P1 – Queria começar a entrevista pedindo pra você falar seu nome completo, data e local de nascimento.
R – A ficha. Me chamo Tatiana Belinky para todos os efeitos. E pra cheque, sou Tatiana Belinky Gouveia, nome de casada. Mas meu nome profissional é Tatiana Belinky, porque eu já era, antes de casar. Nasci em 18 de março de 1919, em São Petersburgo, que na época se chamava Petrogrado e depois voltou a ser São Petersburgo. Que mais quer saber? Em 1929, aterrissei em São Paulo, vinda do Báltico, de Riga. Três semanas de navio e mais uma semana até chegar em São Paulo. E de São Paulo não saí mais, a não ser para passear, como turista, para viajar. Estou em São Paulo desde 1929, há muito tempo. Sou mais brasileira do que você que nasceu aqui. Estou a mais tempo no Brasil.
P1 – É verdade. Tatiana, você veio com dez anos de idade. Nesse período de menina, que você viveu na Europa, qual a sua primeira lembrança de mundo?
R – Quer um livro que eu escrevi, chamado Transplante de Menina? Você já tem?
P1 – É um clássico, esse livro.
R – Clássico? Ah, tá bom! É que saiu uma nova edição mais elegante, mais bonitinha.
P1 – Ah, é?
R – É. Pela Moderna.
P1 – A minha edição é antiga.
R – Quer um?
P1 – Claro!
R – Dou pra você. Posso pegar já.
P1 – Não se incomode. Depois, quando acabar a entrevista. Porque no Transplante de Menina é um pouco da sua biografia.
R – É a minha biografia dos meus últimos três anos na Europa, dos sete até os dez, e dos meus primeiros três anos em São Paulo, dos dez até os treze. Desencadeia o crack da bolsa Nova York em 1929. (RISOS)
P1 – Tatiana, você tem lembrança da sua casa lá?
R – Lembro, claro. Eu estive lá quando fui de turista. É prédio, apartamento. Casa, só morei aqui no Brasil. Só que não é mais residência, é uma coisa...
Continuar leituraP1 – Queria começar a entrevista pedindo pra você falar seu nome completo, data e local de nascimento.
R – A ficha. Me chamo Tatiana Belinky para todos os efeitos. E pra cheque, sou Tatiana Belinky Gouveia, nome de casada. Mas meu nome profissional é Tatiana Belinky, porque eu já era, antes de casar. Nasci em 18 de março de 1919, em São Petersburgo, que na época se chamava Petrogrado e depois voltou a ser São Petersburgo. Que mais quer saber? Em 1929, aterrissei em São Paulo, vinda do Báltico, de Riga. Três semanas de navio e mais uma semana até chegar em São Paulo. E de São Paulo não saí mais, a não ser para passear, como turista, para viajar. Estou em São Paulo desde 1929, há muito tempo. Sou mais brasileira do que você que nasceu aqui. Estou a mais tempo no Brasil.
P1 – É verdade. Tatiana, você veio com dez anos de idade. Nesse período de menina, que você viveu na Europa, qual a sua primeira lembrança de mundo?
R – Quer um livro que eu escrevi, chamado Transplante de Menina? Você já tem?
P1 – É um clássico, esse livro.
R – Clássico? Ah, tá bom! É que saiu uma nova edição mais elegante, mais bonitinha.
P1 – Ah, é?
R – É. Pela Moderna.
P1 – A minha edição é antiga.
R – Quer um?
P1 – Claro!
R – Dou pra você. Posso pegar já.
P1 – Não se incomode. Depois, quando acabar a entrevista. Porque no Transplante de Menina é um pouco da sua biografia.
R – É a minha biografia dos meus últimos três anos na Europa, dos sete até os dez, e dos meus primeiros três anos em São Paulo, dos dez até os treze. Desencadeia o crack da bolsa Nova York em 1929. (RISOS)
P1 – Tatiana, você tem lembrança da sua casa lá?
R – Lembro, claro. Eu estive lá quando fui de turista. É prédio, apartamento. Casa, só morei aqui no Brasil. Só que não é mais residência, é uma coisa qualquer instalada lá, mas o prédio está lá. Na capa do livro Transplante de Menina diz da Rua dos Navios pra Rua Jaguaribe. Era na Rua dos Navios. Me lembro e posso até fazer uma planta baixa do apartamento.
P1 – É mesmo?
R – Tinha três quartos, sendo que um era o escritório do meu pai, um era o quarto das crianças, meu e dos meus irmãos e um era o dormitório dos meus pais, com uma porta dupla. Lá meu pai pendurou um balanço, a gente se balançava lá. E sala de jantar grande e todas as coisas necessárias, banheiro, cozinha etc. Era um bom apartamento. Janela pra fora dava para o rio, onde as pontes, as três pontes... Me lembro tão bem como se fosse hoje. Também, com dez anos, era uma menina grande.
P1 – E você falou que tinha um balanço?
R – É. Entre meu quarto e o quarto dos pais. A gente balançava até bater no teto.
P1 – Era um pé direito alto?
R – Era alto.
P1 – Tatiana, que outros brinquedos você tinha nessa casa?
R – Eu não tinha mais brinquedos. Só tive dois bichos de pelúcia - uma raposinha e um cachorrinho, que eram os brinquedos queridos – eu falo deles no livro, e uma boneca. Uma única boneca, eu tive. E mudava de cabeça toda hora, porque meu irmão quebrava a cabeça pra ver como era por dentro, por que ela mexia os olhos, porque dizia mamãe?
P1 – Ela tinha nome, a boneca?
R – Lídia. Era um nome exótico para mim, não soava russo. Em russo, seria Elida. Enfim, brinquedos, nós brincávamos de jogos de mesa, damas, bingo. Brinquedos de mesa. E a gente tinha uma governanta que fazia artesanato. A gente fazia coisas com as mãos. Falava alemão... Com meus pais, eu falava russo. E na escola, com a governanta, em alemão.
P1 – E você começou a ler muito cedo?
R – Quatro anos, no máximo. Sozinha. Lendo, lendo mesmo. Porque antes disso, eu tinha uma estante no meu quarto desde sempre, desde que nasci. Aliás, hoje eu sou a vovó dos livros, e eu dou um livro já quando nasce. Meu primeiro presente é um livro, pra mamãe, pra começar a estante. A vovó dos livros quer assim.
P1 – É um bom presente.
R – Eu acho. Pra mim não existia brinquedo melhor que livro, até hoje.
P1 – Tatiana, esses primeiros livros com os quais você aprendeu a ler, se lembra deles?
R – Olha, eram de poesias, poemas. Meu pai lia para mim, desde sempre. E os poemas que ele lia pra mim, era dos bons, não qualquer coisinha. Era Pushkin, era Goethe, coisas assim. Eles não escreviam para crianças, mas tinham alguns poemas que serviam. Me lembro até hoje de algumas poesias, alguns poemas que saíram publicados aqui, eu traduzi de cor, nem tinha o original.
P1 – Ah, é?
R –Tenho um livro chamado Di-versos russos, Di-versos alemães. E Di-versos hebraicos.
P1 – Você chegou a traduzir um poema de Goethe, do menino que está com febre?
R – É, famoso. Esse foi traduzido para... Todo mundo traduziu, que nem o Corvo do Allan Poe, todo mundo traduziu, em todas as línguas. Eu conhecia esse poema no original, em alemão, depois em russo e depois em inglês. Em inglês, foi curioso, conheci com aquela cantora negra americana... Quando esteve aqui. Ela cantou esse poema em alemão. E cantou de um jeito tão dramático, tão forte, que eu tive que sair da sala, porque comecei a chorar. E eu não era uma criancinha. Era uma moça. Fiquei emocionada com esse poema, que eu me lembrava dele de cor, em alemão, no original de Goethe. Tenho outros pequenos poemas dele que eu traduzi. Saiu recentemente um livro meu chamado Caldeirão de Poemas, pela Companhia das Letras. São poemas, alguns meus de brincadeira, mas a maior parte traduzido do inglês, russo, alemão. Coisas para crianças mesmo.
P1 – Ficou um livro bonito, porque são muitos ilustradores.
R – Cada poema, um ilustrador diferente. A Companhia das Letrinhas caprichou.
P1 – Ficou uma antologia dos nossos ilustradores.
R – Você tem o livro?
P1 – Tenho.
R – Nossa, você tem tudo.
P1 – Eu acompanho um pouco da sua trajetória.
R – Me sinto lisonjeada.
P1 – E as crianças gostam.
R – Claro que gostam.
P1 – Estou dizendo as minhas.
R – As crianças normais gostam. (RISOS) Toda criança gosta de poesia, quem disse que não gostam? Gostam de rima, de ritmo, gostam do assunto, quando é interessante. Minha neta, que me deu esse bisneto, quando era pequena, tinha sete anos me disse: “Tati, livro que não dá pra rir, não dá pra chorar, não dá pra ter medo, não tem graça”. Eles querem emoção, não querem qualquer coisa. Agora, gostam de história de terror. O que elas mais gostam é isso. É impressionante. Eu prefiro escrever coisas mais alegres, non sense, disparates.
P1 – Tatiana, vou seguir um caminho meio cronológico: você conhecendo o mundo das letras e depois você escrevendo. Seu pai tinha essa ótima característica de ler altas poesias para os filhos pequenos?
R – E dizia como um artista. Dizia um poema que mexia com todo mundo, adultos também. Era artista mesmo. E gostava de poesia. Eu me criei com poesias e também com literatura. Ele lia a Bíblia, Velho Testamento, contava histórias da Bíblia. Lia contos de grandes escritores. Grandes escritores! Não era “literaturinha”, não. Era boa literatura, mesmo. Porque todos escreveram coisas que criança pode ouvir. Entende mais, entende menos, mas se acostuma. Eu comecei a entender muito, rapidamente. Eu lia tudo que me caía nas mãos. O que meus pais liam, o que meus avós liam, o que eu achava, eu lia. Entendesse ou não entendesse. E o único bem pessoal que eu trouxe nos meus dez anos, foi um livro, que eu tenho até hoje.
P1 – Ah, sim?
R – Um livro de contos de Turgenev, um grande escritor, chamado Turgenev para Crianças. Sei lá, oito contos, que não foram escritos para crianças, mas escolhidos porque podiam atingir crianças. Eu traduzi muitos desses contos, eles saíram em português. E também alguns deles, eu ficava na máquina traduzindo sem olhar para o livro, de tanto que eu sabia.
P1 – Você tem então uma memória ótima?
R – Ah, tinha. Meu pai fazia exibição com a minha memória para as visitas. Pegava um livro, escolhia um poema, lia uma vez e dizia: “conta”. Eu recitava direto. Criança tem essa memória chamada memória eidética, que é como memória fotográfica, só que de palavras. Mas isso passa com a infância. Hoje não faço isso. (RISOS) Mas fazia. E o que eu decorei de ouvir, lembro até hoje. Marca que nem fotografia, mesmo, como um fotograma.
P1 – Tatiana, você aprendeu a ler muito cedo, mas só entra na escola com que idade?
R – Quase oito anos. Mas eu lia russo, alemão, sabia coisa pra burro, conhecia literatura, poesia, lia fluentemente. Quer dizer, pra mim, escola, eu tirei de letra. Só que era uma escola muito chata. Umas professoras alemãs, solteironas, chatas. Eu não gostava daquela escola. Aqui, a escola alemã eu também fraülein, odiei. Mas a escola americana, Mackenzie, foi muito boa.
P1 – E como foi seu primeiro ano de escola? Você tinha amigos?
R – Não tinha. Meus amigos eram de fora da escola. Tinha muitos primos, foram todos assassinados pelos nazistas. Tios, primos, avós, em Riga, a família imediata acho que chegava a umas oitenta pessoas. Meu pai era o décimo quinto filho do pai dele. Tinha muitos irmãos. Muitos tios, muitos primos, era uma família grande. Quem ficou lá, que não conseguiu fugir para a Rússia, atravessar a fronteira, foi assassinado. E na Rússia também morreram. Morreram da guerra, morreram de fome, de todo jeito. Eu estive lá em 1963, 1964, encontrei umas primas da minha geração que estavam morando em Petersburgo, Leningrado. Essas escaparam. Os filhos delas... Fiquei um mês lá. Nove anos, eu fiz em Petersburgo, Leningrado, Petrogrado, mudava de nome. Nasci lá, quando tinha dois anos, meus pais voltaram para Riga, e nove anos eu fiz lá, porque minha mãe foi de visita, visitar as irmãs. Por isso eu sei o ano exatamente, o mês, porque eu fiz nove anos em São Petersburgo. Meu presente de aniversário de nove anos foi uma visita ao Hermitage, um pequeno museu, só o maior do mundo. Eu passei lá assim. Só passei, me demorei mais na parte de pintura, escultura. Também me impressionou demais, ficou marcado. Desde aquele tempo que eu gosto muito de pintura, escultura.
P1 – Tatiana, você nesse ano de escola na Rússia era muito diferente de Riga?
R – Era uma escola muito chata, muito quadrada, muito germânica, escola alemã. Décima quarta, a escola para meninas de boas famílias. Eu era de boa família, mas era judia. A escola não era judia, não. A gente saía da classe quando tinha aula de protestantismo.
P1 – Ah, na aula de religião vocês estavam liberadas?
R – Estávamos liberadas. Eu e, na minha turma, tinha eu e mais uma menina, uma feinha, boazinha. Nós saíamos e ficávamos conversando fora.
P1 – Quando você tinha dez anos seus pais resolveram imigrar para o Brasil?
R – Resolveram imigrar para os Estados Unidos, como todo mundo, só que não dava. Tinha filas lá de três anos, de cotas para imigração. Eles pensaram em ir para a Argentina, porque nas Américas, depois dos Estados Unidos – Canadá ninguém pensava – pensava nos Estados Unidos e depois para baixo, Argentina, que era um país civilizado. Todo mundo conhecia a Argentina, pelo menos de tango. (RISOS) Agora o Brasil, ninguém conhecia. Nem sabia que jeito tinha, que língua falava, ninguém sabia nada. Mas para Argentina tinha cota de imigração também, não três anos, mas um ano tinha. Aí, um primo do meu pai, primo irmão, que fugiu para o Brasil com uma namorada, à revelia dos pais, e foi parar no Brasil, uma coisa exótica, foi parar no Rio de Janeiro. Ele escreveu para o meu pai dizendo: “vem morar no Brasil. Não tem cota de imigração, chamam o imigrante – naquela época até chamava - é um país bonito, abençoado por Deus e bonito por natureza. Venha pra cá”. Viemos para cá e foi bom. Escapamos dos alemães. Todos os meus primos ficaram lá em Riga. Até suspiro quando me lembro. Eram tantos amigos.
P1 – Só os seus pais que vieram?
R – Só. Papai, mamãe, eu e meus dois irmãos menores ainda do que eu. Viemos pra São Paulo e nunca mais saímos daqui.
P1 – Você foi estudar no Mackenzie?
R – É. Na escola americana na época... Lá, eu não falava português ainda, entrei no terceiro ou quarto ano primário. Primário para mim era bobagem, sabia tudo aquilo, mas precisava aprender português. Fiz dois anos em um semestre, porque podia pular, já que eu sabia tudo, lia muito melhor do que os outros, lia fluentemente, porque lia livros. Então pulei fora e fui continuar no Mackenzie em outros cursos.
P1 – Como foi sua experiência lá com a biblioteca da escola?
R – A primeira coisa que fiz, assim que entrei na escola, foi correr pra biblioteca. E o Mackenzie tem uma biblioteca de três andares, uma maravilha de biblioteca. Eu chispei pra lá. Meus pais quando chegaram aqui, uma mão na frente outra atrás, imigrantes mesmo. Mamãe trouxe uns instrumentos da profissão dela. Minha mãe era feminista, comunista e dentista. (RISOS) Ela era dentista, cirurgiã dentista, formada em 1914, na Estônia. Ela trouxe uns instrumentos de trabalho dela, uma lã, com edredon de plumas, que eu tenho até hoje, pouquíssimas coisas. Nós viemos aqui, mamãe começou a trabalhar muito depressa, mesmo sem falar português. Dois meses depois ela estava trabalhando na rua Jaguaribe, num sobradinho que existe até hoje, na frente da Santa Casa.
P1 – Está até hoje?
R – O sobradinho está. Eram três sobradinhos geminados, que não sei porque não foram derrubados. Até hoje estão lá. Mamãe tinha o gabinete dentário dela lá, em frente da Santa Casa. Ela herdou. Um dentista que saiu e deixou o consultório... Arranjaram uma licença especial para ela poder exercer a profissão, porque ela tinha um diploma sensacional, de uma das grandes universidades da Europa, mas não tinha licença de trabalho aqui. O diploma não era válido, mas um senhor casado com uma moça judia, muito bonita por sinal, era um figurão e arranjou pra mamãe, por caminhos legais, uma licença como prático licenciado. Podia exercer a profissão, só que não podia ser chamado doutor. Mas não tinha importância, porque ela era doutora. Começou a trabalhar em seguida, sem falar português. Papai já falava, papai era poliglota. Tinha uma vocação para línguas, coisa que ela não tinha. Ela falava russo, alemão, iídiche, mas português demorou. Ela se entendia com os clientes, que eram muitos da Santa Casa, médicos, atendentes, enfermeiras e freiras etc. Com os médicos, ela se entendia em alemão, porque tinha que saber alemão naquela época. Os livros científicos na época não eram em inglês, eram em alemão. As freiras não, ela se entendia em latim, por incrível que pareça. Um latim meio macarrônico, mas se entendia. Engraçado, não é? Essa foi a rua Jaguaribe... No meu livro eu conto essas coisas todas. Tudo verdade, não tem nada inventado.
P1 – Eu estou repassando algumas coisas que têm no livro, para o leitor se animar e ir procurar o livro para ver essa outra versão. Tatiana, você aqui no Brasil...
R – Mas deixa eu te contar. Comecei a te contar da biblioteca. Meus pais, a primeira coisa que fizeram foi se inscrever em duas bibliotecas circulantes, uma russa, outra alemã, para não perderem o contato e pra eu não perder. Mas quando eu entrei no Mackenzie - na escola alemã também li muito, tinha uma biblioteca boa – no Mackenzie fui correndo pra biblioteca, entrei naquela biblioteca enorme. Fui correndo pra uma estante, procurei, procurei, sem falar português e achei um livro que me pareceu interessante. Sem ler, não ia nem aprender a língua. Porque na escolinha, já no terceiro trimestre eu era a primeira aluna em português.
P1 – Já?
R – Porque lia! Lia com fluência. Peguei um livro e levei pra bibliotecária registrar, ela disse: “esse não pode”. “Como não pode?” “Não pode, porque não é pra você.” “Como não é pra mim? Não é uma biblioteca circulante?” “É, mas não é pra você. É impróprio.” Eu disse: “existem livros impróprios numa biblioteca de escola? O que é impróprio?” Eu nem entendi. Já tinha onze anos, onze e meio. Ela disse: “É impróprio e não é para menina”. Eu disse: “Existem livros masculinas e femininos?” A professora, a bibliotecária ficou irritada e disse: “ponha esse livro de volta. Livros pra você aqui”. E me mostrou uma estante baixinha. “Ali você pode pegar qualquer coisa”. Eu fui lá resignada, peguei dois livros. Eram tão femininos, tão de meninas, que até as capas eram cor-de-rosa, eu acho. (RISOS) Olhei pra capa e lá dizia não sei o quê, senhora Leandro Dupret. Eu disse: “como senhora, ela não tem nome?” Desde quando a autora é senhora? Senhora para mim é madame da cozinheira. Fiquei meio escandalizada. Ela disse: “pega esses livros e não se fala mais nisso”. Peguei, levei pra casa, li e odiei. Nem me lembro mais do que se tratava. Me queixei para o meu pai, porque assunto de livros era com meu pai. Não que minha mãe não lesse o tempo todo, mas ela não tinha tempo, porque era dentista. Eu disse: “olha, aconteceu isso. E esse aqui eu não gosto, detesto, não quero. Que eu faço?” Papai disse: “você não faz, mas eu faço!” Sentou e escreveu uma carta em muito mau português, dizendo: “Minha filha Tatiana está autorizada a retirar da biblioteca qualquer livro que ela queira”. Fui triunfalmente para a biblioteca com esse bilhete do meu pai. Foi um escândalo. Onde já se viu uma fedelha de doze anos poder ler qualquer coisa? Mas a última instância era o pai, o pátrio-poder. Não tinha juiz de menores bobo para atrapalhar. E tirei o que eu queria, de aventura, bons livros. Eram de meninos, de homens, não eram de nenhuma senhora Leandro, não. Aí eu fui freqüentadora da biblioteca, o que me ajudou a aprender português, muito depressa. E mesmo na escola davam livros para a gente ler, livros bons. Tanto assim que na escola americana, na última série em que estive lá, quarta série, acho, ganhei um prêmio por ser a primeira em português, por estranho que pareça. Ganhei um livro assinado por todas as professoras e todas as colegas. Tenho até hoje. Veja lá o que era o livro: Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano. Difícil, português de Portugal antigo. Esse livro, eu ganhei de presente. E claro que eu engoli, li do começo até o fim e aprendi português pra burro. E tenho o livro até agora. Essa foi minha experiência com a biblioteca. E de resto tinha a biblioteca circulante. E os primeiros dinheirinhos que ganhava, eu comprava livros. Não comprava sapatos, não comprava... Aliás, eu fiquei sem comprar sapatos por dois anos. Nem havia dinheiro pra isso. Mas para livros, tinha.
P1 – Tatiana, vamos dar esse pulo no tempo. Você conhece o Júlio.
R – O Júlio, eu conheci mais tarde. Num casamento judaico, casamento do professor Henrique Mindlin, o médico, que casou com a Esther Teperman. Eram vizinhos quando a gente mudou pra rua Itacolomi, os Teperman, o José Teperman, os cinco filhos dele, e a senhora, dona Ana, eles tinham, existe até agora, uma casa de esquina, até a polícia andou instalada lá. Um casarão de esquina na rua Itacolomi. E nós morávamos na rua Itacolomi, numa casa alugada. E os filhos da dona Ana, e as filhas, tinham a minha idade. E meus pais se deram bem com eles. E num belo dia, a filha mais velha, Esther, se casou com o Henrique Mindlin, que era médico, chefe de enfermaria, professor, já era. Fomos para o tal casamento. O casamento foi na sinagoga da rua Avanhandava. E eu do alto do balcão, estava com as mulheres e disse: olha, lá embaixo tem um rapaz muito bonito. Um chapéu que não era dele, mas um bonito rapaz.
P1 - Você reparou que o chapéu não era dele?
R – Ah, imagina se estudante usava chapéu de homem, não usavam. E não servia pra ele. Não era quipá, era chapéu. Mas, embaixo desse chapéu, ele era muito bonito. Depois tinha a festa na casa da noiva, minha vizinha, de esquina. Um casarão, palacete e uma festa para, sei lá, duzentas, duzentas e cinquenta pessoas. E tinha uma mesa como daqui até a janela, uns três metros, com toalha até o chão, coberta de comilanças maravilhosas e bebidas. E lá fui eu pra festa. Na festa, encontrei um colega meu. Colega, não, amigo da Mack/Med. Naquele tempo era tempo da Mack/Med, competição entre a Medicina e o Mackenzie, esportiva. E esse colega, Alexandre Zione, até depois um irmão dele foi bispo. Enfim, um amigo da Mack/Med. E esse Alexandre me disse: “olha, eu tenho um colega que acho que você vai gostar, o Júlio Gouveia”. Eu disse: “apresenta”. E lá fomos procurar o Júlio Gouveia naquela multidão de gente, e anda de uma sala para outra e nada. E nada de Júlio Gouveia. Anda de uma sala pra outra e nada. Eu disse: “ah, Alexandre. Acho que ele já foi embora”. Ele disse: “não! O Júlio Gouveia que eu conheço não vai embora de uma boca livre dessa. Ele está em algum lugar”. Aí ele teve uma iluminação e disse: “acho que eu sei onde achar o Júlio”. Foi para a mesa e começou a levantar a toalha. No segundo metro lá estava o Júlio. Debaixo da mesa.
P1 – Embaixo da mesa?
R – Embaixo da mesa. A mesa era grande, sentado, de pernas cruzadas, com uma garrafa de champanhe só dele e uma travessa de ovos recheados que ele gostava muito. E já estava bem alto, tão alto que não sei como não levantou a mesa. O Alexandre disse: “apareça, Júlio, que eu quero te apresentar uma amiga, a Tatiana Belinky”. Apareceu a cara do Júlio debaixo da mesa. Meu Deus, como era bonito. Com aquela covinha no queixo, aquelas sobrancelhas, aqueles olhos de pestana. Ai, que homem lindo! Barba cerrada. Olhou pra mim, assim, e o Alexandre: “Júlio, essa é a Tatiana”. Ele me disse: “Tatiana, quer casar comigo?”
P1 – Já?
R – A primeira coisa que ele me disse na vida. Bêbado. (RISOS) Essas são as famosas últimas palavras, porque oito meses depois já estávamos casados. Isso que no primeiro mês e meio nem vi ele mais. Tem uma continuação. Parece anedota essa história. Eu tinha um emprego, ele era sexto anista de medicina, mas eu tinha um emprego na rua Boa Vista, no centro, perto da São Bento. Perto da faculdade de São Bento onde eu estava freqüentando Filosofia. Meses depois, dois meses depois, eu estava saindo de lá e estava na praça do Patriarca esperando o ônibus com uma amiga. E de repente apareceu o Júlio lá, na esquina. Me reconheceu, apesar de tudo. Veio andando, “como vai?”. E disse: “Olha, meninas, tem uma fita do Shirley Temple não sei em que cinema. Eu convido, vamos ao cinema”. Eu de moleque, disse: “Não vou em três ao cinema. Margarida, vamos tirar cara ou coroa pra ver quem vai com o Júlio ao cinema”. Molecagem. Não tinha nem moeda, o Júlio é que tinha. Ele jogou a moeda e claro eu ganhei. A Margarida tomou o ônibus e eu fui com o Júlio ao cinema. Aí começou mesmo o namoro. E aí realmente levou seis meses e tal, até casar.
P1 – Pois é. E vocês fizeram muitas coisas juntos.
R – Muitas. Quando casamos, foi o casamento de duas bibliotecas, de duas estantes, a dele e a minha. E o nosso namoro era à noite, porque eu trabalhava e tinha a faculdade e ele tinha a faculdade dele. Ele vinha lá em casa de noite e a gente ia para o cinema, para o teatro, muito. Fomos em todo teatro que aparecia. Ou íamos passear, íamos namorar na praça Buenos Aires. A rua Itacolomi é pertinho, duas quadras. Íamos lá, e sentávamos num banquinho, onze horas, meia noite. Uma noite, estávamos lá, namorando, só que não se namorava como hoje, era diferente, mas estávamos namorando. Chegou o guarda do jardim, tinha guardas lá, se plantou na minha frente e disse: “Vocês são namorados?” Eu fiquei belicosa na hora, mais belicosa que isso eu só ficava se me perguntavam se eu era judia, mas aí eu já me ericei e disse: “Somos e daí, o que tem?”. O homem disse: “Nada, é que eu fiquei olhando e nunca vi namorados assim, vocês só falam”. (RISOS) Nós tínhamos muito assunto pra falar, muito. O Júlio era poeta também, escrevia poesias boas, viu? A primeira coisa que ele fez como namorado, como candidato a namorado, depois desse cinema, dois dias depois, apareceu no terraço da minha casa, na rua Itacolomi, quando eu desci de manhã tinha um raminho de flores e um bilhete, um poema acróstico, que eu sei de cor até hoje. Quer ver como é? “TATIANA – Trazes no peito um sonho de ventura, Amável o sonho que te embala a vida, Tornando-a suave e menos mal sofrida, Irmão do teu sequioso de ternura, Arde outro sonho dentro do meu peito. Não te parece assim, bela medida? Amarmo-nos os dois num só proveito?” Bom, não é?
P1 – Nossa! Muito bom.
R – Ele era bom. Tinha sonetos e coisas muito lindas. Era bom mesmo.
P1 – Ele chegou a publicar poesias?
R – Eu pus num dos meus livros, o acróstico, contando. Num dos livros de crônicas meu eu pus alguns poemas dele, como homenagem mesmo. Daí fui embora. Quem resiste? Primeiro me pede em casamento sem me ter visto mais gorda. Depois deixa flores com um poema assim. Imagine? Resistir, quem há de? E de resto, não me casei antes com ele, porque também nisso eu era uma chata. Eu dizia: “Antes dos vinte e um, eu não me caso”. Dizia vinte e um porque é a maior idade. Eu quero casar com minha própria culpa. Não quero que ninguém leve nem crédito, nem culpa do que eu fizer. Eu resolvo. Tanto é assim, que quando ele resolveu me propor casamento, ele disse: “Vou falar com seu pai, vou pedir a sua mão”. Eu disse: “Dona de minha mão sou eu. Eu resolvo a quem eu dou a mão. Pro meu pai eu posso comunicar”. Desse jeito. E também dizia que não ia casar nunca com ninguém mais de cinco anos mais velho do que eu. Não quero casar com velho. Seis anos mais velho que eu era velho. E foi assim. Acabamos nos casando.
P1 – E vocês tiveram quantos filhos?
R – Dois. Ricardo e André.
P1 – E te deram quantos netos?
R – O André casou, mas não chegou a ter filhos, porque morreu num acidente aos vinte e cinco anos, em Paris. O Ricardo teve cinco filhos, com duas mulheres. Quatro com uma. A mãe do quinto filho dele é essa atriz do Rio de Janeiro, famosa...
P1 – Atriz de teatro ou TV?
R – Teatro, cinema, televisão, tudo. Joana Fomm. É mãe do Pedro. O Ricardo foi casado com ela três anos e teve um filho que hoje, é o meu neto mais novo, está com vinte e oito anos também. Já está com a terceira mulher, a qual ele está há mais de vinte anos, o Ricardo. Então, tenho cinco netos e três bisnetos, por enquanto. Dois meninos e uma menina. Estão com doze anos, já estão engrossando a voz, ficando mocinha, essas coisas.
P1 – Quer dizer, esses livros infantis que você começa a publicar em 1985 são para os seus netos? Eles te inspiraram?
R – São para os netos de todo mundo. Pra quem quiser. É que eu não procurei nada. As coisas caíram no meu colo, por assim dizer. As pessoas para publicarem um livro têm que batalhar muito ou pagar. Entrar em qualquer acordo com a editora ou pagar e publicar por própria conta. Os meus não. Eu fui convidada. Isso que é. Porque eu fiz televisão, durante quatorze anos. Já falei para você.
P1 – Sim, você adaptou muita coisa...
R – E depois que saí da televisão, fui parar na Comissão Estadual de Teatro, porque escrevia teleteatro. Saí da Comissão de Teatro e fui chamada pelos jornais. Durante sete anos fui jornalista. O primeiro jornal que me chamou, aliás, era o Boris Casoy naquele tempo o diretor, da Folha Ilustrada. Me procuraram. Antes fui tradutora, ainda sou. E também fui convidada, não procurei. Depois que saí da televisão, fui presidente da Comissão Estadual de Teatro do setor infanto-juvenil, onde inventei uma revista que chamada “Teatro da Juventude”, que era o nome dos nossos programas. Quando saí de lá, fui parar na Folha Ilustrada, com duas colunas por semana. Uma sobre literatura infantil, comentários. Eles chamavam de crítica, mas crítica é uma coisa mais aprofundada, séria. Era comentário e recomendação. Que eu queria recomendar coisas que eu gostava, que achava boa. Então era a coluna de literatura infantil e outra de teatro infantil, infanto-juvenil. Fiquei dois anos lá e quando saí, imediatamente fui chamada pelo Estado, para um suplemento dominical. Eram duas colunas por semana, outra vez, mesma coisa. Fiquei mais dois anos. Depois fui parar no Jornal da Tarde, na Gazeta de Pinheiros. Até uma vez por ano, até na Veja, numa página sobre os melhores livros do ano. Quer dizer: estive jornalista durante sete anos. Jornalista! Está na minha carteira “jornalista profissional colaboradora”. Escrevia como crítica e também artigos e outras coisas. Sete anos. Depois que eu saí disso... Comentários sobre livro e teatro foi também na TV Cultura, no programa Panorama do Júlio Lerner. Lembra do Júlio Lerner? Tinha o programa chamado Panorama, programa cultural. Nesse, eu também tinha duas colunas por semana. Eles vinham aqui para gravar. Eu nunca parei. Estava sempre trabalhando convidada, chamada. Quando saí disso tudo, de repente me telefonou uma editora, a Ática, uma editora grande: “Estamos fazendo uma série assim, assim para crianças, será que você não tem na gaveta algum conto, alguma história? Não quer escrever para nós?” Eles já me conheciam da televisão. Eu pensei que na gaveta tinha muita coisa, mas que nunca pensei em livros. Estava muito ocupada com televisão, jornalismo, essa coisa toda. Mas disse que tinha, sim, algumas histórias e que ia mandar. Mandei cinco, eles publicaram cinco, de cara.
P1 – Ah, você mandou cinco?
R – É. “Tio Onofre” era o primeiro. “Medroso Medroso”, “História de Fantasma”, “Estanislau” e mais não sei o quê.
P1 – “Estanislau” é a história do canário?
R – É. Do passarinho. E tudo verdadeiro, hein! “A História de Fantasma” é verdadeira, aconteceu comigo. Exatamente comigo e com meu irmão. “Estanislau”, também aconteceu comigo, aqui em São Paulo, exatamente como eu contei. Agora “Medroso Medroso” é inventado. Que mais? “Tio Onofre”, inventei também. Meio que inventei, porque foi uma história também com um cofre aqui de casa, que resultou nessa história. Enfim, saíram os livros. Onofre está em catálogo até agora, aliás, os outros também, não sei em “qual-gésima” edição. Imediatamente outras editoras me convidaram e foi embora. Agora estou em volta com doze, treze editoras, não sei.
P1 – Voltando um pouquinho. Da Ática, quem te procurou foi a Elenice Bueno?
R – Foi a Elenice. Não, não foi a Elenice, ela foi depois. Ela saiu e depois voltou. Não vai me ocorrer agora. A Elenice está agora na Moderna. Na Salamandra. Aliás, algumas editoras andaram engolindo outras, as pequenas foram engolidas pelas grandes, elas continuam com seu próprio nome com sua própria grife. E eu estou às voltas com uma porção delas.
P1 – Até com a Editora 34.
R – 34, que tem o Alberto Martins, que eu gosto muito dele. Poeta também, muito bom, ele. E muito amigo. Ele vem aqui com os filhos. Não tenho queixas. Tenho relações muito boas com os editores, muito boas.
P1 – Tatiana, essas histórias, quer dizer a Editora te pediu, a Ática, mas você já tinha escrito?
R – Alguma coisa eu já tinha encaminhado. Eu escrevia muito, desde menina. Até pra mostrar com colegas, para dividir um pouco com os colegas, com meus irmãos e as outras crianças, as minhas leituras, minhas curtições. Então, eu tinha já muita coisa traduzida, anotada, inventada, mas não pensei em publicar. Estava na gaveta, mesmo. E fui chamada assim. De chamado em chamado está já em treze editoras, catorze, nem sei mais.
P1 – E a repercussão foi imediata?
R – Ah, foi. Esse “Tio Onofre” é um dos preferidos das crianças, porque tem rima, tem brincadeiras. Eles brincam disso. Tem uma história policial emocionante. Tem acontecimentos, muito engraçados comigo. Quando foi agora do apagão, do grande apagão, eu escrevi um livro. Tenho muitos livros em versos. Eu gosto de fazer versos limeriques, aqueles versinhos tipo inglês. Eu escrevi, mas esse não era limeriques, era um verso só, contando a história de uma cidade grande, onde aconteceu essa coisa do apagão, ficou às escuras. E aí, o ogro Apagão chamou todos os amigos assustadores dele para assustar as crianças. Então, a história tem mula sem cabeça, lobisomem, chupa-cabra, tudo quanto é terror e termina até com a barata, que é um monstro assustador. Muita gente tem medo. Eu tinha falado com o Martins da 34 e mandei esse texto pra ele e mandei também para Editora do Brasil, uma das minhas editoras. Escrevi, vou mandar pra ver quem vai querer. Bom, mandei e três dias depois me telefonaram da Saraiva: “vamos querer”. Aliás, quem me telefonou foi a Editora do Brasil: “vamos querer, vou mandar buscar”. Cinco minutos depois telefonou o 34, dizendo: “vou querer”. Eu disse: “Ih, dançaste meu amigo. A Editora do Brasil já pediu”. Ele ficou consternado: “Mas como você me faz uma coisa dessas? Nós íamos querer”. Se lamentou e tal e coisa. Eu disse: “Pára com isso. Eu faço outro para você. Amanhã te mando outro”. Escrevi o outro chamado “Curto circuito”, dentro do mesmo assunto.
P1 – Ah, o Curto Circuito! A história dele é essa?
R – É. É sobre os eletrodomésticos que ficaram desempregados e mandei pra ele. Saíram quase simultaneamente, os dois livros. Foi um caso engraçado.
P1 – Tatiana, tem um livro que todo mundo gosta muito, que você fez logo na sequência que foi o “Que Horta”, não é?
R – Ah, Que Horta. Esse é um dos mais antigos. Ganhou um prêmio logo de cara. Há muito tempo, anos e anos. Em oitenta e pouca coisa. Também está em catálogo ainda.
P1 – Pois é, e como foi que você teve essa idéia?
R – Esse também tem uma anedotinha pra contar. Tive essa idéia, não sei, e escrevi. Aí, fui oferecer para os padres lá da...
P1 – Paulinas?
R – Paulinas, não. São as irmãs. Para os padres mesmo. Paulus! Fui lá, levei pro padre editor que se chamava, um padre português, Horta. Horta, não. Horta é o livro. Mas, enfim, um nome também assim ecológico. (RISOS) Levei pra ele. O padre leu e gostou. Disse: “gostei. Interessante. Agora esses dois personagens aí, o Zimpolho e Zimpão, que eles são? Palhaços?” “Não”, eu disse de molecagem “são padres”. E pensei agora ele me expulsa, me joga escada abaixo. E ele espantado disse: “padre? Com esses nomes Zimpolho e Zimpão?” E eu, rápida como um raio, e naquele tempo estava na moda um padre chamado Gorgulho, tem até um ator chamado Gorgulho também, é um nome bem português. E havia um padre Gorgulho. Eu achava esse nome bem engraçado. E eu disse para o padre: “por que não? Se tem um padre famoso pode se chamar Gorgulho. Por que outro não pode se chamar Zimpolho?” Ele ouviu e disse: “é...”. Aceitou e saiu o livro. Ah e eu disse ainda, muito depressa, porque minha língua pensa mais rápido que minha cabeça. Eu disse: “além disso, essa coisa de eles misturarem plantas e saírem outras coisas, o senhor se lembra – nem sei se ele sabia - que o pai da genética moderna foi um padre? O padre Gregor Mendel, o austríaco, que misturou ervilhas azuis com brancas e saíram cor de rosas? É isso que ele fez e era padre, um frade”. Ele disse: “é mesmo! Fica até pedagógico. A senhora faz um prefácio contando isso”. Foi assim que nasceu esse livro. Quinta se chamava o padre. Padre Quinta!
P1 – É ecológico. Quinta, horta... E o seu processo de criação, nesse período, você ia tendo idéias...?
R – Não sei, tudo que me dava na veneta. As crianças muitas vezes me perguntam e as professoras também: “de onde você tira tanta idéia?” Para começo de conversa eu leio muito. Dizem: “você sofreu alguma influência?” Nunca sofri. Foi tudo muito bom. Não foi sofrimento, foi ótimo. Além disso, não foi uma influência. Eu sou um feixe de influências, um monte de influências. Tudo é influência, as minhas leituras e os meus olhos de ver o mundo. Eu presto atenção no mundo. O mundo é muito engraçado. Todos os dias acontecem coisas muito engraçadas. Eu tenho quatro livros de crônicas, que se chama assim “Olhos de Ver”. Prestar atenção e achar o lado engraçado, o lado interessante. Se você tiver senso de humor, se tiver uma cabeça judaica que sabe rir de si mesmo. Claro que há muitas coisas sérias e graves, mas eu prefiro as engraçadas, as alegres, o humor. Humor e poesia para crianças, eu acho fundamental. E claro, emoção, como disse minha neta. Rir, chorar, ter medo, ter raiva, ter emoções. Ter humor e poesias. E a mensagem. Olha, esse dedo meu é assim, nunca está em riste. Não tem isso de “isso pode, isso não pode. Isso é bom, isso é mal”. Eu de menina, odiava, gostava de fábulas e odiava a moral da história. Não quero que me digam o que eu devo entender. Para que tenho cabeça? Vou entender o que entender. E do jeito que eu entender. Se tiver que mudar de idéia eu mudo. Só os burros e os mortos não mudam de opinião. De resto, cada livro é tantos livros quantos leitores. Isso eu falo pras crianças. Cada cabeça é diferente da outra. Cada um lê do seu jeito. E ainda por cima: cada livro é tantos livros quantas vezes você o relê. O mesmo livro que você lê, digamos aos doze anos, você o relê aos vinte, é outro livro e você outra pessoa. Então, o livro é uma riqueza que não tem fim. Eu sou a vovó dos livros não é por acaso. E faço parte do povo dos livros e não é por acaso.
P1- Tatiana, quando que você se depara com o Lear, com os limerique?
R – Ah, limerique eu sempre achei engraçado. É essa forma de versinho que você sabe, de cinco estrofes. Primeira, segunda e quinta com nove sílabas, rimando. Terceira e quarta curtas, rimando. E dava o ritmo saltitante. Eu conheci o limerique do inglês, para falar a verdade, do playboy americano. Eles faziam limerique toda hora, novos, inventados e do famoso Edward Lear, inglês. E os tais limerique americanos eram sempre meio safadinhos, não eram infantis, propriamente. Mas o tipo de verso se presta pra fazer alguma coisa saltitante, leve e engraçada. Disse: “vou tentar”. Tentei, consegui. E aí tenho muitos limeriques. Chamei de limerix em português e tenho muitos e muitos livros em limerique.
P1 – Você acabou criando alguma coisa sua.
R – É engraçado. Todo mundo conhece limerique por minha causa, mas não fui eu que inventei. É uma coisa inglesa, irlandesa até, eu acho.
P1 – É que depois você faz Mandalix, têm uma série de ...
R – É, conforme o assunto, são os lix de cada coisa. Tem o Mandalix, o Bregalix, Cacolix. Tem um publicado que tem os meus limeriques acumulados, ele chamou o livro de... O Livro dos Disparates Limeriques da Tatiana. Assim se chama o livro. Lá tem os Mandalix, os Bregalix, os Cacolix. Mandalix não. É da 34. Manda para o diabo que os carregue. As crianças adoram.
P1 – Adoram. Meu filho adora.
R – Manda tomar banho, catar bolinho, essas coisa que todo mundo sabe. (RISOS)
P1 – Tatiana, eu queria que você falasse um pouquinho dos Di-Versos. São três ou quatro?
R – São três. Di-Versos Russos, Di-versos Alemães e Di-Versos Hebraicos. Esse eu não fiz sozinha, fiz com uma amiga, como está na capa do livro. Mira Perlov, é brasileira, mas mora em Israel. Eu pedi pra ela me trazer poemas infantis hebraicos. O Ricardo fala hebraico e a primeira mulher dele também. Eu que não falo. Pesco um pouquinho, mas não dá pra ler um poema. Eu disse pra ela não só me traduzir ipsis literis, mas também ler em voz alta, pra eu ouvir a cadência, o ritmo do verso. Ela lia pra mim, eu sabia a tradução, então fiz as traduções dentro do ritmo, da métrica, tudo certinho. E do tema, não é? Ficou bom, gostei. Agora, russo e alemão foi direto do que eu conhecia, do que eu lia. Tem os russos e alemães. São de poetas bons, não de qualquer coisa não. Escolho o que é melhor.
P1 – Dos autores russos, quais te marcaram mais?
R – Olha, eu disse que o livro que eu trouxe comigo é de Turgenev, que eu tenho até hoje, grande autor, grande escritor. Mas Pushkin, poemas, Lermontov, Tolstói, Dostoiévski foi mais tarde, se bem que eu tenho um livro do Dostoiévski para crianças, também. Crianças maiores, de doze, treze anos, como eu tinha, capítulos, trechos de livros do Dostoievski. Mas eu gostava mesmo era de Turgenev, os contos, Pushkin, os contos. Lermontov era herói do nosso tempo. Histórias, livros de aventuras. Não posso dizer qual marcou mais. É a tal coisa que eu disse quando me perguntam se gosto de música clássica ou música popular. Eu digo que depende do dia e da hora. Eu gosto do que é bom, do que tem qualidade. Agora tem um dia em que de manhã eu quero música clássica e de tarde, quero MPB. Não tenho preferência por gêneros, tenho preferência por coisa de boa qualidade, conforme meu estado de espírito, conforme minha vontade naquele dia, naquela hora. Isso quanto à música. E se eu vou a um concerto do Mozart, sei que vou ouvir música clássica, então se vou, estou a fim. Isso é assim com literatura, poesia. Vai do dia e da hora.
P1 – E Tatiana, pra você escrever, atualmente você escreve manuscrito, numa agenda, num caderno, e já sai tudo pronto?
R – Numa agenda, num caderno. A Maristela da Moderna me pediu uma apresentação, uma reapresentação para um livro que eles vão fazer uma nova edição, desse aqui Tatu na Casca, que é um grande sucesso, folclore brasileiro. Nova edição. Uma reapresentação desse. É grande demais, prolixo demais, eu acho que vou fazer outro. Sentei, escrevi outro. Ela precisa vir buscar. Esse não é nem digitado. É datilografado por mim mesmo.
P1 – Você escreve manuscrito e depois dá pra alguém...
R – Dou pra minha neta, ela digita pra mim.
P1 – Como chama sua neta?
R – Essa que digita, Nyrah. Com N Y R A H, Nyrah, nome israelense. É bonita ela, uma gracinha.
P1 – Ela tem quantos anos?
R – Agora está com trinta. Se disser que tem dezoito, você acredita. O filho é do tamanho dela. Tem doze anos e já está namorando. (RISOS) Perguntou que poeta a gente recomenda pra ele dar uma poesia pra menina.
P1 – E o que você recomendou?
R – Não fui eu, foi a vó dele. A minha nora, primeira nora. Ela recomendou Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade etc.
P1 – Tatiana, e a coisa com as crianças. Você tem feito um trabalho constante, tido muito contato, feito um trabalho de dar palestras nas escolas?
R – Muito, o tempo todo. Há anos, anos. E muito. Quase toda semana. Tem mês que tem dois por semana. Agora setembro, outubro, vou ficar por aqui. E aqui mesmo já tem uma porção de compromissos. Eu faço isso porque gosto. É trabalho, mas é hobby também. E claro eu quero que me busquem, que me tragam, que me dêem cafezinho. Ganho flores a toda hora das escolas.
P1 – Tatiana, já apareceram crianças influenciadas pela sua leitura e que também se tornaram escritores?
R – Escritores, não digo. Mas que querem escrever... Me perguntam como que faz para ser escritor, o que é que o escritor faz? Eu digo: “Faz xixi, come, lê, brinca, vai a praia, parece gente. (RISOS) Não é nenhum bicho de sete cabeças”. Como você tem tantas idéias? “Preste atenção em sua volta, preste atenção no que você pensa. Escreva o que você contaria na sua casa daquela situação. Conte por escrito”. A gente faz o caminho andando, disse lá o Antônio Machado. Então eu não aprendi isso em lugar nenhum. Aprendi isso lendo e olhando em volta. E não terminei faculdade nenhuma. Comecei faculdade de Filosofia e deixei. Não tinha paciência, era muito demorado. Quero tudo depressa. Queria ler, enfim, filosofar por minha própria conta, que é o que eu faço.
P1 – Eu estava recordando que o Ricardo Cunha Lima fez uma homenagem a você no primeiro livro dele. Estamos chegando ao fim de nossa entrevista, infelizmente porque eu adorei ficar te ouvindo, ficaria muitas outras horas...
R – Vai ter que editar isso à beça. Eu falo demais.
P1 – Não, vamos transcrever na íntegra o primeiro momento e depois editar à vontade do público que vai ler.
R – Eu falo, faço digressões, que é como eu falo com as crianças nas palestras. Eu falo pelos cotovelos e de vez em quando perco o caminho de casa e pergunto: “O que eu estava falando mesmo?” E aí me lembro.
P1 – Tatiana, você podia contar hoje, 2003, quais são suas atividades atuais?
R – Leio muito. Tenho que ler o tempo todo. Se eu não tiver o que ler, leio a lista telefônica. Leio três ou quatro livros ao mesmo tempo.
P1 – E quais são?
R – Agora estou às voltas com ensaios. Gosto de ensaios. Perdi um pouco a paciência para ficção. Tem que ser muito bom. Estou lendo um ensaio sobre assuntos diversos. Esse aqui eu comprei agora sobre os verdadeiros pecados mortais: raiva; inveja; ódio...
P1 – O Enigma...
R – Esses são pecados mortais. Não gula, que não é pecado. Preguiça não é pecado, luxúria não é pecado. Agora, inveja é. Ódio é, raiva é.
P1 – Tatiana, nos seus livros, tem alguns que você gosta mais?
R – Isso as crianças me perguntam sempre: “qual é o livro que você gosta mais?”. Eu digo: “o próximo. Porque os meus livros são todos meus filhos, quem tem que gostar ou não gostar são vocês”.
P1 – E quais são os próximos livros, que projetos?
R – Tem vários. Na bica pra sair. Tem na Companhia das Letrinhas, na Ática, na Moderna. Diversos. Só que as editoras demoram um pouco. Começam a ficar aflitos quando está perto de uma bienal. Em geral vai devagar, mas estou com vários em andamento e vários contratados.
P1 – Quem administra pra você essa relação com a editoras, direito autoral? Você mesma?
R – Elas mesmas cuidam disso. As editoras umas dão dez por cento, outras doze por cento, algumas sete por cento, conforme o caso, conforme a editora, grande, menor, tal. Eles mesmos prestam contas, depositam os direitos. Não me preocupo.
P1 – Uma pergunta inevitável...
R – Quanto você ganha?
P1 – Que conselhos, que dicas você daria para uma criança que está se encantando com a escrita e quer escrever também?
R – Leia, olhe em volta, preste atenção, ria, brinque. E tudo vale a pena quando a alma não é pequena, disse Fernando Pessoa.
P1 – Tatiana, dentro desse projeto que nós estamos fazendo de Memória da Literatura Infanto-Juvenil, que outros nomes você acha imprescindíveis serem ouvidos também?
R – O quê?
P1 – Que outros escritores nós poderíamos procurar também?
R – Dirigidos às crianças? Imagina, tem tantos, tão bons. Nessa área de infanto-juvenil, olha: a Ana Maria Machado, que até ganhou o Nobel da literatura infantil; a Ruth Rocha; Marina Colassanti; Lygia Bojunga, o João Carlos, aquele do Caneco de Prata, meu Deus, o Marino, João Carlos Marinho, que é muito bom, muito inteligente. Tem uns que estão meio que na moda, mas são bons. Olha esse “mas”. Apesar de estar na moda, eu tenho meio preconceito com esse negócio.
P1 – Tatiana, eu queria te agradecer a entrevista.
R – Eu é que agradeço. E depois você me manda o resultado disso. E dá um beijo no Jonas.
P1 – Darei.
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