P/1 - Então queria que você começasse dizendo seu nome completo e data de nascimento.
R - Cecília de Deus Leite Prado. Nove do três de 76.
P/1 - Você nasceu onde?
R - Em Santos.
P/1 - Eu queria te perguntar qual a primeira coisa você lembra, nessa vida?
R - Eu tenho uma lembrança de uma casa, que o meu pai teve, no Guarujá. Eu era muito pequena, e o que eu mais lembro é da minha mãe me puxando, que eu tava brincando num lugar que não podia, numa água suja, algo assim, e aquilo ficou na minha mente. Minha mãe sempre foi uma pessoa muito doce, muito calma, tranquilo, então acho que isso me marcou, ela me puxando, pra me buscar naquela água. Acho que é a primeira lembrança que eu tenho, que eu era gente.
P/1 - E a sua mãe, qual é o nome dela?
R - Maria Eduarda? Noélia
P/1 - Conta um pouquinho da história dela?
R - Minha mãe veio de Fortaleza, com a família dela. Primeiro veio o meu avô, passou anos… Primeiro ele sofreu um grande golpe lá, que ele trabalhava numa chácara há 25 anos, aí chegou aquela lei que tinha que registrar e pagar os honorários, tudo de lei agora, e a mulher da chácara registrou ele com um ano de trabalho, depois de 25 anos, aí a decepção dele foi gigantesca. Aí ele veio com quarenta anos de idade, quarenta e poucos, pra tentar a vida em São Paulo, e veio. Aí não conseguiu muita coisa, mas aí veio depois a minha mãe, o meu tio mais velho, foi vindo de dois em dois até vir a família inteira pra cá, minha mãe e meus tios todos estão aqui.
P/1 - O seu vô fazia o quê?
R - Jardineiro.
P/1 - Aí ele trabalhava em que lá?
R - Então, lá era de jardineiro, cuidava da chácara e tudo. Quando ele veio pra cá ele trabalhou em tudo, em obras, trabalhou em… Até vender picolé ele vendia, fez de tudo, quando ele veio pra cá. Lá minha mãe soube que ele estava muito triste, muito deprimido, foi quando ela, a minha mãe, que era a mais velha dos irmãos, falou qu vinha pra cá também, que ia trazer todos os irmãos.
P/1 - E eram quantos irmãos?
R - Eles eram em oito, e ela foi trazendo, foram vindo de dois em dois, até que por último veio a minha vó, e construíram a vida deles aqui, todos estão aqui, ninguém voltou.
P/1 - E eles vieram como?
R - A minha mãe disse que… Não era namorado dela, sabe? Era tipo uma paquera, uma coisinha que ele era caminhoneiro, então ele foi transportando todos, mas ela disse que nunca teve maiores coisas com ele, não. Foi assim que foram vindo. Começaram a trabalhar aqui, minha mãe de doméstica, as minhas tias, e todo mundo foi crescendo, está toda a família aqui.
P/1 - Sua mãe começou a trabalhar de doméstica? E ela conheceu seu pai aqui?
R - Conheceu meu pai aqui, ela era seis anos mais velha que ele. Ela contava essa história - porque ela já faleceu - ela contava essa história que ela achava que ele era mais velho, começaram um namorinho, e ele trabalhava num bar, e aí ela… Um dia ele chegou na frente dela de quartel, de reco, aí ela olhou pra ele assim, como quem diz: “Nossa, ele tem dezoito anos, dezenove” e ela com 25 já. Aí ela disse que tomou um choque, mas acho que foi o amor da vida dela. Minha mãe se dedicou ao meu pai como eu nunca vi uma mulher a se dedicar a um homem. E ele, aqueles da antiga, né? Meio opressor, bem ignorante. E ela, antes de falecer, falou pra mim que foi muito feliz no casamento dela. Foi assim que eles se encontraram, deu a gente, três filhos.
P/1 - Mas aí quando eles vieram, estava o seu vô aqui. Vieram oito filhos. Como coube na casa?
R - Veio primeiro a minha mãe e meu tio, os mais velhos, começaram a trabalhar, aí conseguiram trazer mais dois, e foi vindo de dois em dois. A casa que eles moravam por muito tempo, hoje eu moro do lado, é “mó” barato isso, porque eles moravam no bairro de São Vicente, não tinha nada, só a casa deles, lama por todo lado, eles tinham que andar muito pra pegar condução, e era um sofrimento, porque aqui fazia frio e a minha mãe não sabia nem o que era frio. Ela diz que passou muito frio nessa cidade, é molhado, não tinha dinheiro pra compra um agasalho, eles passaram muito perrengue, muito mesmo. E a casa, hoje, é engraçado porque eu passo na frente e a minha mãe falava pra mim: “Foi aqui que a gente se criou, que a gente viveu, que cada um foi se casando, indo embora”. Eles passaram muitos anos naquela casinha ali, que eles tinham. E assim foi a vida deles.
P/1 - E você sabe a história do seu nascimento?
R - Então, a minha mãe disse pra mim, uma vez, que todo mundo tem um sonho na vida, né? O sonho dela era ser freira, a vocação pra minha mãe era a religião, pra Deus e tal, mas a vida se encaminhou pra outro lado e ela se casou e tal, e ela teve muita dificuldade para ter filho, ela demorou acho que três, quatro anos, e ela conseguiu indo na Nossa Senhora de Aparecido, que ela sempre foi devota, se ajoelhou, pediu, e teve o meu irmão. Só que o meu irmão deu muito trabalho pra nascer, ela sofreu muito, naquela época, né? Não tinha [que nem tem] hoje, a cesária e as coisas que tem, ela disse que sofreu demais para ter o meu irmão. Meu irmão não queria nascer de jeito nenhum, foi muito sofrimento. E quando ele nasceu, estava tudo bem, ela falou: “Eu não vou ter nunca mais filho, nunca mais eu vou passar por isso”. Quando ele tinha três anos de idade, ela morava numa casa dos fundos e na casa da frente morava uma senhora com uma menina, e ele era louco por essa menina. Ia pro portãozinho, ficava pendurado, chamando. E essa senhora achava que menino e menina não podiam brincar, proibiu, colocou uma tela, e a minha mãe disse que ver o sofrimento dele, ele chorando tanto, sabe? E ele era tão sozinho, porque a minha mãe morava em São Vicente e meus tios moravam todos pro Guarujá, a maioria. Então ele não tinha escolinha, essas coisas que tem hoje, aí ela falou: “Eu vou dar um irmão pra você. Eu vou te dar um irmão ou uma irmã” e ele adorou aquilo, queria ter um irmão, pelo menos o que ela falou. Aí logo ela ficou grávida de mim, e já foi totalmente diferente, ela disse que a gravidez foi outra, ao contrário do meu irmão eu não via a hora de nascer. O meu nascimento foi super rápido, eu cheguei, fui e nasci assim. Foi por isso que ela teve o segundo filho, que fui eu. E o terceiro escapou, ela já tinha quarenta e poucos anos e ela… Ela falou pra mim que sentiu muita vergonha de estar grávida aos quarenta anos. Na época dela, uma mulher estar grávida com quarenta, nossa… A minha diferença com o meu irmão é de sete anos, o caçula. Mas esse menino foi a benção da casa, assim, sabe aquelas coisas que vem de Deus, esse menino é abençoado, a caçula, é uma criatura totalmente diferenciada do resto do universo, pensamentos bons, um cara super positivo. Você pode estar como tiver, se você chegar perto dele parece que ele tem uma energia do bem, eu nunca vi aquele menino estressado, brigado, totalmente do bem, muito parecido com a minha mãe.
P/1 - A sua mãe tinha essa energia tranquila?
R - Minha mãe é… Todo mundo fala assim: “Mãe, você é a melhor mãe do mundo”, né? Você vê várias homenagens assim no Face, dos amigos, vocês devem falar com a mãe de vocês: “Ah, você é a melhor mãe do mundo”, mas existem conflitos, existe sempre… E a minha mãe… Eu não soube é o que é [ter] conflito com ela. É uma pessoa que eu não sei descrever o tamanho da generosidade daquela mulher, sabe? Ela era um ser humano generoso com todos, com um, com outro. Porque é fácil ser bom com quem a gente ama, é fácil ser bom com quem está perto da gente. A minha mãe era extremamente boa, com um coração que eu nunca vi até hoje, ninguém. A minha mãe era especial.
P/1 - Tem alguma coisa, alguma cena de generosidade da sua mãe que você lembre?
R - Assim, foram muitas coisas que eu vi ela fazer que eu ficava falando: “Nossa, eu acho que eu não teria esse coração”, como por exemplo assim, dela… Eu lembro dela numa situação que a gente tava, tava um frio, uma chuva, a gente estava com um guarda-chuva, eu e ela, em frente ao hospital São José. Nós estávamos indo pra casa, não sei porque, mas era muito frio, sabe aquele dia que parecia que estava na neve, e tinha uma senhorinha do lado dela, toda molhada, e a minha mãe tocou na senhorinha e ela estava toda gelada. A minha mãe não pensou duas vezes, tirou o único agasalho que ela estava, talvez fosse o único que ela tinha, e deu, sem nem olhar para trás. Tem umas coisas que ficam com a gente, eu falo: “Nossa…”, foi um exemplo pra mim. Eu sou uma pessoa que gosto muito de ajudar os outros, gosto muito, eu tenho prazer nisso, eu acho que herdei isso dela, porque ela fazia assim, sem nem olhar quem, o que tivesse que ser feito, sabe? E o que eu mais admirava na minha mãe - que eu tento ser como ela, mas não consigo - é a positividade daquela mulher. Ela tinha uma positividade de que tudo ia dar certo, que as coisas vão dar certo, que não sei da onde ela tirava aquela certeza e aquela energia, e dava certo. Era incrível.
P/1 - Nossa, muita fé, né?
R - Muita fé. Ela era uma mulher de fé, uma mulher de Deus, completamente. Tudo que eu sei hoje de Deus, religião, amor ao próximo, é com ela. Era fácil pra ela fazer o bem, era fácil pra ela compreender a alma humana. A minha mãe… Eu fico assim, impressionava, porque ela nunca julgava ninguém por nada. Às vezes aquilo que a sociedade condena, aquilo que a sociedade acha feio, aquilo que a sociedade quer esconder, a minha mãe era a primeira a dar a mão. Ela conseguia te entender, como você chegou ali, e ela tava com a mão assim pra você, sempre.
P/1 - Esse tem algum caso, também, que você lembra da sua mãe estendendo a mão pra alguém?
R - Assim, tiveram algumas coisas que ela se envolvia, mas ela era muito discreta, até pra gente conversar sobre as pessoas ela era muito discreta. Eu lembro de uma situação de uma prima, esposa de um primo meu, que foi envolvida num caso de traição tal, aquelas coisas que a família inteira vira a cara, a família inteira humilha. A família inteira desprezou, porque, no caso, ela era ____ e ela não era da família, da família era ele, mas a minha mãe não pensou duas vezes em apoiar ela, em dar um teto, em dar um chão, tipo reerguer, “você vai pra frente, se foi um erro ou não foi um erro, eu estou aqui pra te ajudar”, sofreu com a represaria das pessoas, mas ela não pensou duas vezes. Minha mãe era incrível, eu nunca conheci um ser humano, até hoje, que se igualasse. Eu vejo as minhas amigas falarem: “A minha mãe é minha amiga, mas...”; “Minha mãe é não sei o que, mas...”, tem sempre um “mas”. Eu não tenho esse “mas”. Dizer assim, “minha mãe pisou”; “minha mãe pecou”; “minha mãe…”, eu não tenho.
P/1 - Qual foi, além da vida, a melhor coisa que a sua mãe fez com você?
R - Foram muitas, muitas coisas que a minha mãe fez e ficam marcadas pra sempre, mas assim… Até me emociono de falar dela, não consigo ainda. Ela já faleceu faz dez anos, mas falar dela é um tanto complicado pra mim. Mas eu acho que, o que mais ______ da minha mãe é o apoio. Minha mãe sempre me apoiou nas minhas decisões, certas, erradas, ela nunca me julgou, nunca falou assim pra mim: “Filha, não faz isso”, nunca. Minha mãe podia dizer assim: “Filha, tudo que você faz, volta pra você, cuidado”, isso minha mãe podia falar, mas chegar pra mim e falar: “Não faz isso”, não. “Você pode quebrar a cara, mas eu vou estar do seu lado, sempre”. E foi isso que marcou a minha vida toda. Ela foi a minha melhor e única amiga. Quando ela se foi, eu fiquei meio… Até hoje, assim, eu to meio sem… As pessoas falam assim: “Ah, com o tempo, passa. Com o tempo você acostuma”. Isso é mentira. O tempo só faz você conviver, sabe? Mas a saudade é gigante demais. Minha mãe foi minha amiga pra tudo, pra todas as horas.
P/1 - A sua mãe tinha alguma… Você disse que aprendeu coisa de religião com a sua mãe, né? Qual era a religião da sua mãe?
R - Minha mãe era católica praticante, católica mesmo de estar sempre na igreja, ela criou os filhos dela dentro da igreja, todos nós somos batizados, crismados, fizemos primeira comunhão, casou na igreja, tudo certo. Eu cheguei a cuidar das crianças da igreja com ela, participava de tudo com ela na igreja, minha mãe foi coordenadora da igreja, a dedicação dela à igreja foi fenomenal. E eu tenho pra mim, isso é meu, que a morte dela é relacionada a igreja, sabe? Pode ser que eu esteja falando a maior besteira do mundo - mas esse é o meu pensamento - os meus problemas, os problemas dos meus irmãos, das minhas cunhadas, netos, do meu pai, que era muito ignorante, opressor, tudo isso eu acho que minha mãe tirava de letra, pra ela… Não magoava o coração dela, o que as pessoas faziam, diziam. É lógico que muitas vezes as nossas atitudes chocam os nossos pais, mas ainda assim a minha mãe tirava de letra, pelo que eu lembre, mas a igreja foi um baque forte demais pra ela, pode ter sido coincidência, pode não ter sido - meu pensamento - ela era coordenadora dessa igreja, quando mudaram os padres; entrou um padre novo e ele achou que tinha que renovar, tinha que mudar as pessoas, e foi tirando da minha mãe as funções dela, foi dando para outras pessoas, tal, sem problema nenhum, porque ela nunca foi uma pessoa egoísta nem nada, ela até gostava de ensinar, de passar o legado, não ter tanta responsabilidade em cima dela, ela gostava de ter as amigas que ajudassem e tal, mas esse padre foi de um jeito tão seco, tão grosseiro, tão… Que eu lembro que ela falou pra mim, muito magoada, assim, que ela foi falar com o padre sobre uma pessoa, e o padre falou: “Olha, dona Noélia, a gente tem que renovar, a gente tem que ver novas ideias”, tão assim… Com o sentimento dela. E ela dedicou a vida dela toda naquela igreja, e ele foi descartando, até que um dia ela foi entregar a chave da igreja e ele não aceitou, falou: “Não, a senhora tem que continuar, não sei o que, perseverar”, e ela continuou, mas logo… O meu irmão caçula estava fazendo uma construção, não lembro direito, sei que ele precisou de um cano de mão e na igreja tinha e ela foi lá buscar com ele. E aí quando ela chegou na igreja, que ela pôs a chave, a chave não abriu, aí eu acho que aquilo, pra ela, foi como se tivesse dado um tiro na testa dela, sabe? Aí a vizinha falou: “Ah, trocaram a fechadura, Fulano”, ela foi atrás, vieram abrir a porta pra ela, disseram que a chave dela estava com outra pessoa, não sei o que, mas o meu irmão me falou - o caçula - que ela veio calada, sabe quando uma pessoa vem calada com aquilo, ele viu que ela sentiu muito, chegou em casa, acho que almoçou, deitou no sofá, quando ela acordou, ela já acordou falando mole, já acordou meio estranha, meio diferente, isso foi num sábado. No domingo - coincidência do destino, ou não, sei lá, coisas de Deus - na minha casa estava tendo um almoço, um churrasco de um primo meu, que ele pediu a minha casa emprestada pra fazer o churrasco dele, era aniversário dele, sobrinho dela, então veio toda a família dela pra minha casa, os sobrinhos, os irmãos, estavam todos na minha casa no domingo. A minha mãe já estava bem pior, já tava mais mole, você via que ela não conseguia mais… Eu falei: “Mãe, tem que ir pro hospital”, ela: “Não, estou bem”, sabe? Ela… Foi a despedida da minha mãe, com toda a família dela. Coisas de Deus, mesmo, só pode ser. Os irmãos, os sobrinhos, estavam todos lá, meus irmãos estavam lá. E aí no outro dia ela piorou, piorou, internamos ela e ela não saiu mais, ela teve um AVC e ficou internada quatro meses, na UTI e não conseguiu voltar. Eu, hoje… Desculpa. Eu, hoje, acredito que ela não ia embora, ela não ia, porque ela já tinha morrido, por culpa minha, porque eu não deixava ela ir (choro). Eu ia todos os dias na UTI, eu rezava o terço com ela, e eu pedia pra ela não ir, eu via que ela estava me ouvindo, mesmo ela estando na UTI ela estava me ouvindo. Ela não se desprendia, por culpa minha, sabe? Porque eu segurava ela aqui com todas as forças. O meu irmão já tinha entendido que ela ia, o meu pai já estava conformado, mas eu não conseguia nem imaginar a possibilidade, eu achava que ela ia sair de lá. Em nenhum momento, nesses quatro meses, eu achei que ela ia falecer, não entrava na minha mente, na minha cabeça, até que chegou o dia que ela não aguentou e o coração ela parou, e ela morreu. Esse dia, é com toda certeza do mundo, foi o pior dia de toda a minha vida até hoje. Eu não consigo ver coisa pior do que aquele momento. Quando o rapaz falou pra mim que ela não tinha conseguido, que ela tinha ido, foi o pior dia de toda a minha vida até hoje. Pra mim foi cruel demais.
P/1 - E você chegou, depois, a falar com o padre?
R - Então, eu me confessei com o padra - com outro padre, não com esse - mas a minha fé da igreja se abalou, eu me afastei da igreja, eu não gostei de como ele agiu com ela, até mesmo na morte dela. Você vê, aquele primeiro padre, que viveu com ela há tantos anos, ele foi lá no velório, foi no enterro, ele chorou junto. Esse padre novo ele entrou assim tão friamente, sabe? Olhou assim pro caixão, fez uma oração e foi embora, aquilo me marca até hoje, aquela entrada dele, aquelas palavras tão frias. Na missa de sétimo dia dela, ele falou o nome dela como uma pessoa qualquer, parece que toda a dedicação dela, mais de 25 anos dentro daquela igreja, senão mais, não foi nada, sabe? Foi dolorido demais aquele dia. Eu saí da igreja, na missa dela de sétimo dia, eu falei: “Aqui eu não volto nunca mais, enquanto esse padre estiver”. E eu acho que se eu voltei lá pra um batizado, pra um casamento, foi somente. Só voltei a frequentar a igreja novamente tem um pouco mais de quatro anos, quando mudou o padre, tem novos padres lá agora, então eu voltei a frequentar. Eu vejo ele, eu não consigo olhar pra ele, eu sei que eu tenho que perdoar, que isso só me mata, só faz mal pra mim, mas eu não consigo. Na minha mente foi aquela situação que fez isso com a minha mãe, que ela não aguentou ser retirada do lugar que ela mais amava, que ela mais queria estar, eu acho que foi isso - na minha mente - que causou tudo isso pra ela.
P/1 - Eu queria voltar com você lá pra quando a sua mãe ainda está viva, na sua infância… Essa fé cearense… Você tinha contato com benzedeiros ou benzedeiras?
R - Não, minha mãe nunca foi de benzer, essas coisas, ela nunca levou a gente, nem nada dessas coisas, sempre foi católica praticante da igreja mesmo.
P/1 - E na infância, queria que você me contasse um pouco das memórias que você tem da igreja, antes dessa padre chegar, desse primeiro momento.
R - Então, o que eu sempre lembro é que ela levava a gente, desde pequena, ela nunca deixou a gente em casa para ir à igreja porque a gente perturbasse ou qualquer coisa assim, a gente estava sempre com ela. E ela se dedicou mais à igreja, acho que foi quando a gente foi fazer a primeira comunhão, ela que dava aula de catecismo para nós e mais vinte crianças, todo sábado. Foi aí que ela se dedicou mais, entrou mais pra dentro da igreja, que ela pegou mais responsabilidades, mais coisas, e a gente estava sempre em quermesse, eu lembro quando eu era adolescente já, que ela me colocou como responsável no caixa da quermesse da igreja (risos), foi tipo assim, a minha primeira responsabilidade na vida, eu me senti tão importante, eu me senti tão especial de estar sendo responsável do caixa da quermesse, eu era menina, treze anos, catorze, aí você vê a mãe que eu tinha, ela te entregava assim, ela fazia você se sentir, e sabia que podia contar com você, e ela era assim na vida com as pessoas. As memórias de infância que eu tenho são essas, sempre com ela, em tudo, participando. Eu lembro de vender rifa com ela, que a minha mãe não tinha vergonha nenhuma de vender as rifas da igreja, lembro da minha mãe nos mercados pedindo carne pros churrascos da igreja (risos), pedindo coisa, sem vergonha nenhuma. Minha mãe não tinha a menor vergonha, se era pra igreja. Tudo que era pra igreja ela se dedicava, “Não, vou fazer”. Eu acho que eu herdei muito isso dela, eu não tenho vergonha de nada, não tenho, não tenho vergonha de nada. Às vezes as minhas amigas: “Aí que mico…”, mico? Mico nenhum, tô nem aí ora opinião de ninguém.
P/1 - E falando em amiga, quem eram as suas amigas quando você era criança?
R - Eu tive uma amiga muito próxima, minha prima por parte do meu pai, que foi a infância e adolescência toda, a gente participou muito… Tive uma amiga da escola também, que eu não vejo mais, só vejo pelo Face, a Kelly.
P/1 - E vocês faziam o quê?
R - As brincadeiras, assim… Porque eu não tive uma infância muito solta, porque o meu pai era um tirano, ele era, não, ele é, até hoje, ele é tipo o Hitler, o meu pai (risos).
P/1 - Sua mãe é Jesus, né? (risos)
R - E ele o Hitler. Meu pai, tipo assim, não tem conversa com ele, não tem diálogo, meu pai é: “não!”. Pronto. “Mas pai…”, “Não”. Eu só fui conhecer o meu pai, depois que a minha mãe faleceu, faz dez anos que eu conheço o meu pai, porque até então a minha mãe fez tipo uma barreira entre meu pai e os filhos dela, ela não queria que ele magoasse a gente, que ele ofendesse, agredisse, de jeito nenhum, então ela assumiu aqueles filhos e ele participava muito pouco das nossas vidas.
P/1 - Como eles se conheceram?
R - Então, foi no bar que ele trabalhava e minha mãe passava todos os dias pra ir trabalhar, aí um dia, ela disse, que ele veio com uma caixa de refrigerante nas costas assim, e parou na frente dela, e ela queria passar e ele… Né? Foi quando ela olhou pra ele e ele se apresentou e ali eles começaram. Ele ia todo dia atrás dela, andando assim, aí começaram o namoro.
P/1 - Em quem foi o primeiro filho?
R - O Silvio, meu irmão mais velho. A gente sempre tem admiração pelo irmão mais velho. Eu sempre me dei muito bem com ela, até ele casar e eu que apresentei a esposa… Mas é assim, criações diferentes sempre acabam tendo divergências. E eu sou muito grata a ela porque, graças a ela eu nunca senti falta de filhos, porque eu não posso ter, e ela nunca foi egoísta com as filhas dela. Ela tem três meninas e a vida daquelas meninas foram na minha casa, assim, nunca me disse um “não”. Eu pegava, viajava, saia, eu fazia o que queria com as meninas e ela nunca foi contra, nunca… Então, por ela ter esse lado dela, todas as outras coisas pra mim são esquecíveis, besteira.
P/1 - Mas voltando pra sua mãe e pro seu pai, como a sua mãe percebeu que seu pai não era um anjo, né?
R - Eu acho que assim, naquele tempo dela as mulheres eram muito oprimidas, muito submissas, mas minha mãe era uma mulher muito inteligente. Hoje eu vejo que ela domava ele completamente, sem nunca ninguém perceber, hoje eu vejo. Porque hoje ele é um trem desgovernado, ninguém segura. Hoje meu pai, meu Deus do céu, é uma comédia, sabe assim? Em termos de ignorância, braveza, meu pai é terrível, terrível, e a gente mal sabia dessas coisas dele, a gente achava… Ela amenizava tudo, ela construiu um mundo pra gente…
P/1 - Mas eles eram casados?
R - Casados, direitinho, na igreja, certinho.
P/1 - Mas você falou que a sua infância não era muito solta…
R - É, meu pai não deixava nada. Eu via meus amigos irem à praia, de domingo que juntava a turma, não. Não deixava eu brincar solta de jeito nenhum. Eu fui chegar a noite em casa eu já estava noiva, porque eu não podia, dez horas tinha que estar em casa de qualquer jeito, eu não podia nada, não podia cinema, tudo tinha que estar com o meu irmão, com a minha mãe, meu pai não deixava nada. Meu pai era só “não”. Quando eu comecei a namorar, o meu irmão caçula estava sempre comigo, onde eu fosse o caçula estava lá. Ele e meu marido tem uma relação muito legal acho que por isso, os dois são muito parceiros, até hoje… Dá quase pra dizer que é pai e filho, porque o meu marido conheceu ele, ele tinha nove anos, acho, dez anos. Eles são muito amigos, graças a Deus.
P/1 - Mas ele chegava a agredir vocês?
R - Olha, eu apanhei uma única vez, apanhei mesmo, do meu pai. E eu lembro dele dar uma surra no meu irmão, no mais velho. O caçula eu nunca vi. Mas ele era muito explosivo, muito ignorante, gritava, sabe assim esses extremos? Que a gente… Mas a minha mãe conseguia segurar as rédeas de um jeito que hoje eu vejo que ela era a heroína, minha mãe era muito inteligente. Hoje eu vejo que a inteligencia dela, por ser uma pessoa do Norte, por ter tido pouco estudo, por ter tido uma vida sofrida, por não ter tido acesso a educação, essas coisas, ela era extremamente sábia. Minha mãe era extremamente sábia. Eu lembro que ela falava pra mim: “Filha, não tem que enfrentar, a gente tem que contornar, a gente nunca tem que bater de frente, a gente consegue tudo que a gente quer sem levantar um grito” e era verdade. Eu nunca vi a minha mãe fritar, esbravejar, discutir com o meu pai? Jamais. E o meu pai - hoje eu vejo, hoje eu tenho essa visão - que ele era um cordeirinho na mão dela. Agora, como ela domava essa fera? Só Deus (risos). Só Deus, mas muito inteligência, muita. Minha mãe era…
P/1 - Tem alguma vez que você sentiu a presença de Deus?
R - Assim, eu tive uma visão na morte da minha mãe, e eu acredito que foi Deus que me mostrou, né? Porque quando ela faleceu eu abandonei o emprego, fui pra casa, não dei satisfação, abandonei. E eu fiquei muito mal. O meu marido, quando a mãe dele faleceu, ele faltou um dia no trabalho. Quando a minha mãe faleceu ele faltou três, porque não podia me deixar sozinha, porque a gente não tem filho, então sou eu e ele. Eu fiquei muito mal, assim, não consigo nem explicar, e eu não conseguia comer, não conseguia beber, não conseguia nada, eu só chorava, eu só ficava na cama, era da cama pro sofá, do sofá pra cama, foi uma loucura o que eu vivi nos primeiros dias. E aí eu sonhei - eu acredito que foi Deus que me deu aquela visão - eu sonhei que… Sabe quando você está olhando assim do alto pra alguma coisa? Eu tava olhando assim do alto, olhando assim, e estava tudo branco, e eu continuei olhando firme, aí lá no fundo, bem lá no fundo, eu vi uma cama, parecia uma maca, mas eu estava longe, e eu forçando a vista pra ver, e eu tava indo pra mais perto, quando cheguei perto tinha um senhor em pé, de óculos, meio careca, de jaleco branco, todo de branco, olhando pra mim - eu nunca vi aquele senhor - e do outro lado tinha uma senhora, cabelos pretos assim, também olhando pra mim, só que eu não conhecia aquelas pessoas. E eu olhando, olhando, olhando, de repente a minha mãe senta e levanta dessa maca, ela senta assim, segura e senta, aí ela olhou pra mim - ela estava jovem, bonita - aí ela olhou assim dentro do meu olho, e ela segurava firme na mesa, e o senhor com a mão assim. E ela segurando firme e olhando pra mim (emoção), e eu olhando assim pra minha mãe. Aí ela fez uma cara, essa cara ela só fazia quando as coisas não davam certo, porque ela era extremamente positivo, tudo dava certo, e realmente dava certo, era muito raro uma coisa dá errado, mas quando dava ela tinha uma cara assim, tipo… Quando eu olhei pra ela assim, ela parecia que estava falando pra mim: “Filha, eu tentei, filha (choro), não consigo mais ficar aqui”, sabe assim? Parecia que ela me diz isso: “Não consigo, filha”, com aquela cara dela de não deu certo. Aí eu olhei pra ela assim e falei: “Mãe, vai mãe, vai. Eu vou ficar bem (choro), eu prometo que eu vou ficar bem. A senhora vai me ver rindo muito”. Aí ela soltou as mãos. Aí o senhor pegou ela assim, a outra senhora assim, e ela fez que ia levantar da cama e eu acordei. Isso não é Deus? É Deus, pra mim, falando pra mim que ela estava bem, que ela ia ficar bem. Que eu precisava deixar ela ir, e eu não conseguia deixar ela ir. Depois desse sonho que eu fui melhorando, começando a ter gosto na vida, mas eu já estava a dez dias sem trabalho. Meu chefe me ligou pessoalmente, “você tem que voltar ao trabalho, Cecília, porque isso é abandono, a vida é assim, vem”, eu falei: “Eu não tenho condição de ir”, eu era motorista de ônibus, não tem condição. Eu não tenho condição, mas eu fui. Eu fui melhorando a partir desse sonho, a partir desas visão. Nunca mais na vida eu sonhei com ela, pra não dizer nunca mais, eu estava deitada um dia, aí eu senti alguém me tocando, sabe? Aí eu acordei assim, eu olhei, ela estava indo. Acho que ela veio me dar tchau, né? Dizer que estava indo. Nunca mais eu tive um sonho com a minha mãe, nunca mais. Foi assim, pra mim foi a maior presença de Deus na minha vida, foi esse dia, que ela me deu esse presente, que eu senti ela. Eu senti ela.
P/1 - Nossa, que forte esse sonho. E aí eu queria te perguntar, você era do… Como era o seu bairro?
R - Meu bairro assim, acho que eu tive uma infância feliz, apesar do meu pai, porque eu tinha uma mãe parceira, entendeu? Tipo assim, meu pai não deixava eu ir à rua de jeito nenhum, meu pai não deixava nada, mas ela deixava, sabe assim? Tipo assim: “O seu pai está dormindo” (risos), aí eu ficava meia hora na rua com as crianças, queimada - meu tempo tinha tudo isso - queimada, esconde-esconde, jogo de vôlei, porque eu morava - meu pai mora lá até hoje - é um final de rua, e no final de rua tem um braço de mar, que a gente chama de prainha, então ali tudo era areia, e muito bonito. Só que tinha tudo, a favela no canto, os cavalos, mas pra criança não tinha um lugar melhor no mundo, pra brincar, pra correr, pra se divertir, pra fazer… E foi assim. A minha infância, não teve o que reclamar, não. Eu não curti muito, porque eu fui presa. Conheci o meu marido com quinze anos, então...
P/1 - Como você conheceu o seu marido?
R - Então, eu estava começando a entrar numa depressão, que hoje eu sei que é depressão…
P/1 - Calma, então… Como começou essa depressão?
R - Então, eu comecei a me sentir muito triste e sozinha, porque chegava a noite, no verão, o pessoal toda na rua, brincando de queimada, pingue-pongue até meia-noite, uma hora da manhã, e eu tinha que entrar pra dentro, eu não podia ficar com ninguém na rua, de jeito nenhum. Eu via as minhas amigas passeando, eu via o povo saindo e eu não, meu pai: “Não, não, não”. Tinha até uma grade na minha janela, e eu ficava na grade olhando as coisas acontecendo, aí eu comecei a não… Sabe quando você não… Vai te dando uma tristeza, comecei eu mesmo a não querer sair do quarto. A minha mãe estranhou, porque o ponto forte - pra quem me conhece - é a alegria, eu sou uma pessoa extremamente alegre, gosto de rir, nasci pra dar risada, não estou nem aí, gosto de tirar sarro, eu sou assim - quem me conhece sabe - e eu não queria mais nada. Até que a minha mãe falou pra fazer o meu aniversário de dezesseis anos e eu não quis, eu falei: “Eu não quero festa”, aí foi um choque pro meu pai e pra minha mãe, porque a pessoa que mais amava festa era eu, adora - até hoje, eu adoro reunir, minha casa é um centro de convenções, sabe? Porque eu adoro - e eu não quis aquele aniversário, aquela festa, aí meu pai viu que era sério o negócio. Aí a minha mãe falou comigo - isso foi em dezembro - aí eu falei que não queria, não - minha festa de aniversário ia ser em março - falei que não, estava muito triste, não podia nada, não sei o que. E tem um bairro da área Continental que chama Maíta - não sei se vocês conhecem - e minha tia comprou uma casa lá, e todos os primos foram pra lá, porque lá era um lugar muito afastado, tipo na floresta, Maíta quando ele foi lançando, era dentro da floresta, o lugar no meio do nada, pra iniciar um povoado, tinha cachoeira... Todos os meus primos foram pra lá, menos eu, porque meu pai, imagine, inclusive o meu irmão mais velho.
P/1 - Mas meu pai tinha isso só com você?
R - Era, porque eu era mulher, mulher não podia nada. Na cabeça do meu pai, mulher não podia nada. Eu andava igual um menino, sempre com roupa de menino, calça jeans, não podia usar saia, não podia usar nada dessas coisas que o meu pai não permitia. “Mó” barato, meu pai era malucão. Aí minha mãe falou assim: “Você quer ir pra lá, filha?”, eu falei: “Quero. Eu quero muito ir pra lá”. Aí ela falou assim: “Então você vai”. Eu tomei até um choque. Aí: “Você vai também, você vai pra lá”. Meu irmão ficou doido, o mais velho, que não vai _________, seguiu o pensamento do pai. Mas eu fui, e chegando lá, primeira saída, eu saí, aí eu cheguei lá, ele estava namorando, o meu marido, ele era da turma dos mais velhos, eu era da turma dos caçulas - o meu marido é doze anos mais velho que eu - e eu fui pra casa da minha tia pra ficar com a minha prima, que era da mesma idade que eu, meus priminhos da mesma idade, quinze, catorze anos, treze, e o meu marido já era dos meus primos mais velhos, meus primos já de vinte e poucos anos e tal, e a coisa foi “mó” engraçada, porque o meu primo tinha comprado um carro, não, ele que tinha comprado um carro, o meu marido, e eles passaram o dia todo arrumando o carro - na época só carro velho - arrumando e todo feliz que tinha comprado o carro e tal, e combinaram de a noite comer uma pizza e ir ao cinema, aí ele falou: “Ah tá bom, vou buscar a minha namorada pra ir”. Foi, quando ele chegou para pegar a namorada dele, a namorada dele não gostava da minha prima (risos), falou que não ia, que era pra ele ir sozinho. Aí ele voltou todo murcho, falou pro meu primo: “Olha, não vai dar pra eu ir, porque a minha namorada não vai, eu não vou de bico, não sei o que”, sozinho. Aí ele falou: “Não, não, tem uma prima minha aí, ela vai”, nem falou nada comigo, nem se eu queria ir, nada. Eu nem tinha roupa pra ir, pra sair, nada. Aí ele falou: “Então vamos, estava combinado, passando o dia todo limpando e arrumando o carro pra sair, né?” Aí minha prima veio correndo, “vamos, vamos, não sei o que”. Eu não sabia nem cortar a pizza. Aí ela pegou uma roupa dela, um sapato dela, tudo dela, porque eu não tinha roupa de menina, essas coisas, era só tênis, meu pai comprava tênis. Aí a Simone... Caramba, a Simone foi marcante, uma grande amiga. Essa Simone que é a esposa do meu primo, ex-esposa do meu primo.E a gente foi. E aí eu conheci o meu marido naquela noite, aí a gente foi na pizzaria, no cinema, depois fomos à praia, e ali já aconteceu o primeiro beijo, e a partir dali nunca mais nos separamos, até hoje. Tem 28 anos que a gente está junto, 24 anos de casado, e a gente está até hoje, e assim…
P/1 - E qual foi uma memória, além do primeiro beijo, com ele?
R - Quando eu descobri que eu não podia ter filho, também foi uma coisa difícil pra mim, porque todo mundo na vida sonha, né? Todo mundo tem seus sonhos (emoção), o meu sonho era ter uma mota, que eu achava lindo mulher ter moto, achava lindo, nossa, um dia eu vou ter uma moto; segundo, ser professora, meu sonho de infância era ser professora; e ter filhos, esses eram os meus sonhos. Então quando eu fui pega assim: “você não pode ter filhos, vai ser difícil você conseguir”, pra mim foi duro. A minha mãe estava viva, a minha mãe estava ali comigo. Só ela, a minha mãe e meu marido que sabiam, eu não conseguia falar pra mais ninguém, que eu não podia, que eu estava em tratamento, sabe? A família cobrava. Eu falava que eu não queria ter, eu não conseguia falar dos meus problemas, porque eu só falava com a minha mãe, ______, _______. Quando eu contei pra ele dos meus problemas, que o médico deu pouca chance deu conseguir, devido aos meus problemas, ele olhou pra mim e falou assim (emoção): “Cecília, tudo na vida tem um significado - ele falou - eu pensava que eu não conseguiria viver sem minha mãe, então eu pedi para Deus uma mulher, porque eu já estava com 26 anos e eu não via como me casar, as mulheres que eu conhecia, tal, não… E Deus me mandou você, então, para mim, me basta você” (emoção). E até hoje ele fala isso, depois de 28 anos o cara olhar pra você e falar: “Me basta você. Não me deixe nunca”, então o meu marido é um presente, meu marido é um presente. Deus levou minha mãe, mas programou ele pra mim, sabe assim? O cara mais bacana do universo é o meu marido (choro). A gente tem altos e baixou, como eu qualquer casamento, os casamentos… A gente tem aqueles zelos idiotas, aquelas coisas bobas, que a gente se arrepende amargamente, mas não no mundo um cara mais parceiro. Hoje eu me ajoelho toda noite, eu juro pra vocês, eu não saio de casa sem rezar o terço, posso ter que sair cinco horas da manhã pra trabalhar, eu levanto as quatro pra eu rezar o terço, pra poder sair de casa, eu não sei sair sem rezar. Em todas as minhas orações é o que eu peço: “Meu Deus, dê saúde pro meu marido, não leva ele antes de mim, meu Deus, não leva”. O meu marido é o que eu tenho de melhor na vida, é esse homem. A pessoa que eu mais gosto na vida é ele. É o meu marido.
P/1 - Você falou que queria ser professora…
R - Foi, meu sonho.
P/1 - Teve alguma professora que te marcou?
R - Olha, na infância, não. Eu gostava do legado mesmo, eu queria ensinar, eu sou assim, até hoje eu sou assim, eu gosto de falar, não tenho problema de falar em palestras pras pessoas, eu não tenho vergonha de quase nada nessa vida, mas desde criança eu queria ser professora, as minhas brincadeiras era sempre querendo ensinar os pirralhos da rua, era sempre assim. E eu fiz o Magistério, me formei no Magistério, quando foi pra fazer a Faculdade de Pedagogia, aí eu tive que fazer os estágios, né? Ali eu vi que eu não nasci pra isso, assim, não que eu não tenha nascido pra ensinar, mas como eu te falei, a minha infância foi boa, o meu pai me colocou numa redoma de vidro, na qual eu tinha dois irmãos, o caçula e o mais velho, que também me protegiam, eu fui muito superprotegida do mundo, da realidade do mundo, das coisas do mundo, então quando eu caí pra vida foi um choque de realidade, aí eu lembro que a decisão que eu tomei, que eu falei: “Eu não quero ser professora, não vou estudar pedagogia, não vou para frente com isso”, foi quando eu fiz um estágio numa favela, tinham crianças totalmente humildes, e eu fiquei uma semana lá, a professora não foi e eu tive que ficar a semana toda, e a realidade daquelas crianças mexeu com a minha cabeça, eu não conseguia digerir, achar aquilo normal, que eu tinha que ensinar… Eu me envolvia com o problema deles, eu queria trazer roupas pra eles, eu queria alimentá-los, coisas que não tem nada a ver, né? Eu lembro que, foi marcante pra mim o dia que eu levei um monte de giz de cera, giz de cor, tudo que eu tinha, joguei lá, levei folhas sulfites, falei pra eles: “Ó, eu quero que vocês façam um desenho, desenho livre, desenhem o que vocês quiserem fazer”. Aí cada um pegou, começou a fazer - criancinhas pequenininhas, de quatro, cinco anos, no máximo, era aqueles colégios que a mãe vai trabalhar e deixa - meu, criancinhas pequenininhas, nossa, xuxuquinhas, tudo cheirando mal, tudo com feridas abertas, era uma situação, que na minha realidade eu nunca tinha visto, foi muito chocante, mas tudo bem, eu levava remédio, e aí eles trouxeram os desenhos e eu não conseguia entender aqueles desenhos, aí chamava eles: “Vem cá, o que é esse desenho aqui?”, “ah esse aqui foi quando o meu pai levou um tiro na testa, aí o sangue começou a descer, ó, tá vendo que eu fiz o sangue dele? Aí ele caiu…”, cinco anos de idade - eu me arrepio, só de lembrar daquela situação - e eu fiquei meio: o que eu falo pra uma criança de cinco anos com um desenho desse, cara? Aí chamei o outro: “Ah, e esse desenho aqui…?”, “esse aqui foi quando a gente foi pescar e o meu tio morreu, aí meu tio caiu…”, sabe? Aí chamei o outro: “Não, isso daqui foi quando veio a facada, aí cortou…”, meu, as crianças tinham cinco anos cara, eu falei: “Não dá para mim, eu não consigo. Eu não consigo”. Era muitos desenhos de tragédias, mortes, sem cabeça, eram umas coisas que eu falei: “Gente, uma criança de cinco anos não desenha isso”, desenha árvore, desenha flor, desenha… Aí eu falei: “Não, porque quando eu me formar como professora, eu não vou querer escolher a onde eu vou trabalhar ‘ah, na favela eu não vou trabalhar’, não. Se eu for professora, aí que eu vou querer ajudar, que eu vou querer estar...” e isso ia acabar comigo. Foi a melhor decisão da minha vida, porque o meu emocional, o meu psicológico, a minha cabeça não ia aguentar, não ia aguentar. Aí foi quando eu decidi, falei: “Eu não vou mais por esse caminho, não quero”.
P/1 - E aí você foi por qual caminho?
R - Então, aí eu tava em casa, assim, e estava tendo, em São Vicente, um negócio de Lotação, pra dirigir lotação e tal, e tinha uma prima minha que falou se eu queria trabalhar com ela e tal, e eu não estava fazendo nada, aí eu peguei, tirei a carta de ônibus e comecei a trabalhar ali, pra passar o tempo, e foi indo. Depois que eu saí da Lotação eu entrei numa empresa de ônibus, trabalhei sete anos nesse empresa, aí depois que eu saí dessa empresa de ônibus, uma amiga minha, a Ana, ficou me perturbando pra tirar a carta de caminhão, e pra mim era o sonho dela, nunca foi meu, assim, eu nunca me imaginei dirigindo um caminhão, mas nessa eu já tinha feito faculdade, Faculdade de Logística, depois que eu terminei eu fiz pós-graduação em Gestão Estratégica de Negócios, fui fazendo outras coisas, que eu gosto muito de estudar, gosto muito de ler, isso eu herdei da minha mãe, graças a Deus. E aí eu acabei fazendo, eu e ela, e ela falava assim: “Nossa, nós vamos entrar na BTP, nós vamos trabalhar lá, nós vamos trabalhar juntas, não sei o que”, e acabou que eu entrei primeiro do que ela. Eu enviei o meu currículo e eu entrei e um ano e quatro meses depois ela entrou, e aí eu puxei, pedi para o meu gestor puxar ela pra minha equipe e hoje a gente trabalha juntas, mas eu nunca imaginei dirigir uma carreta, nunca.
P/1 - Como foi o primeiro dia que você… O momento que você dirigiu uma carreta?
R - Então, foi meio traumático (risos), porque quando eu fui fazer a entrevista, eles me perguntaram: “Você já trabalhou com carreta?”, “não - tinha acabado de sair da autoescola - nunca trabalhei em carreta”, “você fala no rádio PBX?”, eu falei: “não, nunca falei no rádio PBX”, “você já entrou no Terminal de Cargas?", “não, nunca entrei num Terminal de Cargas”, “você já trabalhou em turnos?”, “não, nunca trabalhei de turnos”, aí ele olhou pra mim e fez assim, aí eu olhei pra ele e falei assim: “Mas eu estou aqui pra aprender, eu quero entrar, eu quero aprender”. Aí eu pensei que não tinha passado na entrevista, falei: “Não, esse cara não vai me passar”, mas aí ele passou. Aí fui fazer o treinamento e tal. Para mim foi um choque entrar no Porto [de Santos], um choque, nossa, foi um BAM, porque, como eu te falei, superprotegida, não tinha nem noção o que era o Porto de Santos, o que eu sabia do Porto de Santos é o que eu via na TV, de vez em quando uma notícia no Jornal Nacional, eu não imaginava, jamais, nada. Eu sou soube um pouquinho mais do Porto na faculdade, que fala muito [de] logística de Porto, mas eu não tinha noção nenhuma, nenhuma noção. É assustador quando você entra lá dentro. É um local extremamente perigoso, a qualquer momento você pode morrer, lá tudo é perigoso, qualquer coisa é perigoso, até de você andar lá dentro é perigoso, porque as máquinas são gigantes, os contêineres são enormes, cheio geralmente, toneladas, pilhas gigantes, as máquinas pesadonas, o tempo todo, não para, rotatividade tremenda, o negócio é punk, e é muito assim… Eles são muito focados em segurança, muita, e realmente precisa, porque um segundo de distração, é uma tragédia enorme, então pra mim… (Pausa). E eu não dei sorte de pegar um bom gestor, o meu gestor foi meio cruel comigo… Entrei junto com a Ana Lúcia e ela já tinha experiência, ela tinha trabalhado em outros portos, então ela tava… Eu não, não sabia nada, mal sabia dirigir a carreta. Imagina, você pegar uma pessoa que não sabe nada, eu não entendia o que eles falavam no rádio, eu não conseguia dormir direito - porque você tem que dormir em horários diferentes - eu não conseguia comer direito - porque um dia você almoça às dez e meia, outro dia você almoça as duas e meia, outro dia você não almoça, que não dá tempo - então o meu organismo teve que se organizar, minha cabeça teve que se acostumar, e eu não tive muita ajuda desse gestor, ele não teve paciência, sabe? Ele queria que eu chegasse fazendo, e eu tinha muito medo, eu tava muito insegura, eu morria de medo de tudo, nossa, foi muito, muito difícil o meu começo no Porto, foi dolorido. Eu achei que eu não ia conseguir, que eu não era capaz, eu falava pra Deus - que eu falo muito com Deus - eu falava: “Deus, se tu me colocou lá dentro, tem alguma coisa pra mim, só que eu não me sinto capaz, cada dia que passa eu me sinto menor, mais humilhada”, porque o meu gestor era grosseiro, era… Eu tinha medo de perguntar as coisas, e ele dava fora no rádio, pra todo mundo ouvir, presa né? Cada vez mais presa. A equipe não, eu não posso falar da equipe. A equipe foi maravilhosa, todo mundo me ajudou, os operadores de RTG, os operadores de baixo, toda a galera, capatazia, os TTs - que são os caras que trabalhavam comigo - me ajudavam em tudo que eles podiam, mas tinham certas coisas que era só o gestor, foi muito ruim pra mim. Essa pessoa… É outra pessoa também que eu fico com aquela mágoa dentro, que eu falo: “Poxa, ele devia ter mais carinho com quem começa, mais cuidado”, ele não tem que fazer nada por mim, mas ele pode fazer com que o meu dia seja melhor. Moral da história, ele pegou e me mudou de equipe, me tirou da equipe dele, não me quis mais na equipe dele; eu me senti um lixo, desprezada, sabe? Eu falei: “Meu Deus do céu, ele não me quis na equipe dele, eu sou nada”, fora a parceria que eu já tinha com o pessoal, já conhecia todo mundo, e a Ana Lúcia. Foi dolorido, foi outra paulada que eu levei. Eu quis desistir, eu quis sair de lá, com seis meses que eu estava lá, eu quis sair. Eu fui para outra equipe, pra você ver como é Deus, eu acho que a pessoa que ora e pede a Deus, ele nunca te abandona, nunca. Você pode até não entender os desígnios dele, porque ele levou você por esse caminho, mas Deus vai te gratificar, se você dobrar o seu joelho e conversar com ele. Aí fui para essa outra equipe, e lá sim, eu faço questão de falar, foi o supervisor Alberto, esse caro eu nunca vou esquecer na vida, sensacional, o homem era maravilhosa, em todos os sentidos, não só comigo, com todos. Até hoje - eu estou lá há três anos e pouco - eu não vi uma única pessoa falar mal desse homem, e olha que supervisor todo mundo tem uma queixa, supervisor, né? Não tem jeito, não agrada todo mundo. Até hoje eu não ouvi falar desse cara. Parece que Deus me mandou certinho pra equipe certa. Ele falou pra mim: “Cecília, não desiste, você vai conseguir, é calma, aqui ninguém ta pedindo pra você correr, tá certo que aqui é produtividade, tem que produzir, mas ninguém está pedindo pra você correr, se sinta segura. Você vai colocar o caminhão numa bay, você não se sentiu segura? Espero um outro colocar, presta atenção onde o cara pôs a roda, vê qual foi a manobra que o cara fez, se o cara fez, você também faz…" Aí, eu me arrepio quando lembro dele falando isso pra mim. Ele me inflamou, ele me deixou de um jeito que eu devo à ele hoje o meu emprego. Hoje eu amo o que eu faço, eu faço rindo, eu vou pra lá sorrindo, eu adoro, eu acordo animada que eu vou trabalhar. Cara, eu vou pegar minha carreta, e eu vou trabalhar, eu vou produzir - e eu produzo mesmo - hoje eu posso dizer que eu trabalho, que o pessoal me admira hoje, eles falam pra mim: “Caramba Cecília, não sei o que”. Tem produtividade, quando é apresentada, o meu nome está lá em cima. Hoje eu me sinto super orgulhosa, eu, hoje, falo: “Eu me acho, eu me sinto o máximo”, porque eu faço o meu trabalho perfeitamente, corretamente, eu sei fazer, não tenho medo quando me chamam, faço tudo como eles mandam, sigo os procedimentos, sabe? E eu agradeço esse Alberto, que ele foi o gestor. Se todo gestor fosse que nem ele, não tinha profissional ruim. Ele é o tipo do cara que te resgata, te conhece… E ele é assim com todos. Não é assim: “Ah, porque ela é mulher, quis dar uma atenção”, não. Ele é assim com todos os funcionários dele, todos os funcionários fazem questão de apertar a mão dele, eu acho isso incrível. Quando ele está parado lá no (costado?), porque geralmente quando a gente vê o nosso encarregado encostado a gente desvia, vai embora, essa é a realidade, tu vai lá encarar, tu vá levar uma bronca. Ele… Eu vejo o pessoal saindo lá do outro lado só pra: “Oi Alberto”, ele: “Ô nego, valeu, bom trabalho, bom descanso”. Aquela pessoa que as pessoas fazem questão de estar lá. Eu falo: “Se um dia eu for alguém, eu quero ser igual a ele”.
P/1 - Nossa…
R - É verdade.
P/2 - Você falou que não pode ter filhos, não sei se você… Se você quiser tocar nesse assunto, gostaria de saber qual é o problema?
R - É então, eu acho que a maior frustração da minha vida foi essa, a de não ser mãe, porque era o meu maior sonho, o meu maior desejo, a minha maior vontade era ser mãe. E aí eu me casei, certinho, tomando remédio… Quando deu um ano que eu estava tomando remédio, eu falei pro meu marido assim: “Eu vou parar, eu quero filho”, aí ele: “Aí, não é muito cedo. É muito cedo, só tem um ano”, aí eu falei: “Ah, ta bom”, aí tomei mais seis meses o remédio e parei por conta própria, nem falei pra ele. Falei: “Quando eu falar, já vou estar grávida” (risos). Eu lembro que eu parei em julho, aí levou um ano, em julho, sem tomar remédio e nada. Aí eu falei: “Meu Deus, vou ao médico”. E o meu médico cuida de mim desde que eu tenho doze anos, meu médico me conhece como ninguém, aí ele falou: “É Cecília, um ano tentando é muita coisa, deve ter algum problema, vamos procurar”, aí pediu um monte de exame… Ele pediu o exame dele, né? Aí eu fui e falei pra ele que eu tinha ficado um ano sem tomar pílula e que não tinha vindo, que ele precisava fazer o tal do espermograma” - que nenhum homem quer fazer esse exame maldito -, mas ele foi. Aí o espermograma dele excelente, o médico até explicou que um homem engravida uma mulher até o esperma E, A, B, C, D, E. Até o esperma E ele consegue engravidar uma mulher. O do meu marido era tipo A, os espermas todos espertos, todos alegres, todos rápidos, todos excelentes, a quantidade, a rapidez, perfeito, meu marido, perfeito. Aí descobriu que eu tinha endometriose e útero invertido, o meu útero não tinha a boquinha pra cá, tinha pra dentro, que já era um dificultador de engravidar, mas não impedia, mas a minha endometriose já estava severa, no quinto grau, nas duas trompas, não era nem em uma, era nas duas, completamente congestionada. Aí o médico falou: “Olha Cecília, difícil, mas vamos tentar”, aí fiz a cirurgia, desentupiu elas e não sei o que, só que toda vez que eu menstruava, sujava de novo, eu não podia menstruar, eu tinha que tomar um anticoncepcional direto, sem pausa, e como eu ia engravidar? Então… O médico fez de tudo, gente. Nossa, o que ele pode fazer de medicina ele fez. Eu fiz inseminação artificial, eu fiz bebê de proveta, eu fui no [Hospital] Pérola Byington, Pérola Byington é um hospital especialista na infertilidade feminina e é tudo de graça, só que a lista de espera é gigante, levou cinco anos pra eles me chamarem, enquanto isso eu fazendo tratamento, eu vendendo tudo que eu tinha e não tinha pra poder realizar esse sonho, aquela loucura, e isso eu vivendo sozinha, eu, minha mãe e meu marido, ninguém sabia que eu estava vivendo aquilo. Aquela angústia, aquela coisa era só de nós três. Foi muito difícil. Eu fui pro Pérola Byington - fui até com a minha mãe - nós duas perdidas em São Paulo, foi muito legal (risos), eu e minha mãe perdidas em São Paulo e a gente indo achar o hospital e ela ia comigo. Fiz pelo Pérola Byington também a inseminação, fiz tudo, nada deu certo, eu nunca nem atrasei, nada deu certo, nada. Foram dez anos de muito luta, muito loucura, tudo que a pessoa ensinava eu ia, todos os hospitais que tinham eu ia, tudo que o meu dinheiro podia pagar eu pagava, que meu marido graças a Deus é um cara de boa situação, trabalhava com uma empresa de Cubatão de grande nome e ele tinha um bom cargo, então ele fez de tudo, até que ele mesmo falou pra mim: “Chega. A gente não vai gastar mais nenhum tostão com isso, a gente não vai mais. Você está enlouquecendo. Você não tem outro assunto, você não fala mais nada, você não… Para. Chega Cecília, chega. Você tem tanta confiança em Deus, se Deus não está te mandando, alguma coisa tem, ele está te poupando de alguma coisa, Cecília, para”. Aí foi quando eu parei e vi que não tinha feito nada, não tinha feito faculdade, não tinha feito nada da vida, não tinha… Nada. Minha vida nesses dez anos foi tentar ter filho, foi tentar ser mãe, foi assim… Eu fui pra psiquiatra, psicólogo, foi muito difícil pra eu conseguir sair daquela depressão, daquela angústia, sabe? Aceitar que eu não ia ser mãe. Tanto que eu fui trabalhar aos 33 anos de idade. Meu primeiro emprego eu tinha 33 anos de idade, porque eu não pensava em trabalhar, eu não pensava em ser uma mulher independe, não, eu queria meu filho, era só o que eu queria. Aí muita gente fala assim: “Porque você não adota?”, eu fui numa instituição com a intenção de adotar, falei: “Não, eu vou. Vamos ver, Cláudio, se a gente adota alguém”, eu já tinha 35 anos. Aí eu fui. As crianças pareciam bichos, sabe? Grudadas em você. “Tia, tia”, um desespero, sabe? Várias crianças, pequenininhas, grandes, nossa. Eu fiquei olhando, eu falei: “Meu Deus, eu tenho que escolher alguém? Eu tenho que escolher alguém”. Eu vi no canto um menininho - devia ter uns três anos, Marcelinho o nome dele, não esqueço até hoje. É um fato que eu me arrependo, eu deveria ter adotado esse menino, mas eu não adotei - ele estava ali no cantinho, parado. Aí eu peguei, saí das crianças e fui lá, falei: “Marcelinho…” - aí eu perguntei o nome dele, ele falou que era Marcelinho, sem olhar pra mim, rabiscando - aí eu falei: “Você não quer ser adotado também? Você não quer ser adotado?”, aí ele soltou o lápis, olhou bem dentro do meu olho, sabe? O olho cheio de lágrima, e falou: “Vocês pegam a gente e depois devolve”, cara… Foi como se o chão tivesse aberto - aí, to toda arrepiada de novo, lembranças. Eu olhei assim, eu olhei aquela situação, eu falei: “Meu Deus, o que eu estou fazendo aqui?”. Levantei, peguei minha bolsa, fui embora, fui direto pra igreja, falei: “Deus, eu só vou adotar alguém se aparecer na minha vida - se um surgir, uma pessoa que vai dar, uma pessoa drogada, sei lá - se surgir na minha vida alguém, eu vou adotar, mas eu ir numa instituição novamente atrás de uma criança, nunca mais”, eu não tenho psicológico pra essas coisas, gente, não tenho. Eu sou uma pessoa extremamente sensível ao ser humano, as pessoas, eu me envolvo… Depois de anos eu pensei: eu deveria ter pego o Marcelinho, pra dizer pra ele que não é todo mundo que devolve”. Me arrependo muito de não ter pego o Marcelinho pra mim, eu penso nisso com um remorso gigante, só Deus sabe. Mas infelizmente naquela época eu não tive maturidade, eu não tive... Não fui madura pra entender o que Deus estava me propondo, que a proposta de Deus era aquela: está aí teu filho, é só tu levar, e eu não entendi, passou. Aí foi assim.
P/1 - Nossa… É, bom, pra gente ir encaminhando… Eu ia te perguntar se você sentiu alguma diferença em estar trabalhando em um emprego de homem, carreta, se teve algum olhar… Como você se sentiu, sendo mulher, teve algum olhar diferente em relação…
R - É um ambiente extremamente machista, é uma coisa impressionante, como nos tempos de hoje, você sendo mulher, você não é aceita no ambiente deles, é assim muito cordial, é todo mundo muito amigo, é todo mundo muito legal, mas… Tem um “mas”, sabe? Eu senti muito o fato deles serem extremamente machistas, e eles falam assim: “Não é mulher que quer ter os direitos iguais? Você quer ter os direitos iguais…”, mas não tem como, uma mulher vai ser sempre uma mulher, um homem sempre vai ser homem, nunca eu vou ser mais resistente do que tu, eu nunca vou ter mais força do que tu. Que nem quando eles falam pra desatrelar um caminhão, sabe? Para um homem é mais fácil desatrelar um caminhão, agora para uma mulher sempre vai ser mais difícil desatrelar um caminhão. Tirar uma carreta, colocar outra carreta, entendeu? E eles não querem nem saber, vai, se vira que o problema é seu, é extremamente machista assim. Eu fico vendo a hora de ir ao banheiro, porque a gente trabalha seis horas e a gente tem direito a quinze minutos para ir ao banheiro, antigamente a gente tinha que chamar: “Controle, posso parar o carreto pra ir ao banheiro?”, nunca eles davam preferência para as mulheres, que se dane se você vai conseguir ir ou não. Você é mulher, sabe que mulher com banheiro é uma coisa que é extremamente necessário, a mulher precisa estar no banheiro até pelos nossos dias e tal, estavam nem aí. Até hoje eles são assim. É um ou outro que você vê que é um cara de caráter, que é um cara que quer te ajudar, que te vê como uma mulher. Porque querendo ou não, você sendo homem, você tem uma mãe, você tem uma irmã, você tem uma filha, aí chega no trabalho e você é um animal com a sua parceira, tu é grosseiro, tu é estúpido, tu que se dane, pô, tu gostaria que fizessem isso com a sua filha? Eu lembro até de uma situação que a gente viveu lá, negócio de banheiro também, aí um veio e falou: “Ah, aqui não é lugar pra mulherzinha, não sei o que, aqui é trabalho de homem”, eu falei: “Olha, você tem toda razão, é um trabalho machista, é um trabalho pesado, aí que vocês deviam dar valor pra mulher que consegue fazer essa trabalho pesado, a mulher que chega junto, que trabalha seis horas com vocês aqui na madrugada. Só que quando a gente chega em casa, vocês vão dormir, a gente vai lavar roupa, vai lavar quintal, vai fazer comida. Tu, quando chega pra almoçar em casa, uma e meia da tarde, está lá o seu almoço, querendo ou não, mesmo que a sua mulher tenha ido trabalhar, ela deixou preparado pra você - é muito raro a mulher que não se incomoda com o seu marido, é raro, pelo menos eu acho que é raro - eu não, se eu quiser que comer, eu vou ter que fazer, então tem uma diferença entre homem e mulher, não tem jeito. E eu não estou aqui pra ensinar vocês, hombridade, cavalheirismo, educação, isso é papai mamãe que dá, filho, não sou eu, não sou eu que vou te ensinar a ser homem”. Acabou a conversa (risos). E é verdade, eu não estou aqui pra ensinar alguém a ser homem. Essas coisas você adquire de família, de pai e mãe. O seu pai ensina a respeitar uma mulher, o seu pai te ensina, não sou eu que vou chegar pra você e falar como você deve agir com uma mulher, mas é complicado, viu? O Porto é complicado. Por mais que eles sejam amigos, tem uns… Eu fico muito assim… Não é chateada, mas quando eles fazem festa, as mulheres não podem ir, sabia? Tem churrasco, as mulheres não vão. As mulheres só podem ir se as esposas deles forem, entendeu? Se as esposas deles foram, aí a gente pode ir. E aí eu me pergunto: “As esposas estão lá de madrugada? As esposas estão lá junto com a gente na chuva desatrelando carreto, sofrendo pressão? A gente é uma equipe ou não é? Então quer dizer que a gente é equipe lá dentro, quando sai de lá a gente é rejeitada”, isso chateia. Isso é mais uma prova de machismo, tipo assim: porque a gente… Equipe não pode estar junto? Eles fazem isso, muito isso lá, é bem descriminatório mesmo. Que nem, para você entrar no Porto, você não precisa entrar de uniforme, então as vezes, vai, está em algum lugar com shortinho, vai, nossa, se você for entrar no porto de shortinho, imagina o que você vai ouvir, ainda mais sendo uma mulher casada, nossa… Então quer dizer, o preconceito lá é gigantesco, contra a mulher. Não pode dar um sorriso, um abraço, nada, imagina isso, tá loca?
P/1 - E teve algo que você fez pra superar isso? Enfrentar…
R - É aquele negócio que eu te falei, eu não tenho vergonha de nada, e eu não me importo com as opiniões das pessoas, a única opinião que me importa é a do meu marido, nem a do meu pai me importa mais, a opinião, o que me importa, é o meu marido. Se o meu marido falar para mim: “Cecília, esse shorts não está legal pra você ir para o Porto”. Na mesma hora eu tiro, e eu não me sinto submissa a ele, porque eu sei que ele não é um homem machista, que ele não se importa deu andar de shorts, ele não se importa com as roupas que eu uso, nunca chamou a minha atenção a isso, mas se ele falar, eu sei que ele está certo, porque está demais, entendeu? Porque eu sei o caráter do meu marido. Ele não vai falar por causa de ciúminho, por causa de coisinha, não, ele só vai falar se tiver demais. Então a única opinião que me importa, nessa vida, é do meu marido. E acabou. Eu não me importo com o que os meus irmãos pensam de mim, meus sobrinhos, minhas cunhadas, minha família, meus primos, meus amigos, não me importa, entendeu? Eu faço o que eu quero, o que eu gosto, da minha maneira. Se incomodar alguém é o meu marido, a esse eu não quero magoar, entendeu? A esse eu vou poupar, o resto… Eu vou vivendo a vida, quem quiser que me acompanhe. Eu sou assim.
P/1 - Teve algum momento que te marcou no Porto?
R - Essa saída da equipe. Essa saída da equipe assim, foi… Como eu falei, uma paulada na minha cabeça assim, que eu quase pirei, foi dolorido, foi injusto, eu me senti totalmente injustiçada, eu demorei muito para superar, eu não conseguia nem olhar para esse supervisor.
P/1 - Como rolou essa saída da equipe mesmo?
R - Então, o meu supervisor achava que eu era muito mole, que eu era muito devagar, que eu não acompanhava a equipe, que eu era muito insegura, então ele simplesmente me transferiu de equipe.
P/1 - Aquele primeiro, né?
R - É. Esse momento, pra mim, foi muito marcante, muito dolorido.
P/1 - Teve alguma coisa na sua história de vida que você não falou ainda, que você quer falar?
R - Eu acho que vocês tocaram nos assuntos mais guardados dentro do meu coração, que é sobre a morte da minha mãe, que eu não costumo falar nunca - porque como vocês viram, mexe comigo, completamente - vocês falaram também sobre o amor da minha vida, que é o meu marido, que é a pessoal mais especial que eu conheci na vida. Às vezes eu olho pro céu e falo: “Meu Deus, porque tu me deu esse homem?” (emoção), sabe assim, eu me sinto extremamente privilegiada. Eu olho pra ele e falo: “Meu Deus do céu… Ainda existem homens assim?”, aí vocês falaram sobre o assunto do meu filho, que não veio. São assuntos que… Vocês falaram da minha profissão, que hoje eu amo, nossa eu não me vejo longe do Porto hoje, tudo que eu quero hoje é crescer no Porto, sabe? O que mais me dói nessa empresa é a falta de oportunidade, porque é muito difícil crescer lá, mas eu sonho e eu vou continuar sonhando, nem que eu morra na carreta lá, mas eu vou continuar sonhando, estudando, crescendo, vou continuar tentando, fazendo cursos, o que aparecer… É isso aí gente, minha vida é essa.
P/1 - Bom, queria te fazer uma… Como foi pra você contar a sua história?
R - Eu não pensei que eu ia falar sobre esses assuntos, sabe? Pensei que eu ia falar mais profissionalmente, assim… Eu estou me sentindo leve, tem muitas coisas que a gente guarda e não consegue falar pras pessoas. A morte da minha mãe é muito difícil pra eu falar, o fato de eu não ser mãe… Eu não me sinto menos mulher do que ninguém, do que nenhuma outra, mas eu já fui muito magoado por não ser mãe, pelas próprias primas, amigas, com palavras assim. Eu me sinto tipo um fio fora do contexto, porque todas as festas que você vai, todas tem filhos, então o assunto são os filhos, eu me sinto um pouco fora, sabe assim? E parece - eu não sei, pode ser que eu esteja enganada - mas tem algumas pessoas eu vejo que elas tem prazer em dizer que ela é mãe. Eu lembro de uma amiga minha, amiga mesmo, que ela falou assim: “Só mulheres abençoadas são mães”, caraca velho, aquilo foi um tiro, sabe assim? Eu vi que ela não falou por mal, mas depois eu pensei: “Ah não, ela falou por mal”, porque não tem como, ela sabe da minha luta, do meu sofrimento, da minha dor, falar que eu não sou abençoada porque eu não fui mãe. Isso foi dolorido. Muitas outras coisas eu ouvi calada, ouvi tipo assim: “Porque eu vou convidar ela pra festa do meu filho? Ela não tem filho”, sabe? Então eu não faço parte da família porque eu não tenho filho, entendeu? (emoção), passei a não ser mais parte. Aí, eu ouvi muita coisa. É que eu, graças a Deus, não dou muita importância, como eu falei, a opinião do meu marido me importa, se ele falar qualquer coisa pra mim me destrói, de derrota… (pausa). O meu marido é a opinião que me importa. Eu já fui muito magoada por causa disso, mas hoje dificilmente alguém me magoa. Às vezes uma pessoa escondia que estava grávida de mim, sabe? A coisa que eu mais feliz que eu ficava era quando eu via que alguém conseguia, porque eu sei o sofrimento que é não ter, então quando eu via que uma prima estava grávida, puta, eu ficava tão feliz, eu falava: “Caraca, que legal”, eu sempre senti felicidade de ver alguém grávida, entendeu? Mas fazer o quê? Cada um tem os seus pensamentos, né? Cada um… Hoje eu já não me importo mais com esse tipo de coisa, hoje não me faz falta. Hoje somos só eu, o meu marido e os nossos bichos, a gente vive com os nossos bichos, a maior felicidade do mundo são aqueles bichos lá em casa, os nossos salsichas e um gato, e estamos lá, felizes da vida, graças a Deus. Eu me considero uma pessoa feliz.
P/1 - Vou te perguntar uma última coisa, que é assim: se você pudesse levar só uma memória dessa vida. Se Deus te falasse: “Você só pode levar uma memória dessa vida”, qual seria?
R - Acho que seria o abraço da minha mãe (emoção), quando ela estava cheia de vida ainda, se eu pudesse levar pra vida, pra Deus assim, seriam coisas com ela, qualquer coisa com ela. Queria tanto que Deus me desse um dia com ela, um sonho com ela, qualquer coisa com ela, para mim, seria o meu melhor momento. Antes, quando a gente andava de mãos dadas, que ela me segurava, os conselhos, aí meu Deus, como eu sinto falta, daquela sabedoria, daquela inteligência, daquele jeito dela amar o próximo acima de tudo, amar sem querer nada em troca, é o que eu pedia da vida, um momento com a minha mãe.
P/1 - Muito obrigado.
P/2 - Muito obrigada Cecília.
R - Obrigada vocês.
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