Somos quem podemos ser...
Sonhos que podemos ter...
(Engenheiros do Hawai)
Ao escolher estudar as “Histórias de Vida” assumo a minha nudez nos textos produzidos, esse presente fala sobre “mim mesma”. Escolher fazer o curso "tecnologia Social da Memória" parece-me que tem a ver mais comigo do que com a tecnologia social da memória, propriamente. Mas, se, além disso, é a minha partilha narrar uma parte das minhas memórias, prefiro iniciar nesse tempo presente, no qual tudo efetivamente começa. E, esse presente é marcado pelo contexto da luta pela qualidade de vida pós-diagnóstico de uma Esclerose Múltipla, pelas buscas de autoconhecimento, pela experiência, sempre recente (de apenas 8 anos) com a maternidade, pelas visitas constantes à minha analista e por uma maturidade quarentena que cada vez mais tem se feito.
Memorar o passado a partir desse presente não me parece uma tarefa fácil. Poderia, romanticamente, falar de conquistas, vitórias, superações. Mas estou contaminada pelos óculos da principal referência de leitura ao longo da minha formação – o filósofo Michel Foucault. Em janeiro de 1975, quando eu ainda não tinha um ano de vida, ele foi entrevistado por Lossowsky, e, nessa entrevista, intitulada “Com que sonham os filósofos ”, ele responde uma questão que pode explicar o que sinto agora. Perguntado sobre o uso do seu tempo ele disse:
"[...] ando de bicicleta, não me desloco sem ela. Esporte maravilhoso em Paris! Mas, mesmo assim, há pessoas que circulam de bicicleta e vêem coisas maravilhosas. Parece que a ponte Royal ás sete horas da noite, em setembro, quando há um pouco de bruma, é extraordinária. Eu não vejo absolutamente isso; luto com os engarrafamentos, com os carros, sempre a relação de forças".
Envolvida com o momento presente, convivendo com fadigas diárias, predisposta a perceber as relações de poder e forças, não tenho outro lugar para memorar....
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Sonhos que podemos ter...
(Engenheiros do Hawai)
Ao escolher estudar as “Histórias de Vida” assumo a minha nudez nos textos produzidos, esse presente fala sobre “mim mesma”. Escolher fazer o curso "tecnologia Social da Memória" parece-me que tem a ver mais comigo do que com a tecnologia social da memória, propriamente. Mas, se, além disso, é a minha partilha narrar uma parte das minhas memórias, prefiro iniciar nesse tempo presente, no qual tudo efetivamente começa. E, esse presente é marcado pelo contexto da luta pela qualidade de vida pós-diagnóstico de uma Esclerose Múltipla, pelas buscas de autoconhecimento, pela experiência, sempre recente (de apenas 8 anos) com a maternidade, pelas visitas constantes à minha analista e por uma maturidade quarentena que cada vez mais tem se feito.
Memorar o passado a partir desse presente não me parece uma tarefa fácil. Poderia, romanticamente, falar de conquistas, vitórias, superações. Mas estou contaminada pelos óculos da principal referência de leitura ao longo da minha formação – o filósofo Michel Foucault. Em janeiro de 1975, quando eu ainda não tinha um ano de vida, ele foi entrevistado por Lossowsky, e, nessa entrevista, intitulada “Com que sonham os filósofos ”, ele responde uma questão que pode explicar o que sinto agora. Perguntado sobre o uso do seu tempo ele disse:
"[...] ando de bicicleta, não me desloco sem ela. Esporte maravilhoso em Paris! Mas, mesmo assim, há pessoas que circulam de bicicleta e vêem coisas maravilhosas. Parece que a ponte Royal ás sete horas da noite, em setembro, quando há um pouco de bruma, é extraordinária. Eu não vejo absolutamente isso; luto com os engarrafamentos, com os carros, sempre a relação de forças".
Envolvida com o momento presente, convivendo com fadigas diárias, predisposta a perceber as relações de poder e forças, não tenho outro lugar para memorar. É forte para mim, neste momento, seguindo a mesma linha de raciocínio que me provocou o filósofo francês, um encontro com o professor Donald Shüler, em 2005. Impressionada com sua experiência literária, perguntei como havia escolhido esse caminho que culminou no sucesso no mundo das letras. Às gargalhadas, após algumas taças de vinho, ele disse sobre “o resultado de uma seqüência de fracassos”. Ou seja, importava no presente aquilo que ele fez com tantas relações de forças, todos os dias, desde a infância em Videira, Santa Catarina: a não-identificação com o futebol – atividade de status entre os garotos e afirmação da masculinidade; a não-identificação com a Medicina e o Direito – cursos desejados e legitimados pela família e grupos sociais que ele freqüentava. O desejo pela leitura e a escolha pelo curso de Letras eram, em si mesmos, a expressão do fracasso. Todavia, essa narrativa que me trouxe o grande mestre era marcada por gargalhadas, superação e celebrações.
O presente, que marca este fragmento da minha história, é marcado pelos embates da própria busca do “eu”. Esse “eu” parece ser parte de um rizoma de tantos encontros, Foucault, Shüler e tantos outros me fazem perceber que me parece que os fracassos, os embates constitutivo do “eu” precisam ser expostos às gargalhadas. E fazer o curso no Museu da Pessoa, escolher o trabalho com histórias de vida são as próprias gargalhadas! Quero gargalhar do meu percurso! E, para tanto é preciso “escavar arqueologicamente” o passado e percorrer caminhos de atravessamento de fantasmas.
Sou filiada à crença de que a figura da mãe exerce grande influência nos sujeitos, e a minha – dona Aparecida –, carinhosamente e mineiramente chamada de mamãe, é ponto central nesse embate. Mamãe era “analista de crediário” nas extintas lojas Inglesas Levi, quando se casou. Nessa época o Sr. Silvestre, meu pai, carinhosamente e mineiramente chamado de papai, definiu a primeira regra da família: o lugar da mulher seria no lar, como mãe, dona da casa. Isso posto, mamãe aceitou o contrato, apesar do maior salário, dos sonhos em estudar Engenharia Civil e seguiu a vida doméstica. Depois de apenas três meses de casados, já esperavam o primeiro filho.
Meu irmão mais velho era então, tudo que lhe faltava. Era seu falo, seu desejo, sua completude. Cercado por todos os cuidados, estímulos e atenção, mostrou desde muito cedo suas habilidades cognitivas. Meu irmão do meio nasceu em seguida, exatos 364 dias depois, e, precocemente, aprendeu a seguir o mesmo caminho do irmão mais velho. O primeiro tinha muitos traços da família materna, e era a encarnação da inteligência. O segundo, muito parecido com o pai, era a encarnação da beleza que seguia, com um pouco de esforço, o mesmo caminho lógico que o mais velho parecia fazer naturalmente. Essa história é, em síntese, a que ouvi da mamãe, durante toda a vida, sempre que falava dos filhos. Um orgulho materno, com pinceladas psicóticas, fazia brilhar os olhos, sempre, durante os numeráveis elogios que recebia dos familiares, das professoras da escola, dos vizinhos, dos amigos. Compreenderam o sistema de leitura com 3 e 4 anos; escreveram com 4 e 5 anos; distinguiam os carros pelo barulho seguido dos detalhes de marca e motor; aprenderam a tocar piano, sozinhos, aos 10 anos; localizavam-se espacialmente em mapas desde muito cedo; memorizavam as capitais pelo mundo; entendiam as posições dos planetas; liam as regras de trânsito e exibiam tantas outras habilidades cognitivas e de memorização que os diferenciavam de outras crianças da mesma idade.
Mamãe, fez do seu orgulho a ferramenta que conduziu comportamentos. Ela sabia dizer, sem usar palavras, sobre o desejo e inventava brincadeiras educativas, cuja lógica, anos mais tarde, fui entender teoricamente, em cursos de magistério e licenciatura. Ela, com pouco estudo e nenhuma teoria fazia acontecer um processo educativo desejante. Nossa família levava uma vida modesta, papai era funcionário público, detetive da policial civil. Não morávamos em casa própria até meus 9 anos de idade. E até os 22 anos, quando saí de casa, esta ainda tinha algum detalhe em construção. Mas era prioridade para a minha mãe que tivéssemos um instrumento musical em casa, ela fazia questão que fosse um piano. Papai financiou um e ficou pagando durante meses. Enquanto isso, não se comprava mais nada! Estava posto sem palavras em minha casa que a lógica, as ciências exatas e as artes consideradas “nobres” ou “eruditas” eram objetos desejantes!
Diante dessas atividades que envolviam a família, eu sempre me entendi excluída desse lugar desejante – significado no lugar de destaque cognitivo. Nasci dois anos depois do meu irmão do meio, diante de um fracasso posto. Em posição objetal! Mamãe tinha meus dois irmãos que a completavam por inteiro. Mesmo que o segundo não fosse tão original, pleiteava seu espaço de atenção no mesmo estafe! Eu nasci sem o representante biológico do falo, e sem o possuir enquanto significado de destaque intelectual. Assim me signifiquei durante toda a vida! Ninguém me sistematizou assim, nenhuma mediação para que eu significasse meu lugar no mundo dessa forma... simplesmente aconteceu.
Ao contrário, estava em mim o objetivo estético da família – objeto de decoração feminino. Nasci pelos pés, fui puxada pelo braço esquerdo que ficou torto para sempre. E lá estava a menina da família, “bonequinha” com o bracinho “quebrado” e envolta de cuidados. Ouvi, durante toda a infância e parte da adolescência, enfim, durante os 22 anos em que fiquei na casa dos pais, falar sobre posturas femininas, delicadezas, cuidados estéticos (moderados, afinal, a beleza deveria estar naquilo que parece natural e simples) e prendas domésticas. Por longos anos me senti em uma prateleira, “não pode isso”, “não pode aquilo”, “as meninas isso”, “as meninas aquilo”. Os cuidados com a “bonequinha” ficaram misturados com esse lugar feminino, no limite entre proteger e prender, cuidar e aprisionar. E nesse limite fui significando meu lugar no mundo.
Lembro-me de que aos 5 anos eu exigia que alguém me ensinasse a ler. E, quando entendi a lógica do sistema lingüístico, passei a devorar tudo que tivesse letras. Eu queria compensar todos aqueles anos em que apenas eu não conseguia ler jornais, revistas, bíblia e outros livros que circulavam na casa. Eu queria entender e participar dos assuntos da família. Entendi que aquele era o caminho para ser desejada. Mas lembro de que para chegar lá eu ganhei algumas palmadas, porque trocava o ‘n’ e o ‘m’, o ‘f’ pelo ‘v’ e não conseguia ouvir nem entender as diferenças. E, nessas explosões de impaciência, a comparação era inevitável. Eu era diferente da rapidez dos outros dois. Ao que me parecia, não houve esforço materno para ensinar-lhes a ler: eles fizeram sozinhos, e eu, decididamente, era a “tartaruga de pernas quebradas”, “lentinha” – como mamãe me definia. A última a terminar as refeições, a última a se arrumar, escovar os dentes, os movimentos corporais eram lentos e passivos a apelidos pejorativos.
Hoje acredito que o desejo pela vida acadêmica nasceu desse fracasso. Sou muito mais a ausência em mim. Eu cresci entendendo que não era a melhor! Mesmo que aos 5 anos tivesse aprendido a ler e escrever e aos 9 anos tenha tocado minha primeira música no piano, os elogios não me chegavam. Não me lembro deles. Outras habilidades foram, então, se mostrando, mas ao mesmo tempo eram contidas. Diziam que eu tinha uma inteligência social, eu facilmente sorria, conversava, fazia amizades desde muito cedo, falava em público sem dificuldades. Mas havia um problema: essa característica não era positiva – o perigo de eu falar com estranhos era iminente, e, portanto, eu era sempre advertida a esse respeito. Ou seja, aquilo em que eu poderia me destacar também era motivo de contenção. Uma sequência de fracassos!
E assim meu desejo pelas coisas, a saber, estava dado! Foi assim que escolhi estudar para sempre e... não servi para ser a “bonequinha de porcelana” em uma vitrine, nem mesmo aquele bom partido com domínio das prendas domésticas... um verdadeiro fracasso! E foi assim... que segui virando noites para lapidar uma suposta perfeição, e na formatura da graduação recebi uma medalha de honra ao mérito pela maior média, pela primeira vez. Eu tinha finalmente um falo! Significado àquela maneira... relacionado ao saber. E lá estava minha família, orgulhosa de mim! Eu tinha finalmente um falo e chorei uma lágrima doce!
Entretanto, nos jogos de poder, os embates também machucam! Eu estava doente, obcecada, neurótica compulsiva! Um cansaço me consumia, e uma leve depressão foi se instalando. A leveza era a minha falta! Foi quando meu companheiro e eu decidimos mudar de cidade, morar longe da universidade e perto da diversão. Construímos um chalé bem pertinho da praia de Balneário Piçarras, um retiro a 25km do trabalho. Uma cabana simples, onde o mais importante, como Zé Rodrix compôs e foi consagrado na voz de Elis Regina, “a certeza dos amigos do peito e nada mais [...] onde eu possa ficar do tamanho da paz e tenha somente a certeza dos limites do corpo e nada mais.” Lá literalmente plantávamos amigos, discos e livros e nada mais. De certa forma, esse foi um corte necessário da neurose compulsiva pelo trabalho. Pelo menos, aos finais de semana, nos refugiávamos.
Apesar disso, sofri o maior sintoma da minha vida, que naquela época, sem diagnóstico eu relacionava ao meu trabalho. Construí uma lesão na mielina, na altura da coluna cervical, e a sensação de perder as sensibilidades e a força do braço esquerdo me fizeram repensar seriamente a vida profissional e os significados que atribuí aos papéis convencionalmente masculinos que elaborei ao longo da minha vida. A questão do sintoma me fez redimensionar o significado da academia, da atividade intelectual, e a construção de conhecimentos e saberes! Era preciso atravessar alguns fantasmas. A ausência de diagnóstico de fazia um buraco sem significados e então, em análise, tantas foram as minhas reclamações!
Por mais que critico a psicanálise, o divã por vezes ajuda. Com muita análise, consegui devagar deslocar minha vida profissional da vida privada e foi se transformando apenas em uma parte de tantas outras da minha existência: foi deslocada do centro e, tangencialmente, foi tomando seu lugar. Estava iniciado um processo de amadurecimento da carreira profissional. Porém, enquanto estrutura de significação, um longo caminho ainda está sendo trilhado. Estava evidente um grande fracasso: meus parâmetros de perfeição eram intangíveis, e me desviar deles se fez necessário. Eu havia feito a mim mesma a promessa de usar a experiência do doutorado para me ensinar a aceitar as castrações, as limitações. Para isso, uma experiência no seu sentido mais belo se mostrou. Foi quando o maior presente da minha vida aconteceu – engravidei! Esse fato foi lido e sugerido por muitos que me cercavam como um grande acidente. Afinal, eu era uma doutoranda. Porém, havia um desejo assumido e foi nessa experiência o meu lugar de anfitriã das novidades. A maneira mais linda de perceber as limitações e reinventar a própria existência. Comecei, a partir da gravidez, a desbatizar o mundo! Significá-lo de outra maneira, nomear as coisas de outro jeito. Ouvir outras racionalidades! Por conseqüência fui me sentindo outra profissional. Mais tranqüila. Percebendo com mais intensidade as leituras, os estudos. Mais calma.
Uma criança traz o devir contrária às neuroses, aos hábitos, às rotinas, à moralidade, ao padrão, ao racional. Ela abre uma porta para o novo, o não planejado, o não perfeito, a criação em ato! Minha criança ganhou o nome de Théo, com toda a sua significação na minha trajetória. Théo é a capacidade humana de suspender o tempo no ato de aproximação ao sagrado. O meu Théo é a minha capacidade de congelar o tempo: momentos de nirvana! Completude! Paraíso! Sou antes e depois do Théo! Ele saberá disso para sempre!
Além disso, mesmo sem diagnóstico, hoje sei que todos aqueles sintomas já eram um surto da Esclerose Múltipla e, de repente com a gravidez ela foi embora. O Théo também suspendeu o meu tempo com a doença. Cinco anos depois os sintomas voltaram em um novo surto, e o diagnóstico se fechou. Já havia terminado o doutorado, já havia localizado o problema chamado “perfeccionismo”, as horas no divã já haviam me apontado muitos caminhos para rir do apelido de “tartaruga de perna quebrada”. Porém, como avançar? Como ultrapassar os fantasmas? O que se faz com essa consciência? Onde foi o auto boicote? Bom! Escavei memórias passadas, outras mais recentes. Todas muito difíceis. Estou ha 15 dias tentando terminar esse fragmento, e agora que o texto se mostra, lembro-me de Giorgio Agaben, quando ele diz:
"Toda obra escrita pode ser considerada como o prólogo (ou melhor a cera perdida) de uma obra jamais escrita, que permanece necessariamente como tal, pois, relativamente a ela, as obras sucessivas (por sua vez prelúdios ou decalques de outras obras ausentes) não representam mais do que estilhas ou máscaras mortuárias".
Uma dor profunda me abateu diante da possibilidade da “cera perdida”, da “máscara mortuária”, como sugere Agamben, diante da falta da própria linguagem. Aquilo que foi projetado inicialmente já era outra coisa, e as mudanças estavam apenas começando! Preciso terminar!
Preciso dizer, antes de tudo, que escolher ouvir e coletar Histórias de Vida é a materialização de muitas faltas, da necessidade de recortar, de priorizar algumas coisas em detrimento de outras. É a exposição de muitas limitações. É o resultado daquilo que me propus saber, por estar exatamente no lugar do não-saber. E continuo em um limiar entre ter algo a dizer e numa extremidade que coloca esse saber espelhando a ignorância. Um saber que nasce como “uma cera perdida”, um texto que nunca será aquele texto pretendido. E, escrevendo este fragmento de parte dos 40 anos vividos, sinto que o mesmo acontece. Inevitavelmente, esse texto é minha nudez! E ela está nascendo a partir de uma luta constante! Luta de sentidos! Significados! Limitações assumidas! Experiências efetivas e afetivas!
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