Para mim tudo mudou, porque eu não queria sair daquide Mutum. Eu nunca quis sair daqui, eu nunca tive planos fora daqui. A mudança por causa da hidrelétrica é um sentimentoque não tem nem palavras pra dizer, não tem! Porque isso aqui tudo fomos nós que plantamos. Isso aqui fomos nós que fize...Continuar leitura
resumo
Maria Iraildes Valente de Menezes nasceu em um seringal em Campo Lindo, no Acre, em 1959. Durante sua infância, plantava-se grãos, legumes e verduras na casa onde morava. Seu avô liderou atos de extermínio dos índios locais. Numa dessas perseguições encontraram uma índia isolada dos demais e seu avô levou-a para seu patrão. A índia foi educada por eles e quando a avó de Iraildes faleceu, seu avô casou-se com a índia. Seu pai, seringueiro foi fruto deste casamento. Sua mãe a ensinou a pescar, prática que tornou-se uma paixão em sua vida. Em 1978 mudou-se para Mutum-Paraná, em Rondônia. Lá, conheceu seu atual marido e viu de perto a ascensão do garimpo, no final da década de 1970 e início dos anos 1980, e tudo o que isso gerou: crescimento comercial da região e muita violência devido às disputas dos territórios onde se encontravam as jazidas de ouro. Hoje, com quatro filhos, um cargo na prefeitura, e diversas plantações de alimentos em sua casa, encara um novo desafio de vida: deixar sua casa devido à implantação da Usina Hidrelétrica Santo Antônio para uma chácara em União Bandeirante. Iraildes ama ler e pretende cursar a faculdade de história.
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P/1 – Bom, Iraildes, eu vou começar de novo perguntando seu nome completo, o dia e o lugar que você nasceu?
R – Meu nome é Maria Iraildes Valente de Menezes e nasci em um seringal, chamado Campo Lindo. Hoje faz parte do município de Brasiléia, Acre.
P/1 – É aonde no Acre? É perto daq...Continuar leitura
P/1 – Bom, Iraildes, eu vou começar de novo perguntando seu nome completo, o dia e o lugar que você nasceu?
R – Meu nome é Maria Iraildes Valente de Menezes e nasci em um seringal, chamado Campo Lindo. Hoje faz parte do município de Brasiléia, Acre.
P/1 – É aonde no Acre? É perto daqui ou é muito mais pra lá...?
R – Ah, fica na divisa da Bolívia.
P/1 – Então perto de Rondônia?
R – Não, não muito perto não, deve ser uns seiscentos quilômetros mais pra lá.
P/1 – E você nasceu quando?
R – Eu nasci no dia dez de outubro de 1959.
P/1 – E como chamavam seus pais?
R – Meu pai se chamava Severino Ramos de Menezes e minha mãe era Otacília Valente de Menezes. Menezes por causa do meu pai, né?
P/1 – Você tem muitos irmãos?
R – Minha mãe teve dez filhos, mas criou só seis.
P/1 – Por que quatro morreram?
R – Quatro morreram ainda bebê.
P/1 – E como é que era lá no seringal? Conta para mim.
R – Ai, gente!
Era assim, sei lá, uma vida muito simples, uma vida muito pobre, assim, mas era assim muito bom, sabe? Muito bom! A gente aquela época era... Acho que a gente era feliz e não sabia. A gente morou em vários seringais, em várias colocações, porque teve aquela época que a seringa era o forte mesmo da coleta, do leite, da borracha, pra fabricar as borrachas. Aí chegava certo tempo que meio que esgotavam, as árvores ficava meio que esgotadas. Aí geralmente as pessoas, os donos de casa, os pais de família trocavam de colocação, né? Às vezes iam pra outro seringal de outro dono, às vezes no mesmo seringal, mas trocavam de colocação. E era essa a vida da gente, além da seringa meu pai sempre plantou feijão, arroz, essas coisas... Minha mãe sempre teve canteiro de verdura, cebola, coentro, chicória, essas coisas...
P/1 – Ela plantava o que? Cebola...?
R – Cebola, coentro, chicória, couve... Porque nessa época lá pra gente não existia essa coisa de alface, almeirão, de repolho. Essas coisas não existiam nada, naquela época.
P/1 – E o que é que vocês comiam?
R – Ah, no seringal a gente comia muita caça, peixe. Porque a minha mãe amava pescar. Ela...
P/1 Era sua mãe que pescava?
R – A minha amava pescar. A minha mãe era filha de cearense, mas era naturalizada amazonense. E minha mãe não ficava sem pescar e nem sem comer peixe, e acho que herdei isso dela. Até hoje eu gosto disso aí.
P/1 – Você aprendeu a pescar com a sua mãe?
R – Ah, sim, com certeza, com minha mãe!
P/1 – Como é que ela pescava? O que você lembra?
R – Ah, naquele tempo era meio rústico. Porque a gente morava no seringal, não tinha muito acesso a nada, aí era uma linha... Era um barbante, as linhas pra pescar era um barbante.
P/1 – E vocês iam pela beira do rio ou vocês saiam no barquinho?
R – Não! Não tinha barquinho não, a gente andava pelos igarapés. Porque a gente nessa época, a gente morava. Na época que eu era pequena, a gente morava em seringais, ficava depois do Acre. Ficava dentro do território boliviano. Moramos muito tempo dentro do território boliviano sim! Então a gente ia pelo mato pescar nos igarapés. Moramos em algumas colocações assim que tinham lagos, né? Às margens do Rio Abunã tinha lagos e minha mãe gostava muito de ir pros lagos pescar...
P/1 – E a casa onde vocês moravam como é que era?
R – Ah, era assim: as casas nos seringais eram construídas de patiúba...
P/1 – O que é que é patiúba?
R – Patiúba é uma árvore que dá no mato. O açaizeiro, o pé de açaí. Ele dá uma patiúba muito boa. Meu pai usava... Meu pai não, todo aquele povo usava pra fazer o assoalho. Assim, eles tiravam, cortavam certo tamanho, batiam e abria ele. Abria ele e faziam os assoalhos, usava pra fazer as paredes, dividir os quartos, tudo...
P/1 – Com essa madeira?
R – É, é uma palmeira. É a palmeira do açaí. Mas aí tem a patiúba que pra gente tem... Chamavam a patiubinha que é uma menor e o patiubão que é uma enorme, mas é tudo da mesma família entendeu? A diferença do açaí é que o açaí você come e a patiúba você não come.
P/1 – E como é que era a casa, tinha quartos...?
R – Ah, sim meu pai sempre gostou de fazer os quartos e tudo divididinho. A sala de receber as pessoas, a cozinha... Meu pai fazia tudo direitinho. Tinha quarto tudo dividido, as madeiras eram rústicas, madeiras roliças tiradas no mato, mas tudo bem feitinho. A cobertura era feita de palha.
P/1 – E a casa era alta?
R – Ah, dependia... Minha mãe não gostava que fizesse muito alta as casas. Ela gostava que fizesse o assoalho todo baixinho. Às vezes a gente chegava e sentava na beira do assoalho.
P/1 – Mas em geral faz os assoalhos altos por quê?
R – Não, geralmente os ribeirinhos usam as palafitas, né? Fazem as palafitas, que é aquelas casas de assoalhos altos por conta das enchentes.
P/1 – Não é por causa de caça não, de cobra...?
R – Não, não é por causa de caça não, é por conta das enchentes. As casas altas são usadas mais pelos ribeirinhos. Prá gente que morava no seringal não tinha isso não de casa alta, casa baixa não.
P/1 – Agora conta pra mim: vocês tinham essa casa, vocês comiam peixe...?
R – Peixe, carne de caça. Meu pai caçava muito. E do barracão, que era chamado assim. O barracão, digamos assim, que era onde ficava a casa do gerente do seringal, do patrão, e ali tinha uma espécie de supermercado hoje. Naquela época chamava o barracão, aí dali a gente comprava o que a gente não podia produzir tipo o café. Muitas vezes a gente produzia, mas o forte mesmo a gente comprava. O açúcar...
P/1 _ O arroz...?
R – Arroz geralmente a gente produzia. A farinha, o arroz, o feijão... Quando a gente chegava de novo numa colocação, aí a gente comprava no barracão, tudo isso aí. Mas aí com o tempo, meu pai gostava muito de plantar. Aí com o tempo a gente sempre tinha. Como chamava assim “da lavra”, “da lavra” é quando você tinha do seu plantio. Você falava: “Eu tenho 'da lavra'”.
Que seria o feijão, a farinha, o arroz, alguns casos café, mas era bem difícil... Tinha também... Meu pai gostava muito de plantar cana, minha mãe fazia mel, fazia rapadura...
P/1 – Ah, então era farta a comida?
R – Era farta a comida sim. Às vezes quando a gente mudava de uma colocação pra outra, às vezes a gente passava meio apertado, porque às vezes era longe e aí não tinha como transportar todas aquelas mercadorias, aquelas coisas pra lá. Aí às vezes a gente passava assim um pouquinho apertado, às vezes as galinhas ficavam. A gente era obrigada a vender por ser longe pra transportar.
P/1 – Vocês mudavam muito de colocação?
R – Nós não mudávamos muito, muito assim não. Meu pai mudava só assim, geralmente no final de cada fabrico. Que falava assim: o fabrico, né? O fabrico
era aquela fase que o leite dava com abundância, a extração do leite que tira das seringueiras, né? Aí era abundante, no fabrico, aí às vezes quando tava no final do fabrico mudava de colocação. E quando era uma colocação que era farta de leite, que tinha muitas estrada, que chamavam de estradas de seringa, né? Aí meu pai não mudava, a gente ficava por muito tempo numa colocação.
P/1 – Quanto tempo, mais ou menos, vocês ficavam em uma colocação?
R – Ah, a gente ficava dois anos, três anos, até mais numa colocação. A gente só mudava quando era fraco, quando o leite enfraquecia...
P/1 – Agora o seu pai não era dono da seringa? O seu pai era o seringueiro?
R – Não, meu pai era seringueiro.
P/1 – Como é que ganha o dinheiro, ele vendia pro dono, ele ganhava por dia?
R – Não, se fazia borracha e entregava pro patrão. Pro dono do seringal, pro dono da colocação. Aí pegava assim: eles pesavam aquela borracha e eles pagavam certa quantidade – que era pouco, não era muito. Eles – como é que eu digo assim? Eles exploravam muito os seringueiros. Os patrões geralmente exploravam muito os seringueiros. Aí eles pesavam aquilo ali, descontavam o que a gente comprava né? Às vezes tinha favo que você tirava saldo e às vezes tinha favo que você não tirava, dependendo de como tinha sido a produção. Se a produção tivesse sido grande e boa, você tirava saldo. Às vezes a produção tinha sido fraca e também porque as coisas chegavam num preço muito alto pra gente.
P/1 – Quer dizer, comprar um açúcar no barracão era caro?
R – Geralmente era, e meu pai era assim: meu pai gostava de comprar de muito, muita coisa, entendeu? Meu pai não gostava de comprar assim um pouquinho de cada coisa. Meu pai gostava de comprar muita coisa. Charque, a gente comia muito charque também. Eu costumo dizer assim, hoje o charque é comida de gente rica, porque é muito caro o charque, né? E de primeiro não era muito caro, era barato.
P/1 – Então vocês comiam muito arroz, feijão e charque também?
R – É e carne de caça, enlatados, esse negócio de conserva, sardinha, essas coisas, geralmente meu pai comprava também.
P/1 – Agora no café da manhã comia o que?
R – Ah, geralmente a gente comia resto de comida: carne frita com farofa de carne frita, farofa de ovos, cuscuz. Minha mãe gostava muito de fazer cuscuz, macaxeira. De manhã geralmente minha mãe cozinhava uma macaxeira pra gente comer, com ovos ou com carne, com leite de castanha. A gente tirava à castanha. Minha mãe quebrava e tirava o leite, ralava e a gente comia muito isso, né? O cuscuz com leite de castanha, a macaxeira com leite de castanha, o mingau de massa puba, de mandioca...
P/1 – Como é que é isso?
R – Pega a mandioca, a macaxeira no caso, bota de molho, aí ela amolece na água, aí você tira aquela massa tanto pra fazer farinha como pra fazer mingau, como pra fazer bolo, o que você quiser...
P/1 – E nessa época, Iraildes, você ia pra escola?
R – Não, não, não! A gente ia pra seringa, pro mato. Caçar, ajudar meu pai a caçar, buscar caça. Ajudar meu pai a colher às vezes. Meu irmão tinha muito medo de ir pro mato sozinho, e quando a gente cresceu, eu e essa outra minha irmã, geralmente a gente acompanhava ele pra ir pro mato pra ajudar a colher. Colher que falava assim: ia de manhã com uma faca, não sei se você já conhece. Chamava faca de seringa. É uma lâmina na ponta de uma madeira. Um cabo de madeira, tipo um cabo de martelo e na frente embutia, conseguia embutir aquela lâmina com a pontinha curvada assim. E aquilo ali servia pra cortar a árvore assim, aquela curvinha servia pra riscar a árvore assim.
P/1 – Aí você risca a árvore?
R – Risca. Aqui, quem vai pro poção, para um banho que tem aqui, até hoje ainda tem algumas árvores riscadas. Chamava cortar a seringa. Aí ia com aquela faca, cortava várias e várias árvores. Embutia uma tigela, chamava tigela, era uma caneca assim feita de lata, lata mesmo. Aí embutia ali e ia embora. Aí cortava aquela estrada, chamava estrada, né? Cortava toda aquela estrada. Várias e várias árvores.
Às vezes vinha em casa comer, e às vezes não vinha em casa. Meu pai geralmente, a estrada dele chamava “estrada de boca”, que a gente ia deixar lá de onde ele terminava de cortar a comida dele.
P/1 – Ah, vocês já levavam...?
R – Levava a comida do meu pai. Às vezes uma ia deixar a comida do meu pai, e
Às vezes meu pai já saía de manhã e já levava uma lata de farofa.
P/1 – E ele comia numa lata de farofa?
R – É, levava uma lata com farofa e comia lá no mato com comida. Aí a gente ia ajudar meu irmão a colher, aí quando dava de tarde, de meio-dia, às vezes mais cedo, a gente já saía pra colher. Ele ia por aqui cortando de manhã cedo, digamos, e ia embora. Aí dava aquele rodo todinho e vinha sair aqui pertinho de novo. Vinha em casa e comia.
A gente já pegava os baldes, os sacos de encauchado, que era encauchado com seringa mesmo, com leite de seringa mesmo. Pegava o tecido, fazia o saco e encauchava, passava aquele leite, botava pra secar, ele ficava forte mesmo, porque não vazava nada.
P/1 – E vocês saiam com aquele balde?
R – Com aquele balde e o saco, aí ia colhendo no balde, quando enchia o balde a gente despejava no saco e atava a boca dele com uma liga, tipo esse elástico que faz estilingue pras crianças caçarem. Só que a gente também produzia isso aí. Pegava o cano de taquara, que é uma espécie de taboca que tem no mato, que dá cumprido. Aí botava e enchia de leite, botava pra coalhar, depois tirava dali e botava pra secar. Aí ficava aquela liga forte pra amarrar a boca do saco.
P/1 – E isso você tinha quantos anos?
R – Ah, eu acho que com seis anos, cinco anos, seis anos eu já ia ajudar meu irmão...
P/1 – Ah, é?
R – Às vezes ia mais por folia...
P/1 – E aí enquanto vocês estavam fazendo a seringa vocês brincavam de que?
R – Ah, lá não dava tempo de brincar não. Porque era colher e chegar cedo e já cansado daquela ida e daquela vinda, pra defumar o leite pra fazer a borracha...
P/1 – Vocês tinham que defumar no mesmo dia?
R – Defumar no mesmo dia porque se não ele azedava e perdia o leite e não prestava.
P/1 – Ah, então quer dizer que a borracha tem que defumar no mesmo dia?
R – É. Naquela época era. Daí porque se você não defumasse no mesmo dia, aí ele coalhava e virava que a gente chamava de sernambi, que tinha o preço diferenciado da borracha.
P/1 – Vale menos?
R – Menos, menos.
P/1 – E serve pra que esse sernambi?
R – Olha, servia, o pessoal lavava e ia embora com tudo aquilo ali, pra fazer pneu, pra fazer uma série de coisas...
P/1 – E quem que defumava?
As crianças, seu pai e sua mãe?
R – Não. Geralmente era meu pai e meu irmão que defumava a gente não.
Aí a gente às vezes ajudava só a carregar o cavaco. As minhas irmãs maiores cortavam o cavaco, derrubavam a árvore, aí iam cortando assim e tirando os pedaços que eram pra defumar. Aí fazia: cavava uma fossa, numa das... Aqui era fossa, né? Daí quando chegava à terra firme, aí cavava um buraco varando aqui por baixo. Arrombava aqui e aqui em cima fazia a... Como é o nome, meu Deus, agora esqueci... A fornalha! Toda armadinha, armava com vara, cortava as varas no mato, armava todinho e ia embarreando. Embarreando, embarreando... Aí fazia a fornalha. Quando era para defumar, aí acendia o forno ali embaixo, fazia tipo uma fogueirinha naquela abertura, naquele buraco. Quando tava bem aceso, aí começava a jogar os cavacos verdes aqui por cima que aí formava aquele fumacê. Aí servia pra ir defumando o leite. Pegava a borracha, botava aqui que tinha umas bacias enormes – chamava bacia da rubi. Aí pegava aqui com uma cuia, uma caneca, molhava aquela borracha, aí ia virando ela e ficava rodando na fumaça. Rodando até endurecer aquele leite. Voltava pra cá de novo, fazia o mesmo procedimento... Até defumar toda aquela bacia de leite. Aí fazia aquelas borrachas enormes assim.
P/1 – Isso foi até que idade da sua vida?
R – Ah, isso aí eu acredito que até mais ou menos uns onze anos.
P/1 – Você disse que pagavam pouco?
R – Pagavam muito pouco. A gente não via dinheiro não. Às vezes meu pai pegava assim: quando meu pai pegava o dinheiro, aí meu pai vinha pra Rio Branco, às vezes não chegava até Rio Branco, chegava às margens que era um lugar mais evoluído.
Aí meu pai comprava tecido, sandálias, essas coisas.
P/1 – Pra vocês se vestirem?
Como ele era? Ele era bravo, como é que era seu pai?
R – Meu pai era um doce de pessoa. Meu pai era filho de índio. Meu pai, o pai dele era rio grandense.
A mãe dele era índia. Índia, índia pega no mato...
P/1 – No Acre mesmo ou no Rio Grande?
R – No Acre. Porque os patrões invadiram aquelas áreas pra fazerem os seus seringais e exterminavam os índios, mandavam matar os índios, porque os índios também matavam o povo que chegava né? Que começava a desbravar as terras, as matas, os índios matavam mesmo. Tinha matança mesmo de índio com branco, de branco com índio, aí os patrões, geralmente eles traziam muita gente, assim... Bem decidido a vir pra matar, pra exterminar os índios.
P/1 – Eles traziam?
R – Traziam e mandavam exterminar, atacar as aldeias, matar mesmo. Morria muita gente.
Muito branco, mas morria muito índio exterminado.
P/1 – Ali onde você morava, moravam índios perto?
R – Não. Quando eu nasci, quando eu me entendi já não tinha mais índio. Porque já eram seringais antigos. Mas aí quando meu avô veio para o Acre do Rio Grande, ele foi trabalhar com certo patrão. Ele era casado com outra pessoa, com outra senhora. Aí era meu avô que liderava as idas lá e busca dos índios...
P/1 ¬_ Ah, seu avô era caçador de índios?
R – Era.
Aí meu avô ia...
P/1 – Ele ganhava dinheiro?
R – Ganhava pra isso. Porque aí tinha aqueles que eram decididos mesmo a ir, que eram pagos exatamente pra fazer isso, aí meu avô foi. E numa dessas idas disse que exterminaram uma aldeia, mataram muita, muita, muita gente, muito índio mesmo. Aí quando estavam voltando, acharam uma índia escondida nos negócios de igarapés, numas raízes de igarapé, embaixo de uma ponte. Aí: “Mata? Não mata? Mata? Não mata?”. Meu avô falou: “Não, vamos levar ela, a gente entrega ela pro patrão. Se ele quiser mandar matar, mata lá”. Aí pegaram a índia e trouxeram. Calcularam que na época ela tinha uns doze anos, era uma mocinha. Aí chegaram e entregaram pro patrão. Aí a mulher do patrão a botou pra fazer as coisas, começaram a ensinar pra ajudar em casa, foram ensinando, ensinando... E ela domou-se. Aí quando foi, acredito que uns dois, três anos depois, a esposa do meu avô faleceu e como meu avô era homem de confiança do patrão, o patrão naquele tempo não casava, dava, né? Aí o patrão deu a índia pra ser mulher do meu avô. Aí desse casamento com a índia, no caso a minha vó, nasceu um irmão, acho, e meu pai, que era o mais novinho. Aí a índia morreu de parto do meu pai.
P/1 – Então seu pai não conviveu com a mãe?
R – Não, não conviveu, não. O que ele tinha era só o sangue de índio.
P/1 – Você lembra assim a feição dele, era de índio?
R – Ah, lembro... Não. Ele era caboclo, assim, não muito caboclo, ele tinha cabelinho ralo, assim como eu, bem ralo.
P/1 – Não era liso como de índio?
R – Era assim um lisinho leve, não era liso escorridão não, aquele de índio. Era assim um liso. Não era bem como o meu, era mais liso que o meu um pouquinho, porque o meu se crescer um pouquinho ele fica meio encaracolado. E era um moreno bem vermelho, a cor de índio mesmo. Mas era maravilhoso meu pai.
Ah, ele era um doce de pessoa. Ele brincava com a gente... O meu pai era assim: a gente ia pra roça, e quando a gente vinha, a gente vinha brincando com ele. A gente se escondia pra assombrar ele, ele se escondia pra assombrar a gente. Ele contava muitas histórias pra nós que ele inventava...
P/1 – Tipo o quê?
R – Ele falava assim, quando a gente era bem pequena. Ele dizia que ia pro mato caçar e às vezes ele demorava. Aí chegava e ele não matava nada, aí a gente falava: “Pai, o que é que o senhor trouxe? O que é que o senhor matou?”. “Ah, eu não fui caçar não! Eu estava na casa da minha ex-namorada, das fadas, eu tenho umas fadas que eu namoro com elas”.
A gente acreditava. Aí certa vez chegou um vizinho na nossa casa que veio ver uns porcos. Meu pai criava porco.
Aí ele chegou à nossa casa e o meu pai tinha saído cedo pro mato e não tinha chegado ainda, aí quando chegou falou assim pra minha mãe – minha mãe o nome dela era Otacília, a gente chamava só Maria – aí disse assim: “Dona Maria, cadê o Seu Severino?”. Aí a mamãe falou: “Ah, ele saiu, ele foi caçar, ele saiu cedo pra caçar”. A mãe deu atenção um pouquinho pro senhor lá, aí foi fazer um café pro senhor, mexeu lá na cozinha. Nós ficamos lá brincando, eu e essa minha irmã que mora comigo, eu acho que as outras meninas estavam pra roça, as minhas irmãs mais velhas. Nós estávamos lá brincando e o homem perguntou assim pra nós: “Ei, quando o pai de vocês sai pro mato, ele demora muito pra voltar?”. Acho que o homem tinha pressa.
Aí nós falamos: “Não, às vezes ele volta logo, mas quando ele vai pra casa das fadas, das namoradas dele, ele demora.”. Aí o homem ficou assim sem jeito, mas a mamãe ouviu nós falarmos aquilo pro homem e a mamãe também ficou sem jeito. A mamãe ficou morrendo de vergonha e falou: “Esse homem vai dizer como é que essas meninas mentem. Esse pessoal mente”. Aí quando o papai chegou, a mamãe tava muito brava com ele, falou: “como é que você fica contando mentira pras suas filhas? O vizinho fulano de tal e deu lá o nome do homem veio aqui e as meninas ficaram dizendo pra ele que você namorava as fadas. Não faça mais isso que o homem vai achar que nós somos mentirosos também, porque você fica mentindo e as meninas falaram isso pro homem”. Aí então ele inventava essas histórias pra nós. Ele contava pra nós que tinha ouvido o urubu conversando com a garça, que tinha ouvido o jacaré falando alguma coisa, tudo isso ele inventava pra gente, né? Era muito amigo da gente meu pai.
Muito, muito, muito, mesmo. Papai fazia roça enorme, minha mãe separava uma parte assim pra ela plantar horta, hortaliças, né? Na roça mesmo. Melancia, jerimum, essas coisas, cebola, couve, tudo, pimenta, tudo ela plantava na roça. E meu pai nos ajudava a roubar melancia da minha mãe. Quando as melancias começavam a ficar assim, aí meu pai pegava e ajudava. Assim, ele encobria, nós pegávamos melancia verde, nós comíamos na beira do igarapé e nós jogávamos casca. Ele via e não dizia nada para minha mãe, ele não contava. Minha mãe dizia assim: “Mas tinham tantas melancias aqui.”. Aí ele desconversava e ele não dizia, ele não nos entregava, de jeito nenhum.
Minha mãe era mais brava, minha mãe era mais...
P/1 – Como é que ela era?
R – Ah, minha mãe era... Assim, eu tenho uma irmã que fala que minha mãe era mal humorada.
Não.
Eu acho, porque minha mãe ela foi criada...
P/1 – Ela era da onde?
R – Minha mãe era amazonense, mas era filha de cearense. Ela chegou ali em Manaus pequenininha, bebezinho e foi naturalizada amazonense. Foi feito documento só ali, aí ela era amazonense. Porque minha mãe foi criada... Minha mãe teve uma vida boa. Ela foi criada por pessoas que deram uma vida boa.
Uma vida bem diferenciada da que ela foi viver depois que casou com meu pai. Meu avô legítimo, meu avô José Valente, ele teve posses, teve bens, mas aí ele gastou. Ele jogava, era viciado em jogar meu avô e ele acabou com tudo. Minha mãe ainda era meio pequena, né? Aí ele acabou com tudo, adoeceu e morreu. Minha vó, mãe da minha mãe, minha vó Francisca Valente, ela era branquinha, branquinha de olho azul. Meu avô era preto, meu avô Zé Valente era preto. Minha vó era branquinha. Minha avó eu conheci, meu avô não conheci. Ela era branquinha, branquinha de olho azul. Ela teve filhos brancos. E minha mãe era a única preta da família.
P/1 – Quer dizer, na mistura sua mãe foi a única que...
R – É.
Minha mãe tinha olhos meio mel, bem claro e tinha cabelo xexeu. Aí quando meu avô morreu. Os padrinhos da minha mãe também tinham um pouquinho de posse, um pouquinho de dinheiro. Aí como minha vó não gostava da minha mãe. Não gostava da minha mãe. Eu digo que ela não gostava porque ela deu minha mãe. Ela deu minha mãe pros padrinhos dela. Porque ela dizia assim: “Negros miseráveis”. Ela nos chamava quando nós éramos pequenos. A minha vó nos chamava: “Esses negros miseráveis”. A gente ouvia. Ela não falava na frente da minha mãe, nem na frente do meu pai, nem nada. Mas a gente ouvia: eu, essa minha irmã que mora comigo, a minha outra irmã mais velha que mora em Porto Velho. Somos as mais pretas, as mais escuras. E essa pequena, mas nessa época essa pequena não era nascida – essa pequena não, essa mais nova que mora em Guajará. Era eu, essa minha irmã e a outra. Quando a gente fazia qualquer coisa, ela dizia: “Essas negras miseráveis”. A gente a ouvia falar. Aí ela pegou e deu minha mãe pros padrinhos.
P/1 – E aí, aí a sua mãe...?
R – Aí eles criaram a minha mãe também numa vida mais ou menos.
P/1 – Boa, de posses...?
R – É de posses sim, vestia bem, calçava bem, estudou. Minha mãe estudou, minha mãe era letrada. Meu pai era analfabeto. Minha mãe que ensinou meu pai a assinar o nome dele.
P/1 – E aí como é que ela veio conhecer seu pai?
R – Ah, porque aí tudo era seringal, né? Aquilo tudo...
P/1 – Isso também?
R _ Tudo isso era seringal...
P/1 – A sua mãe nós estamos falando de que lugar, onde ela estava?
R – No Acre também. Porque foi aquela coisa que os nordestinos iam todo mundo embora e aqueles que se conheciam, trabalhavam, conseguiam um dinheirinho. E tinham aqueles que viviam a vida inteira naquela vidinha medíocre ali no meio do mato, né? Não crescia, não conseguia crescer. Tinham aqueles que às vezes subiam na vida porque caiam nas graças do patrão, daí ficavam com uma vidinha melhor, ganhava um pouquinho a mais e ia economizando e subindo na vida...
P/1 – Mas me conta, quer dizer que sua mãe cresceu e os padrinhos moravam no seringal?
R – Moravam. Meu avô tinha seringal, tinha criações. O outro avô de criação, né? Os padrinhos dela. Porque do meu avô legítimo ele acabou tudo. Bebeu, curtiu a vida e acabou tudo, deixou a minha vó à zero.
P/1 – E essa sua vó ficou com os outros filhos, branquinhos?
R – Ficou com os outros filhos. Aí deu minha mãe e minha mãe foi criada pelos padrinhos.
P/1 – E você conheceu bem sua vó?
R – Conheci. Depois de grande conheci, conversei e ela já era mais humilde, um pouquinho. Depois de grande, já mocinha feita. Aí minha mãe foi criada pelo meu avô Januário e minha avó Francisca Januário, não era minha vó Francisca Valente.
P/1 – E ela os chamava de pai e mãe?
R – Chamava “meu padrinho”. Ela foi criada por eles e ela os chamava de “padrinho”. Mas ela foi criada numa vida boa. Aí meu pai como o pai dele era gente de dentro do patrão. Meu pai foi criado assim. Ele só não estudou, mas ele teve uma vida decente. Aí se conheceram...
P/1 _ No seringal?
R – No seringal. Naquele tempo não era a moça, não era o rapaz que arranjava seu próprio casamento.
P/1 – Não?
R – Não. Os pais eram quem arrumavam: “Você vai casar com fulano de tal. E essa a impressão que eu tenho, porque quando a minha mãe morreu ela era muito fechada. Minha mãe não conversava muito. Meu pai que conversava muito, muito, muito com a gente. Minha mãe era mais fechada. Essas histórias que a gente conhece. Alguma vez ela contava alguma coisa, mas eram mais nossos tios que contavam. Nossos tios já da segunda família da minha mãe.
P/1 – Dos padrinhos?
R – Dos padrinhos, meus tios, irmãos de criação dela.
Eu acho que minha mãe deve ter sido isso. Talvez meu avô Januário. Talvez por meu pai ser dali de dentro, das graças do patrão... Aí minha mãe casou com ele. Mas hoje eu penso assim. Eu e essa minha irmã que mora em Guajará, a gente pensa assim. Analisando, eu acho que minha mãe não gostava do meu pai, de gostar, de gostar mesmo. Porque na cara dela, ela parecia, assim, que não era feliz minha mãe. Minha mãe era difícil de sorrir... Minha mãe gostava muito de ler, minha mãe ela ficava, assim, ela lia tudo, tudo, tudo. Ela lia a bíblia, ela lia romance, ela lia tudo.
Minhas tias mandavam muitos livros pra ela ler.
P/1 – E ela ficava lá...?
R – E ela ficava assim... Quando ela não saía pra pescar, ela ficava assim pescando... E tal. Ela estava lendo, ela tava lá no canto dela. Dificilmente ela sentava pra sorrir, pra contar alguma coisa, pra dar risada. Era difícil ela fazer isso. Ela fazia isso, geralmente com quem ela mais conversava. Eu tenho um tio, ele morreu deve ter uns três anos, a gente chamava de Tio nego. Era a única pessoa com quem ela mais conversava. Era com esse meu tio, eles ficavam horas esquecidos conversando.
P/1 – Esse era um tio de criação?
R – De criação. De criação..
P/1 – Então ela não era muito carinhosa com vocês?
R – Ela era muito atenciosa conosco. Ela queria saber como é que a gente estava. Levantou-se bem, se acordou bem. Comida na hora certa, ela sempre fez isso. Lavar, cuidar da gente, ensinar a tomar banho, ensinar a fazer as coisas com atenção. Tudo isso. Mas ela não era igual meu pai. Meu pai era mais atencioso, carinhoso, companheiro, mais amigo, mais tudo. Mais brincalhão com a gente.
P/1 – E eles se davam bem ou eles brigavam...?
R – Não, não brigavam. O meu pai tinha lundu. É, assim, uma raivinha que eu não sei se vocês já ouviram falar quem tem lundu? Fica assim emburradinho, não quer falar com ninguém, quer ficar na dele, quieto. A gente falava assim, né? Lundu. Meu pai tinha, meu pai ficava de três dias sem falar com ninguém.
P/1 – Quando ficava aborrecido com alguma coisa...?
R – Quando ficava aborrecido. Ele se levantava cedo, ele ia embora. Ele comia, ele ia lá pegava a comida dele, comia e ia embora. Mas fora desse piti que ele tinha, ele era uma criatura maravilhosa. Maravilhosa. Minha mãe era uma pessoa muito bacana, honesta. Minha mãe era honesta, honesta, honesta! Se tiver uma pessoa honesta era minha mãe. Minha mãe era incapaz, assim, se ela chegasse e lhe dissesse que essa árvore tinha saído do canto dela andando e falando, você podia acreditar que era verdade. Minha mãe foi, eu acho, a pessoa mais honesta que eu conheci na vida foi minha mãe.
P/1 – Mas ela não era...
R – Não, ela não era de se abrir, de falar, de conversar não. Ela era de ser responsável, sabe? Aquilo que era de responsabilidade dela, ela dava conta tudo direitinho, na hora certa, do jeito certo. Mas ela era muito fechada, minha mãe. Eu falo hoje com minha irmã, a gente conversa sobre isso...
P/1 – Você ficou nesses seringais até que idade?
R – Eu saí... Quando eu saí dos seringais mesmo, definitivamente, eu tinha doze anos.
P/1 – Por que é que vocês saíram do seringal?
R – Ah, porque meu pai já estava velho. E a seringa já não tava tendo mais tanto valor. Aí meu pai já estava velho, minha mãe adoeceu. Minha mãe começou a ter crises. Ela tinha uma dor no estômago, aí todo mundo falava que era uma mãe no corpo, não sei o que. E na verdade minha mãe tinha gastrite. Mas aí como a gente morava lá naquele interior, não tinha médico, não tinha nada. Aí nunca fez um tratamento, tomava um remedinho caseiro, um chazinho e tal. Aí minha irmã mais velha tinha casado e tinha vindo embora. Meu cunhado que na época era comboieiro, que era quem mexia com tropa de animal. Porque as mercadorias pra levar pras colocações iam a lombo de animal. As mudanças, tudo era em lombo de animal. Quando alguém queria se mudar de um lugar pra outro, era em lombo de animais, de burros. Aí meu cunhado saiu mais pra cidade, mais pras fazendas. Arrumou emprego por ali, de vaqueiro, disso e daquilo. Aí meu pai achou melhor. Se meu pai viesse, todo mundo achou... E a gente precisava estudar também...
P/1 – Eles achavam que vocês precisavam estudar?
R – É. Aí nós viemos embora. Meu pai veio trabalhar, passou a trabalhar em fazendas. Quando nós saímos do seringal, acho que nós ficamos um ano, não foi dois anos e minha mãe morreu.
P/1 – Numa fazenda?
R – Ela morreu em Rio Branco, porque aí já tinha mais, a gente já tinha mais recurso. Já era perto, já tinha carro, já sabia o que era carro. Já via carro passando, já morava na beira das estradas, já andava de ônibus. Aí minha mãe teve uma crise muito forte, foi pra Rio Branco e a gente tem uns tios que são metidos a político, outros que herdaram alguma coisa, que é da primeira família da minha mãe. São da família Valente, que é o irmão do meu avô. Irmão do meu avô que conseguiu subir na vida. E esses filhos tiveram alguma coisa e aí deram muito apoio pra gente.
Certa vez minha mãe foi pra cidade. Rio Branco ainda era muito pequenininho, uma cidade muito pequenininha, aí ela buscou. Como ela era muito inteligente e tal, aí ela buscou alguma coisa da família, aí encontramos parentes, né? Esses primos...
P/1 – Que ela não tinha contato, né?
R – É. Porque antes não tinha contato não, onde a gente morava não tinha contato nenhum não. Aí eles deram muito apoio pra gente, aí arrumaram médico, arrumaram tudo pra ela, mas aí já era tarde demais.
P/1 – O que é que ela tinha?
R – Ela tinha gastrite e acredito que tinha virado câncer. Na época a gente não sabia né? “Não, é uma úlcera tal, é uma úlcera tal que se agravou e que não sei o que...”. Mas eu acredito que era câncer sim. Era câncer, porque ela viveu... Ela ficou muito tempo sentindo, tendo essas crises, aí o pessoal no seringal dizia que era Mãe do Corpo, uma dor não sei das quantas...
P/1 – Mãe do Corpo? O que é Mãe do Corpo?
R – Ah, eles falam, né? Tem aquelas lendas do pessoal antigo, que tem umas dores que a mulher sente e não sei que lá. E na verdade eu acredito que já era isso. Essa gastrite, que eu acho que se agravava tanto assim, eu acho que virou câncer. Não tinha tratamento, não tinha acompanhamento, não tinha nada...
P/1 – Aí ela morreu?
R – Aí ela morreu e nós ficamos sós com meu pai.
P/1 – Ficou quem só com seu pai?
R – Ficamos... Depois que minha mãe morreu, meu irmão veio embora, meu irmão já trabalhava na cidade, Rio Branco. Aí meu irmão veio aqui pra Rondônia.
P/1 – Seu irmão tinha quantos anos?
R – Ah, meu irmão devia ter uns dezoito anos na época. Aí ficamos: eu; essa minha irmã aqui que mora comigo; outra que mora em Rio Branco, que é casada e tem a família dela e a minha mais nova, irmã mais nova que é essa que mora em Guajará-Mirim.
P/1 – Então são quatro mulheres?
R – Somos cinco mulheres e um homem. Aí a outra já era casada, né? Já tinha casa dela e vivia lá. Aí depois que minha mãe morreu. Na época que minha mãe morreu, meu pai ficou devendo trinta mil cruzeiros!
R – Por causa da doença?
P/1 – Por causa da doença da minha mãe.
R – E aí?
P/1 – Aí nós fomos trabalhar pra pagar. Meu pai foi trabalhar numa fazenda chamada São Sebastião. Nós fomos morar na casa da minha irmã casada. Aí meu pai empeleitava pastos, campos e nós íamos limpar mais ele. Facão brabo.
R – Sério? Vocês e suas irmãs?
P/1 – Sério. Eu e essa minha irmã. E a outra minha irmã, casada, essa que mora no Acre, essa era meio preguiçosa, essa adoecia toda semana pra não ir pro mato. Mas eu e essa daqui, nós íamos muito. E essa minha outra irmã mais velha que é a que mora em Porto Velho, que era casada.
R – E nessa época você tinha quantos anos?
R – Nessa época eu já tinha treze, quatorze anos, quase quinze anos.
P/1 – E essa sua irmã?
R – Ela é mais velha do que eu três anos.
P/1 – Então ela tinha dezoito?
R – É. Aí nós íamos pro mato, pastos e pastos. Aqueles pastos. Na fazenda faz aqueles pastos enormes pro gado, né? Mas aí vão brotando os matos, e chega uma época que tem que tirar todo aquele mato, aí nós íamos fazer isso. Aí nós trabalhamos muito tempo, muito tempo, muito tempo nessa vida!
P/1 – Com seu pai?
R – Com meu pai.
P/1 – Então nada de escola?
R – Não. Nós estudávamos e trabalhávamos. Nós estudávamos um período. Teve uma época que nós estudávamos um período e trabalhava outro, né? Mas aí a gente perdia muita aula, por conta de que a gente tinha que dar conta do serviço, né? E meu pai devendo e a gente tinha que ir trabalhar. E a gente comia muito mal nessa época. A gente comia só peixe seco com farinha e feijão. Aquele feijão horrível que a gente tinha que deixar ele de molho hoje à noite pra amanhã cozinhar. Aí nessa época a gente passou uma vida miserável.
P/1 – E quem que fazia os serviços? Quem cuidava da casa?
R – Nós mesmos. Na hora em que nós chegávamos do campo, nós pegávamos.
Uma ia lavar a roupa, outra ia cuidar da comida, a outra ia fazer outro serviço, era assim que a gente ficava. Essa época foi a pior época da nossa vida. Ruim, ruim. Passamos assim...
P/1 – E seu pai, como é que ele lidou com isso?
R – Ah, meu pai era sempre a mesma pessoa, era sempre aquele companheiro. Sempre dizendo pra gente que ia mudar, que se a gente tivesse paciência ia melhorar. Aí nós ficamos uns seis meses ou mais nessa vida. Uma vida miserável, miserável, miserável. Aí a gente sofria demais, demais. Trabalhava e a mão da gente era toda grossa de calo, toda grosseira, toda grosseira.
Eu mais essa minha irmã aqui a gente peleitava roças e roças pra desmanchar pra fazer farinha. Meu pai ia lá e fechava os negócios e a gente raspava a macaxeira, descascava macaxeira meses e meses, eu e ela. Quando a gente cansava de estar lá no pasto, a gente ia, tinha a roça, assim, que o pessoal vendia pro patrão pra fazer farinha. Pra vender pro pessoal e era eu e ela que descascávamos, dias e dias, semanas e semanas, a gente passava descascando macaxeira...
P/1 – Mas isso aí, vocês iam numa escola de manhã?
R – Não, nessa época... Tinha uma época que a gente não foi mais pra escola. Aí meu irmão veio de Rondônia, foi visitar a gente e quando chegou lá nos encontrou naquela situação. Aí meu irmão falou: “Não vou voltar pra Rondônia, vou ficar trabalhando mais o senhor e as meninas vão pra escola”. Porque meu irmão, essa minha irmã mais velha que mora em Porto Velho, e essa outra que mora no Acre, eles estudaram com minha mãe. Minha mãe que ensinou eles. Desde pequenininhos eles já aprenderam a ler e escrever. Hoje quase toda a minha família gosta de ler, quase todos meus irmãos são viciados em leitura. A gente gosta muito de ler, até hoje. Lê tudo, assim, sabe? Qualquer livro a gente gosta de ler. Aí meu irmão falou: “Vou trabalhar, pra ajudar o senhor a pagar essa conta, aí as meninas vão pra escola”. Aí foi quando a vida da gente começou a melhorar um pouquinho.
P/1 – Porque ele passou a ir pro campo?
R – Porque aí ele começou a ir trabalhar e a gente ia pra escola. Aí a gente trabalhava um período e ia pra escola. Aí ele já segurava a barra com meu pai. Aí quando já estava quase parando, já terminando de pagar...
P/1 – Mas aí, Iraildes, você entrou em que ano na escola, se você nunca tinha ido?
R – Eu comecei a estudar com doze anos, mais de doze anos. Mais de doze anos que eu entrei na escola. Só que eu já sabia escrever meu nome, ler alguma coisa, por conta que minha mãe ensinava. Entendeu? Minha mãe ensinava muito a gente. Aí pra aprender mesmo conta, essas coisas, aí já foi na escola. Dessa época a gente não trabalhou mais no pesado não. Aí a gente já começou a só estudar mesmo. Trabalhava em casa. Aí meu irmão pagou as contas tudo, conseguiu pagar as contas tudo. Aí a gente já ficou mocinha, crescemos, e meu pai botou a gente pra ajudar em Rio Branco. Eu e essa minha irmã, a gente ajudou um pouco. Aí voltamos, de novo, pra fazenda. Moramos uma época com minha irmã, aí fomos morar de novo com meu pai. Aí eu casei. Meu primeiro casamento.
P/1 – Ele era da onde?
R – Esse meu marido era lá do Acre mesmo. E minha irmã, essa minha irmã, ela também casou. Quando ela teve um filho dela, porque ela só tem um filho. Aí o marido dela era do Mato Grosso. Aí o marido dela foi atrás de serviço e nunca mais voltou.
P/1 – Largou ela com o filho?
R – É. Aí ela ficou largada com meu pai. Aí meu pai cuidou dela. Aí eu separei do meu primeiro casamento, que eu era novinha demais também quando me casei.
P/1 – Você casou com quantos anos no primeiro?
R – Ah, eu já tinha, eu já ia fazer dezessete anos.
P/1 – Novinha mesmo!
R – Mas aí fiquei dez meses e larguei. Aí vim com meu irmão aqui pra Rondônia, foi quando minha cunhada. Meu irmão depois que pagou todas as contas lá do meu pai, meu irmão voltou pra cá. Aí veio trabalhar numa empresa de ônibus aqui. Foi quando eu separei e a esposa dele tava pra ganhar neném. Aí eu vim pra cá, pra Rondônia.
P/1 – Aí foi a vez de você sair de lá e vir pra Rondônia?
R – Vim pra Rondônia e não voltei mais. Voltei só quando meu pai adoeceu.
Foi já pra ele morrer também. Eu ia visitar ele todos os meses, morando por aqui eu ia. No tempo da estrada de chão. A gente gastava doze dias daqui pro Acre. A gente gastava três, quatro dias daqui pra Porto Velho. Mesmo assim eu ia visitar meu pai. O máximo que eu ficava era dois meses sem ver meu pai.
P/1 – Sério que você levava doze dias pra chegar lá no Acre?
R – Ficava, ficavam doze dias. Minha filha mais velha eu ganhei lá no Acre. Engravidei dela aqui. Passei a gravidez todinha aqui, mas aí fui ganhar ela lá, na casa do meu pai. Quando eu vim com ela, eu fiquei 12 dias na estrada. Com ela bebê. Essa minha mais velha, que estava ontem aqui. Com ela bebezinha. Ela acostumou dormir em cima da mala, que quando nós chegamos aqui, ela não queria dormir no berço. Doze dias nós ficamos na estrada. Aí eu vim aqui pra Mutum nessa época. Assim que eu cheguei vim pra Porto Velho. Fiquei um pouco em Porto Velho, aí fui pra Ribeirão. É uma cidade... Uma cidade não. É um lugarzinho que tem aqui, para quem vai pra Guajará. Fiquei um tempo lá e vim pra cá.
P/1 – Com seu irmão?
R – Não. Vim pra cá... Em Porto Velho morava com meu irmão.
Foi na época que essa minha irmã mais velha separou do marido e veio pra cá. Quando eu vim, ela já estava aqui em Rondônia. Aí eu vim pra morar com meu irmão, e fiquei um tempo com meu irmão, aí fui visitar ela lá onde ela estava. Aí cheguei lá e tinha vaga pra trabalhar.
P/1 – Em que?
R – Em restaurante.
Era com uma boliviana, uma pessoa muito maravilhosa! Até hoje a gente é muito amiga. A minha filha mais velha tem nome de Leni em homenagem a ela, que ela foi uma pessoa muito importante na vida da gente, sabe? Assim que meio que ensinou a gente a viver a vida. Viver por aí assim...
P/1 – Por quê? O que é que ela te ensinou?
R – Porque ela ensinava a gente. Ela aconselhava, cuidava, entendeu? Ela dizia que não estava certo a gente fazer isso. Não estava certo a gente se envolver com pessoas erradas. Que aquilo ali não podia... Sabe? Ela foi uma pessoa muito importante assim na vida da gente. Muito, muito, muito importante mesmo!
P/1 – E o restaurante dela ficava onde?
R – Ficava em Ribeirão, como quem vai pra Guajará-Mirim. Uma ponte grande de ferro que tem. Igual essa que tem ali, pra cá.
Aí tem um pedral lindo assim!
P/1 – E quem usava o restaurante, qual era a clientela?
R – Ah, era passageiros de ônibus, caminhoneiros, pessoal. Restaurante de beira de estrada, né? Para de tudo, né?
Quando eu saí de lá eu vim pra cá, pra Mutum.
P/1 – Por quê?
R – Na época que a gente tava em Porto Velho, eu conheci uns catarinenses, um casal de catarinense: a Doraci e Seu Idalino. A gente fez muita amizade e eles tinham uma lanchonete na época. Eu era amiga da sobrinha da Doraci e a gente sempre ia pra lanchonete ajudar eles. Na época em que eu vivia com meu irmão em Porto Velho.
Quando fui pra Ribeirão fiquei pra lá. Quando eu fui pro Acre. Quando cheguei minha irmã tinha vindo pra cá. Aí com uns dias ela mandou uma carta pra mim dizendo que tava trabalhando com seu Idalino, aqui em Mutum, que ele tinha alugado a rodoviária daqui.
P/1 – E aqui era movimentado?
R – Não.
P/1 – De que ano nós estamos falando?
R – Na época em que eu vim pra cá? Em 1978. Aqui pra Mutum.
P/1 – E o que é que tava acontecendo aqui?
R – Não tava acontecendo nada. É porque tinha um ponto de ônibus aqui, e o dono do ponto lá do estabelecimento não queria mais tocar e arrendou pra esse pessoal, pra esses catarinenses, que já eram conhecidos meus. Aí eu vim trabalhar com eles.
Eles disseram que se eu quisesse vir trabalhar tinha vaga pra trabalhar. Aí eu vim trabalhar com eles.
P/1 – Aqui em Mutum?
R – Aqui em Mutum. Aí eu vim pra cá Mutum trabalhar com eles, quando cheguei aqui, conheci esse meu marido.
P/1 – Você já tinha se separado?
R – Não, esse meu marido aqui. Já tinha me separado do outro, do primeiro casamento. Aí começamos meio assim a namorar, aquela coisinha meio quieta.
Eu cheguei aqui em agosto, no dia três de agosto de 1978. Quando foi ali, mais ou menos, acredito que pelo dia dezoito ou dezenove de outubro foi descoberto o ouro do Madeira.
P/1 – Ah, quer dizer que Mutum naquela época tinha estrada de ferro também?
R – Não, tinha parado também fazia tempo.
P/1 – E estava tudo meio paradão?
R – Aí não tinha nada aqui, só tinha a estrada de chão que passava lá. Tinha essas duas ruelinhas aqui que tem até hoje. Aqui mudou pouco. Tinha até onde nós fomos ontem. Não, era o outro menino que estava comigo. Não tem os trilhos de ferro aqui? Até em frente daqueles trilhos de ferro era a rua e tinha casa. Até o cemitério, no caso, porque o cemitério já existia. Ali pra cima não tinha nada, nada, nada. Tinha esse campo já, aqui tudo era mata fechada. Ali tudo era mato, mato de mato mesmo. Não tinha nada. Aí foi quando foi descoberto o ouro do Madeira.
P/1 – E aí, o que aconteceu?
R – Ah, aí começou o reboliço, né? Aí começou a chegar gente de todo lado, gente de todo canto, gente vindo, gente indo...
P/1 – Como é que era o dia-a-dia de Mutum quando descobriram o ouro assim?
R – Ah, era bem badalado. Era muito badalado. Era a força do garimpo aqui. Era muito badalado. Era muita gente, muito carro, muito tudo.
P/1 – Mas era violento também?
R – Muito violento! Matavam muita gente.
P/1 – Quem que matava?
R – Daqui a um quilômetro pra cá, dali do Rubinho não segue uma estradinha? Ali tinha uma currutela. O que é a currutela? Tipo uma cidade. O pessoal fez uma cidade ali. Ali tinha casas noturnas e mais casas noturnas, ali tinha panificadora. Só não tinha banco, nem correio, o resto tinha tudo: supermercados...
P/1 – Tudo pros garimpeiros?
R – Tudo pros garimpeiros. Supermercado, panificadora, churrascaria, tudo que você pensasse tinha. Tudo, tudo, tudo. E muitas casas noturnas, muitas, muitas, muitas.
P/1 – Chegou muita mulher de fora?
R – Muito, muito, muito.
P/1 – Mas aí o dia-a-dia da cidade mudou?
R – Ixi, como mudou.
P/1 – Conta como?
R – Gente casava, gente separava, gente... Ixi! Gente espalhava dinheiro de qualquer forma... Gente. Era assim, desse jeito. Aqui, essa rua aqui era uma pista de avião. Tinha avião direto aí. Tinha peão que chegava e fretava avião sozinho pra ir pra Porto Velho. Não permitia que levasse ninguém, ele ia sozinho. Tinha muita coisa, assim. Deus me livre. Era um movimento muito grande.
P/1 – Por exemplo: pra você e pra sua família sobrou mais dinheiro, como é que foi?
R – Não, porque na época nós trabalhávamos de empregado, assalariados...
P/1 – E isso não mudou?
R – E isso não mudou a gente, a gente não tinha ambição...
P/1 – Não?
R – Não.
P/1 – Seu marido nessa época fazia o que?
R – Meu marido era empregado numa fazenda onde ele trabalhou dezenove anos.
P/1 – Também não mudou nada?
R – Não. Ele continuou trabalhando lá, e a gente era funcionário exatamente desse casal de catarinenses amigos da gente. E o garimpo se foi e nós ficamos. Porque hoje o garimpo não tem nada. Tem algumas pessoas que ainda trabalham no garimpo, mas não é mais aquela coisa que era antes não. Antes eram quilos e quilos de ouro. Você via quilos e quilos de ouro todo dia, toda hora. As pessoas transportando, as pessoas chegando... Quilos e quilos de ouro.
P/1 – A maior parte das pessoas que vieram, elas vinham de onde?
R – De toda parte. De toda a parte do país vinha gente. E até do exterior.
P/1 – Mas eram homens, mulheres, eram o que?
R – Vinham homens e mulheres. Vinham muitos homens pra trabalhar. E mulheres vinham mais porque a prostituição era muito grande. E muita gente vinha, muitas mulheres vinham pra se prostituir mesmo, né?! Dificilmente vinham mulheres pra trabalhar, elas vinham mais pra se prostituir.
P/1 – E elas ficavam morando onde?
R – Na currutela, onde tinha a currutela tinham várias casas noturnas, estou te falando!
P/1 – E elas já moravam lá mesmo?
R – Já moravam lá. Já vinham direto pra ali. Vinham muitos homens pra trabalhar, agora as mulheres vinham mais se prostituir. Era muito forte a prostituição aqui.
P/1 – A violência assim que mudou, mudou por quê? Por que é que ficou mais violento? O que é que acontecia?
R – Olha, acredito que... Tinha a questão do dinheiro farto, muito dinheiro. Muita bebedeira. Muita bebida. Muita mulher. Existiam as disputas. Existiam as disputas por mulher. Existiam as rixas por dinheiro. Cada um queria ter mais, queria ser, mandar mais, essas coisas assim. E existia também a mortandade dentro do próprio garimpo: invasões de território, de jazidas de ouro. Encontravam os filões de ouro, iam lá e matavam pra tirar aquele cidadão. Tinha balsa, porque começou com balsa, depois com o tempo começou a montarem as dragas, né? As dragas foram ali de 1981, 1982, quando começaram a montar as dragas, já final de 1981. Era só balsa. Aí abria aquela boca de serviço enorme e todo mundo ia lá pra dentro trabalhar. Aí uns matavam os outros que era pra sair dali, pra deixar só pra eles. Matava-se pra roubar, né? Cidadão saía com seu meio quilo, um quilo de ouro e os outros matavam pra roubar. E assim acontecia. Era muito violento. Muito, muito, mesmo. E hoje, está desse jeito, pacato.
P/1 – Começou a ficar pacato de novo quando?
R – Olha, o garimpo ele começou decair mais ou menos 1987. 1987 foi o último ano de currutela, que era essa cidadezinha que eles fundaram ali.
P/1 – Porque eles foram desocupando a currutela?
R – É, porque aí o pessoal foi indo embora. O ouro foi enfraquecendo, e as pessoas foram indo embora. Os comerciantes. Não dava mais pros comerciantes. Não tinha maiores lucros, aí eles começaram a ir embora. Aí as pessoas foram embora, foram indo, foram indo... Muitos garimpeiros, donos de draga, dono de coisas, foram pra outros lugares onde o ouro estava em alta também. Porque hoje você quase não ouve falar em garimpo novo, mas naquela época todo o mês quase surgia um garimpo novo em algum canto.
P/1 – E nessa época você já morava aqui nessa casa?
R – Não, eu comprei aqui em 1987.
P/1 – Você comprou essa casa mesmo?
R – Não, essa não. Era bem aqui essa casa, ainda tem aquela madeira lá que era um dos esteios dela.
P/1 – Você comprou com seu marido? Vocês já tinham filhos?
R – Já. Aí nós já estávamos juntos. Já tinha nossa filha. Já estava grande minha filha na época, quando a gente veio morar junto. Junto mesmo, de dividir o espaço da escova de dente, minha filha já era grande.
P/1 – Ela é filha dele?
R – Filha dele. Aí foi que a gente veio a morar junto. É tanto que eu tive minha filha com... Quando ela tinha doze anos, minha filha mais velha tinha doze anos que eu tive a minha segunda, que é essa negona ali.
P/1 – Você tem duas?
R – Eu tenho quatro filhos.
P/1 – Quatro? Você demorou doze anos pra ter de novo?
R – Doze anos, doze anos da Leni pra Jerusa. Aquela lá é Jerusa. Ela estuda em Guajará, ela vem só de final de semana pra casa. Aí seis anos depois tive o Pedro, meu Pedro ali.
P/1 – E depois?
R – Aí três anos depois tive minha Maíra, que eu acho que o pai dela botou de castigo lá pra dentro. Ela é danada.
P/1 – Então você demorou de um filho pra outro?
R – Demorei. Minha Maíra eu tive com 41 anos. Tive uma gravidez de alto risco. Ixi passei o tempo inteirinho indo no médico, indo no médico. Aí tive que fazer uma cesariana e tudo.
P/1 – Você teve por que quis?
R – A Maíra. Na verdade a Maíra e o Pedro eu engravidei dos dois tomando anticoncepcional. Numa troca de anticoncepcional, porque eu tomava um comprimido daí troquei pra tomar injeção, engravidei do Pedro. Daí da Maíra eu troquei a injeção de uma pra outro, e engravidei da Maíra.
Quando eu tive a Maíra, eu fiz uma cesárea e já fiz uma laqueadura também.
P/1 – Aí nessa época vocês já tinham feito essa casa? Como é que foi fazer essa casa? Como vocês decidiram?
R – Ah, pra fazer essa casa. Porque a outra nossa casa era uma casa muito antiga, muito antiga, muito antiga. Aí, como meu marido trabalhava na fazenda, na época, o patrão dele deu a madeira pra ele. Eles tinham uma serraria dentro da fazenda, e ele deu a madeira e a serraria pro meu marido.
P/1 – Deu a serraria?
R – Deu a serraria. Deu as coisas pra ele serrar as madeiras. Aí meu marido serrou essas madeiras e meu cunhado veio e fez essa casa pra nós. Que a outra estava muito velhinha já.
P/1 – Tem quanto tempo que vocês têm essa casa aqui? Essa nova?
R – Acho que tem dezessete anos que nós temos ela. É, a Jerusa... Não, dezessete não. Dezenove anos. A Jerusa tem dezoito anos e a Jerusa nasceu já nessa casa aqui, está certo. A Jerusa já nasceu nessa casa. Então essa casa já tem dezenove anos. Fez no mês de janeiro dezenove anos. A Jerusa nasceu em agosto e já era nessa casa.
P/1 – E aí a escola aqui pra Mutum chegou quando?
R – Quando eu cheguei aqui já tinha escola.
P/1 – Tinha igreja?
R – Tinha igreja.
P/1 – O que era a vida na cidade? Assim, o que é que as pessoas faziam pra se divertir?
R – Ah, era muito gostoso. A gente dançava. Aqui, onde é esse meu piso aqui, era um salão de festa que a gente fazia festa.
P/1 – Ah, é?
R – É.
Era eu e minha irmã, nós éramos solteiras. Tinha uma menina que morava naquela casa ali que era enfermeira e era o posto de saúde ali. Ela também era solteira. Tinha a filha do delegado que morava aqui. Aí a gente se reunia, combinava, e fazia festa aqui, à luz de vela.
P/1 – Sério? E música ao vivo?
R – Não. Meu marido tinha uma vitrola, que pra onde ia levava ela debaixo do braço. Tinha um amigo dele que faleceu há uns quatro anos atrás, andava com a sacola de pilhas, que ela era à pilha. E a coisa de disco. A gente fazia festa de onde a gente chegava. Dava vontade nós íamos e fazíamos a festa. Aí adotamos aqui pra ser nosso clube.
P/1 – Vocês fizeram um clube?
R – Aí nós dançávamos. “Vamos fazer uma festa?”. “Vamos”. Aí dava final de semana, eles vinham da fazenda. Que esse meu marido e esse amigo dele, Antônio, ele namorava a menina daqui dessa casa, chamava Donga, filha do delegado. Aí eles vinham, arrumavam e a gente fazia a festa.
P/1 – Como é que era a festa?
R – A festa. A gente vinha pra aí, todo mundo. Eles traziam a vitrolinha, a sacola de pilha, e a gente comprava maços e maços de vela, acendia vela por todo canto, botava pra tocar e dançava. Aí eles compravam bebida. Eu não bebia. A gente não bebia. Naquele tempo mulher não bebia quase, não tinha muito de beber. Aí a gente amanhecia o dia aí dançando.
P/1 – Que delícia.
R – Aí tinha também do outro lado da estrada. Essa estrada não era alta desse jeito, era bem rentezinha essa estrada. Aí, do outro lado, ali a BR, né? Aí do outro lado também tinha um clube que era do pai do professor Nélio. Na verdade não era um clube, era um restaurante, mas aí a gente ia lá e queixava para o pai dele, do professor Nélio, seu Raimundo Veríssimo. Morreu já. A gente queixava para seu Raimundo, e ele deixava fazer festa lá também. Eles tinham motor de luz, né? Aí a gente fazia festa lá também.
P/1 – Então a principal diversão eram essas festas de dança?
R – Eram essas festas de dança. O joguinho de futebol, o joguinho de vôlei, que a gente jogava muito aqui na frente da escola. Aqui era a escola.
P/1 – A escola era aqui?
R – Era.
P/1 – E todo mundo já ia à escola aqui? Como é que funcionava a escola, era até que série?
R – A escola era até quarta série. A mãe do professor Nélio era a professora, dona Lurdes. Aquilo era professora, diretora, era tudo. Trabalhava aí. Aí era a escola. E a igreja. A gente fazia arraial na igreja, a gente já fazia arraial. Eu e a esposa do Rubinho, nós grávidas, de barrigão. Ela do filho dela mais velho, do Clemilson, que é da idade da minha Leni. E eu da minha Leni. A gente entrava por aqui. Era tudo mato, cheio de palheira. A gente ia tirar madeira, tirar palha, tirar tudo pra fazer, pra enfeitar a igreja pra fazer a festa, festa junina.
P/1 – E tinha padre?
R – Tinha. O padre vinha raro. Era raro pro padre aparecer, mas volta e meia ele aparecia. Não tinha padre aí direto.
P/1 – Aí vocês faziam festa junina, e que outras festas vocês faziam?
R – Ah, Natal, festa de Natal. Festa de páscoa. Tudo a gente fazia. Tudo, tudo, tudo, tudo. Toda a vida a gente teve muita diversão aqui. Toda a vida a gente se divertiu!
P/1 – Quer dizer, você não sentia assim: “Ah, a cidade está parada?”
R – Não, porque pra gente, era aquilo que a gente queria, né? Era aquela vida assim pacata, mas gostosa de viver!
P/1 – Agora, Iraildes, me conta sobre a sua vida com a pesca? Porque eu sei que você gosta de pescar, como é que foi que você começou a pescar?
R – Ah, desde pequenininha, né? Minha mãe já ensinava a gente a pescar, ensinava a gente a botar um anzol na linha... Como que fazia tudo! E eu me criei assim. Ora a gente ia pescar, ora a gente ia moer cana, ora a gente ia sair no mato... E eu sempre fui apaixonada por pescar. Toda a vida fui apaixonada por pescar.
Quando a gente tava por aí trabalhando, nem tanto. Na época quando eu fui pra morar em Ribeirão, como a gente morava à margem do Rio Ribeirão, que é ali bem onde deságua o Ribeirão no Rio Madeira. Ali era minha vida, não queria outra coisa. A hora que eu terminava de fazer o serviço eu ia lá, já pegava a minha ninhadinha e ia lá pescar, pescar piau, pescar mandi, pegava bastante no pedral. Aí quando a gente veio pra cá, aí me deparei com Rio Mutum...
P/1 – E o rio era bom de pesca?
R – Era muito bom de peixe. Muito, muito, muito. Aqui nessa ponte. Não tinha essa ponte nova ainda quando eu cheguei, só tinha a ponte velha. A gente de tarde ia ali tomar banho. A gente trabalhava numa casa ali, num restaurante que tinha ali. Aí quando dava de tarde já tinha passado todos os ônibus, a gente deixava tudo arrumadinho.
A Doraci, que era nossa patroa, mas que era assim: tratava a gente como irmã, aí a Doraci: “Vamos embora pro rio?”. “Vamos”. Aí nós pegávamos um monte de fruta, ela gostava muito de comprar fruta, né? Aí a gente pegava a sacola de fruta, sacola de lanche, aí nós íamos pra beira do rio: eu, ela, minha irmã, as outras meninas que trabalhavam com a gente. Tinha mais duas meninas que trabalhavam com a gente. Seu Idalino. Às vezes nós deixávamos uma das meninas ou então Seu Idalino, quando Seu Idalino não queria ir e ficava, porque às vezes o Seu Idalino ia. Aí elas iam tomar banho e comer na beira do rio ali, e Seu Idalino ia pescar. Aí pronto, aí fiquei, aí virei pescadora. Adoro pescar. Não pesco assim, não sou aquela pessoa que vive de pesca, né? Mas também não sou aquela pessoa que vive sem pescar. (risos)
P/1 – Você pesca quantas vezes em uma semana?
R – Ai, eu não sei, mas eu acredito que eu não fico uma semana sem pescar.
P/1 – Como é? Você acorda e fala: “Hoje eu vou pescar?”.
R – Não. Geralmente durante a semana eu trabalho. Eu trabalho o período da manhã, mas aí às vezes eu chego, assim, eu digo... Minha Maíra estuda de manhã, aí ela sai primeiro do que eu, daí eu digo: “Maíra, procura isso que hoje nós vamos pescar”.
Eu tenho meus companheiros de pesca também. Muitos meninos aí da vila pescam comigo, muitas senhoras pescam comigo.
No dia que dá certo a gente pega o motor que nós temos. Eu tenho uma companheira de pescaria que pilota o motor, que eu não sei pilotar.
P/1 – O quê, o barquinho?
R – O motor. Eu não sei pilotar não. Aí ela pilota e a gente pega e vai embora! Bota o motor na canoa e botam as tralhas tudo dentro e a gente vai embora pescar. Tem uma amiga que ela é casada com o Zé. O Zé é pescador nato, é filho da Dona Teodora, ele é o único que pesca, ele e o irmão dele. Aí a esposa dele é minha amiga, trabalha junto comigo. Agora faz tempo que a gente não vai, mas a gente vai embora e acampa lá no mato e fica lá pescando. Às vezes ele dá carona pra nós, aí a gente vem embora e ele ficasse pra lá pescando. E eu vou. Toda semana eu pesco.
P/1 – E o que é que você pega quando você pesca?
R – Essa época a gente pega só peixinho pequeno. Essa época não, hoje, né? A gente pega só peixinho pequeno: piá, o cará, traíra... Essas coisas assim. Difícil de pegar uma jatuarana, mas de primeiro a gente pegava muito peixe!
P/1 – O que é que aconteceu que o peixe diminuiu?
R – Muita gente. Pesca predatória, né? Não se respeita o período de desova. Não tem fiscalização aqui. Não tem fiscalização do IBAMA aqui sobre isso não. Na época de desova, todo mundo pesca, todo mundo, todo mundo, todo mundo pesca do jeito que quer: de rede, de malhadeira, de tarrafa, de vara, de tudo. E eu acredito que isso acabou com muito peixe do Rio Mutum. Acabou muito, muito, muito.
P/1 – Mudou muito?
R – Mudou.
P/1 – De quando pra cá?
R – Ah, eu acredito que mais ou menos de uns seis anos, oito anos pra cá, acabou muito peixe. E agora nesses últimos três anos é que acabou mesmo.
P/1 – Foi mesmo? E é por causa da malhadeira?
R – Malhadeira, tarrafa...
P/1 – Quem que usa malhadeira e tarrafa? O pessoal daqui mesmo?
R – Muita gente, muita gente daqui, muita gente que veio de fora e que mora aqui... Muita gente mesmo!
P/1 – Mas isso é proibido, né?
R – É proibido.
P/1 – Mas não...?
R – Não tem, não tem... Eu já tentei, eu já tentei vir e trazer fiscalização, mas aí não vem. Às vezes a gente começa a insistir e fica criando inimizade com as pessoas, né? Aí então deixa aí, deixa quieta.
P/1 – Mas mesmo assim você vai pescar?
R – Vou e pego peixe! (risos). Dificilmente...
P/1 – E por que você gosta tanto de pescar, o que é que te leva...?
R – Ah, eu não sei, não tenho nem palavras, porque quando eu estou pescando não me lembro de nada. Se eu tiver lá pescando eu não me lembro de filho, que eu tenho filho. Eu não lembro que eu tenho marido, não lembro que eu tenho serviço. Não lembro que eu tenho conta pra pagar. Não lembro nada que eu tenho pra fazer. Se eu tiver pescando, eu estou pescando. Eu esqueço tudo quando eu estou pescando. E se eu não for pescar eu fico estressada. Fico estressada. Meu marido às vezes ele fica bravo que ele não quer que eu vá pescar.
P/1 – Não?
R – Não. Ele não gosta que eu vá pescar muito não. Ele briga! De vez em quando ele briga comigo. Mas aí tem vezes que ele vai lá, põe as iscas pra mim, ajeita o motor, abastece o motor, ajuda. Porque eu acho que ele diz assim: “Não, deixa ela que já fico despreocupado, que eu sei que ela faz sempre”. Muitas vezes ele fica bravo porque eu vou várias vezes assim: vou e vou e vou e vou. Aí ele fica bravo. Aí quando eu fico uns diazinhos sem ir, aí ele me ajuda a ir: ajeita as coisas pra mim, arruma tudo pra eu ir lá. Mas eu acho que eu não vivo assim sem pescar. Não sei se eu vou pra algum lugar onde eu não possa pescar, eu vou ter que dar um jeito de ir pescar em algum lugar. Acho que eu não vou ficar quieta.
P/1 – Iraildes, a maior parte das mulheres aqui pesca também?
R – Não. Poucas mulheres aqui pescam.
P/1 – Não é costume?
R – Não, não é costume não. Tem algumas que pescam, mas eu acredito que mais ou menos dois por cento das mulheres pescam.
P/1 – É coisa de homem pescar?
R – Mais de homem.
P/1 – E me conta aqui: o seu marido pesca também?
R – Ah, não. A pesca do meu marido é chegar lá e se ele jogar a linha pegou o peixe ele já está de volta pra casa.
P/1 – Ele é ansioso?
R – Ele não gosta de pescar não.
P/1 – Sua irmã gosta?
R – A mana gosta, mas ela não vai quase. Ela tem problema nos pés e quase não vai.
P/1 – Mas você vai sozinha às vezes?
R – Não. Eu não vou só não. Eu sempre vou com meus filhos. Sempre eu arranjo companhia pra ir, não vou só não pro rio. Eu tenho medo de andar só no rio.
P/1 – Por quê? O que é tem no rio de perigo?
R – Não, não é que tem perigo não. É que eu não gosto de ficar só. Eu vou e eu tenho meu filho. Meu filho pilota pra mim. Minha Maíra pilota pra mim.
P/1 – Quanto tempo você fica pescando?
R – Ah, eu fico se for possível o dia inteiro. Eu fico o dia inteiro.
P/1 – Você leva comida?
R – Ah, às vezes eu levo comida. Às vezes a gente leva só farinha, sal, alguma coisa. A gente assa peixe lá e come. Quando a gente vai pra longe a gente só leva isso. Mas quando a gente vai ali pra voltar no mesmo dia, a gente geralmente leva comida.
P/1 – Os peixes que você pesca é pra comer, não é pra vender não?
R – Não, não vendo não. Eu como, eu dou pros outros. Geralmente eu pesco e divido com os outros. Dou pros meninos que às vezes vão comigo. Às vezes mando pra minha irmã. Às vezes levo pro meu sobrinho em Porto Velho. E assim vou...
P/1 – Iraildes, agora me conta como é que foi a chegada da usina aqui, o que começou a acontecer, qual foi a primeira vez que você ouviu falar?
R – Há muito tempo atrás apareceu uma pessoa, um rapaz fazendo algumas perguntas. Isso há muito tempo. Perguntando se por um acaso a gente fosse sair daqui o que é que a gente sentia e tal. Mas ficou nisso e foi embora, acabou. Aí há mais ou menos uns cinco anos atrás, começaram as vindas das pessoas. Já com mais freqüência, pesquisadores fazendo perguntas, pessoas fazendo perguntas e tal. Daí de quatro anos pra cá entrou Furnas. Furnas já meio que conscientizando as pessoas das coisas.
P/1 – Dizendo o que?
R – Ah, falando sobre a usina, sobre impactos, sobre essas coisas. O que uma usina traz. Não assim diretamente. Assim meias palavras e tal. Mas eles meio que conscientizavam a gente das coisas. Pessoal de Furnas, não de Furnas em si, de empresas terceirizadas de Furnas.
P/1 – E eles vieram aqui pra fazer o que?
R – Ah, eles vinham aqui pra fazer perguntas, pra fazer reuniões, pra falar, pra dar exemplos de outras usinas. Do que tinha acontecido, do que acontece. Como é que é.
P/1 – Como foi que a cidade recebeu isso?
R – No início ninguém acreditava que isso ia acontecer. A verdade foi essa. No início ninguém acreditava que isso ia acontecer. Até bem pouco tempo ainda tinha gente que acreditava que não ia acontecer. As coisas acontecendo, a gente tentando conscientizar, tentando explicar, tentando alertar, e muita gente achava que não ia acontecer...
P/ 1 – Mas dizia o que: isso é papo?
R – “Ah, isso é papo. Isso não vai acontecer não. Ah, isso aí é invenção, não vai passar disso. Isso é só fogo de palha, não vai acontecer nada não”. Até um tempinho desses ainda tinha gente achando que não ia acontecer. Que ninguém ia montar.
P/1 – Como foi virando realidade, o que foi acontecendo?
R – Ah, o pessoal foi chegando, né? Foram botando mesmo pra trabalhar. Foi chegando às empresas e trabalhando. E montando escritório e fazendo esse tipo de serviço aí que eles fazem. Cadastrando as pessoas, medindo casa, medindo terreno, enfim...
P/1 – Quer dizer a pessoa chega aqui dizendo: “Quero medir sua casa” e vocês deixavam? O pessoal deixava?
R – Não, porque é assim... Foi mais ou menos assim. Teve muitas reuniões, muitas palestras, muitas coisas antes de chegar a esse ponto.
P/1 – Com o pessoal da cidade. E o pessoal ia?
R – Ia. Muita gente ia. Muita gente não ia que até hoje muita gente não vai se tiver uma reunião. Muita gente não vai. Mas muita gente ia, comparecia. Muita gente fazia parte das reuniões, muita gente foi conscientizada de algumas coisas. Conscientizada entre aspas, né? Porque a empresa fez muito assim: prometeu alguma coisa que não foi cumprida.
P/1 – O que é que a empresa prometeu?
R – Ah, sei lá. Eles falavam que ia ser tudo certinho, tudo indenizado certinho. E não foi isso que aconteceu não. Teve muita falha. Teve muita gente que teve prejuízo de alguma coisa. E outras ganharam muito, né? Porque as pessoas que não tinham casas, inquilinos. Pessoas que era inquilinos que ganharam uma carta de crédito no valor de cinqüenta e cinco mil, que nunca pregaram um prego numa parede ganharam isso. Enquanto a gente que está aqui nesse monte de anos. Criamos nossos filhos tudo aqui, recebemos uma carta de crédito de sessenta e cinco mil. Dez mil só a mais que do inquilino...
P/1 – Essa sua casa toda aqui valeu só sessenta e cinco mil?
R – Não, essa minha casa aqui valeu sessenta e seis mil porque a gente optou por indenização, porque a carta de crédito é muito burocrática
P/1 – Carta de crédito é: você compra em um lugar?
R – Eles te dão a carta de crédito no valor de sessenta e cinco mil para quem é proprietário. Daí você vai lá a Porto Velho, digamos assim e você escolhe uma casa. A empresa vai lá, avalia. Se aquela casa está tudo ok, aí você tem que gastar setenta por cento dessa carta de crédito em moradia. É obrigatório.
P/1 – E qual a vantagem de pegar essa carta de crédito e não pegar o dinheiro?
R – A vantagem pra algumas pessoas é o seguinte: porque quem tem direito à carta de crédito, tem direito à carta de crédito e mais um ano de salário mínimo. Aí pra uma pessoa que tem uma casinha desse tamanhinho, ele pega sessenta e cinco mil e mais um ano de salário. Pra ele é alguma coisa, né? Quem opina por indenização não tem direito a esse salário.
P/1 – E vocês aqui?
R – Nós optamos por indenização por causa da burocracia. Quem vai pro pólo também. Quem optar para ter uma casa no pólo recebe também um ano de salário mínimo.
P/1 – Vocês optaram por receber o dinheiro e fazer o que com ele?
R – Comprar uma casa e uma chácara em União Bandeirante.
P/1 – Por que vocês decidiram fazer isso?
R – Porque nós não quisemos ir pro pólo.
P/1 – E por que vocês não querem ir...?
R – Porque lá não tem nada a ver com nós. Nós não vamos nos sentir bem em uma casinha desse tamanho onde não cabe nem nada. Porque tem muita gente que está lá com as coisas pro lado de fora, que a casa não coube. Não tem um quintal, não tem um espaço pra você botar uma árvore. Pra você plantar uma planta. Pra você fazer um canteiro, criar uma galinha...
P/1 – Não tem quintal?
R – Não, são pequenos os quintais lá.
Nós temos criação. Meu marido tem gado. Nós temos gado, está aqui no sítio da minha cunhada. Está ali com as nossas galinhas aí. Meu marido gosta. Nós temos porco ali atrás no chiqueiro.
P/1 – E pra lá não pode levar bicho?
R – Não. A gente tem isso aqui. A gente gosta disso aqui, e lá a gente não tem como ter isso aqui.
P/1 – Aí vocês optaram pra ir pra outro lugar?
R – Pra ir pra União Bandeirante, que é um lugarzinho igual aqui.
P/1 – Mas mesmo assim: você está achando que é uma oportunidade ou é ruim?
R – Pra mim é péssimo!
P/1 – Por que, Iraildes?
R – Porque eu não queria sair daqui. Eu nunca quis sair daqui. Eu nunca tive planos fora daqui. Depois que eu vim morar aqui, que eu conheci Mutum, eu nunca tive planos fora daqui.
P/1 – Você sentiu que era seu...?
R – Exatamente. Escolhi aqui pra morar e pra ficar aqui. Eu nunca, nunca, nunca tive planos fora daqui. Assim: “Não, eu vou pegar e vou comprar uma casa pra mim lá na cidade...”. Não. Nunca.
P/1 – Mas o que você sente de ruim? Agora que você tem que mudar, o que você está sentindo, assim, no coração?
R – Ah, minha filha, tudo, tudo, né? É um sentimento que não tem nem palavras pra dizer. Porque isso aqui tudo foi nós que plantamos. Isso aqui fomos nós que fizemos. Quando nós chegamos aqui só tinha esses dois pés de manga bem pequenininhos e esse pé de cupuaçu e um pé de coco bem aqui que nós tiramos ele, ali na frente. Era o que tinha. E tinha um pé de ingá aqui que morreu. Isso aqui tudo fomos nós que plantamos.
P/1 – O que é que vocês plantaram?
R – Tudo. Coco, mais cupuaçu. Ah, o jambeiro tinha também que era pequenininho. Nós plantamos tudo. Tem caju, lima, laranja... Já morreu outro pé de laranja. As tangerineiras morreram por causa da alagação, porque quando alaga a água vinha aqui. Ali pra trás tem cana, mangueira, mandioca ali atrás. Tem quiabo, limeira, bananeira. Tem tudo ali. Isso aqui tudo fomos nós que plantamos.
P/1 – E agora você vai ter que plantar de novo, né?
R – Começar de novo em outro lugar. Mas graças a Deus eu vou ter uma oportunidade de ter de novo igual. E se eu for pro pólo não tem.
P/1 – Você acha que o pessoal aqui da cidade que vai pro pólo. Porque todo mundo aqui tem quintal, né? As casas que eu vi. Como é que você acha que eles vão se virar lá?
R – Ai, nem sei, viu? Eu digo sempre assim que eu não sei se eles vão se adaptar não. Às vezes se adapta porque tem pessoas que se adaptam com facilidade. Mas eu acredito que muita gente vai se arrepender.
P/1 – E qual é a conversa que tem hoje na cidade sobre isso? O pessoal está dizendo o que?
R – Como assim?
P/1 – Você vai à igreja e conversa com o pessoal, como é que é o sentimento geral?
R – Ah, o sentimento de todo mundo é esse mesmo meu e acredito que com quem vocês conversaram. Acredito que todo mundo tem o mesmo sentimento. Ninguém quer sair daqui. Ninguém queria sair daqui, todo mundo tinha planos...
P/1 – Nem os jovens? O que é que eles acham disso tudo?
R – Ah, os jovens tem aqueles que do jeito que tiver está bom, porque jovem geralmente não se liga muito com as coisas não. Só que os meus jovens, os meus filhos, eles sentem muito também por isso. Meus filhos têm o mesmo pensamento que eu. Eles, todo mundo está ressentido com isso. Todo mundo preocupado como é que vai ser no outro lugar.
P/1 – Vocês têm muita amizade aqui? Vocês acham que vão conseguir manter as amizades?
R – Ah, é difícil, né? Porque aí vão uns para um canto, outros para outro, né? Nós vamos pra União Bandeirante, eu e minha família. Minhas cunhadas, minha filha. Mas aí nós temos os vizinhos. Tem Seu Marciano que mora ali na frente.
P/1 – E ele vai também?
R – Não. Nós trabalhamos juntos na saúde um tempão e ele agora está aposentado e ele não sabe nem pra onde vai. É um vizinho ali para tudo, entendeu? Quando meu filho está doente aqui com febre, lá vem a esposa dele. Nós somos compadres. Lá vem minha comadre aqui, aí ela traz um álcool pra fazer uma compressa. A mesma coisa eu faço por ela, entendeu? Adoece um dos meninos aqui, uma está do lado ajudando a outra. Temos a Ana que mora aqui do outro lado e também é minha comadre e é a mesma coisa, precisa de uma coisa e corre aqui Os meninos dela, precisa ir ao campo e deixa os meninos aqui comigo e se houver necessidade de eu deixar eu sei que ela fica. Enfim. São assim as coisas. Tem a Maria do Rubinho que a gente é amiga desde quando eu cheguei aqui. Foi a primeira pessoa que eu fiz amizade, foi com a Maria do Rubinho, e a gente até hoje é amiga e ninguém sabe nem pra onde ela vai. Ela ainda está indecisa. Ela não sabe se vai pra Porto Velho, ela não sabe pra onde vai. Então são coisas que vão acabar, são coisas que a gente não tem como manter, né? Alguma vez que a gente se encontrar por acaso em algum canto é que a gente vai conversar. Então são coisas que a gente não vai ter como manter mais não, de jeito nenhum. Não adianta...
P/1 – Mas seu trabalho, Iraildes, você começou a trabalhar na prefeitura desde quando?
R – Desde 1987. Só que trabalhava de serviço prestado. Daí concursada mesmo, estatutária vai fazer seis anos. Mas todo esse período eu trabalhei sempre no governo.
P/1 – Mas aí nesse lugar que você vai você vai continuar trabalhando no governo?
R – Sim, sim. Eu sou concursada, eu sou estatutária. Aí vou ser transferida pra escola de lá. Peguei transferência. Já entramos com pedido de transferência pra lá.
P/1 – Iraildes, qual é o seu sonho agora, no meio dessa confusão?
R – Ah, meu sonho é comprar tudo em Bandeirante direitinho. Quero que minha filha termine a faculdade dela. Ela faz faculdade de letras. E quero fazer minha faculdade ainda, que eu ainda não parei não!
P/1 – Você quer fazer faculdade de que?
R – Eu quero fazer história. Eu não estou fazendo faculdade porque eu tenho uma filha fazendo faculdade e a gente não tem como manter as duas faculdades. Assim que ela termine a dela e ela arrumar um trabalho pra ela manter. Porque na verdade minha filha quer fazer biologia. O sonho dela é biologia. Aí ela está fazendo letras, mas ela vai fazer biologia. Assim que terminar ela vai fazer biologia. Mas aí ela já vai estar formada, ela já vai ter um emprego, aí já vai se manter, né? Aí eu quero fazer minha faculdade de história, se Deus quiser
P/1 – Por que é que você quer fazer história?
R – Porque eu gosto muito de ler e gosto de história. E odeio matemática. Odeio matemática!
P/1 – E a faculdade faz onde?
R – Faz em Porto Velho, faz em Guajará.
P/1 – Aí tem que ir e voltar?
R – Era pra eu ter começado a fazer já, mas aí eu desisti. Desisti por serem muito difíceis as duas. A minha e a dela. Fiz vestibular e tudo. Aí parei, não fiz. Por conta disso. Mas ainda quero fazer. Se Deus quiser. Não vou desistir fácil não.
P/1 – Está bom, Iraildes, muito obrigada pela entrevista.
R – De nada!Recolher
Título: Entre seringais, jazidas e disputas territoriais, uma mulher que ama pescar
Data: 27/06/2010
Local de produção: Brasil / Mutum-paraná - Ro
Personagem: Maria Iraildes Valente de Menezes Autor: Museu da PessoaO Museu da Pessoa está em constante melhoria de sua plataforma. Caso perceba algum erro nesta página, ou caso sinta falta de alguma informação nesta história, entre em contato conosco através do email atendimento@museudapessoa.org.
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