Entrevistadora - Pedia-te inicialmente então que te apresentasses e dissesses então assim uma introdução simples de…
Ernesto Afonso - Muito bem! Pois então eu sou o Ernesto Afonso, vivi na clandestinidade desde 1970 a 74, até ao 25 de Abril e… gostaria de começar por vos falar daquilo que nos trouxe até à clandestinidade e porquê.
Eu nasci numa pequena aldeia do nordeste transmontano, na Sarzêda, melhor dizendo, que era uma aldeia que não tinha mais que 200 pessoas, constituída, exclusivamente, por lavradores, muito pequenos lavradores, que eram todos proprietários, mas a maior parte das vezes o que produziam nas suas terras não dava, não chegava para alimentar a família toda, daí que dali houvesse sempre um fluxo migratório, emigratório, enorme, em primeiro lugar, para… para dentro do país, e quando se iniciou a vaga de… da Europa, da França, sobretudo, a maior parte dos chefes de família emigraram.
Como era a vida na aldeia? Pode dizer-se assim, às vezes é difícil de entender, para quem vive hoje, não é, era uma aldeia que não tinha nem televisão nem rádio [pausa], tinha água dr mina, a maior parte das casas não tinham casa de banho e… e, portanto, era uma vida pobre, materialmente pobre, mas era uma vida simples, de uma comunidade fechada, que onde predominava tanto a inveja como a solidariedade, como é típico dos pequenos espaços… digamos… humanos.
As crianças… eu lembro-me de irmos para a escola, que era a 3km de casa, não é, irmos para a escola e vários dos… dos… colegas iam descalços para a escola. Eu, da minha experiência, o verão, andávamos sempre descalços. Portanto, do ponto de vista material era… era… pode dizer-se que era uma pobreza muito grande, não é, mas… não era uma vida infeliz [pausa], muitas vezes, nós vemos isto nos subúrbios das grandes cidades e… apesar de terem muito mais do que nós tínhamos, têm uma vida menos feliz, porque… nós não conhecíamos outra...
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Ernesto Afonso - Muito bem! Pois então eu sou o Ernesto Afonso, vivi na clandestinidade desde 1970 a 74, até ao 25 de Abril e… gostaria de começar por vos falar daquilo que nos trouxe até à clandestinidade e porquê.
Eu nasci numa pequena aldeia do nordeste transmontano, na Sarzêda, melhor dizendo, que era uma aldeia que não tinha mais que 200 pessoas, constituída, exclusivamente, por lavradores, muito pequenos lavradores, que eram todos proprietários, mas a maior parte das vezes o que produziam nas suas terras não dava, não chegava para alimentar a família toda, daí que dali houvesse sempre um fluxo migratório, emigratório, enorme, em primeiro lugar, para… para dentro do país, e quando se iniciou a vaga de… da Europa, da França, sobretudo, a maior parte dos chefes de família emigraram.
Como era a vida na aldeia? Pode dizer-se assim, às vezes é difícil de entender, para quem vive hoje, não é, era uma aldeia que não tinha nem televisão nem rádio [pausa], tinha água dr mina, a maior parte das casas não tinham casa de banho e… e, portanto, era uma vida pobre, materialmente pobre, mas era uma vida simples, de uma comunidade fechada, que onde predominava tanto a inveja como a solidariedade, como é típico dos pequenos espaços… digamos… humanos.
As crianças… eu lembro-me de irmos para a escola, que era a 3km de casa, não é, irmos para a escola e vários dos… dos… colegas iam descalços para a escola. Eu, da minha experiência, o verão, andávamos sempre descalços. Portanto, do ponto de vista material era… era… pode dizer-se que era uma pobreza muito grande, não é, mas… não era uma vida infeliz [pausa], muitas vezes, nós vemos isto nos subúrbios das grandes cidades e… apesar de terem muito mais do que nós tínhamos, têm uma vida menos feliz, porque… nós não conhecíamos outra coisa, a única coisa que conhecíamos era aquela vida e havia uma ligação… aliás, normalmente, as pessoas tratam os adultos por tios, porque grande parte deles eram tios, as pessoas casavam-se na aldeia e a vida era feita em comunidade, numa comunidade de aldeia, pobre, mas uma comunidade. A emigração… ah, por exemplo, a escola - bem reveladora - a escola começa por ser, provavelmente, o primeiro local onde eu senti a primeira diferença, porque a escola tinha… era na aldeia na sede de freguesia, que era, portanto, a 3 km, e nessa altura nós íamos… eu fui para a escola com 7 anos feitos, nós não sabíamos distinguir um A de um B, porque nem sabíamos o que isso era, nem os algarismos, não se sabia absolutamente nada, porque a maior parte dos lavradores da aldeia eram analfabetos, mas tinham uma virtude extraordinária - é que os filhos tinham que ir para a escola, isso era sagrado. E… eu lembro-me que na escola até… [risos], até um pouco caricaturalmente, nós não tínhamos a primeira classe, tínhamos duas primeiras classes. Como verdadeiramente nós não sabíamos rigorosamente nada, não é, o professor considerava no primeiro ano a primeira classe atrasada e no segundo ano era a primeira classe adiantada e portanto… [risos] em vez de quatro, fazíamos cinco anos de escola primária, excepto [pausa] os filhos, digamos, de meia dúzia de lavradores mais abastados, que estavam destinados a ir para o Liceu, então estes só faziam um ano na primeira classe. Esta é a primeira grande diferença social que… verdadeiramente me surgiu na infância, não é, a consciência disso naturalmente não foi imediata, é uma coisa que eu me lembro posteriormente. Mas… as crianças na aldeia… todas as crianças nasciam em casa, o hospital… essa ideia do hospital era uma coisa longínqua, não é, nasciam em casa… naturalmente havia… nós éramos 8, a minha mãe teve 8 filhos, mas o primeiro e o último já morreram na infância, não é… e isso era um pouco comum em todas as famílias, não é, pronto. Às vezes, as pessoas ficam surpreendidas quando eu digo que eu não me lembro de beber leite em criança, a não ser o da minha mãe… [risos], portanto, era essa a realidade, não é, a realidade comunitária, digamos assim, daquela terra.
Quando, quando… como nós éramos muitos e aquelas terras da aldeia, para além de serem terras quase só de sequeiro, portanto, não davam… não produziam significativamente… e, muitas vezes, para produzir centeio e trigo… produziam um ano, e no ano seguinte tinha de ficar em pousio para se poder voltar a produzir… a carência era muito grande. De maneira que, logo que era possível sair de casa, as crianças saíam de casa e iam trabalhar. Eu fui trabalhar, fui logo no dia em que fiz a quarta classe, fui para casa de um tio, numa quinta, já mais perto de Bragança [pausa], mas sempre com a promessa de que ele me ia arranjar um emprego na cidade, e foi! Acabou por me arranjar um emprego na cidade, num estabelecimento comercial, onde a única coisa que nos davam era o almoço, portanto, a gente… no regresso… regressava todos os dias à quinta, não é. Ao fim de algum tempo, houve ali, porque… várias circunstâncias, não é, levaram a que eu tivesse sido recomendado por um médico que não trabalhasse, precisava de descansar [pausa], isto tinha eu, portanto, nessa altura, 13 anos, 12, 13 anos. Fui naturalmente descansar para casa da minha mãe, não foi para a quinta, não é, e quando já estava pronto para trabalhar… tive a minha primeira decisão pessoal e disse “eu não volto para aquele estabelecimento” [pausa], que era o Monteiro, “não volto para o Monteiro”. Portanto, a minha mãe lá me arranjou outro comércio, de facto, muito diferente… era assim uma espécie de hipermercado, porque ali se vendia tudo, até os caixões para os mortos eram vendidos ali… não havia casas funerárias, não é. E neste estabelecimento já era interno, portanto, ficava lá, dormia lá, verdadeiramente… tratavam-me de tudo. E foi um tempo agradável, no essencial, um tempo agradável. Não tinha dinheiro, não, não se recebia dinheiro nenhum, mas o… o… o patrão era uma pessoa humana, era um homem de facto de uma relação agradável e aprendi muito ali e… vivi ali para aí durante quase um ano. Quando… recebi lá um tio do Porto, que foi lá passar férias… [risos] disse-lhe… que “Opá, você arranje-me lá um emprego no Porto”, “Queres ir para o Porto?”, “Quero ir para o Porto!”, porque vocês não conhecem a minha zona, a minha aldeia é uma aldeia numa encosta muito bonita, mas depois ela está cercada de montanhas, não é, pela Serra de Nogueira, tudo o que cerca por completo o horizonte para sul - para o sul era liberdade, era o Porto, não é. E ele arranjou-me um emprego, numa mercearia, na cidade… na cidade do Porto… a Pérola da Abissínia, ainda hoje me lembro do nome… [risos], do nome da mercearia, em Antero de Quental. Foi uma experiência, o primeiro ano, o primeiro mês, ali, foi uma experiência dramática, uma coisa absolutamente, para mim, inacreditável, de dureza, de… de desumanidade… aliás, os marçanos, que era uma classe conhecida nesse tempo, eram em geral gente tratada… [encolhe os ombros] abaixo de gente, não tinham, não havia a mais mínima consideração, o respeito por… por essa gente, que estava desamparada, vinha trabalhar e vivia lá dentro da coisa.
Ao fim de um mês também disse lá ao meu tio que era… que era… vivia em São Mamede e que é uma figura que teve uma influência enorme comigo, por uma razão, que a seguir acrescento, mas disse “Olhe vá lá receber o ordenado, porque eu não volto para lá”, então ele arranjou-me outra mercearia em São Mamede [risos], portanto, ainda continuei na mercearia, mas aí novamente é outra experiência agradável, porque era gente razoável, gente boa, e vivi ali durante 3 a 4 meses, até que decidi ir à fábrica pedir emprego.
Portanto, tinha 14, eles não empregavam antes dos 14, tinha 14 anos e fui à Sonafi, que era uma grande empresa metalúrgica, em São Mamede, já nessa altura, com 600, 700 trabalhadores, uma coisa assim. E pronto, isso marca uma nova fase da vida. A fábrica é um mundo novo e completamente diferente.
Mas este meu… eu dizia, este meu tio, teve uma grande influência, porquê?
Porque ele foi de tudo o que havia de religiões, foi praticante de todas as religiões que se praticavam em Portugal. Terminava sempre por dizer “Opá, não, não serve, no fundo, o que lhe pedem é dinheiro”, dizia, “todos me pedem sempre dinheiro, não quero uma religião que só me peça dinheiro”. E, portanto, tinha essa atitude [risos], eu diria, não era bem um herege, mas descrente, completamente descrente. E isso teve a sua influência comigo, porque eu sou, claramente, uma pessoa sem qualquer ligação à fé, ainda antes disso, não é, mas aí acentuou-se, deu outra força.
Pronto, a fábrica. A fábrica começa logo por um episódio de entrar, quase de entrada, marcante, porque aquilo era… eram seis, como disse, seiscentos, mais de seiscentos trabalhadores, em condições como se trabalhava nesse tempo. Não havia… era… se estava muito calor, era muito quente, se estava muito frio, era muito frio e… e… no verão era um calor impressionante, de maneira que um trabalhador disse “Oh rapaz, vai buscar uma… uma bilha d'água, pá” e… ao meu lado estava um trabalhador mais velho, que se chamava Sá, que diz “Não vais nada, pá. Se quer criados que os pague! Ficas aqui”. E acabou por ser uma figura de um trabalhador que acabaria por marcar todo o meu percurso da fábrica. O Sá já era comunista, não é [risos], já era… um homem do Partido Comunista, sindicalista, e… pouco tempo depois acabou por me envolver na luta pela primeira eleição do Sindicato dos Metalúrgicos, que a lista dos trabalhadores venceu a eleição.
Já nessa altura, com figuras que vieram a tornar-se muito significativas, que foi o Vítor Ranita, o António Mota, vários destes homens.
Simplesmente, como sempre acontecia, o regime movia imediatamente uma ação judicial, a partir do pressuposto de que houve irregularidades.
E, portanto, a ação judicial… a lista não podia tomar posse, a ação judicial durava o tempo de vigência daquela lista, e quando estava a terminar o período de… de novas eleições, faziam-se novas eleições. E assim sucedeu. Só que fazem-se novas eleições e a lista voltou a ganhar as eleições, a mesma lista, ou mais ou menos a mesma lista, pronto. E nessa altura ganhou as eleições e tomou posse. Aliás, já é uma época do... nova do regime, do tempo marcelista, da abertura liberal, que não foi... não foi abertura nenhuma, não é, mas que quis parecer uma abertura liberal. Já nessa altura outras listas ganhas pelos trabalhadores conseguiram exercer os seus mandatos. Mas, neste processo do sindicato, é um processo interessante, porque eu lembro-me de ir com ele recolher assinaturas noutras fábricas, não é, na Cepsa, na Efacec, e várias outras empresas. O… o Sá… era um homem extremamente combativo, assim com… um raio de anarquismo, sempre, no seu funcionamento, de um tipo libertário, portanto, já era um homem de uma generosidade extraordinária. E isso marcou-me, naturalmente. Acabou por ser ele que me trouxe ao partido, não é. Apresentou-me um funcionário clandestino, nunca me disse… nunca me disse, o que é curioso, nunca me disse o que é que íamos fazer, não é. Eu só soube que era um funcionário clandestino quando, depois de estando apenas com ele, ele me disse que... perguntou se eu sabia quem é que ele era e eu disse “Não, acho que um dirigente sindical e..”, “Não, sou funcionário do Partido Comunista Português. Isso assusta-te?”, e disse, “Não, não, não, problema nenhum”, mas também não tinha uma ideia muito clara do que era um funcionário do Partido Comunista Português. Pronto, este é o percurso até chegar ao partido.
De facto, o que verdadeiramente… antes ainda de ter entrado para o partido, tive… tive… fiz parte de um movimento juvenil em São Mamede e Senhora da Hora, abarcou sobretudo estas duas freguesias, que se chamava Mojafe. Um movimento de ajuda fraterna, que foi uma coisa criada e dirigida por um padre, que teve muito… teve um impacto público muito grande nesse tempo, porque se propunha e construiu algumas casas para pobres, não é. A televisão acabou por lhe dar projeção, só que quando a PIDE se apercebeu que aquele padre era um pouco fora do esquema dos padres, começou a persegui-lo e ele fugiu para a França. O Mojafe durou ainda algum tempo, mas já não foi muito tempo. Entretanto, surge o MJT, isto estamos a falar já na… 68… 69… já, não é?
Entrevistadora - Tinhas tu que idade, mais ou menos?
Ernesto Afonso - Eu tinha 18 anos, aí já tinha 18 anos. E… e isso surge já no encalço, digamos, na fase anterior às eleições, que são em 69. Pronto, há um grande movimento social já, uma dinâmica social muito forte e… o Movimento da Juventude Trabalhadora acaba por constituir-se formalmente, já no período da campanha eleitoral, numa grande assembleia [risos], uma grande assembleia com centos de jovens, não é… [risos] na… na campanha, na sede do MDP, não é, na sede do MDP. E pronto, o MJT teve um percurso muito proveitoso, muito rico, de ligação de jovens, quer pelo vínculo cultural, quer pelo vínculo recreativo, das… dos convívios, de bailes, desporto, utilizou muitas dessas coisas, mas tinha sobretudo reivindicações.
Lembro-me, nesse tempo, era o voto aos 18 anos e era, em absoluto, a guerra colonial [pausa], a luta contra a guerra colonial. Que, para quem não viveu o tempo, não é fácil de entender, mas qualquer jovem sabia que a sua vida estava sempre interrompida pela guerra. E a guerra tanto podia ser de dois anos, como podiam ser quatro ou cinco, dependia de... não dependia de… dele, não é. Nessa altura, eu, desde que fui trabalhar para a fábrica, fui estudar à noite, mas o adiamento só era dado aos estudantes universitários, portanto, no quinto ano do curso de serralheiro mecânico, marchei para a tropa, com 20 anos, tinha 20 anos nessa altura. Fiz a instrução e quando... quando… ainda fiz o treino de juramento de bandeira [risos], é curioso… e… mas aí já o partido me tinha proposto que… que eu deveria desertar [pausa] para entrar na clandestinidade.
A política do partido não era a deserção. O partido sempre teve, em relação à guerra colonial, uma postura de… a guerra colonial... é uma guerra para combater, para denunciar e para combater, e deve-se ir para a guerra colonial e fazer o trabalho de esclarecimento e o trabalho político que devia ser feito para denúncia da guerra e combate à guerra.
Mas, naquele caso, a proposta foi outra, foi sair. E, portanto, isso levou-me, em primeiro lugar, ao estrangeiro, onde... frequentei algumas aulas de economia política, sobretudo, filosofia e economia política… política!
Entrevistadora - Foste para onde?
Ernesto Afonso - Em Moscovo.
Entrevistadora - Ok.
Ernesto Afonso - Política! Eu digo... digo não, é que eu tinha muitas disciplinas [risos], mas digo sempre economia política e filosofia, porque verdadeiramente foram as disciplinas que me marcaram profundamente. Em primeiro lugar, a economia política, porque essa é a que melhor nos revela o caráter explorador da sociedade capitalista. Pronto, no regresso... entrei imediatamente na clandestinidade [pausa]. Claro que o percurso até aí tem muitas peripécias. É preciso fazer... a travessia a salto da fronteira, fazer o percurso até à fronteira da França… e aí, sim, pronto, a gente já embarca... já pode embarcar no comboio, não é, ir até Paris, chegar a [impercetível], à noite, e só ouvir portugueses... [risos] portugueses a gritar… “Trabalho! Trabalho!”, estavam a viajar nessa altura estruturas muito fortes de angariação de trabalhadores, de angariação de trabalhadores para... já não era o trabalho, já não era a primeira vaga de emigração… que é uma emigração toda a salto, e toda clandestina, e que passavam as passas do Algarve para chegar à França, não é. Nós... já não foi bem assim, foi até à França, foi, ainda foi preciso ir por vias muito paralelas, não se podia usar o comboio, porque o comboio era extremamente vigiado pela PIDE, naõ é, mas... era eu e mais dois rapazes, os dois... um era refratário e o outro era desertor. Curiosamente, o desertor era um desertor da Marinha, que vinha com uma perna engessada [risos] e, portanto… [risos] fez a viagem até França… até Moscovo, mas até à França foi feita... até Espanha foi feita a pé, a partir da Guarda, não é, a partir da Guarda, apanhamos... por recomendação... apanhamos um táxi até… um bocado antes de Vilar Formoso, e depois é feito à pé, de acordo com as instruções, pelos campos, por todo o lado. E bom, e ali… [risos] ali… ia aquele jovem, com a perna engessada, um bocado sem poder correr, não é, pronto, também não valia a pena correr… se houvesse algum problema, não era possível correr. Mas aí há um episódio muito curioso, porque eu não conhecia os outros, mas havia dois jovens, um era de Vila Franca e o outro era de Lisboa, e… bem, apanhamos, naturalmente, um táxi, mas com aquelas revistas todas, jornais todos desportivos, e tal, para falar de futebol e todas as coisas, para enganar o taxista, e é claro, o senhor de Vila Franca era um estudante, um estudante comunista, assim de… dos princípios filosóficos, aquelas coisas, futebol não fazia ideia do que é que isso era, que isso era uma coisa do regime, não é, de maneira que a gente falava de futebol com ele e ele não sabia falar de futebol, mas também não adiantava nada, porque aqueles taxistas estão fartos de ter diversas situações daquelas, de maneira que quando chegámos ali a um quilómetro ou dois de Vilar Formoso, eu que ia à frente com o taxista, disse-lhe “olhe, pode deixar-nos aqui, pronto, quanto é que é?”, e lembro-me muito bem, eu não me lembro de muita coisa, não tenho boa memória, de facto, mas sobretudo desses tempos, mas lembro-me muito bem de ele me dizer “bom, são 120 escudos, mas nestes casos levamos 160” [risos] portanto, ficou ali claro que não valia a pena camuflagem nenhuma, porque era tudo evidente, não é? Aqui estamos perto do lusco-fusco, três chavalos na idade militar, não é, chegam ali e, portanto, ele deixou-nos na estrada, deu meia volta e foi-se embora e… conto-vos esse pormenor da passagem, porque acho que eu passei a fronteira a salto para aí oito vezes, e era que eu me lembro, talvez por ser a primeira [risos] de que eu me lembro muito bem e muito em pormenor. Então lá fizemos o percurso pelo meio dos campos até uma estrada que se via, e era a fronteira, fizemos esse percurso da fronteira, passámos pela Guarda Fiscal, e a Guarda Fiscal era um edifício extremamente iluminado, com um guarda à porta, e é claro que a tensão nessas circunstâncias aumenta extraordinariamente, não é? Mas nós passámos e ninguém nos disse nada e fomos então ter um bar onde deveríamos esperar por um dito passador, não é, que tinha os nossos passaportes, porque nós passámos tudo sem passaporte, fizemos tudo isso sem passaporte, sem documentos nenhuns, quando chegámos a esse bar, só existiam lá dentro carabineiros e guardas fiscais [risos] era só homens armados, homens fardados, não é, no seu petisco do fim do dia, não é, ali numa grande conversa, não é, e entraram três rapazes, pá, que se sentaram lá numa mesinha, a única mesa que havia lá num canto, a beber umas cervejas, pá, e ficámos à espera que o homem viesse ter connosco para nos entregar os passaportes. Veio ter connosco, quando chegou, estávamos lá os três, já não estava lá mais ninguém, nós ficámos ali até ao fim, já nos arrumos, naturalmente, aqueles seres foram para as suas casas comer, e ficamos sozinhos, quando ele chegou entregou-nos os passaportes, desejou-nos boa viagem, pronto, a partir daí estávamos por nossa conta, não é? E… e seguimos algumas indicações, que já nos tinham sido dadas em Portugal, não é, e fomos até chegar a Paris. Pronto, daí para Moscovo houve um processo simples de transportes mais ou menos programados, não é, mais ou menos, programados. Vindo da… no regresso da União Soviética, foi a entrada na clandestinidade. Comecei por viver num quarto na cidade do Porto, não é, e mais tarde acabou por criar-se a circunstância que era sempre desejável de ter uma casa clandestina, pior acabei por viver em dois quartos. Uma das características da clandestinidade é que… quarto, a instalação onde se vivesse, quando se deixasse… deixava-se no dia, exatamente, não se podia informar com antecedência e não se podia esperar pelo dia seguinte, quando se informasse “olhe que eu vou-me embora”, era nesse dia que vinha embora, era uma questão de princípio e de segurança. E do que me lembro, foi, da primeira, foi de dizer “olhe eu por razões estas ou aquelas” já não me recordo quais foram, “eu vou-me embora, já não estou cá amanhã, pago-lhes o mês adiantado que devia pagar” e pronto, era uma casa de trabalhadores que precisavam de alugar um quarto no Porto. A segunda casa foi semelhante, era uma casa de trabalhadores também, que precisavam de alugar um quarto, e alugaram esse quarto. Aí foi uma história que terminou de uma forma um pouco diferente, mas para o caso não é muito importante, porque sucedeu a mesma coisa, de sair no dia em que eu disse que me vinha embora, e aí arranjei uma história lá da família, tinha que ir para lá para Vila Real, eu era de Vila Real, no meu bilhete de identidade, e pronto, e criámos a primeira casa clandestina, com a Rosa. Era eu e a Rosa. Conhecíamos-nos, mas não éramos mais do que dois camaradas que se conheciam.
Entrevistador - Como é que vocês se conheciam? Vocês reuniam? Como é que era assim…
Ernesto Afonso - Tínhamos sido apresentados pelo partido, não, melhor dizendo, eu já conhecia a Rosa do MJT, mas de um convívio, vagamente, muito vagamente e, portanto, depois era-me apresentada já com a finalidade de… criar uma… uma casa clandestina. A nossa primeira casa foi na Bela, em Ermesinde, a Bela… no primeiro problema conspirativo que surgiu, foi preciso abalar imediatamente, quando… claro, a vida na clandestinidade é mais ou menos conhecida, uma pessoa ia para a clandestinidade, todos os laços se cortavam com a sociedade, amigos, familiares, etc, tudo isso ficava bloqueado, não é, e não havia, a não ser quando era preciso, enviar, como enviaram da minha parte, um postal, como eu enviava a esse meu tio, um postal de tempos a tempos, mas que tinha que se ir pôr em França [risos] tinha que ser posto em França, tinha que ser posto em França, porque oficialmente eu estava em França.
Mas aí, na clandestinidade, havia, nas reuniões quando começavam, havia sempre um ponto, que era chamado ponto conspirativo, em que cada um relatava alguma coisa que tivesse sido suspeita, na forma em como se chegou ali. Dizer que quando se chegava ali, se ia de olhos fechados, não é, eu lembro que nessa altura era eu, porque a casa era minha, era eu que ia buscar o outro camarada e que traziam os óculos de sol completamente vendados, não é? Simplesmente estávamos no São João e ele assustou-se com a, com a, com a, com a, como é que se chama? Com um lume, com uma fogueira do São João, uma fogueira de São João e… pelos lados viu, olhou pelos lados e viu, viu uma ponte e, pronto, e relatou o que tinha sucedido, aquela ponte era muito perto de casa, de maneira que no dia seguinte já não estávamos lá. Tivemos que abalar imediatamente, deixar a casa, não é, e ir procurar outra, outra instalação. Outra instalação foi em Gondomar, pronto. Normalmente os, os pequeninos, pouquinhos bens que se tinham em casa, ao fim de algum tempo, iam-se buscar e guardavam-se numa garagem até haver uma nova instalação. A nova instalação, pronto, as casas clandestinas tinham sempre uma sala de receber minimalista, mas suficiente, não é, e o resto tinha o mínimo indispensável para se viver, mais nada. Na clandestinidade, verdadeiramente não é… não havia, o funcionário não tinha... o funcionário não tinha... não tinha ordenado, não tinha nada, o partido nem sobre isso há nada a dizer, porque o partido tinha sempre a preocupação de haver os mínimos dignos de sobrevivência e tudo o que era preciso, nesse sentido, da sobrevivência, com dignidade, de resto, a vida dos funcionários do partido, antes do 25 de Abril, e pode dizer-se o mesmo depois do 25 de Abril, não teve, que eu conheça, algum, sequer, que fosse motivado por ganhar dinheiro, não era possível. A clandestinidade, a vida dos funcionários de partido, não era para ganhar dinheiro, havia, com as motivações que podem ser diversas de pessoa para pessoa, havia uma extraordinária generosidade nessa atitude. Agora, depois disso, acabamos por abandonar essa casa por uma razão semelhante à anterior, começou a haver ditos na mercearia onde a Rosa ia fazer as compras e, portanto, foi preciso sair dessa casa. Acabámos por ir para São João da Madeira. São João da Madeira já coincide com um outro objetivo político, porque a minha atividade, enquanto… nesse período até 73, tinha como missão principal a juventude do MJT, do acompanhamento do MJT, e alguns comités locais, portanto, lembro-me de Viana do Castelo, da zona da Trofa, Santo Tirso, algumas zonas… Em 73, inicia-se o processo da criação da Juventude Comunista Trabalhadora, o que veio a dar lugar, mais tarde, à UJC. Portanto, esta casa de São João da Madeira já tinha o objetivo de ser uma base, digamos, uma estrutura-base da coisa. Convém dizer que cada vez que se mudava de casa, mudava-se de bilhete de identidade, era preciso um novo bilhete de identidade, era preciso assumir uma nova identidade.
Entrevistadora - Que identidades é que foste tomando ao longo do tempo? Consegues ainda recordar-te das…
Ernesto Afonso - Não, me recordo apenas de... um… era um rapaz de Vila Real, já não me recordo de pormenores, mas eu tenho um bilhete de identidade, nesse tempo. Noutra era também da área transmontana, mas já não me recordo dos pormenores. A profissão, sim, era desenhador, era técnico de desenho, porque isso eu estudei na escola, não é? Tanto que um dia, ainda em Gondomar, bateu-nos à porta, já muito tarde, uma vizinha, mais ou menos da nossa geração também jovem, muito aflita, porque o marido era tropa ainda e tinha ficado detido no quartel e ele era desenhador da construção civil e tinha que entregar o desenho no dia seguinte, e se eu lhe podia acabar o desenho. E eu disse-lhe “olhe eu lamento imenso, mas eu não sou desenhador da construção civil, eu sou desenhador de máquinas”, o que era verdade, o meu desenho era o desenho do serralheiro mecânico e, de facto, de construção civil eu não percebia nada, mas foi, assim, um bocadinho uma situação que ela ficou na dúvida, não é? De maneira que a minha vida era sair de casa com rolos de papel [risos] e entrava em casa conforme calhava, mas saía com os rolos de papel. Portanto, havia na clandestinidade uma necessidade absoluta de manter uma fachada e, portanto, a fachada era, em primeiro lugar, uma fachada do membro dessa casa, que tinha missão política e a outra pessoa, normalmente, era uma mulher, tinha a missão da defesa da casa. Era uma missão, aliás, bem mais ingrata do que a do... porque tinha… era uma missão de pessoa muito isolada, não é, ficava muito isolada, não é? O funcionário, o elemento político, digamos assim, tinha contacto com outros camaradas, reuniões, pá, tinha vida, luta, retrocessos... tinha essas coisas todas. Eu foi nesse… foi na clandestinidade que foi preso um meu colega de organismo, não é? Que era o Júlio Pinto. Já morreu, ele foi jornalista do Diário, já morreu há muitos anos e... e… no encontro que tinha com ele não apareceu, não é? Pronto, havia as regras habituais conspirativas, não se ficava num sítio mais que cinco minutos, e, portanto, cinco minutos depois ia embora e regressava, quando era caso disso, conforme a regra, meia hora ou uma hora depois ao local… ou fez o regresso ao local ou não voltou a aparecer, ficámos a saber alguns dias depois que tinha sido preso. Pronto, eram sempre momentos de grande tensão, esses que se seguiam, uma situação dessas, porque nunca se sabe o que se sucede de seguida, nunca se sabe.
Pronto, a clandestinidade tinha depois imensas contrariedades, mas isso são coisas já muito conhecidas, não é? Nós… nós não íamos ao cinema, raramente se ia a um café, embora... era obrigatório ir alguma vez ao café, quer dizer, devia ter-se, na zona onde se estava, uma vida social mínima, mas que não fossem, que não estivessem... tinha de ser depois o mais natural que fosse possível, não é, o mais natural possível, mas, de resto, não havia ligação. E não foi o meu caso, mas outros clandestinos que tinham filhos pequenos tiveram que cortar a relação com os filhos pequenos, não é? E era o que sucederia se eu tivesse uma filha na clandestinidade, como eu tive no fim da clandestinidade, ao fim de… quando chegasse a hora de irem para a escola, tinham que abandonar os pais, pronto, era a realidade da clandestinidade.
Bom, passado isso, veio o 25 de Abril, não é, e… com o 25 de Abril, eu tive que regressar à tropa, não é? Regressei à tropa. Na tropa não sabia muito bem onde é que me havia de colocar, porque, como tinha desertado, depois de fazer o ensaio de juramento de bandeira [risos], já não pertencia àquele quartel, mas não sabiam bem o quartel em que eu ia ficar, o meu processo… já não sabiam bem onde é que o processo estava, mas estava… descobriram noutro quartel. Lá me integraram de novo no CICA, que eu era do CICA, e fiz novamente uma recruta, eu costumo dizer que fui um soldado que fiz três vezes a recruta e... no fim da recruta, lá fui para o quartel da Senhora da Hora, onde se desenvolve depois todo o processo, porque na Senhora da Hora, a minha ida para a Senhora da Hora… eu era condutor, mas nunca conduzi, limitei-me a fazer a formação de condutor, o exame de condutor. Depois, iniciou-se o processo de institucionalização do MFA e isso criou, começou a criar a eleição dos delegados de companhia, dos delegados de unidade, e portanto isso tornou-me delegado da companhia e depois delegado ao Conselho Regional do Exército, aqui da região militar [risos] e portanto nunca mais tive atividade profissional. Na altura existiam uma… existiam os GDUs, os chamados GDUs, grupos de dinamização de unidade, que tudo isto faz parte da estruturação que foi feita do MFA, e eu era do GDU. Portanto, estava num gabinete, muito perto do gabinete do comandante, com quem tinha excelentes relações, era um homem do 25 de Abril, que anteriormente era o comandante do CICA, e foi ele que deu ordem de saída aos seus militares para tomarem o quartel-general, portanto era um homem do 25 de Abril E era uma excelente pessoa. Aí iniciou-se essa experiência política militar, na área militar. Estive ali, nesse quartel, quase um ano, portanto, tendo feito parte, a minha vida, no fundo, era de todos os dias… havia uma assembleia de uma companhia [risos] era uma atividade política, de facto, muito intensa... aquilo era um quartel… era muito grande… o quartel da Senhora da Hora chegou a ter 2 mil soldados, tinha dois batalhões enormes, e aquele batalhão tinha 4 companhias. Na minha companhia depois fazíamos com o comandante do batalhão, que chegou a ser um homem também muito conhecido, o comandante da Polícia do Porto, o César Teixeira, também um excelente ser humano, e que, com ele, sempre com a presença dele, todos os dias tínhamos uma assembleia de uma companhia, reuniam para informar e levantarem os problemas… uma assembleia, pronto.
Daí, entretanto, o Conselho Regional do Exército, aqui da região militar norte, elegeu os seus elementos para a Assembleia da MFA, e a Assembleia da MFA iam os militares por inerência, os capitães da MFA, e iam representantes dos oficiais milicianos e das praças. E eu fui como representante das praças. Portanto, fiz parte da Assembleia da MFA, enquanto ela existiu, ou melhor, desde a segunda reunião, porque a primeira Assembleia que se faz, a primeira grande Assembleia Democrática que se faz, era no 11… era logo a seguir ao 11 de Março, que é a grande Assembleia das Nacionalizações, que iniciou o processo das nacionalizações. Eu vou para a Assembleia da MFA a seguir. É outra experiência única, porque as Assembleias da MFA eram acontecimentos, acontecimentos de uma democraticidade total, a palavra era dada a quem a quisesse, quem queria, intervinha, não havia qualquer limitação hierárquica, ali estava o Sr. General Presidente da República e o soldado raso, que era eu [risos] e como eu, mais alguns.
E tinha outra coisa, que era... tinha um almoço volante, que por curiosidade tinha sempre o mesmo prato, que era arroz à valenciana, porque é uma coisa que se come só com o garfo, não é, você anda com o prato e come só com o garfo. Mas era uma experiência... o almoço era das experiências mais extraordinárias, porque se formavam pequenos grupos, não é, e uma pessoa podia integrar qualquer grupo. Todos os militares estavam fardados e, portanto, toda a gente sabia qual era a patente das pessoas que ali estavam. Mas eu lembro-me de chegar junto do grupo onde estavam o General Vasco… Vasco Gonçalves, o Costa Gomes e outros generais, e eles estavam no grupo, estavam ali na roda, a comer e tal, e na conversa, a ouvir, ouvir, ouvir... e não havia qualquer limitação, portanto, foi isso aí uma experiência única, não é possível em mais circunstância histórica nenhuma. E… e que é uma experiência não apenas de participação, mas de aprendizagem, porque isso nos dava um à vontade extraordinário, não é, de falar com qualquer um deles, com qualquer pessoa. E isso deu… que eu fui sempre uma pessoa um bocadinho tímida, sempre, a aldeia e as condições da aldeia fazem as pessoas naturalmente um pouco tímidas, acho que, ou então se calhar é da natureza de uma pessoa… mas isso deu-me uma experiência rica, muito rica… que terminou com… com o golpe de Tancos, o pronunciamento de Tancos. Aí eu já tinha sido excluído do Exército, já tinha sido saneado, porque numa altura, numa dada altura em que a conspiração já era muito desenvolvida, e sobretudo uma conspiração, para retirar o Corvacho do comando da região militar e, nessa conspiração, perceberam-se que eram poucos os militares que não estavam envolvidos e… no meu quartel, provavelmente, o único que não estava envolvido era o comandante, de maneira que nós conseguimos aprovar uma moção na Assembleia Geral de Praças, a pedir a substituição do comando, porque não se podia pedir a substituição do segundo comandante, que era um homem de facto de conspiração. Isso foi uma experiência quase trágica, porque envolvendo o comandante não o devia poder ter envolvido, sendo a pessoa que ele era. De qualquer forma, o que é que isso originou? Originou o saneamento… pouco tempo depois, todos os membros da dita assembleia, da unidade, eleitos, os delegados das unidades, foram todos excluídos do quartel, foram todos na licença registada. E isto é um processo que não começou no Rio, já estava em desenvolvimento, entretanto, o Corvacho é o dono do comando, vem o Pires Veloso e há mais saneamentos. E deste grupo de saneados, surge a certa altura a necessidade de fazer alguma coisa, e há uma primeira reunião que junta soldados e militares, de várias unidades, de Chaves, do Porto, de vários quartéis. Nessa reunião é feito um documento para distribuir clandestinamente, lá nos quartéis, envolve gente de todos os partidos dessa altura, de grupo, do partido comunista, e de todos aqueles grupos de esquerda, não do PS não, o PS estava ligado com a direita, no processo contra a revolução… e envolve essa gente toda, e faz-se um documento que teve uma distribuição massiva em todos os quartéis, porque quando não havia comunistas, havia ou OCMLPs, ou Grito do Povo, à altura assim conhecidos, ou do MES, ou destes, ou daqueles. Teve um sucesso tão grande, que o slogan, que tinha no fim, que era apenas Soldados Unidos Vencerão, deu origem a uma organização, que teve um grande impacto, acho que com muito efeito positivo, mas também com muito negativo. Porque assumia, desde logo, uma perspetiva muito radical, embora ela não fosse… fosse um movimento de defesa, porque é um movimento contra, as medidas contra-revolucionárias estavam a ser tomadas de afastamento de gente de esquerda dos quartéis, mas assustou muito os militares do quadro permanente, e isso teve esse lado negativo. Os SUV tiveram momentos heróicos, digamos assim, que terminaram no Porto com a ocupação do Regimento de Artilharia da Serra do Pilar. Lembro-me de ter lá estado, embora, enquanto soldado, enquanto militares, de licença registada, e continuam a ser militares, e lembro-me de ter lá estado e do tempo que se viveu durante esse processo… e da tentativa do Pires Veloso de tomar o quartel, mandou para lá uns blindados para assaltar o quartel, não conseguiram porque, para além dos militares que estavam dentro do quartel, havia uma verdadeira tropa fora do quartel, que eram os civis, que pernoitavam à porta do quartel, nunca saíam dali, não é, solidários com o movimento. E, pronto, é… assim que termina, que terminam os SUV. Em Lisboa também tiveram uma ação desse tipo, mas em Lisboa já foi uma criação posterior. Os SUVs nascem no Porto e depois já são criados em Lisboa, nascem espontaneamente no Porto, e já são criados em Lisboa por organizações da extrema esquerda. E, pronto, aí termina verdadeiramente o processo revolucionário com o 25 de Novembro. E o 25 de Novembro sucede muito pouco tempo depois, antes do 25 de Novembro dá-se a tal Assembleia de Tancos, do MFA, em que ainda participei, e que já é uma coisa completamente diferente de todas as outras Assembleias. Já estava tudo montado, tudo organizado para excluir o Vasco Gonçalves, para alterar o Conselho da Revolução… é o Golpe de Tancos, conhecido assim, na história do 25 de Abril.
Entrevistadora - Então, se calhar vou voltar um bocadinho atrás, vou voltar ao período da clandestinidade. Falaste de algumas coisas, como é que era viver e como é que era o teu dia a dia… e onde é que foste a mudar e todas essas mudanças… eu perguntava-te assim, que orientações é que tiveste? Quem é que te deu essas orientações? Quem é que te deu métodos, truques para assumires a tua identidade nova e não revelares a tua própria identidade? Como é que é esse processo dado? Quais eram os truques? Se puderes contar… como é que funcionava isso?
Ernesto Afonso - Há uma coisa que é muito importante no que eu estava… na narrativa que eu estive a fazer. Eu julgo que ao processo, à consciência política e ao processo político se chega pela consciência que se vai adquirindo, pela leitura, pelas relações, por isso tudo, ou pelo sentimento de injustiça. E aquilo que caracterizou a minha chegada é o sentimento de injustiça. E isso começa, como eu disse, não na aldeia, mas posteriormente na fábrica, nas relações de fábrica e nas tentativas das lutas na fábrica, não é, porque na fábrica, a certa altura, o Sá… é sempre... falar do Sá é sempre uma emoção… porque verdadeiramente o Sá… foi um pai, não é… [emociona-se], desculpa… era um homem tão… muito simples, mas que… um dia me disse assim… meteu-me um prospeto… um prospeto no bolso do fato macaco… “vai à casa de banho e lê essa merda” e… e pronto lá fui à casa de banho e li… “Se fores preso, camarada” [emociona-se] a minha primeira leitura relacionada com o partido e… é claro, mal eu saía da casa de banho tinha de ir entregar o prospeto, em papel bíblia, uma coisa bem pequenina, mas que é uma coisa muito marcante, porque o texto é de uma potência emocional fantástica e, portanto, aquilo foi… muito forte para… para mim, para a minha vida que na altura já era a vida de um indivíduo que sentia profundamente essa injustiça social. Porque quando nós não temos pessoas diferentes da nossa miséria, à nossa volta, nós não nos apercebemos disso, quando temos à nossa volta a riqueza e a riqueza, ainda por cima, que nos diz todos os dias que somos pobres e que eles são ricos, e isso cria um sentimento de revolta inevitável e, portanto, é esse o percurso que me traz ao partido, que me traz ao sindicalismo primeiro, ao MJT, que também é uma escola política, o MJT, o contacto com as canções revolucionárias do tempo, não é… e, portanto, é um percurso baseado, sobretudo, nisso. Leitura… a leitura teórica disso… zero, era coisa que eu não tinha, a única leitura de que me ocupava era a escola e era num curso eminentemente técnico de serralheiro mecânico. Agora… a defesa, digamos assim, o modo como nos podemos defender num processo em que… somos, de todo, falsos, não é, na nossa aparência, na nossa exteriorização, procuramos sempre mudar um pouco facios… mas isso não é fácil, lá o meu… controleiro, pronto, o meu mentor político, não é, disse-me logo que tinha que deixar bigode, pronto, e lá deixei um enorme bigode, nem era uma coisa… não era uma coisa anormal no tempo, era muito comum o uso do bigode, mas tudo isso tem muito que ver com o instinto… naturalmente, há indicações, que vão sendo dadas, alguma leitura, não é, alguma leitura também, mas depois é o instinto… há regras e as regras, chamadas regras conspirativas, são para cumprir à risca, nós sabíamos que, por experiência de outros, quando não as cumpriram, foram presos. Nós sabíamos que quando se saia de casa e era frequente sair de casa, e ficar fora de casa, dormir nos chamados apoios que eram senão casas de camaradas que nos acolhiam, pronto, não se ficava em pensões, isso era proibido, não é, ficar em casa de alguém que nos acolhia era um ponto de apoio… quando se regressava era preciso ter a garantia que a polícia não tinha ido lá a casa e, portanto, havia a regra do sinal, que a camarada, mulher ou apenas camarada, havia de pôr algures no caminho no ponto referido e quando nós vínhamos, antes de vir para cá, tínhamos de ver se o sinal lá estava, se lá estava, não tinha havido… intervenção da polícia. Casos houve, que eu conheci pessoalmente que… “ah esqueceu-se do…”, quando chegaram lá, tava lá a polícia à espera deles, não é… porque normalmente as camaradas não se esqueciam de pôr o sinal… isso era sagrado, não é. Depois é o instinto que conta connosco, não é, nós sabíamos que… havia uma… estava definido que os encontros tinham de ser naquela zona e não se podia ir para além daquela zona, havia ruas onde não se podia passar, zonas que não se podiam frequentar, portanto, isso tudo é estabelecido, mas para além disso é o instinto, é procurar ter um comportamento muito natural e… e estar sempre muito atentos, porque essa é que é a tensão… era muito fácil uma pessoa, ao fim de algum tempo, estar cansada, era muito mais prático apanhar um autocarro e vir até casa, mas isso não era permitido e não era… não era só não ser permitido, era assumido naturalmente como não podia ser permitido… e, portanto, o percurso, muitas vezes, significava que eu estou a um quilómetro de casa e vou ter que fazer três quilómetros, para dar uma grande volta e para ter a certeza que o percurso que vou fazer é um percurso limpo. Pronto, a defesa era muito feita disso e depois de relações humanas que se travam e que é, sobretudo, o papel de responsável pela casa, de relações simples, de afabilidade, mas de, ao mesmo tempo, não podem ter nunca ponta de intimidade, em nossa casa não podia entrar ninguém, nem nós entrávamos na casa de ninguém, portanto, eram tudo relações que… que pode dizer-se que a clandestinidade, para quem vivia na clandestinidade, tinha do ponto de vista social um isolamento total, um isolamento total, a relação que havia era apenas com os camaradas da organização e com o camarada designado de controleiro, mas que não era senão o responsável que fazia a ligação com um outro organismo, que vinha e que ficava, normalmente, lá em casa, portanto, eram sempre noites importantes, porque, normalmente, à noite não se reunia, por causa da… do silêncio, não é, e de não se poder falar mais alto, nem nada disso.
Lembro-me de ir fazer uma reunião com jovens do Porto, mas a reunião era em Santo Tirso, porque cada um dos funcionários tinha uma zona para encontros, uma zona, ou mais do que uma zona, mas a zona era circunscrita e então a reunião com estes jovens era em Santo Tirso. Eu lembro-me de chegar à estação de Santo Tirso, e eu chegava sempre antes, e dava uma volta, e andava a dar uma volta, a ver o ambiente e tal, mas à hora exata, estava no local, ao dar esta volta, quem é que eu encontro? Um dos jovens que vinha ter um encontro comigo, mas não fazia nenhuma ideia com quem era, que era o Vasco Paiva [risos], com quem eu tinha feito parte do Mojafe, e o Vasco Paiva, que não tinha nenhuma relação comigo desde essa altura, depois contou-me, quando me viu, viu-me e eu fiz conta que o não vi, disse-me assim “fogo, raios parta, vou ter um encontro e está aqui este gajo, por perto” [risos] “e está aqui este gajo”, que não deveria ser, que não era naturalmente com quem ele se ia encontrar [risos]. Bom, depois foi a surpresa dele quando ele lá estava no ponto, não é, com a revista, a velha tradição da revista, não é, e eu cheguei à beira dele e lhe disse a palavra senha e ele respondeu com a palavra senha e ele [risos] estava longe de imaginar que o encontro era comigo, não é, e pronto, e foi, foi… os encontros eram assim, quer dizer, não sabia com quem é que ia ter um encontro, muitas vezes, não sabia com quem era o encontro, não é.
Portanto, agora, repare, eu lembro-me que o, quando na primeira passagem clandestina para o… para ir para fora, a primeira saída, das outras saídas eu lembro-me muito vagamente como sucederam, mas essa eu lembro-me porque já uma vez escrevi sobre ela, portanto, e fiz uma recordação maior. Lembro-me que fui apresentar-me a um passador, que me ia dar instruções sobre…. porque nunca andava connosco, só dizia “pá, agora vocês vão fazer isto, isto, isto e aquilo”, e ele havia de se encontrar comigo no Largo da Estação de Viseu… o Largo da Estação de Viseu era uma estação, tinha as árvores à volta, aquilo tudo, e eu, já meio malandro, encostei-me lá numa das zonas distantes da estação, encostei-me junto de uma árvore, e deixa ver se eu consigo perceber mais cedo quem é o tipo que vem ter comigo, que é o passador, não é, ver se identificava… não, não, não, não… apareceu, quando eu dei por ela, estava um tipo atrás de mim, estava um sujeito pequenino atrás de mim, a bater-me no ombro, “o senhor sabe que horas passa a camioneta para... para…” ai, uma terra… Nelas, ainda me lembro muito bem dessa palavra, dessa palavra passe “a que horas passa a camioneta para Nelas?” e a resposta já não me recordo bem como era, mas disse “as camionetas não passam por aqui” ou qualquer merda do género [risos] não é… e eu digo assim “jesus, este aqui é um passador?” ele tinha um ar mesmo mesmo muito pequenino, um rato, com um fino instinto, espantoso, todos os momentos em que eu estive com ele foram sempre extraordinários, e, então, ali ele diz-me, ele era assim, “meu amigo, vai apanhar uma camioneta para a Guarda, vai se encontrar lá com os seus amigos, que eu não faço ideia de quem são, e depois apanha um táxi para Vilar Formoso e sai dois quilómetros antes da vila”, “e depois?”, “e depois, eu hei de aparecer” e então… lá se segue aquele percurso, fui e meti-me na camioneta, que daí aquela coisa particular que aquela camioneta vai subindo aquelas aldeias todas pelo caminho, que é muito longe, a maior parte das vezes saía toda a gente, só ficava eu e o motorista e o revisor [risos] e eu fui o único passageiro que fiz o percurso todo. Lá cheguei, lá pronto, lá no jardim encontrei os dois rapazes, metemos-nos no táxi e chegámos a Vilar Formoso, portanto, assim, perto do lusco-fusco, ainda não era… ainda não era noite, começámos a andar, “vocês saem 2km antes e depois vão a pé até à vila e eu apanho-vos no percurso”, lá fomos, por ali fora, chegámos à entrada da vila, logo em [impercetível], não é, e quem aparece? A patrulha da GNR... [risos] e a malta com os feitos… o homem entregou-nos, o homem traiu-nos, é a primeira reação que se tem. O jovem de Vila Franca, que era assim menos experiente, estava completamente passado, já não sabia o que iria fazer, e eu disse “epá, mantenham-se, vamos continuar a andar em frente, cumprimentar os senhores guardas e não se olha para trás”, passámos “muito boa tarde, muito boa tarde”, a patrulha passou, deve ter ficado a olhar para nós, ficaram a olhar para nós, claro, a gente percebe logo, mas continuar. Eu suponho, muitas vezes digo isso, suponho que a lassidão das próprias forças de segurança já era tal, na decadência do regime, que aqueles guardas perceberam perfeitamente que aqueles três chavalos iam fugir, não estão ali por mais nada, não os conhecem, nunca os viram na vida, a verdade é que não nos disseram nada e, portanto, continuamos, mas a gente depois já nem sabia o que é que havia de fazer “mas vamos pela vila dentro ou o que é que a gente faz?”, ficámos por ali, andámos um pouco, voltamos para trás, e entre isto lá chegou… aquele… aquela figura absolutamente extraordinária, e disse “epá, então você deixou-nos aqui?”, “queriam que viesse com a guarda? Queriam que viesse com eles?”, não é. Bom, mas havia essas peripécias sempre.
Entrevistadora - Mas nunca foste preso?
Ernesto Afonso - Nunca fui preso. Nunca…. nem nunca senti a perspectiva da prisão, de estar em perigo. Embora foram presas várias pessoas que trabalharam comigo, não é, de um… de um, eu sei, que na prisão descreveu o responsável, fisicamente, porque ele também não sabia quem era, aquele jovem da Senhora da Hora, bom rapaz, mas não se aguentou e descreveu, mas nunca tive esse problema, e quando foi preso um tipo de Matosinhos, que nessa altura deixei de viver em casa, procurei um refúgio, não é, porque no 1º de Maio foi preso, um homem que era dos Serviços Municipalizados e que no 1º de Maio andava a fazer fotografias, que é uma coisa que não é possível fazer, portanto, prenderam-no e não tínhamos nada a certeza que ele não dissesse, que não falasse… foi o único período em que eu passei a viver em casa de amigos, no fundo foi assim, durante uns dias. Mas pronto, depois fui para a troca.
Entrevistadora - Ok, ótimo. Deixa-me ver aqui mais algumas questões em relação a esse período da clandestinidade, não é… Como é que achas que a clandestinidade e todas essas experiências que tens contado e, com certeza, que terias muitas mais histórias cómicas… ou de medo ou que surgiram ao longo desse percurso, como é que sentes que esse período da clandestinidade influenciou a tua trajetória de vida?
Ernesto Afonso - Muito naturalmente. Eu acho, aliás, que eu deixei de ser do partido
no período de grandes dissensões internas, não por razões de carácter político de fundo, hoje continuo a considerar-me o mesmo comunista desse tempo, embora, provavelmente, encarando a perspetiva da sociedade comunista de uma forma um pouco diferente, mas que é, no fundamental, a mesma coisa, é que uma sociedade que não seja baseada na exploração das pessoas, portanto, desse ponto de vista, o princípio continua válido e há de ser sempre válido. Mas, eu costumo dizer, o que provavelmente não é… não serei o único caso, mas há muita gente que não tem esta apreciação… de que não seria nada do que sou hoje sem ter sido o partido [silêncio], quer do ponto de vista da aprendizagem… do desapego, do desapego… da ação sem um interesse egoísta exclusivo, a ideia da generosidade, do empenho em causas e coisas, acho que tudo isso vem dessa história e acho que isso é um bem fantástico para a vida. Porque eu digo que na vida só existem, verdadeiramente, dois tipos de pessoas, as pessoas, independentemente das políticas, as pessoas bondosas e as pessoas que não são bondosas e que são, por isso, mais egoístas. E a bondade não é uma coisa que nasce automaticamente connosco, porque nós nascemos animais egoístas, por natureza, como todos os animais, portanto, é o percurso de vida… o social, o contexto social, a consciência que temos dessa sociedade, das relações humanas, das relações da sociedade, e a forma como nos entregamos a alguma coisa. Eu suponho que isto não é um exclusivo da política, isso pode ser… pode ter o mesmo resultado em pessoas que têm a mesma dedicação a causas sociais, exclusivamente, e puramente sociais, como até causas religiosas, portanto, não é… eu acho que há, de certeza, religiosos que se integram, porque se entregam a essa missão, com uma absoluta generosidade, portanto, a generosidade é, de facto, um dom enorme do ser humano e julgo que, em cada área, eu digo isso aos meus filhos, desde sempre “em qualquer circunstância, cultivem a bondade”, pode até ter reveses na vossa vida, mas, mais tarde ou mais cedo, há de ser reconhecido, e é reconhecido, além de que o reconhecemos nós, nós também precisamos de sentir isso, o sentido disso, não é? Por isso eu diria, nada me prende a nada… por isso, no outro dia perguntavas-me se não tinha objetos, nada me prende a objetos, a ter coisas, não é isso que faz a minha felicidade. Agora, que isso é a marca daquilo que sempre foi, a essência do Partido Comunista, é. Depois, podem dizer “ah, mas o Partido Comunista também é isto, também é aquilo”, pois claro, é feito de pessoas, não é, e o Partido Comunista… eu diria que durante o tempo da clandestinidade, durante o tempo da ditadura, é muito difícil ter sido do Partido Comunista e ser-se uma má pessoa… depois, depois, veio toda a gente e, portanto, vem toda a gente, com motivações diversas e muitas vezes também egoístas e, portanto… agora, eu felizmente fui matriciado, digamos assim, pelo Partido desse tempo, não é, e isso… a experiência de vida e a maneira como eu encaro a vida depende muito da escola de tipo do partido. Eu digo sempre, apesar de alguns dos meus ex-amigos do partido me considerarem um inimigo [risos], mas não, não sou nada inimigo do partido, pelo contrário, pelo contrário.
Entrevistadora - E agora uma pergunta assim, que é um bocadinho mais difícil de responder, porque acho que é sempre difícil nós acharmos… colocarmos-nos nesta posição de acharmos que somos parte da história e que demos o nosso contributo
para uma história tão importante como... ou seja, colocarmos-nos como, não diria heróis, mas como personagens principais de uma fase importante da nossa história. Mas o que é que achas que a tua trajetória individual, enquanto clandestino, enquanto membro do Partido Comunista Português, como é que te relacionas com a história social, política do país… e o que é que isso significa também para ti, de alguma forma?
Ernesto Afonso - Hoje?
Entrevistadora - Sim ou antes também se...
Ernesto Afonso - Eu no partido participei… pois, eu no partido participei numa primeira reunião do Comité Central, a convite, ainda não era membro do Comité Central, em 72, em Paris, e era já na perspetiva da criação da UJC, havia três convidados, um era eu, o outro era da UEC, o Albano Nunes da UEC, na altura, e o Raimundo Narciso, porque era um homem da ARA, depois comecei a fazer parte de… a participar nas reuniões do Comité Central, em 74, em 74, portanto, até sair do Partido participei sempre nessa qualidade, portanto, conheci relativamente bem, e é por isso que vos digo, que para mim essa é uma história determinante. Como é que eu vejo isto? A minha divergência no partido pode ter sido justa ou injusta, correta ou incorreta, quero eu dizer, mas ela foi sobretudo uma divergência relativamente a processos, acreditava que o partido não teria sucesso se mantivesse uma forma de funcionamento que tinha a mesma matriz da clandestinidade, nem me parecia sequer isso conjugável com os princípios do chamado Partido Leninista, porque o Partido Leninista é por natureza um instrumento e o partido não pode deixar de ser, senão, um instrumento, como instrumento, ele deve ser um instrumento apropriado para cada época histórica, a época histórica em que o partido, enquanto partido-exército, terminou para mim no início da década de 80, a partir do momento em que o processo revolucionário terminou e se iniciou um processo de democracia, social-democracia, o partido teria que ter uma abertura no seu funcionamento e correr riscos naturais do funcionamento democrático. Perdi nessa minha perspetiva e, portanto, perdi… retirei-me, retirei-me, e eles também me ajudaram a retirar-me… também não consideraram útil que continuasse, e afastei-me sem qualquer ato formal nem com qualquer posição, nem a favor nem contra o partido, em silêncio absoluto. Considero uma verdadeira desgraça para a política do nosso país que o partido desapareça ou se reduza à insignificância, é uma desgraça política porque é, em primeiro lugar, um património extraordinário que se perde e é, em segundo lugar, uma posição coerente na luta de classes que se perde. Não encontro mais ninguém nas organizações todas que surgiram entretanto que tenham em relação à divisão da sociedade em classes e à luta de classes uma posição coerente, nenhuma. E, portanto, o tempo não é favorável a essa defesa, a essa luta, não acredito que não possa voltar a ser, ela terá que ser, no entanto, em modos diferentes. A ideia de um partido que… não aceita correr o risco de se eleger do fundo ao cimo não terá sucesso e nunca terá sucesso, e a ideia de que tem que correr o risco de haver uma eleição e mudar-lhe a direção, isso é um risco inevitável, mas enquanto isso não se fizer… nós sempre tivemos aquela ideia de evitar a divergência pública, o choque público… erro, um partido mobiliza-se extraordinariamente quando tem conflitualidade aberta, formalizada, interna, porque isso põe os militantes em confronto e o confronto mobiliza-os, desde que terminado o processo que gerou o confronto, todos se lançam na mesma tarefa, é a única hipótese. Depois, acredito que, referiste uma palavra que para mim é muito cara, que é o problema dos heróis, eu sempre fui anti-herói. Os heróis não me dizem muito, a não ser enquanto figuras míticas da história, que podem ter utilidade na educação das primeiras gerações, mas nós mitificamos o herói, porque às vezes o herói não é aquilo que... está ali o herói e não se reconhece. Há vidas verdadeiramente heróicas e que são de uma simplicidade total, e que mantêm, enfrentam todas as dificuldades com uma enorme coerência e dignidade pessoal e isso, muitas vezes, são vidas heróicas. Era assim a vida das mães solteiras e que mantinham um percurso coerente e que criavam os seus filhos, são vidas heróicas, essas. Um homem que tem um ato extraordinário num dado momento não me diz nada, porque é que isso é heróico? Quantas vezes o faz porque teve medo? Nem acontece resultante do medo? Portanto, o heroísmo não é uma coisa que me diga respeito, mas isto para dizer que… e, como desde muito cedo, não tive ligação nenhuma com a fé religiosa, sou naturalmente um descrente absoluto em termos de místicas religiosas ou de outras místicas quaisquer, teorias da conspiração são em geral coisas que não me dizem respeito… portanto, o que eu acredito é que a humanidade tem retrocessos, que nós vivemos um grande, grande retrocesso, que se pensarmos bem em termos históricos resulta de uma derrota extraordinária, que modificou muito o mundo, e essa derrota tem consequências… nós é que temos vidas curtinhas, mas em termos históricos tem consequências por muitos quartos de século, pelo menos, meios séculos, não é? E foi o fim da União Soviética, o derrube da União Soviética é o derrube de uma ideia revolucionária, que mobilizou os trabalhadores de todo o mundo desde o século XIX. A partir do momento em que nós temos essa derrota, a extraordinária derrota, vamos ter consequências durante muito tempo, mas há de haver vocês, jovens… é que terão que encontrar uma forma nova de pegar nas armas, nas armas políticas e nas soluções políticas para voltar outra vez a colocar no fundo, de forma muito simples, porque hoje aquilo que faziam os partidos comunistas, os grupos revolucionários era a classe operária… as grandes concentrações operárias não existem, e mesmo onde ainda existem grandes empresas que têm milhares de trabalhadores já não é classe operária, é outro tipo de trabalhadores, mas são esses trabalhadores que têm que fazer a luta pela extinção do sistema dividido em classes. A fé na humanidade não é verdade, porque apesar de ser profundamente dominada pela emoção e… e o Capital ter os meios todos para manipular a emoção, que é o que nós vivemos hoje, as coisas também vão mudando… e vão mudando, não é?
Entrevistadora - Sim e isso, essas questões das mudanças… aproveitávamos para voltar ao período em que tu já estavas na clandestinidade quando se deu o 25 de Abril, não é… como é que foi vivido para ti o 25 de Abril? Eu sei que houve algumas casas da clandestinidade que se mantiveram algum tempo mais… como é que foi no teu caso e como é que foi dar-se o 25 de Abril? O que é que isso provocou?
Ernesto Afonso - Mantivemos a casa três dias… e viemos para o Porto, a tempo do 1º de Maio, portanto, fomos a tempo ainda do, antes do 1º de Maio. Depois foi uma integração no partido logo, eu fiquei com a área da juventude trabalhadora que tinha uma sede própria, tinha movimento, ainda nessa altura era a luta contra a guerra colonial e pelo voto aos 18 anos, não é, para além de que havia muita, a juventude tinha muitas reivindicações, era o tempo para estudar, os trabalhadores estudantes, enfim… mas o voto aos 18 anos e a guerra colonial eram, de facto, centrais. E pronto, isso foi apenas um tempo curto até ir novamente para a tropa, não é, portanto, a minha vida política no partido foi foi uma até o 25 de Abril e foi outra até junho, acho eu, ou julho de 74, quando reingressei na tropa, a partir daí toda a minha vida política no partido é muito dedicada à retaguarda, à área da segurança e defesa, portanto, não lido com as organizações de massas, de locais nem sindicais, nem nada disso. A única sindical que desenvolvi e de que tenho muito orgulho foi a da polícia, o apoio que nós demos e que foi, eu posso dizê-lo, por conhecimento absoluto, absolutamente decisiva e determinante foi na criação do sindicalismo da polícia, o primeiro… lembro-me do primeiro folheto a dizer “sindicato” foi um folheto clandestino feito no Porto… e depois foi esse processo todo. Nesse processo, levou-me do Porto para Coimbra, onde vivi cinco anos, e depois fui para Lisboa. Em Lisboa estive outros cinco anos, ainda vivi aí a manifestação das polícias dos “secos e molhados”, não é, conheci polícias extraordinários… e não foram aqueles mais conhecidos, não é, um deles… que o sindicalismo policial nunca homenageou e que foi um homem extraordinário, foi o Subchefe Carreira, só quem viveu nesse tempo é que sabe o nome dele, não é, mas que foi… um indivíduo absolutamente determinante naquele processo todo, já morreu também, morreu muito jovem. Pronto, depois vim para o Porto, eu pedi para vir para o Porto, terminou… já na fase, digamos assim, de desinteligências e divergências… pedi para vir para o Porto, ainda trabalhei dois anos na Organização Regional do Porto, com todos estes concelhos do interior… desde a Maia até a Amarante, trabalhei dois anos ainda com isso e depois saí, saí e fiquei no desemprego [risos], no desemprego… para provar que não enriqueci no partido pedi a uma amiga 200 contos para comprar um carro [risos] em segunda mão, que foi um Lada e que o meu amigo Vladimiro, que era na altura um dos gestores de uma das empresas associada, me arranjou lá um Lada com 200 contos de entrada e cheques… meia dúzia de cheques para o resto da coisa, do pagamento… e iniciei uma atividade, não era por conta própria, porque não era… não era minha a atividade, mas era aquilo que se designava na altura como corretor de ourivesaria, um nome bonito, não é? No fundo era um vendedor de ourivesaria, ao serviço de uma pequena empresa, então percorria o país inteiro a vender jóias, sobretudo eram jóias, joalharia. É curioso que nessa altura eu visitei a Soeiro, mais do que uma vez, apesar de todas as desinteligências, não me desligava disso por completo e visitei o meu querido camarada Blanqui Teixeira, que é outra figura extraordinária, e ele dizia “então e como é que tu te dás aí, na tua atividade?”, “pá, dou muito bem, aliás tenho muita experiência disto, passei 22 anos a vender ideias e agora vendo jóias” [risos] ele achava muita piada a isso [risos].
Portanto, mesmo neste tipo de atividade, que eu iniciei, a experiência do partido foi muito boa porque naquela atividade que nós tínhamos havia muitos relacionamentos que não eram do partido, nós tínhamos… eu lembro-me de… de estar no quartel e nós para irmos para a Assembleia do MFA, recebíamos uma guia de marcha… que era um bilhete de comboio, era o próprio bilhete de comboio e, portanto, o comandante dava-me um bilhete de segunda classe, porque os praças não podiam viajar em primeira classe então eu tive uma conversa com ele… para ver o tipo de relações, que os tempos revolucionários são extraordinários, o tipo de relação que se tinha com o nosso comandante… que eu disse “dá-me licença” e tal, e ele não permitia sequer que eu fizesse continência, “ah soldado Afonso, entre e tal” e cumprimentava-me e disse… “comandante, acho que não está correto dar um bilhete de segunda classe para ir à Assembleia do MFA” e eu tinha um objetivo com isso, eu queria ir onde fossem os oficiais, os capitães… e ele disse “mas porquê?” e tal e eu “eu não vou vou à Assembleia do MFA como soldado, eu sou um membro da Assembleia do MFA, portanto, não há nenhuma distinção entre um membro da Assembleia do MFA, praça, capitão, sargento, não há nenhuma distinção” e o senhor coronel [silêncio] ficou a olhar para mim e diz “tem toda a razão!”, apertou-me a mão e disse “vou-lhe fazer já uma guia de marcha em primeira classe” e a partir daí viajava com os capitães. E era muito engraçado, porque… os do MFA, eram três capitães do MFA, delegados do MFA… quando eu desfiava “ó capitão, vamos beber uma cerveja ali ao bar” e tal “vamos lá, vamos lá” e eles nunca deixavam pagar, quando estava um oficial, era o oficial que pagava, até na cerveja, portanto, era uma vantagem, não é… Agora, sucedeu neste processo uma coisa curiosa, na Assembleia do MFA, que virou completamente o processo, que é a Assembleia de junho de 74, de 75, portanto, já depois das eleições, as eleições é que foram verdadeiramente o momento que produziu a viragem política no país, ela só se manifesta mais tarde, mas a grande viragem política é feita com as eleições, muitos destes oficiais que são homens social-democratas, no essencial, mas não é uma social-democracia filiada, nada disso, era gente generosa também, esta gente… fica… começa a duvidar… primeiro vem a dúvida… e depois essa Assembleia do MFA, com o Vasco Lourenço, que era de facto o líder do curso de oficiais, que fez o 25 de Abril, porque aquele curso foi todo movimentado para o 25 de Abril… naquela Assembleia ele não parou na mesa, trouxe um de cada vez cá fora e [gesticula] malhou o suficiente… para os pôr completamente alinhados com o Grupo do Nove e eu lembro-me que no regresso, eu conto a história só por isso, eles já não falavam comigo, estes capitães já tinham mudado a posição e, portanto, já evitavam, por completo, a conversa. Portanto, é um processo de… de… em que… de deslocação, quer dizer, o resultado eleitoral foi uma tragédia, aquele resultado eleitoral foi uma tragédia, para o processo revolucionário, enquanto processo revolucionário, não é.
Entrevistadora - E agora, neste ano, que estamos a comemorar os cinquenta anos do 25 de abril, há alguma reflexão que faças, dado toda essa experiência de um período de clandestinidade… de viver agora estes cinquenta anos em democracia… que reflexão é que fazes a este futuro… ou este passado… que vivemos e que podemos viver?
Ernesto Afonso - Em relação ao passado há pouco a dizer, acho que o nosso passado foi muito bom, o tempo que vivemos até aqui foi uma sorte, portanto, naturalmente, também o fizemos, mas foi uma sorte coletiva, não… foi uma experiência que poucas gerações, julgo eu, terão a oportunidade de viver o que eu vivi, e o que a minha geração viveu, não é, é por isso que eu digo que sou uma pessoa tranquila, a ideia da morte, destas coisas e tal… [encolhe os ombros] não me perturba nada disso, a gente viveu o que viveu, e é extraordinário.
O futuro é bem mais complicado, e… e… acho que nós assistimos hoje a uma coisa, que é… fala-se muito da juventude e de uma juventude que hoje que não tem isto, que não tem aquilo, que não sabe, que não sei quê, não sei quê… as juventudes quase sempre não souberam, não é uma característica desta juventude, as circunstâncias é que são muito diferentes. Agora a vida hoje é cada vez menos determinada pela nossa comunidade e muito mais pela globalidade da sociedade e… e é verdade… no tempo que estamos a viver e vai ser cada vez mais verdade. Hoje, o que se passa em Portugal já é cada vez mais determinado pelo exterior e… essa tendência não vai diminuir, vai-se acentuar, nós dizemos assim, hoje a vida do nosso país, nós quando falamos de economia entre comerciantes, a vida do nosso país já é muito determinada… se vai haver guerra, se a guerra vai ser maior, vai ser menor, como é que vai ser, e isso nem se quer é nada que nós possamos condicionar, ou pouco, podemos condicionar. Portanto, eu acho que em termos gerais, históricos, nós vamos com certeza continuar a evoluir para melhor, mas isso não quer dizer que tenhamos épocas piores, não é, e… eu julgo que o confronto que hoje se trava, um confronto global, é um confronto de todo o tipo, não é apenas, é um confronto, em primeiro lugar, como sempre é, a guerra de interesses… mas depois é um confronto que envolve civilizações que são diferentes, civilizações que não se querem aceitar, de obsessões desse ponto de vista, e acho que o que o ocidente faz hoje, o chamado ocidente alargado, é um crime para os seus povos [silêncio] é um crime que é cometido contra os seus próprios povos, é a negação absoluta de toda a propaganda da social democracia, que agora está… a negá-la, da… concórdia, da solidariedade, da cooperação, essas teorias todas, que sempre foram propagandeadas como sendo as bandeiras da social democracia, estão completamente… recusadas, completamente calcadas aos pés e, portanto, não antevejo, acho até muito perigosa a situação, mas… tenho fé, é a minha fé, que os… os grupos humanos encontrem, acabem sempre por encontrar e sempre por… ter inteligência para ultrapassar essas coisas. Hoje que nós vemos que os tambores que se ouvem são os da guerra e os da guerra aqui à nossa porta… não é a guerra com a América… isso é uma aldrabice completa, a América não fará a guerra com a Europa, como a não fez nunca [silêncio], a Europa quer a guerra, mas ela é lá longe, feita por outros e, portanto, este… há hoje verdadeiramente um incitamento à guerra na Europa, mas é… entre os europeus e, portanto, disso ganha sempre quem está de fora - a América. As pessoas não se apercebem, mas a América só é a grande superpotência no fim da 2ª guerra mundial, que foi verdadeiramente quem não perdeu com a guerra e ganhou, e depois continuou a ganhar, e isso é o que eles vão continuar a fazer com a Europa. Agora há riscos grandes, eu acho que há, porque em termos de lideranças europeias acho que são lideranças… são frágeis, estão completamente submetidas e quando uma pessoa se deixa submeter, fica sem liberdade para fazer coisíssima nenhuma, nem para decidir coisíssima nenhuma, normalmente, as pessoas falam muito da liberdade, a liberdade, a liberdade… a liberdade de uma pessoa é a liberdade de decidir, de decidir, em primeiro lugar, da sua vida, ora, se não tiver meios para isso, não decido nunca [silêncio] e quando eles entregam a sua própria segurança aos americanos, não têm condições nenhumas para decidir. As pessoas dizem “ah mas os alemães”, mas eles… há 20 bases americanas na Alemanha, a Alemanha é um país ocupada militarmente e por aí fora, pronto. Mas em termos gerais acho que podemos estar num período de retrocesso e de retrocesso que vai ter também retrocesso civilizacional, mas que… a malta vai aprender com isso, a fase seguinte que ainda é da vossa idade [risos], da vossa idade, não é da minha, mas é da vossa, na vossa ainda vão conhecer processos de, digamos, de progresso e de… de otimismo, não é, e de… de desenvolvimento humano coletivo.
Entrevistadora - Espero que sim, e sem clandestinidade pelo meio! [risos]
Ernesto Afonso - Sem clandestinidade pelo meio…
Entrevistadora - Espero que não seja o nosso caso… [risos]
Ernesto Afonso - Não, não, não… acho que não.
Entrevistadora - Estava aqui a pensar em algumas coisas que falaste, nomeadamente, em relação à família e o corte que se fez e que mandavas as cartas… iam de França para… ao teu tio para saberem que…
Ernesto Afonso - Para parecer!
Entrevistadora - Para parecer que estavas… dá-se o 25 de Abril e há o retorno à família, há o contar do que é que andaste a fazer… como é que também em termos familiares e de amigos, que deixaste para trás em Trás-os-Montes ou que fizeste cá, como é que se dá também essa fase… o que é que implicava mais para ti, em termos pessoais, estar na clandestinidade nesse sentido?
Ernesto Afonso - Tu, repara, esse momento dá-se num contexto ultra favorável [silêncio], quando se inicia o 25 de Abril, as pessoas… primeiro é uma grande alegria, uma grande festa… as pessoas ficam entusiasmadas com os reencontros, independentemente do que pensam, quer dizer, esse é… é um tempo, em que tudo é bom, não é, a gente reencontra-se com as pessoas que conhecia antes, tudo é bom, eu só tive… e cito, não é que tenha grande importância, só tive um mau encontro, que foi com a minha madrinha [risos], a minha madrinha… emigrou para Moçambique quando… que a minha madrinha era a dona da quinta para onde eu fui viver, e ela emigrou e deixou os tios a tomar conta da quinta, emigrou quando eu fui para lá, portanto, eu nunca tive convivência com ela, mas quando veio era retornada, não é, e veio mal, veio… portanto, eles lá tinham estabelecido um negócio considerável, portanto, fez parte daqueles retornados que se sentiram absolutamente injustiçados com o que perderam etc., etc., portanto, quando a fui visitar, reagiu pessimamente “comunistas, fora daqui!” [risos] não é nada que não lhe tenha perdoado, porque acho natural, achei aquilo tão natural, aquela reação, que disse “tudo bem, não há problema”, mas de resto… tudo era um mundo de festa, é difícil de explicar como foi esse tempo, difícil explicar porque as pessoas mesmo não se conhecendo muito bem abraçavam-se por todo o lado [emociona-se], pode dizer-se que havia uma comunhão humana extraordinária, não é, uma coisa… sem… não havia inimigos, não é, parece que não havia… esse foi, de facto, um período fantástico.
Entrevistadora - E vocês tinham essa noção que estava a chegar esse período?
Ernesto Afonso - O 25 de Abril? Eu não tinha conhecimento de nada, havia pessoas que por variadíssimas razões sabiam, havia alguma ideia, não é, não tinha… eu não tinha informação disso, na altura eu… a minha ligação era com a juventude. Agora o que nós sentíamos e aquele período todo que vai, sobretudo, de 69, nomeadamente, é um grande dissenso do antifascismo, das lutas das pequenas coisas, das grandes coisas etc., etc., etc. Eu não vos contei um episódio, mas eu lembro-me que na fábrica, um dia, o Sá decidiu com a serralharia, era uma fábrica, tinha muitas secções, não é, e tinha uma secção que era a serralharia, que era a secção de vanguarda, onde estava a malta que estudava, de vário tipo de coisas e tal, era uma coisa de vanguarda, que tinha 60 ou 70 trabalhadores, e ele um dia disse assim “vamos pedir aumento de salário”, às x horas parou a nossa secção, fomos ter com o encarregado, tinha um púlpitozinho no meio da oficina, não é, que era o que eles tinham sempre e dali controlavam a oficina toda, a gente parou e pediu aumento de salários, o Sá já não trabalhou… [emociona-se] já não trabalhou no dia seguinte, foi imediatamente despedido, chamaram-no ao escritório, à noite, fizeram-lhe as contas e puseram-no na rua… pronto, quer dizer, nós estávamos perante uma situação terrível, não é, e a seguir ia eu… e aí já era eu, já não havia mais ninguém, ainda ensaiamos uma paralisação para exigir a readmissão do Sá, mas isso era por exercício político, porque isso era impossível, o presidente da… o diretor da fábrica era um homem que depois do 25 de Abril se revelou, era um homem do CDS, que foi deputado do CDS, um engenheiro, a fábrica era de capitais belgas… eu lembro-me que ainda se ensaiou isso, eu contactei, nessa altura já não me podiam despedir, porque a partir do momento em que se ia à inspeção até que se assentava a praça era proibido o despedimento e, portanto, gozava de uma liberdade que ninguém conquistava, portanto, ia de secção em secção contactar com a malta para “vamos parar às tantas horas” e tal, tal, tal, tal… e, infelizmente, só parou a serralharia [silêncio] as outras secções não parou coisíssima nenhuma, foi uma coisa… um desaire… foi aquela coisa que uma pessoa termina e quando se apercebe disso um tipo fica sem força nenhuma, não é, uma pessoa fica completamente esmagada por aquilo. Portanto, eles perceberam isso tudo, perceberam isso tudo, e como perceberam que havia um grande descontentamento na fábrica com o despedimento do Sá, que era uma pessoa muito popular, não é, o engenheiro passou a fazer reuniões de… com pessoal por secção, mas, sobretudo, com a serralharia para explicar que nós estávamos muito enganados, porque… a vida lá nesses países do norte, como a Suécia e a Dinamarca, que tanto se apregoava, não era bem como nós julgávamos, lá trabalha-se e tal, pronto, trazia a propaganda, mas tentaram, foi visível que ficaram tocados por aquela mobilização e tentaram, digamos, apaziguar, acalmar… e acalmaram evidentemente, porque aquilo não havia volta a dar. Mas a pergunta era sobre aquele tempo… sim, foi… para mim a experiência do Sá foi uma experiência marcante, porque eu lembro-me de ter ido ter com uns amigos à baixa, ao Café Avis, ao Café Avis, onde… se elaborou um panfleto, um pequenino panfleto, e depois foi… copiografado, era copiografado, não é, em stencil, não é, e eu fui… já não havia elétricos àquela hora, fui ali para São Mamede a pé e… às duas da manhã fui espalhá-lo à volta da fábrica [risos] e foi uma coisa com impacto, mas era apenas ao nível… o nosso campo de ação resumia-se muito à agitação e, no fundamental, tirando pequenas paralisações, como foi essa de pedir aumento de salários e a outra, que vieram no Avante, foram noticiadas no Avante, era… eram ações de agitação, que se faziam no essencial, não é.
Entrevistadora - Hm-hm. Disseste que… pronto depois de teres saído de funcionário do partido, tiveste então esse emprego enquanto… vendedor de jóias por todo o país, depois… como é que chegas aos dias de hoje? O que é que fazes hoje? Não te reformaste ainda? [risos]
Ernesto Afonso - Não, não, a reforma é só quando morrer. Acho que… se se puder viver e ter um trabalho, que seja bom, não se deve deixar de trabalhar, isso faz bem à saúde e faz bem à economia também [risos]. Eu trabalhei… eu não fazia nenhuma ideia o que era uma jóia, quando fui convidado para trabalhar com uma coleção de joalharia, para vender uma coleção de joalharia, na minha família não havia jóias de espécie nenhuma. Portanto, eu disse logo ao homem que me convidou “olhe, eu não faço nenhuma ideia o que é uma safira, o que é um diamante, eu nunca vi essas coisas, portanto, veja lá bem para o que é que me está a convidar” e… e ele diz “não tem problema nenhum”, “mas nesse caso vai ter que me dar livros para eu ler”, eu ia entrar de férias, ia fazer um mês de férias antes de começar, “vai ter que me dar livros para eu ler, porque eu não quero entrar ali sem saber alguma coisa” então deu-me… ofereceu-me um livro de testes laboratoriais de gemas, não tinha uma fotografia [risos] não cheguei a perceber qual era a cor das coisas, a não ser teoricamente, ah, mas que estudei aquilo, estudei! Quando recordo que… quando ia a uma ourivesaria e começávamos a discutir pedras, ninguém conseguia acompanhar-me a discutir pedras, sabia mais de pedras do que eles todos, mas se me pusessem as pedras à frente eles se calhar saberiam o que era e eu não sabia [risos] e eu não sabia, a verdade é que isso foi muito útil para depois. O que é que foi importante para essa atividade? Foi a experiência humana, a experiência humana de relações humanas, como eu disse na minha atividade relacionava-me com muita gente que não era do partido e, portanto, tínhamos relações francas em que eles nos expunham as suas posições, nós… verdadeiramente, era o chamado trabalho unitário, não é? Neste caso, com militares, não é, toda a gente sabe que nós tínhamos esses contactos e eram em geral pessoas, pronto, eram, normalmente, oficiais do quadro permanente, pessoas com quem se tinha conversas interessantes, coisas muito interessantes, com quem se aprendia, não é, mas isso cria uma… uma facilidade e um hábito de… de… de relacionamento, que também já vinha de trás. Lembro-me… é um à parte, se calhar, em relação a isso… lembro-me o momento em que terminou o curso político e o Cunhal se sentou à minha frente, assim muito pertinho de mim, à minha frente, olhos nos olhos, como ele gostava de fazer, não é, e… me perguntou o que é que eu queria fazer [silêncio] se… a minha decisão era regressar ao país ou ficar no estrangeiro [silêncio], regressar ao país era regressar à clandestinidade, isto era feito com todos os estudantes do partido, a opção de vir para a clandestinidade era uma opção livre, daquele grupo, quando eu lá estive, éramos seis, só regressamos quatro, os outros dois decidiram ficar no estrangeiro, e eu decidi, e eu lhe respondi o que respondi sempre ao partido a partir daí: “estou ao serviço do partido para o que o partido quiser” [emociona-se] e foi sempre assim, quando me propuseram ir para Coimbra e isso… tinha custos na família, porque tinha a família, não é, e eu decidi “se é preciso ir para Coimbra, vou para Coimbra” e depois de Coimbra para Lisboa foi a mesma coisa. Portanto, acho que é sempre um problema de determinação na vida, mas pronto… a nossa conversa a seguir estava noutro ponto, que era… as jóias.
Entrevistadora - Do que é que fazes hoje, basicamente.
Ernesto Afonso - É, as jóias… as jóias volta a ser uma experiência muito curiosa, porque ela era muito perigosa, no fundo eu continuava nos mesmos perigos antigos [risos], mas também é importante a história anterior para isso, porque eu, por exemplo, a vender jóias percebi imediatamente, na primeira viagem que fiz a Lisboa, que não podia fazer o que faziam os outros vendedores, não tinham cuidado nenhum e, portanto, eu fiquei, por recomendação, numa residencial onde ficavam vendedores e fomos todos jantar, jantar… e eles falavam livremente da atividade que tinham ali no restaurante e eu disse “estes gajos são burros, pá, então se está aí um malandro em qualquer sítio, topa, ouve estas conversas”, não é, nunca mais fiquei em pensões ou hotéis onde ficassem vendedores e, portanto, fiz toda uma vida muito separada da vida desses vendedores. Fiz essa minha vida até um dia em que uma… tive uma proposta para trabalhar noutra empresa, aquilo era uma micro-empresa de joalharia, numa empresa grande de joalharia… as pessoas não sabem, mas quando se muda, nós não éramos empregados das empresas, ganhavamos à comissão, quando se muda de empresa os teus clientes que já são clientes da empresa perde-os, deixas de poder fazer esses clientes, portanto, a tua base comercial reduz-se, quando esta empresa para onde eu fui a seguir, que era uma grande empresa, credenciada na praça, entrou em crise… e foi muito pouco tempo depois, eu trabalhei lá basicamente quatro meses, quando entrou em crise, eu disse “não, eu vou-me embora” e então nessa altura ofereceram-me uma opção alternativa que era com uma coleção nova que tinham criado de ouro, mas… lá voltou a mesma questão “então e os meus clientes?”, “bem, os que já são clientes, perde-os”, só que os clientes que eles tinham, tinham-nos ido buscar aos meus, porque o que é que essa empresa de ouro, criada pelo mesmo patrão, fez? Mandou os vendedores aos clientes da joalharia e, portanto, foram contactar os meus clientes e disse “não”, este processo é um processo que se repetirá sempre que eu for trabalhar para outra empresa, portanto, vamos começar do zero, mas vou criar uma empresa minha. E foi assim que criei uma empresa, que a tua mãe conhece bem, que era uma empresa pequenina de ouro, só vendia ouro e jóias, porque mantive a cooperação com estes dois joalheiros, quer com o primeiro quer com o segundo, essas boas relações podem dizer-se que se mantiveram devido à experiência política que trazia de trás, não criei com eles nenhum conflito, nem se criou nenhuma animosidade, pelo contrário, mantiveram-se relações de cooperação. Até que, mais tarde ou mais cedo, se tornou incompatível vender as jóias e vender o ouro e então comecei a ter o meu ouro e as minhas jóias, que mandava fazer. Isto veio até à crise financeira [silêncio], quando se inicia a crise financeira, vender ouro era muito perigoso, não tanto pelos assaltos, porque isso já existia para trás, mas porque os próprios comerciantes começaram a ficar numa situação crítica e, muitas vezes, para se salvar compravam para derreter logo a seguir, ora quando alguém compra ouro para derreter logo a seguir, já se sabe que nunca o vai pagar, porque quando o derrete e o vende ele vai perder muito dinheiro nisso e portanto… eu com a minha parceira… parceira não, na altura ainda não era com a minha parceira, era com… mas já era minha fornecedora, decidimos “pá, vamos abrir uma loja” e uma loja onde vamos vender ouro e jóias e tudo o que se vende hoje e amanhã… o que se vender amanhã, porque a crise financeira não era previsível, o que é que as lojas… o que é que a ourivesaria ia vender ou não vender, o ouro começou a disparar brutalmente de preço nessa altura, começou a tornar-se extremamente caro e, portanto, a venda de ouro diminuiu extraordinariamente, portanto, criamos uma loja, a loja… vendeu só ouro, ourivesaria, basicamente, ourivesaria e relojoaria durante muito tempo e depois percebemos que… a ourivesaria está cada vez mais condicionada, sobretudo, por causa do preço do ouro e, portanto, alargamos a ourivesaria a outros meios e hoje é uma loja muito maior, com muitos… fizemos aquilo que no início tínhamos na cabeça, então vamos vender malas, carteiras de senhora, acessórios, etc., etc., isso correu muito bem e depois alargamos para a roupa, pá, e amanhã alargamos para o que for preciso, somos comerciantes, mais nada! A minha paixão continua a ser… a ourivesaria, os outros setores não me dizem nada e, portanto, tenho sempre muito prazer em… em encontrar noivos que precisam de alianças e que lhes faça as alianças exatamente como eles as querem e que… fazemos as jóias que as pessoas querem, conforme têm na cabeça, não é apenas aquilo que temos lá. O meu prazer hoje da coisa não são sucessos políticos, não são sucessos a esse nível… [risos], mas pronto esse é o meu empenho de hoje, e há de ser o empenho até ao resto da vida.
Entrevistadora - Obrigada, Ernesto.
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