximos de poucos anos de encantamento, outros da época do descobrimento que vem e dá lição para gente, conversa, orienta, puxa a orelha, da surra quando precisa. Eu acho que eu tomei uma surra, eu gosto muito de dizer que eu tomei uma surra, quando eu fiquei perdida e cheguei aqui toda ferida de tiririca, que é um capim que tem vários espinhos na ponta dele, eu tomei uma surra porque eu fui para aquele lugar e não pedir licença. Eu sempre peço licença quando eu passo ali, e nesse dia eu estava tão distraída que eu passei sem me ligar, que ali tem um dono, que ali tem alguém que zela por aquele lugar, e aí nossos encantados são esses seres que estão aí, nos ajudando, nos orientando, nos acolhendo na hora que precisa, e a nossa fortaleza, nossa grande fortaleza, porque nesse instante a gente estava aqui se batendo, e sem saber me batendo aqui, sem saber como mexer aqui na tecnologia para poder tirar o fundo, mas vamos pegar o cachimbo. Falou em pegar o cachimbo, é como se seu encantado viesse lhe acolher você ali naquele momento, que quando a gente fuma, a gente fuma para o universo, para fazer essa ligação, essa conexão. Quando a pessoa fuma um cigarro, ela fuma para dentro dela, ela traga é para ela. Quando a gente fuma nosso cachimbo, a gente fuma pro universo, para se conectar com sagrado.
00:16:39
P/1: Nossa muito forte esse pensamento né?! Mas voltando um pouquinho a sua infância lá em Salvador, queria te perguntar se teve alguma memória, alguma história marcante desse seu momento em Salvador, assim, criança ainda.
R: Meu pai era militar, então eu tive condições de estudar numa boa escola e desde a escola eu sempre já era chamada de índia, desde novinha sempre tive esse apelido índia, depois recebi esse nome de Potyra, por uma professora, e desde então eu sempre fui tratada pelas outras pessoas e pelos colegas como indígena, como uma Índia, embora ali naquele momento da escola eu ainda não tivesse afirmação, mesmo sabendo que era Tupinambá, mas falava ainda com medo pras pessoas, eu sou Tupinambá, meu avô é Tupinambá, minha avó foi pega no mato, e ele sabia história da vida da mãe dele inclusive a mãe dele que deixou os nomes para todos os netos, esses nomes que meu avô colocou nos filhos são heranças da mãe dele, foi uma infância feliz convivendo com os colegas e sempre trazendo essa curiosidade; é você é índia?!, eu sou sim, aí eu contava a história da minha avó e do meu avô e eu sempre tive que recontar essa história, isso que eu estava contando aqui para vocês, eu sempre tive que contar para as pessoas, porque não basta você dizer eu sou indígena, você tem que dizer de onde você é, e as pessoas querem isso de você. Hoje tem a autoafirmação, e tem várias coisas aí que os direitos internacionais garante para o indígena, ele pode ser autodeclarado indígena, mas ele precisa ser reconhecido por uma comunidade, mas eu criança não sabia dessas coisas, e tinha que sempre contar a história, falar o nome dos meus dos meus tios e sempre foi respeitada ali naquele momento como indígena, desde nova.
00:19:11
P/1: Quando o pessoal te chamava de índia, na escola e tal, no caso você via isso com orgulho, ou como um bullying, uma provocação?!
R: Era com orgulho, era com respeito, neste momento com respeito. Na universidade já foi diferente, me achavam louca, eu fiz universidade de direito, ia todo mundo no salto, pra chocar eu ia sempre de chinelo havaiano, pra chocar mesmo, eu fazia pra chocar, e aí era chamada meio de louca pelos colegas, mas durante a minha infância eu sempre fui reconhecida como indígena, desde pequena, isso foi sempre presente na minha vida de forma respeitosa, com bullying não.
00:20:18
P/1: E aí, eu queria perguntar também, você não falou muito, você falou que seu pai era militar, como era a relação com seu pai e sua mãe?
R: Uma relação ótima, meu pai embora seja militar, não é desses militares linha dura e machistas, a gente teve voz, a gente sempre teve vez e voz dentro de casa, para expressar nossos sentimentos. Agora minha mãe é muito feminista, então a gente vem mesmo desse berço, da gente ter voz, minha mãe sempre teve voz dentro de casa, meu pai sempre foi uma pessoa que…, meu pai também é indígena, e é Tupinambá também, da Ilha de Itaparica, embora o povo da Ilha de Itaparica não seja levantado, mas historicamente é área Tupinambá, meu avô pescador, sempre foi pescador, o pai do meu do meu pai, então meu pai sempre foi o conciliador, sempre de conversar tudo que nós fizemos, todas as decisões tomadas na família sempre foram dialogadas com todos, sempre foi muito democrático embora seja militar, mas não era linha dura.
00:21:47
P/1: Potyra, então eu particularmente, eu gosto de ficar assim uma hora e meia só na infância, mas como hoje a gente tem um tempo a mais, eu queria te perguntar o que te motivou você querer estudar direito. Como foi que você falou assim; não, vou estudar direito.
R: Nessa minha busca aí de conhecer mais da minha história, da minha família, minha avó pode contar um pouquinho de ter que sair, de ter que chegar na cidade de Salvador, inventar um nome, porque não tinha nem registro de nascimento nem nada, chegou muito nova e eu me indignei muito com isso, porque foi tirada da minha família a possibilidade de nascer dentro do seu lugar no mundo, eu nunca me senti bem estando em Salvador, eu nunca me senti bem estando naquele lugar ali, eu sempre me senti estranha naquele lugar, então eu fui fazer direito pensando em ajudar os outros povos, eu não pensava nem me ajudar, nem nada, eu não vislumbrava naquele momento retomar para o território, retornar para terra, para o meu lugar no mundo, que eu teria esse lugar no mundo dentro de uma aldeia também, mas que eu queria ajudar que nenhum outro povo tivesse que sair no seu território, devido às injustiças né, e proteger mesmo os povos indígenas, proteger os territórios indígenas, foi essa minha motivação, quando eu tinha 16 anos eu decidi fazer direito.
00:23:41
P/1: E aí como é que foi o ingresso na universidade?!
R: Eu prestei vestibular, não existia cota nesta época, mas também se tivesse eu não poderia participar, porque eu sempre estudei em colégio particular, entrei na Universidade Estadual de Feira de Santana, na época eu passei também na Universidade Federal, lá em Salvador, mas a minha opção foi ir para o interior, para um lugar onde pudesse desacelerar também, lugar onde fosse novo para mim, para aquele novo momento da minha vida. Eu fui para uma cidade que eu nem conhecia, uma cidade do interior, é uma hora e meia de Salvador, é perto, mas e também por esse momento e esse meu sentimento de não estar bem em Salvador, não me sentir bem naquela cidade, e fui fazer aí essa aventura aí nessa nova cidade, fazendo um curso de Direito. Foi bem difícil para mim o início, me adaptar, estar sem a minha família, já que a gente sempre viveu muito junto e unido, mas eu tinha essa missão né?!, para mim foi sempre uma missão, é tanto que eu durante os cinco anos que eu fiz Universidade, eu não criava grandes laços de amizades, eu tinha uma missão, eu tinha um foco que era estudar e ajudar os povos indígenas, então a minha vida era estudar, todos os livros da biblioteca que tinha palavra e vídeo eu estudei, eu li durante o meu percurso na universidade, e fora as matérias que tinha durante a universidade, sempre questionei, porque a gente não estava ali também na sala de aula, só tratou do indígena na disciplina de Direito Constitucional, rapidinho ao falar do 231/232, e por isso que eu sempre quis chocar a universidade, então eu as vezes me deitada na grama, mas para chamar atenção das pessoas, essa necessidade de pensar também nesse diferenciado, claro que eu não tinha a força que eu tenho hoje, hoje eu tenho a força dos meus parentes, então eu tenho como lutar muito mais forte do que naquele momento, sozinha numa cidade sem nenhum parente, assim consanguíneo, com pessoas totalmente diferentes de mim, e fora o preconceito né de ser indígena, então eu assim... eu não fiz grandes laços de amizade durante a universidade, nem com professores, e nem com colegas, eu fiz o meu... a minha militância, e aproveitei a oportunidade de estudar e aprender.
00:27:04
P/2: Potyra, você falou, você tinha comentado que a sua avó, ela não viu você ingressar na Universidade, mas ela sabia que você queria estudar direito? Eu queria saber se sua avó sabia do que seu pensamento sobre o que você estava querendo fazer na sua vida, e queria perguntar se você foi a primeira pessoa da sua família a entrar na universidade e formar na universidade também?!
R: É, minha avó soube sim da minha decisão, ela estava viva ainda, e ela não ficou feliz assim, porque ela tinha muito medo, hoje eu entendo isso, eu entendo os motivos dela né. Ouvindo outros relatos de outros anciãos daqui, de outras pessoas que também tiveram que sair do seu território, então ela tinha muito medo, eu entendo hoje. Ela não festejou, ela ficou sabendo, ficou normal, para ela era normal, eu não sei se dentro dela ela ficou feliz, porque era muito calado essa questão, era muito escondido mesmo. Eu não sou a única a ter ingressado na universidade, nessa época meu irmão já tinha ingressado, já estava inclusive formado, se formando, ou recém formado, e da minha família eu fui a segunda, da minha família central. Meu irmão primeiro, depois eu, eu tenho uma irmã também, entrou também nessa mesma Universidade, depois aí a gente começou a viver juntas lá, uma apoiando a outra, mas eu não fui a primeira não
00:28:59
P/2: Eu estou perguntando como foi entrar na universidade para você? Assim, você comentou que na escola, em Salvador, o pessoal sempre te chamou de índio, ou indígena, mas isso não era negativo, era uma coisa positiva, com orgulho né?!
R: Para mim era uma honra. Na universidade eu já cheguei como Potyra, porque eu comecei na escola e recebi esse nome de uma professora, isso com 10 anos de idade, e na universidade eu já era Potyra, eu não me apresentava como Ivana, sempre me apresentei como Potyra, então embora exista esse preconceito assim... não o preconceito de fazer bullying esse tipo de coisa, mas de visibilidade mesmo, porque eu estava ali na universidade querendo trazer a temática indígena para os momentos ali das aulas, das conversas, lembrar para todos e todas ali que existia e existe um povo que tem direitos e que dentro da Universidade estava totalmente invisíveis. Talvez eu tenha sido a primeira indígena a ingressar nessa universidade, talvez eu tenha sido a primeira indígena se formar em direito nesta Universidade, mas essa Universidade não me acolheu, como uma indígena que precisava também ser, não que eu precisava de nada financeiramente porque a minha família conseguia me manter, mas me desse um apoio enquanto indígena, esse reconhecimento na verdade e muitos colegas também eram com pessoas da elite né, eu fui da segunda turma de direito, uma turma que tinha assim um alto nível de estudantes, as pessoas que vieram das melhores escolas da Bahia, eu também tive a oportunidade de estudar em uma das melhores escolas, o meu pai sempre prezou muito pelo nosso estudo, a gente tinha muitas dificuldades financeiras embora meu pai fosse militar, a gente não tinha as mesmas coisas que os meus colegas tinham na escola, mas tinha estudo, tinha comida dentro de casa, e tinha livros para estudar. Então eu pude concorrer de igual para igual com esses colegas da elite, e a elite sempre oprimiu os indígenas, eu também fui oprimida ao me identificar como indígena na universidade por esses colegas, mas como eu vou dizer... Eu não valorizei esse sentimento deles sabe, eu resolvi fazer a minha militância, e ignorar também eles, tentar fazer a minha parte ali de trazer a temática indígena para sala de aula. Tinha um professor que é do movimento negro, ele foi até um dos meus primeiros orientadores, então assim eu tinha pelo menos uma esperança, de ter ali um professor que era militante social pelo movimento negro, depois eu tive um professor que era advogado, da Associação de Advogados Trabalhadores Rurais, que foi meu último orientador, que me orientou mesmo na monografia e também eu fui acolhida por esse professor, então eu tive dois professores que eu podia conversar com eles sobre as questões indígenas, aprender também com eles sobre ter esse momento dentro da Universidade, de conversar sobre o que o que tinha me levado ali para aquele espaço. Então, depois de um tempo quando eu já estava no final, já na monografia, os meus colegas começaram, alguns colegas, começaram a até falar assim; ah Ivana eu vi um livro que tem a questão indígena na biblioteca, eles sabiam que eu sempre tava na biblioteca, meu curso era a noite eu saí de casa 1 hora, e de de 1 até 6 horas eu tava estudando na biblioteca sobre livros de Antropologia, todos os livros que tinha a questão indígena eu li, então eles já começaram também a saber esse meu interesse, começaram a me ajudar também, a descobrir novos livros, novos… naquela época não tinha internet tão fácil também usava a internet da universidade para fazer pesquisas. Entrei em contato com a instituição que estava se fundando naquela época, chamada Thydêwá, e depois eu vim fazer parte dessa instituição, e também me deu assim uma esperança, eu entrei em contato também com a Joênia Wapichana, com o Sime, com vários órgãos, organismos que trabalham com os indígenas para poder começar a oferecer a minha ajuda, o meu serviço ali, de um estudante que queria tá defendendo os povos indígenas. Mas para muitos dos meus colegas, eu era invisível, por isso que eu queria chocar, eu eu ia de chinelo com a roupa rasgada, mesmo tendo um sapato bom, mesmo tendo roupas boas, e eu queria chocá-los ali, para ser vista. Hoje eu entendo que eu estava ali querendo ser vista, porque eu queria dialogar com eles, eu queria conversar com eles sobre sobre as injustiças, que eu queria conversar com eles sobre os direitos indígenas, que precisavam estar também na academia sendo pensados, e a minha forma era chocando. Consegui alguns colegas que me ouviram sim.
00:35:45
P/1: Potyra, muito interessante essa sua experiência na universidade. Eu queria te perguntar se tem mais alguma memória forte da Universidade, algum pensamento que você gostaria de partilhar, senão já ia entrar na Thydewa.
R: Não, tá bom. Eu não tenho muitas memórias, pois a minha memória é tudo o que eu aprendi ali, com os livros, e como eu disse, eu não criei amizades dentro da Universidade. Eu terminei a universidade, eu nem fiz a colação de grau junto com meus colegas, porque eu não tive afetividade nenhuma com eles, amorosidade, nem afetividade nenhuma, passei somente como colegas e pronto. Depois disso, eu encontrei alguns que estão dentro de movimentos, já estando aqui dentro do território Tupinambá, encontrei um que fazia parte da pastoral da terra, encontrei uma outra que faz parte do movimento negro, são hoje militantes. E nesse momento que a gente se reencontrou, a gente pode conversar, de igual pra igual, mas naquele momento eu não tinha tido nenhum tipo de afetividade com eles.
00:37:11
P/1: Bacana, e qual foi o primeiro trabalho que você começou a ter efetivo?
R: Eu, em 2002 eu estava na universidade ainda, aí eu entrei em contato com essa instituição chamada thydewa que estava nascendo, e aí eu marquei uma reunião fui para Salvador e conheci o projeto, conheci a instituição, só que era em Salvador e para mim era muito difícil estar sempre em Salvador, por uma questão monetária mesmo, não ter dinheiro para ficar pagando passagem, já que eu pagava aluguel, pagava tudo com a ajuda do meu pai, e eu não queria colocar essas despesas a mais, era bem caro estar em Feira de Santana e nesse momento era eu e minha irmã, aí quando eu fiquei pensando, quando eu me formar vou entrar em contato novamente com aquela instituição.
E aí em 2004 eu me formei, e 2005 eu fiz minha OAB, e aí eu me ofereci para ser voluntária nessa instituição thydewa, e a minha primeira missão foi ir pra uma retomada, minha primeira missão foi para essa... Estava tendo o povo pataxó rain rain, que fica em Pau Brasil, com uma série de retomadas, nesta época existia um projeto chamado índios-online, que é uma mídia livro indígena, e aí eu já fui com essa missão de estar assessorando a comunidade nesta parte da documentação, e da divulgação do que estava acontecendo lá, e fui como voluntária para essa retomada. Eu nem sabia o que era retomada, nunca tinha ido assim em comunidade indígena, mas eu aceitei o desafio, botei a mochila nas costas e uma sacolinha de itens de alimentação, fui bater lá na retomada, pra mim foi bem decisivo, porque eu vi que era aquilo que eu queria fazer mesmo, nós estávamos numa retomada com conflito diário de pistolagem, muitos tiros, tiroteio mesmo, aí chegando lá encontrei com esse Sebastian que é o presidente da instituição, naquela época ele era presidente, hoje ele está ainda como presidente, e aí a gente começou a fazer o trabalho de divulgação, tinha que sair escondido, andar pelo mato pra poder levar a informação até onde tinha internet. Teve um momento que a gente não conseguia sair mais, por causa dos pistoleiros, que a gente só conseguiu sair com a reportagem que foi lá fazer uma matéria, mas aquilo ali pra mim foi decisivo, é isso que eu quero, quero ajudar o meu povo, foi assim um divisor de águas para mim estar naquele ambiente, embora perigoso com risco de morte, porque era tiroteio todas as noites, a parte de tarde começava e ía até o outro dia de manhã a gente ficar cercado pistoleiro, todas as mulheres tinha que ficar abaixada dentro do quarto, mulheres e crianças, mas para mim foi decisivo, essa primeira missão que eu tive para mim foi... e é isso que eu quero, quero ajudar meu povo, se eu puder com o que eu tenho de conhecimento, ajudar eu quero ajudar, daí para lá aí, depois desse 2005 eu fiz alguns outros trabalhos voluntários, de forma voluntária, nessa instituição em 2006 foi convidada para ser diretora executiva da Thydewa.
00:41:32
P/1: Conta um pouquinho mais da retomada, como foi chegar numa retomada e descreve o que é uma retomada, eu particularmente sei, mas se você puder falar o que é uma retomada e qual foi o seu papel nisso.
R: Então, o povo Pataxó Rain Rain tinha uma ação civil ordinária, que já tinha, eu não lembro dessa época quantos anos tinha, mas já tem mais de 20 anos essa ação, para nulidade de títulos, o estado da Bahia pelo Governador na época, ACM, doou terras, e dentro da área indígena para os seus parentes, seus amigos, e existe uma ação de nulidade de títulos, para que esses títulos fossem anulados, porque era ilegal, já que ali já existe uma demarcação de terra, era uma área demarcada que foi doada para terceiros. E aí, nesse processo de luta para poder pedir agilidade nesse julgamento desta ação, faziam-se retomadas, nesse momento era retomada das alegrias, foram 10 fazendas retomadas, um corredor, um ramal, onde tinham várias fazendas, dez delas estavam retomadas, uma do lado da outra. Eu não sei dizer quantos quilômetros, mas na época que a gente caminhava, dava duas horas de caminhada, para poder chegar de uma ponta a outra pela estrada, e nesse momento eu fiz a documentação, eu fiz entrevista, fiz matérias, peguei depoimentos, a partir de documentar mesmo o que estava passando lá para poder chegar na base onde tinha internet, transcrever o que havia sido feito ali de depoimentos e postar na internet para que fosse divulgado que estava se passando lá. Fotos, áudios, vídeos e texto, então essa parte mesmo de documentar. Naquele momento eu não tinha muito a prática jurídica, para poder alimentar de forma jurídica, mas era respeitada por todos, como uma aliada, uma advogada que estava ali para somar.
00:44:10
P/2: Potyra, eu fiquei curioso assim, nesse momento no final dos anos noventa, nos anos dois mil, você comentou um pouco, já no Sime, da Pastoral da Terra, dessa organização Thydewa. Tinha outras organizações indígenas que você recorda, de ter alguma referência pro seu trabalho? Hoje tem mais eu acho, não sei como era naquela época, hoje tem uma articulação de organizações indígena muito mais aprofundado, dos anos 2000 para cá, eu queria saber se tinha isso, se isso era uma referência também pro seu trabalho. Você já comentou da Joemia, veio de lá como uma referência também né?
R: Sim, nesta época tinha o Sime, nas minhas pesquisas aparecia o Sime, aparecia o Coiab, aparecia o Thydewa, não aparecia a Pibe naquela época, não sei se já existia, não sei te dizer isso, foi a Coiab que eu acabei entrando em contato com a Joênia Wapichana. Quando eu me formei eu mandei um e-mail para ela, me aparecendo como voluntária, que ela já estava tocando lá como advogada, e eu lembro que ela me respondeu algo como se eu quisesse ir, que eu poderia ir e ficar lá como voluntária junto com ela, eu teria que pagar todas as minhas despesas e tal, nessa mesma época que eu recebi esse convite da Thydewa, foi assim uma coisa bem na próxima da outra, e era bem mais barato para mim naquela época, que não tinha emprego, precisava da ajuda dos meus pais para poder pagar tudo, até ficar na Bahia mesmo do que ir para outro estado.
00:46:17
P/1: Então você assumiu como diretora executiva da Thydewa. E como foi isso?
R: 2006. Neste momento eu ainda estava voluntária, nós tínhamos um projeto de ponto de cultura, chamado índios online, e comecei a receber uma bolsa auxílio pelo trabalho voluntário, comecei a assumir funções, fui assumindo responsabilidades dentro desta instituição, tanto de prestação de contas, como na execução mesmo de atendimento online aos indígenas, porque nós tínhamos atendimento, tínhamos um bate-papo nessa época que muitas pessoas entravam neste site dos índios online para tirar dúvidas, recebíamos muitos estudantes, também existia esse intercâmbio cultural entre os vários povos participavam naquela época, que eram cinco, não eram sete, sete povos do nordeste. Então eu fiquei nesse suporte, em 2006, nesse suporte online, também ia até algumas comunidades para estar em loco mesmo, fazendo oficinas de uso dos computadores e também da escrita das matérias para serem publicadas no site. Já em 2007 a gente iniciou um novo projeto, chamado Arco Digital, no arco digital eu teria uma participação mais jurídica, além de fazer a prestação de contas, a gestão mesmo financeira, eu também dava oficina de direitos para indígenas, o arco digital foi um curso online para cem indígenas, que tivessem acesso à internet. Então dentro do orkut, a gente buscou, eu fiz esse trabalho de busca ativa, dos indígenas que estavam online e que tinham condições de participar do curso. nesta busca a gente conseguiu achar uns oitenta indígenas que tinham acesso diário à internet, isso em 2007. E aí começamos esse curso, desse arco digital, que tinha tinha curso de Direito, Produção de Projetos, Sustentabilidade, Saúde, a gente iniciou com plataforma Moodle, depois nós mudamos, a gente percebeu em que era muito horizontal, muito quadrado para o que a gente queria, depois a gente criou uma comunidade colaborativa de aprendizado, dentro da nossa própria página virtual, dos índios online, tivemos essas formações. E a proposta era sair projetos, ou iniciativas mesmo de transformação social dentro das comunidades, a gente trabalhou questões do lixo, questões de direito, questões ambientais, e foi muito rico mesmo esse um ano de atividades com o Arco Digital.
00:49:45
P/1: Potyra, qual foi o momento que de fato você mudou para os Tupinambás?
R: Em 2007 também. Eu vim para aqui fazer um livro, porque uma das novas tecnologias sociais é a produção de livros, a coleção de livros índios na visão dos índios, que é um livro todo ele escrito pelos indígenas, fotos tiradas pelos indígenas, com essa proposta mesmo, do próprio o índio contar sua história, não precisar que um antropólogo que um historiador, vá até uma comunidade para contar história, mas nós somos nossos próprios historiadores, os nossos próprios antropólogos, nós sabemos contar a nossa história. Então, eu vim aqui fazer um livro, já sabia que eu era Tupinambá, e fui bem acolhido aqui por essa comunidade, até os outros povos têm até ciúme, porque eu andei tantos povos, em tantas comunidades, fiquei até morando em algumas, pra fazer um trabalho específico, sete meses em uma, três meses em outra, para estar executando um projeto, mas aqui foi o lugar que eu escolhi devido ser a minha etnia. Eu não sou Tupinambá de Olivença, mas eu sou Tupinambá, eu fui muito bem acolhida aqui por esse povo, e estou aqui hoje. Eles nem gostam quando eu falo que eu não sou Tupinambá de Olivença, mas eu tenho reconhecimento da história da minha família, e eu sempre vou afirmar isso, que eu não sou Tupinambá de Olivença, eu não sou Tupinambá. E foi pedindo que eu esteja aqui, até a demarcação do território, quando demarcar, eu vou lá para o meu povo, pra ilha de Itaparica e tentar a resistência lá, junto com os meus, assim que demarcar esse território aqui.
00:52:07
P/2: Eu queria perguntar então, já que a gente pode prosseguir mais um pouquinho, você comentou essas iniciativas, dos índios online, do arco digital em 2006/2007, falou até do Orkut assim, e na verdade, eu queria perguntar para você como era naquela época, explorar esse negócio que era uma novidade, que era a internet através da identidade indígena, que é uma coisa que cresceu muito desde então. Hoje tem muitas mídias indígenas, mas naquela época era muito diferente, era muito Inicial, e aí queria perguntar como era isso para você que estava vindo da militância do direito, e vê se esse território digital, a possibilidade disso, se esse ponto de cultura instalava internet nas aldeias, perguntar como era esse momento assim.
R: Então, esses pontos de Cultura atuava em sete comunidades indígenas, Bahia, Alagoas e Pernambuco, a gente instalava sim internet via satélite nas comunidades atendidas, e com computadores também, fazia um pequeno e infocentro dentro das áreas indígenas, engraçado que muitas dessas comunidades tinha internet dentro da Aldeia, mas não tinha nem na cidade, essa comunidade que ficava na cidade, não tinha internet mas dentro da Aldeia tinha, e os indígenas estavam ali se apropriando das tecnologias digitais, em prol da da sua luta né, a gente sempre falava é o mundo abrindo, para a comunidade, e os online davam uma proposta para isso, que ia chegar, sabia que ia chegar nas comunidades, mas que fosse utilizada de forma a trazer benefícios, para comunidade. No Pataxó Rain Rain mesmo, teve uma vida salva através da internet, uma pessoa foi picada por uma cobra, e pela internet mandou mensagem no bate papo nos índios online, que a gente conseguiu acionar a saúde indígena, que na época era a Funasa, para poder ir socorrer esse indígena que estava lá, já quase morrendo, sem poder sair da comunidade, porque não tinha transporte. E vários outras situações, em que a internet salvou vidas também, e eu ficava muito feliz em ver o uso que estava sendo feito ali, da internet, pela comunidade, pelos povos, pelos jovens, jovens muito comprometidos, muitos jovens que hoje são comunicadores, passaram pelos índios online, passaram por esses momentos nossos aí de formação. Jaborandi foi um, um dos que começaram em Tupinambá com os índios online, teve muitas transformações de vida, Anapoacá, Olinda, Casineastra, Grassi Guarani, ela também passou pelos índios online, Alex Pankararu que é cineasta, muitos dos que estão sendo hoje comunicadores, iniciaram com os índios online.
00:55:44
P/2: Era uma rede, uma comunidade no Orkut?
R: Nós tínhamos um portal, onde todas as matérias eram publicadas, o Orkut foi apenas um espaço onde a gente conseguiu agregar mais indígena, porque com o arco digital, a gente abriu para indígenas do Brasil inteiro, com índios online era restrito, era aquelas comunidades onde a gente conseguiu colocar uma conexão, que era muito difícil colocar um satélite dentro de uma comunidade indígena, primeiro tinha a questão da energia, tinha que ter um local onde pudesse agregar aqueles computadores, levar esses computadores até a aldeia também era bem complicado, mas o Orkut foi…, a gente não chegou a criar uma comunidade no Orkut não, porque nós tínhamos a nossa página, a gente pensou em agregar algumas ferramentas do Orkut, dentro da nossa página, e a gente fez isso com a nossa comunidade colaborativa de aprendizagem, mas nós tínhamos o nosso próprio espaço, onde tinha um bate e papo, onde tinha um lugar para postar matérias, era o nosso ambiente, onde a gente se encontrava.
00:57:57
P/2: Só pra fechar esse assunto, os índios online, é uma iniciativa autônoma de várias pessoas indígenas, explorando a internet. E ao mesmo tempo, o ponto de cultura era um investimento do Governo Federal para instalar internet nas aldeias, naquele momento?
R: Um ponto de cultura com financiamento, para comprar os equipamentos e a internet via Gesac, que era um programa do estado também, do Governo Federal. O Gesac a princípio nasceu para colocar internet nos quartéis do exército, em locais de difícil acesso, mas fez essa parceria com o Ministério das Comunicações, os pontos de cultura da época, o cultura viva fez essa parceria com o Gesac, para que pudesse estar colocando também dentro de áreas indígenas, e aí a gente está “pentelhando” todos os dias o Ministério das Comunicações, para colocar as antenas dentro das áreas, aqui mesmo tanto no meu povo, nós temos antena via Gesac e vários outros, a gente conseguiu colocar bastante, mesmo depois quando o projeto índios online, porque ele nasceu como projeto, isso também faz parte da minha história, mas como todas as outras redes que foram idealizadas por essa instituição, chamada Thydewa, a proposta que com o passar do tempo, deixassem de ser da rede Thydewa e passassem a ser geridas pelos próprios indígenas. A rede índios online passou a ser gerida em 2009. E em 2009 a gente fez uma gestão compartilhada, eu fiz parte desta gestão também, a gente conseguiu um prêmio, e neste prêmio a gente respondia para o Brasil inteiro, nós tivemos indígenas de todas as partes do Brasil, sendo comunicadores através da nossa rede, a gente também ia até as comunidades para fazer oficinas, de Vida, de Fotografia, de Direitos Humanos pra essa comunidade, para os indígenas. Em 2009 foi um ano que eu viajei muito para as aldeias, fazendo oficinas, neste momento eu me desliguei da instituição Thydewa, não assim juridicamente, mas eu não trabalhei nos projetos que eles estavam desenvolvendo na época, para estar somente com os índios online, foram eu, Jaborandi, Curupati que é outro indígena aqui da minha aldeia, Graci Guarani que é cineasta e Alex Pantararuqui que também é cineasta, nós fizemos essa gestão, coloquei uma mochila nas costas e saímos dando oficinas aí em várias comunidades.
01:00:40
P/1: E aí você quer partilhar um pouco, teve alguma coisa marcante nestas oficinas pra você?
R: Ah, não foi marcante não, somente ver hoje que muitos daqueles jovens, que passaram por nossas oficinas, hoje estão aí nas mídias. Então aí se comunicando de forma independente, eu fico vendo os rostinho deles, ah passou pela oficina que legal, estou feliz, estou vibrando, vibro sempre que eu vejo os meus parentes aí nas redes comunicando, porque foi um processo bem difícil, devido essa dificuldade de acesso, mas que hoje esse boom tecnológico, dá esse acesso a esses comunicadores poderem estar passando a nossa verdade, extrapolando as nossas aldeias chegamos até a cidade que as pessoas que têm interesse em saber das nossas verdades, não só as verdades que são passados pela mídia, que é opressora, que nos oprime.
01:01:58
P/1: Mas aí Potyra, vivendo nos Tupinambás, como você decidiu ficar nos Tupinambás, como ficou isso… Você falou assim, vou ficar aqui?!
R: Eu sempre falava que eu queria passar um ano em alguma comunidade, para viver aquele cotidiano, abandonar tudo, então eu fiz isso. Eu passei um ano, eu nem falava com a minha família nessa época, aí passei um ano sem dar notícias à minha família, então eu comecei a viver aqui do artesanato, eu passei um ano afastada de tudo, foi o ano, final de 2007 e 2008, o que eu vivi realmente do artesanato, vivendo o cotidiano mesmo aqui da comunidade, construí minha casa de taipa, com a ajuda da própria comunidade, não tinha móveis, você ia pegar madeiras em um hotel aqui que tem um lixão, que a gente chama de shopping, então assim, eu vivi um ano mesmo como todos os meus parentes vivem aqui, e trabalhando hoje para ter o que comer amanhã, uma realidade totalmente diferente da minha, que vinha de uma classe média, onde tinha uns pais super provedores, mas assim foi muito importante para mim, que também foi um marco nesse momento de dizer que era isso que eu queria para minha vida.
01:03:38
P/1: E aí como é que era lá, aí no caso? Você chegou, estava tendo os processos de retomada?
R: Eu vim morar numa retomada, essa retomada que eu moro é uma aldeia Itapuã, e ela tinha sido retomada em agosto, e eu cheguei em novembro. Então era uma comunidade bem nova, eu morei numa casinha de palha durante muito tempo, até conseguir construir uma casa de taipa, então foi os momentos mais felizes da minha vida, que eu pude ser livre, por que a gente vive estudando, vive se preocupando, vive pensando que tem seu pé, que tem RG, que tem conta para pagar, e eu pude ser livre nesse momento aí, que eu tive um ano de experiência de viver com o mais simples possível, fogão de lenha, uma casinha de taipa com um vão só coberto de palha, uma caminha de tarimba, um colchão doado, não tinha pratos, não tinha talheres, era super feliz porque eu podia participar de todos os movimentos, de todas as reuniões, de tudo que estava acontecendo, sem preocupar que eu tinha agendado qualquer coisa, que eu tinha uma prestação de contas para fazer, ou que eu tinha um pagamento para fazer, foi o momento mais feliz para mim, tenho muita saudade daquela época em que eu tinha a minha casinha, meu coió, como a gente chama aqui. Então, eu pude realmente vivenciar e aí ir para a fonte com as mulheres, lavar roupa, porque com a vida que a gente leva corrida e com tantos afazeres, a gente perde, eu mesmo perco, eu não participo mais dessas coisas dentro da aldeia, porque sempre tem uma reunião, você sempre tem um documento para fazer, sempre tem que estar online, então a gente perde essa liberdade, que as minhas parentas aqui tem, de poder ir pra fonte sem ter tempo, vai pra fonte lavar roupa, tomar banho e brincar com os filhos, sem precisar voltar e dizer eu estou atrasada, não fiz nada! Essa época para mim foi de liberdade plena, liberdade, só posso falar isso.
01:06:10
P/1: Nossa, e aí você chegou, você foi morar numa retomada, numa casa de palha. Mas as pessoas sofriam ataques de fazendeiros?
R: Sim, era perigoso também, porque as casas eram todas de palha, a gente tem que ter a vigilância noturna, porque poderiam botar fogo nas palhas, ia pegar fogo em tudo, então assim, era total vigilância, e era muito gostoso, porque a gente sempre estava na beira da fogueira conversando, eu como eu tinha os livros, eu levava os livros para gente ler sobre outras culturas, eu sempre fazia rodas de conversa à noite, até altas horas, até o momento em que os seguranças já estavam sozinhos, a gente ia dormir, e a gente também ajudava aí nessa segurança, ficando alertas, dormindo e acordado, agora mesmo nesse momento aqui na minha aldeia, nós estamos dormindo acordado, porque tem uma área próxima da minha aldeia, que colocaram os pistoleiros e hoje a gente está tendo também vigilância aqui, lembrando aquele velho tempo que a gente tinha que dormir acordado, os homens fazem a segurança à noite, estamos lembrando o início da nossa comunidade aqui, devido esse momento aí de conflito, que nós estamos vivendo.
01:07:47
P/1: E dentro disso eu ia te perguntar, o que você viu de fato, o que você presenciou de ameaças à comunidade, de ataques, perseguições…
R: Bastante coisa, nesse processo de luta aí, nesses anos que eu estou aqui, eu continuei fazendo esse papel de documentação, então quando a gente estava nos processos de retomada, eu era a única mulher que ia junto com os homens no momento aqui entrava nas fazendas, com esse papel mesmo de documentação, de filmar o que estava acontecendo, como prova do que tinha ali de bens materiais, naquele espaço físico, e da integridade física das pessoas. Então passei por alguns momentos, bem assim difícil, mas sempre protegida pelos guerreiros, mas momentos assim que marcaram a minha vida, de tiros mesmo, de ter que se esconder no mato, correr... mas que faz parte da luta, estava ali para tudo, isso aí já foi em 2012, eu já tinha retomado meus trabalhos com a instituição, mas eu sempre dava minhas fugidas para poder estar ajudando o povo, nesse processo aí da luta pela terra, mas sempre pensando na documentação, de a gente ter provas de como era o nosso modo operante, da nossa forma de entrar nessas áreas, e também de respeito com aquele caseiros que estavam ali, com os funcionários, que a nossa briga não é com eles, é com o sistema, é com o fazendeiro que às vezes contrata pistoleiros para matar a gente, não com aquele pequeno produtor que está ali. Então ficava nesse papel também de diálogo, de explicar os motivos, de sentar com essas pessoas e acolhê-las também, explicar o porque. Muitos deles apoiavam a gente, muitos deles até são indígenas, que estavam ali naquela fazenda, então eu fazia esse papel também de dialogar, e no outro dia chegava as outras mulheres, as outras lideranças, a nossa Cacique é uma mulher, aí chegava também as outras famílias que iriam ficar ali naquela área.
01:10:37
P/1: E só me aprofundando nisso, como é que era esse processo de documentação. Acontecia a retomada e você ia documentar, e o que era isso. E como é que isso era recebido dentro da Justiça mesmo, era recebido, era manipulado. Como é que era o trabalho que você fazia, como é que ele resultava?
R: Eu filmava tudo, tinha uma câmera na época, uma filmadora, eu filmava tudo, todo o processo, da entrada e todos os bens que tinham na área, e também documentava no papel. Você tá bom, vamos ver aqui nesta sua casa o que é que tem, televisão, sei lá, ferro de passar, tantos pratos, está aqui tudo seu, a gente não quer nada seu, a gente quer a terra, você vai tirar tudo isso aqui que você tem, dentro da sua casa, é seu. Então aí eu fiz esse tipo de trabalho, de filmar todo esse processo dos diálogos, das explicações, e como a gente estava agindo ali naquela entrada, sem violência, com respeito. Nessas retomadas que eu tive esse papel de documentação, felizmente a gente não teve nenhum conflito iminente de tiros, nem nada, a gente sempre entrava depois de um ritual, a gente sempre reunia antes de fazer o nosso ritual de proteção, sempre muito orientado todos os que estavam ali, sempre bem orientados e como agir com respeito, sempre quando eu estou presente, Eu sempre gosto de frisar essa questão de que eles não são nossos inimigos, mas é o sistema, é o fazendeiro, que não estava ali claro, naquele momento, porque a gente faz uma pesquisa antes também, de qual é o melhor lugar para entrar, não é uma entrada aleatória, existe uma pesquisa, existe todo um processo anterior, de a gente fazer uma retomada. Mas isso não era divulgado em lugar nenhum, essa documentação era nossa, ela podia ir até no momento depois da entrada, depois da gente ocupar o espaço, na reintegração de posse. Eu Fui processada por fazer esse trabalho, tive ganho de causa, mas fui processada justamente por filmar um dos fazendeiros, ele processou por direito de imagem, mas depois ficou tudo ok, porque eu estava ali representando uma mídia, um meio de comunicação indígena, porque eu postava também alguma coisinha ali nos índios online, mas a grande parte dos documentos ficavam em off para gente.
01:13:55
P/1: Tinha um negócio também, tinha um interesse das especulações imobiliárias, de fazenda de cacau, interesses maiores assim na terra?
R: Sim, área de fazenda de cacau. Essas áreas das retomadas, de pessoas influentes, de políticos influentes, a gente está aqui na área do cacau, dos fazendeiros, dos coronéis do cacau que se acham ainda o dono da cidade, o dono do poder, embora falidos, eles ainda acham que mandam na cidade. Então a gente está aqui brigando com esse tipo de pessoas.
01:14:34
P/1: E aí como era esse enfrentamento? Tipo, como que você Potyra, morando na casa de palha, lutar com fazendeiro de cacau que é ligado com políticos influentes?
R: Com a comunicação, a gente era chamada de suposto índio, povo da serpente, da vassoura de bruxa, e a gente contra punha todas essas coisas, através das nossas matérias, nas nossas divulgações, sempre que passava uma matéria na televisão, falando da gente, a gente colocava uma outra contrapondo aquela ali, então foi um trabalho assim de muita militância, de midiativismo nosso nesses momentos, de estar super atenta a todos os blogs, eu ficava muito atenta os blogs, que eram financiados aí por esses fazendeiros, para poder contrapor, o que eles estavam ali divulgando as mentiras, que eles estavam divulgando com provas, com evidências, porque tudo estava sempre filmado e documentado.
01:15:55
P/2: Dentro dessa perspectiva que você está trazendo Potyra, eu fiquei assim pensando, que você contou que sempre sonhou em passar um tempo, esse um ano, que virou vários anos agora, desde que você foi morar aí na aldeia Itapuã, que você falou dessa Liberdade né, mas a mesma tempo eu senti que essa liberdade, ela teve um custo, digamos assim, de você dormir acordado, que nem você falou. Queria que você pudesse descrever um pouco, como é esse estado, na verdade de ser um Tupinambá de Olivença de verdade, que é, você poder desfrutar dessa liberdade, mas ao mesmo tempo você ter que estar desafiando grandes poderes locais. É uma liberdade com seus custos, queria que você pudesse tentar traduzir um pouco desse sentimento, uma coisa de que você desejou na sua vida, e que você foi aprendendo já tem um bom tempo.
R: Sim, com certeza. Eu tenho muitas saudades ainda daqueles momentos, embora… mais difíceis, mesmo na questão de sobrevivência, uma sobrevivência muito difícil, porém feliz, porque eu aprendi muito nesse um ano que eu passei, realmente longe de trabalhos assim formais, de obrigações. Embora tinham esses momentos, de dormir acordada, mas dormir acordada por todos, mas não estava ali sozinha dormindo acordada, tinha várias pessoas, nós estávamos ali em comunhão, em união. Então é não estar sozinha nesse mundo, para mim era assim tipo isso, embora fosse acolhida pela minha família, quando eu decidi ficar aqui, meu pai todos os dias pergunta, depois que eu retomei o contato com eles, que eu passei realmente um ano sem falar nada com eles, eles não tinham notícias minhas, justamente porque eu queria mesmo vivenciar aquilo ali. Depois que eu retomei o contato, meu pai todo dia perguntava, quando você vem pra casa, você é uma advogada, você precisa trabalhar, você não quer trabalhar. Eu tive vários conflitos com meu pai, sobre a minha decisão de ficar aqui, mas voltando… depois eu posso comprar esses conflitos amorosos até. Mas era você estar junto com todos e todas daqui, era uma coisa muito coletiva também, era uma aflição coletiva e alegrias coletivas também, eu quando estava lá pegando lenha na mata para poder cozinhar, eu não estava só, eu estava com outra parente, então ali enquanto estava conversando com ela, eu estava aprendendo com ela. Eu lembro quando eu cheguei, eu passei fome dois dias, porque eu fiquei nesse mesmo coió que eu morei depois, mas eu não sabia como acender um fogão de lenha, eu tinha comida, mas depois não queria mais comer salgadinho e nem biscoitinho, queria comer comida, mas também não queria ir na casa de ninguém ficar pedindo, quando eu decidi realmente ficar, esse meu aprendizado do ficar foi difícil para mim, ir buscar água, pegar a lenha, acender o fogão de lenha, não tinha energia, não tinha como guardar um alimento na geladeira, porque não tinha, então eu tive que aprender a conservar alimentos da forma dessalgando, se fosse carne fresca tinha que cozinhar tudo, esquentando um pouquinho todo dia para não perder, eu tive que reaprender, uma coisa que eu sempre via minha avó, embora eu visse a minha avó fazendo essas coisas, nessas caminhadas que eu fiz com ela, mas eu nunca tinha tido protagonismo de fazer sozinha, só via. E esse momento pra mim, foi muita conexão com a minha avó também, eu relembrei as coisas que eu via ela fazendo, mas as outras mulheres também me ajudaram aqui, no momento de ir pra mata pegar lenha, de ir buscar água no rio, de ir lavar roupa no rio, então esse foi um momento de aprendizado para mim. Quando eu digo que eu queria me desligar de tudo, eu me desliguei de tudo mesmo, eu me abri para esse aprendizado, eu me abri pra essa nova forma de viver, que era totalmente diversa da que eu vivia, tanto nesta parte da vida diária, quanto na parte de dormir acordada, porque podia colocar fogo o pistoleiro chegar, então foi grande aprendizado pra mim para valorizar também, o que eu tinha antes e o que eu tenho hoje, todo esse processo aí de a gente hoje estar aqui na minha aldeia com energia, com internet, tem wi-fi na minha aldeia hoje, temos luz, tem uma vida boa dentro da minha comunidade, que foi um processo de luta para que a gente conseguisse chegar nessa aldeia que nós temos hoje aqui, com água encanada em casa.
01:21:47
P/1: Mas isso, além de trazer uma parte boa, teve alguma perda, por exemplo, desse contato com fogo, com o saber dos anciãos…
R: Sim, nós sentimos isso muito forte, quando a gente puxou um gato de energia, teve essa ideia de puxar um gato de energia, para ter uma energia na cabana, que é o ponto central da nossa aldeia, aí colocaram uma televisão dentro dessa cabana. Foi assim, acabou, porque a gente se sentava todas as noites em roda na fogueira, para ler, eu lia alguns livros da coleção na visão dos índios, nossos anciões contavam as histórias, ou seja, era um momento muito rico, e com a energia isso foi acabando, hoje em dia não tem mais, nós temos o fogo no nosso ritual em todas as festas, mas tem muitos parentes aqui que não vem para o ritual, porque está assistindo televisão. Então, a gente entende que a energia trouxe vários benefícios, porém ela também tirou muita coisa da nossa riqueza, com certeza a gente já fez essa avaliação aqui.
01:23:08
P/1: Potyra, voltando lá a questão da luta pela terra, queria saber por exemplo, como foi e se você estava envolvida, no caso participou, presenciou, a questão da prisão do Cacique Babau, da Valdelice, como é que você vivenciou esses processos.
R: Minha participação em Babau foi apenas militância mesmo virtual, porque nós estamos longe daqui da Serra do Padeiro, então eu faço parte do Cascato da Maria Valdelice, e eu nunca fiz separação com nenhum cacique aqui, todos que precisam do meu apoio, da minha ajuda, seja na parte da etnico jornalismo, seja na parte jurídica, eu sempre estive à disposição. Mas o cacique Babau é bem mais distante, é uma organização mais fechada, então a minha ajuda foi mais virtual mesmo, de militância virtual, já na cacique Valdelice, eu estava em Salvador quando ela foi presa, assim que ela foi presa recebi um telefonema, no dia 28 inclusive, que eu não esqueço, eu retornei no outro dia. No outro dia quando eu retornei, fui até o presídio onde ela estava, para poder visitá-la, porque até aquele momento ninguém tinha conseguido ainda entrar lá para conversar com ela. Então eu dei a carteirada lá, na OAB, e consegui entrar e conversar com ela, para saber como ela estava e a partir daí foi que começou a buscar para que ela fizesse a prisão domiciliar, não atuei assim ativamente como advogada, mas na parte da militância mesmo, do mídi ativismo, da pressão na questão dos Direitos Humanos, para que ela fizesse a prisão domiciliar, porque a família dela contratou um advogado, para poder fazer isso. Então eu não atuei como advogada, mas como, etna jornalista., mídia ativista.
01:25:38
P/1: Teve alguma outra perseguição, marcante assim neste período em que você esteve aí?
R: Sempre tem. Eu faço sempre oitiva, eu acompanho alguns caciques nas partes das oitivas, e sempre tem delegados, em que querem e super preconceituosos, que a gente precisa tá ali sempre colocando no lugar, que é um cidadão, somos cidadãos e precisamos ser respeitados. E que ninguém é considerado culpado, até que seja julgado, então você não pode tratar um indígena que está sendo ouvido ali, como já sendo julgado e condenado. precisa ter esse respeito. Então, nós tivemos muitos momentos difíceis aqui, depois que a gente fez esse processo de retomada aí, que eu participei dessas entradas, nós tivemos um momento de muitas mortes aqui território, muitas mortes mesmo. Em 2014, teve um ano que foram 26 indígenas assassinados, e a gente tem até medo de entrar no território e ser assassinado também. Eu tive a minha casa queimada, devido esse meu trabalho de mídia ativismo, a minha casa colocaram fogo, porque eu sempre denunciei os juízes, denunciei os fazendeiros, e coloco o nome deles lá, então em 2013 eu tive a minha casa incendiada, justamente por esse trabalho aí de comunicação. Para mim foi difícil perder tudo, mas também foi um momento assim, outro marco né, de que temos que resistir, continuar falando, se o objetivo deles era me falar, não conseguiram, eu continuo falando, dando nome aos bois.
01:28:00
P/1: Mas como foi isso, quem botou fogo na sua casa, você pode falar também?
R: Eu não tenho provas né, para falar que foi A ou foi B, mas foi um momento de muitos conflitos aqui, não foi só aqui na minha casa que colocaram fogo, mas lá nessa área de Guararema tiveram várias casas indígenas incendiadas, nesse mesmo momento teve até carros oficiais, teve incendiários, teve um indígena sequestrado, como ele está passando aqui pelo território, um indígena que nem é daqui, foi o professor Edson Kayapó, foi sequestrado, ele passou um dia sumido, essa nesta mesma época foi a época que colocaram fogo aqui na minha casa, a gente não sabe quem foi, não houve investigação, para saber quem foi que fez isso, mas eu sei que foi uma represália ao meu trabalho, como comunicadora, como mídia ativista, mas não sei dizer quem foi, mas não me calaram, eu continuei falando e vou continuar.
01:29:20
P/1: Mas aí você foi morar aonde depois que queimaram a sua casa?
R: Queimaram a minha casa eu tinha uma casa fechada aqui de uma parenta, que estava viajando, aí eu passei um tempo quase um ano lá na casa dela, até terminar de reformar a minha casa, aí quando reformou eu retornei aqui para essa casa.
01:29:44
P/1: Potyra, tem uma outra coisa que eu queria perguntar, você realmente é uma entrevista que dá vontade de fazer 4 horas, só para a gente passar por uns outros temas, eu queria te perguntar se você tem alguma memória das caminhadas Tupinambás.
R: Sim, muitas. As memórias são assim, as da força do povo, a união, a caminhada pra gente, mas eu não sei se pra todos os Tupinambá, mas eu digo aqueles que estão ali naquela frente ali buscando aquela caminhada, para que possa acontecer, o ano só começa e termina depois que terminou a caminhada, o nosso ano não começa em janeiro, o nosso ano começa em setembro, termina uma caminhada vamos respirar agora que começou o ano pra gente, vamos correr para poder fazer a caminhada do ano que vem. Então é um marco assim para gente, de resistência, um marco de união, onde descem os indígenas das terras e de todos os lugares nosso território, para juntos caminhar em memória daqueles antepassados que foram assassinados, e o que me marca muito é cantar junto, estar todo mundo ali na mesma pisada, caminhando juntos e cantando juntos, é muito forte, só estando dentro ali para poder saber a fortaleza que é, porque é uma voz que ecoa do coração e da alma e da ancestralidade, é muito forte, muito forte mesmo. Nas duas últimas duas caminhadas, eu não caminhei, eu fiquei na cozinha, ajudando na cozinha, por também saber que a parte da alimentação é muito importante, então nas duas últimas eu não caminhei.
01:31:52
P/1: Então como você falou, tem todo ano né?! Mas para a gente ter uma visão, do que é uma caminhada, por exemplo, você poderia me descrever uma, uma que foi forte para você, que foi marcante, que teve história. Como é a caminhada mesmo, o objetivo e como foi essa caminhada, de alguns anos.
R: Posso descrever a minha primeira caminhada, eu não morava aqui ainda, foi no ano de 2006, eu vim para a caminhada, então um olhar de fora naquele momento, eu não estava inserida em todo esse processo, mas vi os parentes chegando, todos felizes em poder caminhar, porque existe toda uma preparação anterior, o momento da caminhada é o final de algo que já foi acontecendo antes, que é chamar o povo, antes da caminhada existe uma reunião, existe uma grande assembleia, uma grande reunião com os parentes, um grande ritual na no sábado à noite também de preparação, o momento das pinturas, escolher qual pintura a gente vai usar, escolher qual é o nosso nossa mensagem com aquela pintura, e todo mundo concentrado, sabendo que está ali lembrando os antepassados, lembrando os antepassados que foram assassinados, e lembrando também o caboclo Marcelino que foi um líder, e na década de 30 lutou para que não construíssem uma ponte. Antigamente para chegar em Olivença era muito difícil, e aí enfrentaram construir essa ponte para facilitar o acesso e Caboclo Marcelino ele visualizou que tendo o fácil acesso, a gente ia ser invadido e foi o que aconteceu, nesse processo de perda de terras foi a partir do momento em que esse acesso através dessa construção dessa fonte, liberou as pessoas de passarem aqui, aí começou a ter casas de Veraneio, Olivença foi realmente invadida por pessoas que queriam desfrutar das nossas belezas, das nossas riquezas, com a expulsão dos indígenas que moravam em Olivença, Caboclo Marcelino foi super perseguido, morto, foi assassinado, até hoje a gente não sabe o que aconteceu com o corpo dele, nem se ele realmente foi assassinado, se tá vivo, a gente não sabe, porque a gente não teve nenhuma resposta neste sentido. Então a gente lembra ele também, desse despertar dele para os nossos direitos, naquele momento ainda na década de 30. Então, quando a gente está se preparando, quando a gente está se pintando, e nas reuniões é sempre reverenciando esses antepassados, e a caminhada é reverenciando, a gente anda 7 km, tem uma légua de corpos. Na carta que Mendes Sais escreveu para um rei de Portugal, quando teve a batalha dos nadadores, que no Cururupe foi o local da batalha dos nadadores, Mendes Sais fala que foram uma légua de Corpos estirados na praia, se esses corpos fossem estirados seriam uma légua. Uma légua equivale a 7 km, a gente caminha 7 km, quando a gente caminha 7 quilômetros, a gente está lembrando uma légua de corpos, a gente lembra de que de Olivença até o Cururupe foram corpos indígenas estirados na praia, então cada vez que a gente pisa no chão, que a gente canta, a gente está também honrando esses antepassados aí que foram assassinados, e também honrando o Caboclo Marcelino, que não queria a construção da ponte nesse mesmo espaço histórico do povo, que é lá no rio Cururupe também. São dois marcos históricos do povo.
P/1: Potyra, quando a gente começou a entrevista, você estava com um fundo de organização de mulheres. Eu queria te perguntar isso, qual é o seu envolvimento com as mulheres na sua comunidade, como você começou a trabalhar junto com as mulheres daí.
R: Então, nessa mesma instituição Thydewa que eu entrei em 2006, como sócia, nós em 2014 fizemos um projeto, para o ministério da SPM, Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, para as mulheres, para trabalhar com mulheres, formação de mulheres. É uma coisa que tinha muito assim em mim, nessa época eu estava na instituição fazendo a gestão financeira, muito focada mesmo, mas só na prestação de contas, contratos, projetos com o governo federal, grandes projetos que me levaram muito tempo, me demandavam muito tempo, em frente a tela, ficava pouco chão e mais na tela, tela do computador, e prestação de contas, aí em 2014 a gente fazer esse projeto para trabalhar com mulheres, formação de 16 mulheres indígenas de oito comunidades do Nordeste, de Alagoas, de Pernambuco, Sergipe e Bahia, formação de duas mulheres em cada uma dessas comunidades, para serem agentes promotores dos direitos das mulheres dentro das suas comunidades. Era um projeto de um ano, então em 2014 nós lançamos uma cartilha que era um livro da coleção entre a visão dos índios, com textos de mulheres que superaram as situações de violência, e também era uma cartilha. Em 2015, nós fizemos a rádio Acauã, que é uma rádio de mulheres, para mulheres, falando sobre diversos temas, e eu continuei nesse pouquinho com mulheres e também na instituição que me demandava muito tempo, e eu não conseguia muito me dedicar muito as mulheres, então em 2019 eu tomei a decisão de sair da instituição, eu pedi meu desligamento da instituição, para ficar exclusivamente com mulheres. Então desde 2019, eu saí da Thydewa e passei ser uma das gestoras da rede, junto com outras mulheres, então naquela mesma proposta dos projetos que a instituição Thydewa lançou, depois de um certo tempo as redes elas iriam caminhar sozinhas, e aí eu saí e comigo levei eu levei a rede junto com outras mulheres, e hoje nós estamos aí tocando essa rede, que não é uma rede que tem CNPJ, mas é uma rede de atuação no enfrentamento a violência, nós fazemos reuniões online, neste momento de pandemia, coincidiu esse momento de saída com a pandemia, que não nos permite mais em ir até as comunidades, como era a nossa metodologia de ir até as comunidades, fazer rodas de conversas, usar o Teatro do Oprimido, para poder trabalhar às questões dos direitos das mulheres, então com a pandemia a gente não pode mais ir até as comunidades, então a gente faz tudo online, hoje em dia, oficinas sobre direitos, campanhas sobre os direitos das mulheres, o fortalecimento das mulheres, e eu hoje atuo, eu me especializei em Direito das mulheres, direitos de gênero, e hoje eu faço atendimento jurídico de mulheres que estão em situação de violência, é um trabalho pro bono, é um trabalho que não tem um salário, em 2019 eu também me tornei professora, aqui na minha aldeia, foi uma coisa que eu sempre tive muita resistência, eu tinha sido convidado para ser professora antes, mas eu nunca tinha aceitado. E aí eu aceitei esse desafio, de em 2018 foi um ano que eu entrei como professora, de ser professora para poder trabalhar a questão dos direitos em sala de aula, trabalhar com a Eja, eu sou professora noturna, de adultos, justamente motivada a trabalhar a formação de lideranças ai a noite. Isso também me possibilitou, poder sair da instituição, de poder ter pelo o mínimo para poder pagar as minhas contas, mas em poder me dedicar mais em algo que, pensando nessa liberdade também, tentando resgatar um pouco daquela liberdade que eu tive quando cheguei aqui na comunidade, que eu não tinha mais condição, eu não tinha possibilidade de participar de nada, totalmente imersa nas burocracias. Então para mim foi assim libertador, estar professora, poder pagar a minha luz, poder pagar minha internet, e comer, e poder também tá doando o meu conhecimento em prol do meu povo, claro que na instituição eu fazia isso também, mas era era menos, porque era muita burocracia, então de 2019 para cá, eu estou mais assim doando o meu conhecimento, para ajudar o meu povo, não só o povo Tupinambá, mas todas as mulheres que vem procurando aí.
01:42:33
P/1: Potyra, qual que é o grande desafio que você enfrentou, em ser uma mulher advogada, indígena?
R: Existe ainda o machismo, eu hoje como eu lido com essas questões de direitos das mulheres, de certas forma acabo empoderando muitas mulheres, a partir do momento em que eu acolho elas, em que eu oriento. Eu acabo sendo visada né, pelos homens machistas, que não querem que as mulheres conheçam os seus direitos, nem conheçam que elas estão numa situação de relacionamentos abusivos, que aquele relacionamento são com homens narcisistas, então a gente acaba sendo visada né! Então a minha segurança hoje, não é a mesma de 2018, por exemplo, em que eu não estava tão atuante com as mulheres, então o meu maior desafio hoje, é não sofrer violência também né. A partir do momento que eu tenho ajudado outras mulheres a sair da violência, eu me coloco também exposta a esses homens violentos. então assim, quando eu falo da Liberdade eu pergunto da minha liberdade, embora tenha a liberdade hoje de estar junto com a minhas parentes, e feliz por estar com elas orientando, eu não tenho aquela liberdade de anos atrás, de poder estar em todos os ambientes, eu tenho que me preservar um pouco justamente por essa militância nos direitos das mulheres.
01:44:32
P/2: Mas essa militância, já levou você a sofrer uma situação de violência?
R: Só verbal, ameaças mesmo, mas nada de fato. Ainda não, mas espero que não aconteça. Mas se acontecer, eu vou buscar meus direitos também. Porque a nossa rede, uma das nossas propostas é fortalecer as mulheres, para que dentro das próprias comunidades tenham mecanismos de enfrentamento. Então, nós temos o nosso sistema jurídico próprio, dentro das nossas áreas, para essas situações de violência também estar com um conselho, cada comunidade vai dizer a forma que vai trabalhar, então aqui na minha comunidade de certa forma, eu acabo sendo protegida, porque temos uma mulher uma cacique mulher, nós temos mulheres fortes também da liderança, que criam esse apoio né. E a gente tem lidado com a violência aqui dentro, de uma forma mais comunitária mesmo, então isso tudo me deixa também dentro da minha comunidade mais protegida, com a pandemia eu não tenho saído muito, tenho ficado mais num trabalho online mesmo.
01:46:05
P/1: Então Potyra, a gente já está realmente caminhando para o encerramento, mas eu queria saber um pouco do agora, dessa questão da PL 490 e como é que você vê isso, essa questão. E como é que você e o povo aí se mobilizaram perante a isso também?!
R: Então, essa PL, que eu chamo de PL da morte, é um grande retrocesso nos direitos, é um momento muito difícil para todos nós, indígenas desse país, porque eu acho que com essa política que nós temos hoje, genocida, nossos direitos estão mais ameaçados, a gente sempre teve os direitos ameaçados, nunca foi fácil para gente, nossos direitos sempre foram negados, mesmo estando ali na constituição, e agora mais do que nunca, essa PL é anti inconstitucional, mas embora seja anti inconstitucional, embora seja... a gente tem uma constituição que nos garante, embora temos direitos que nos garante, a gente está vivendo uns momentos tão terríveis no Brasil, e que a gente mesmo tendo tantas garantias, a gente não sabe como vai ser, a gente não sabe como que a câmara dos deputados, se vão aprovar ou não, se no senado vai ser aprovado ou não, se vai ser sancionada, porque é muita injustiça que está tendo no Brasil, com esse governo genocida. Algum tempo atrás a gente podia acreditar na justiça, acreditar na Constituição, mas neste momento do Brasil, a gente pode contar com a nossa força encantada, a gente pode contar com os nossos rituais, eu sempre falo aqui com as lideranças, que está difícil pra gente tá difícil para gente ganhar só com papel, vamos balançar nosso maracá, vamos fumar nosso cachimbo, que a gente precisa contar com que está acima, porque se for contar só com que está no papel, se for contar com que tá escrito, a gente não vai ganhar não. Então é o momento da gente também, se reconectar com a nossa ancestralidade, é o momento da gente se reconectar com os nossos antepassados, nossos encantados, para que eles possam estar agora, agora sim, tomando a rédea a frente ali da luta, mas também a gente precisa ir também pra rua, buscar aliados, nós aqui fizemos mobilizações, tanto com a PL, nós tivemos uma comissão que foi a Brasília, depois no retorno, a gente fechou a BR 001 aqui, dentro das mobilizações que tiveram no Brasil inteiro, e no julgamento também da ação, do recurso extraordinário, a gente fez também uma mobilização. Eu fiquei na parte também da documentação, de fazer a divulgação, postei vídeos e textos e fotos nas minhas redes sociais, e é isso, a gente faz um pouquinho, é um trabalho de formiguinha, a pressão como foi uma pressão de muitos outros povos, fechando também as rodovias, aí teve essa mudança de pauta, para que esse julgamento fosse realizado em Agosto. Mas tudo numa forma estratégica, de negar nossos direitos, de cansar a gente, mas a gente sempre resistiu e vai continuar resistindo. Eu acho assim, se eu pudesse estar na cabeça dos que estão aí dentro das nossas grandes lideranças, eu acho que seria interessante fazer uma articulação mundial, já que a gente vai estar em agosto, o mês que comemora o povos indígenas, internacionalmente, fazer uma mobilização internacional de todos os povos do mundo inteiro, se mobilizando em prol dos direitos indígenas brasileiros, porque tá difícil sozinho aqui, a gente lidar com todas as injustiça que a gente tem vivido aqui no Brasil, somos de apoiadores, que as nossas vozes consigam chegar aos quatro cantos do mundo.
01:51:03
P/1: Potyra, uma última pergunta que a minha amiga Renata Tupinambá, falou que não podia deixar de mandar isso para você. Como foi o seu processo de ser mãe?
R: Olha, eu não queria ter filhos, a princípio não tinha um planejamento assim de ser mãe, ter filhos, justamente pela minha loucura, minha correria, eu sempre estava nas aldeias, sempre visitando, sempre viajando, sempre dizia que eu tinha duas, a minha roupa que eu deixava na mochila pronta, era pegando uma mochila e saindo, então eu não tinha essa programação de ter filhos, em 2014 eu engravidei, uma surpresa, e aí em 2015 meu filho nasceu, o nome dele é Taiguara, que significa índio que vive livre na aldeia, foi muito simbólico para mim esse nome, porque eu não tive a possibilidade de nascer numa aldeia, e hoje meu filho vive, ele está aqui correndo aí na aldeia. Está brincando com os amigos, com os parentes dele, o pai ele é um Tupinambá de Olivença, e eu estou aqui com vocês despreocupada, porque eu sei que ele vai comer alguma casa aí, porque aqui a gente está juntos né, estamos juntos todo mundo, estamos conectados por essa união, por essa amorosidade por esse acolhimento, então eu sinto felicidade de poder ter tido um filho, e ele poder ter nascido aqui dentro dessa aldeia, ele ser acolhido e amado por todos, ele poder estar aprendendo com o povo dele, que ele é Tupinambá de Olivença, o que é ser Tupinambá de Olivença, então não foi planejado, foi uma surpresa, mas é um aprendizado diário também, de ser ativa, de ter tantas tarefas e tantas coisas, mas poder desacelerar também, para poder estar com ele, é uma coisa que eu me cobro muito, porque se você deixar eu faço mil coisas, mil cursos e mil lives, mil reuniões, militância, atendimento jurídico de mulheres, reuniões com psicólogos para poder atender essas mulheres, e ele vai ficar um pouquinho de escanteio, eu tenho me policiado muito nesse sentido de poder, ele fala comigo; mamãe a gente não precisa de muita comida, porque eu falo com ele, filho estou trabalhando para comprar comida, e ele me falou esses dias, mãe a gente não precisa de muita comida, a comida que tem aqui já dá. Ele não sabe falar para mim, preciso de você Mãe, desacelera, vem brincar comigo, vem sentar comigo, vamos cantar ou vamos dançar, vamos brincar, senta aqui. Ele não consegue dizer isso, mas em outras palavras ele está me chamando atenção, de que eu preciso aí parar, para poder cuidar dele, para estar com ele, então é assim, um aprendizado diário.
01:54:29
P/1: Então exatamente para deixar você já aí ficar com ele um pouquinho, para ver se tem alguma coisa que você não contou durante a entrevista, que você acha interessante deixar no seu depoimento.
R: Só deixar aqui a questão do poder da informação, teve uma área que eu atuei que atuo muito, que nesta parte da comunicação, na parte de fazer esse intercâmbio em levar para as pessoas, o conhecimento sobre nós, sobre a nossa verdade, porque existe a verdade que foi contada nos livros, que a gente precisa começar a desmentir essas inverdades, que foram escritas sobre a ótica do dominador, do colonizador e minha deixar claro a minha felicidade, de ver nossos parentes aí se comunicando, e abrindo esses espaços de diálogos, para que cada vez mais as pessoas possam conhecer a nossa realidade, nesses anos em que eu trabalho com a comunicação, tem uma coisa que o intercâmbio cultural, as pessoas têm um preconceito, porque não conhece as nossas dores, não conhece nossa realidade, nossos motivos, e a partir do momento que a gente consegue comunicar isso, a gente consegue aliados, então nessa perspectiva de buscar aliados, que a gente consiga cada vez mais, se comunicar com as pessoas, para que elas nos entendam e nos respeitem com a nossa diversidade, mas sabendo que nós somos um, porque todos nós somos da humanidade, estamos nesta unidade, embora diferentes e com vontades diferentes, culturas diferentes, somos todo mundo sendo humanos, convivendo neste planeta, e que a gente precisa viver de forma harmônica, e o diálogo é a forma que a gente consegue sair.
01:56:48
P/1: Potyra, muito agradecido. Como é que foi para você contar um pouco da sua história hoje, aqui para o museu?!
R: Eu gostei muito de relembrar, desde a infância, momentos felizes, outros momentos não tão, mas é para mim assim uma surpresa, porque eu pude ver também que essa minha trajetória é muito rica, de encontro com a ancestralidade, de encontro com as minhas raízes, e de celebrar mesmo, acho que pra mim foi uma celebração essa conversa com vocês, celebrar todo esse percurso aí que eu fiz, de ter uma meta na vida, criada uns 16 anos, e saber que hoje, eu estou com 45 anos, que eu consegui realizar o que eu tinha me proposto para minha vida, embora tenha tido muitos conflitos familiares, devido a minha decisão de estar militando, de estar assumindo a minha identidade indígena, acima da minha profissão de advogada, eu tive muitos conflitos com meu pai por isso, mas que hoje ele reconhece e aplaude tudo que eu fiz, e de toda a minha trajetória. Para mim isso é muito gratificante, ter conversado com vocês, lembrar todo esse percurso, saber onde eu estou hoje e saber que minha família me aplaude também por tudo que eu realizei, para mim é super gratificante poder se lembrar disso tudo.
01:58:38
P/1: Então Potyra, a gente te agradece, e encerra essa entrevista maravilhosa mesmo, te agradecendo demais, esperando que as entrevista possa contribuir também para a luta do seu povo e de todos os povos.
R: Gratidão, também!.
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