Projeto: Diversidade e Inclusão no Mercado Financeiro - Banco Pan
Entrevista de Danielle Torres
Entrevistada por Bruna Oliveira
São Paulo, 24/08/2022
Entrevista n.º: PCSH_HV1235
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Dani, para começar eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Então está bom. Meu nome é Danielle Torres, nascida em 5 de maio de 1983, em São Paulo.
P/1 - E quais os nomes dos seus pais?
R - Meu pai se chama Sérgio Augusto, minha mãe Maria Lúcia.
P/1 - E como você os descreveria eles e como eles se conheceram?
R - Minha mãe, uma pessoa muito amorosa que sempre cuidou muito de mim. Ela teve uma vida relativamente curta, faleceu aos 46 anos de idade, mas foi uma vida muito plena também, ao mesmo tempo e foi uma pessoa muito importante na minha vida. O meu pai sempre foi uma pessoa muito focada no trabalho, em questões um pouco mais dele, eu nunca tive um relacionamento tão próximo com ele, como eu tive com a minha mãe. Eles se conheceram em Juiz de Fora, em Minas Gerais, que eu me lembro da história, foi na saída de um clube.
P/1 - E como era essa relação com a sua mãe?
R - Com a minha mãe, como eu disse, muito próxima, eu estava sempre com ela, ela sempre gostou... a gente tinha um conjunto de interesses comuns muito interessantes. Por exemplo: a gente gostava de música, ela tocava teclado, eu cantava, ela me incentivava a tocar violão, a gente cantava juntas em coral. Então, tinha uma série de atividades. E eu lembro também que ela me incentivava muito a percorrer o caminho de artes marciais, e é muito interessante porque, quando ela faleceu, eu parei de lutar. Eu lutava o caratê quando era criança, quando ela faleceu eu parei de lutar e eu só voltei para o tatame no final do ano passado, então eu comecei tudo de novo, comecei pela faixa branca, em breve estou graduando de novo, já, mas enfim,...
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Entrevista de Danielle Torres
Entrevistada por Bruna Oliveira
São Paulo, 24/08/2022
Entrevista n.º: PCSH_HV1235
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Dani, para começar eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Então está bom. Meu nome é Danielle Torres, nascida em 5 de maio de 1983, em São Paulo.
P/1 - E quais os nomes dos seus pais?
R - Meu pai se chama Sérgio Augusto, minha mãe Maria Lúcia.
P/1 - E como você os descreveria eles e como eles se conheceram?
R - Minha mãe, uma pessoa muito amorosa que sempre cuidou muito de mim. Ela teve uma vida relativamente curta, faleceu aos 46 anos de idade, mas foi uma vida muito plena também, ao mesmo tempo e foi uma pessoa muito importante na minha vida. O meu pai sempre foi uma pessoa muito focada no trabalho, em questões um pouco mais dele, eu nunca tive um relacionamento tão próximo com ele, como eu tive com a minha mãe. Eles se conheceram em Juiz de Fora, em Minas Gerais, que eu me lembro da história, foi na saída de um clube.
P/1 - E como era essa relação com a sua mãe?
R - Com a minha mãe, como eu disse, muito próxima, eu estava sempre com ela, ela sempre gostou... a gente tinha um conjunto de interesses comuns muito interessantes. Por exemplo: a gente gostava de música, ela tocava teclado, eu cantava, ela me incentivava a tocar violão, a gente cantava juntas em coral. Então, tinha uma série de atividades. E eu lembro também que ela me incentivava muito a percorrer o caminho de artes marciais, e é muito interessante porque, quando ela faleceu, eu parei de lutar. Eu lutava o caratê quando era criança, quando ela faleceu eu parei de lutar e eu só voltei para o tatame no final do ano passado, então eu comecei tudo de novo, comecei pela faixa branca, em breve estou graduando de novo, já, mas enfim, foi um recomeço. Então, com ela sempre foi uma relação muito gostosa, muito próxima, parecia que a gente tinha uma afinidade, assim, sabe, sei lá, de mãe e filha mesmo.
P/1 - E você chegou a conhecer os seus avós?
R - Eu conheci minhas avós, os avôs faleceram antes do meu nascimento, inclusive, mas as minhas avós foram muito longevas. A avó, quer dizer, a mãe da minha mãe um pouquinho menos, mas eu a conheci quando eu era muito criança ainda, a gente morava inclusive no mesmo prédio, ela morava num apartamento, sei lá, dois ou três andares abaixo do nosso, e a minha avó, mãe do meu pai, a gente teve uma relação muito longa, ela faleceu há cerca de três anos, ela teve uma vida muito longa também, faleceu com noventa e tantos anos de idade.
P/1 - E você falou que seus pais se conheceram em Juiz de Fora. Como que foi essa... eles vieram para São Paulo, como foi? Eles moravam onde, antes?
R - Eles são originários de Juiz de Fora, os dois. O meu avô, inclusive, avô, pai da minha mãe, ele era professor da Universidade de Juiz de Fora, em Contabilidade também, que uma das minhas carreiras é a Contabilidade, e minha mãe era jornalista. Eu sei que meu pai veio a trabalho para São Paulo, buscando uma carreira na área de Engenharia, ele se formou engenheiro em Juiz de Fora e as oportunidades de trabalho estavam muito fortes em São Paulo. No final dos anos 1970, começo dos anos 1980, ele veio para São Paulo. E a minha mãe veio um pouco depois, um ou dois anos depois, ela veio também. E assim que ela teve meu irmão, ela parou de trabalhar. Acho que era um pouco comum isso, no passado. E aí, quando eu nasci também, ela continuou como mãe, ela não voltou ao mercado de trabalho. Como eu falei, como a vida dela foi muito curta, talvez hoje em dia ela tivesse até voltado, mas não teve a oportunidade, ela criou a gente nesse período.
P/1 - E você só tem um irmão?
R - Só tenho um irmão.
P/1 - Como é o nome dele e como era a relação de vocês, quando eram crianças?
R - Meu irmão se chama Paulo Sérgio. Quando a gente era criança, a gente tinha uma relação um pouco distante, em que pese, ele sempre teve para mim, no sentido que como eu era uma adolescente e criança trans, eu sofria muito bullying, muito preconceito na escola. E meu irmão, assim... eu tenho que colocar essa dimensão pensando que estamos nos anos 1980, não é como hoje, que as coisas são dialogadas, abertas, você é trans, mas ninguém fala isso, em respeito e vida que segue. Mas meu irmão me ajudava muito com essa questão do bullying, sabe, ele não deixava os rapazes virem bater em mim. Ele era um protetor. Quando eu fiz vinte e poucos anos de idade, a gente ficou, sabe, meio que não ficamos em numa relação muito gostosa e até que eu me afastei um pouco, aos trinta e pouco, que eu fui cuidar um pouco da minha saúde, ver como é que estavam as minhas questões, incluindo gênero e tudo mais. Mas foi muito interessante, porque aos 34 ou 35, foi por aí, ele me mandou uma mensagem falando: “Nossa, faz bastante tempo que a gente não se vê, eu queria reencontrar você”. E aí foi muito bonito, porque eu perguntei para ele: “Mas com quem que você quer falar, com seu irmão ou com a sua irmã?” Ele falou: “Mas é óbvio que eu quero falar com a minha irmã” e desde então a gente reatou os nossos ‘laços’ e eu brinco com ele, eu falo: “Cara, a nossa relação funciona agora. Irmão, irmão não dava muito certo, agora irmão irmã super funciona, é como deveria ter sido desde o começo”.
P/1 - E quando você pensa na sua infância, tem algum hábito ou alguma comida, algum cheiro, alguma data comemorativa, que remeta a esse período?
R - Cabelos compridos. Como eu desejava loucamente ter os cabelos compridos e eu só pude tê-los na adolescência. Mas, assim, eu super queria, desde que eu era muito pequenininha, sabe? Eu tinha primos que eram meio surfistinhas, eu falava: “Por que eu não posso ter? Eles têm, não sei o quê” “Não, mas eles, sei lá, são do Rio de Janeiro, eles são surfistas e tudo mais, em São Paulo não vai pegar bem, você vai ficar parecendo uma menina, tudo mais”. Então, assim, a minha infância sempre foi um ‘buraquinho muito grande no meu coração’, falava: “Nossa, por que meus cabelos são curtos? Por que não posso ter os cabelos compridos?” Fora disso, o violão, sempre comigo. Comecei a tocar, eu tinha sete anos de idade. Eu lembro que eu ia numa escola e naquele tempo, conservatório, sentava aquele monte de criança em círculo, com violão e o professor no meio, ele ficava tocando e a gente tinha que tocar igual a ele. Então, era muito gostoso essa época, foi numa época pré-internet, pré redes sociais, que a gente estava presente em tudo que a gente fazia. Isso era, sem dúvida, um aspecto gostoso dessa época. De culinária, a minha mãe nunca foi uma exímia, digamos, cozinheira, porque ela cozinhava para a gente, acho também isso era bastante comum, não tinha aplicativos, aquele monte de restaurante, era tudo, geralmente cozinhava, assim, em casa, e eu lembro que ela não era muito boa na cozinha, não. (risos) E, assim, eu sou vegetariana, mas eu me tornei vegetariana anos mais tarde. Quando eu era criança, a minha mãe fazia carne e tudo mais. Eu lembro que os pratos principais que ela fazia, sabe, era macarrão com salsicha, eram coisas não tão elaboradas, sabe, carne moída com cenoura. Enfim, eram essas coisas que eu comia, quando eu era criança. Mas é engraçado que eu sempre me incomodei, sabe, em comer carne, eu nunca... eu sempre falava: “Mas parece tão estranho e tudo mais”. Eu lembro que meu pai ficava muito bravo comigo, eu falava: Poxa, mas isso aqui é um animalzinho”. Ele: “Não pode falar isso!” “Mas parece que é, caramba, por que eu não posso falar?” Mas eu só me tornei vegetariana muitos anos mais tarde, começou um processo aos vinte anos de idade, eu só fiquei vegetariana mesmo aos trinta, então foi bem depois de tudo isso.
P/1 - E qual é a primeira lembrança que você tem, da escola?
R - Primeira lembrança da escola, olha, eu acho que eu lembro, quando era muito pequenininha ainda, daqueles triciclos, lá na minha escola tinha um monte daqueles triciclozinhos, sabe, bem pequenininho. Eu nem sei se ainda tem isso, era um negocinho de plástico, assim, que só cabe uma criancinha mesmo e você ficava pedalando. O que eu mais lembro da escola é isso porque, como eu comecei, na época chamava de infantil, era antes da “pré-escola” eu comecei a ir para escola. E eu lembro que era isso, você passava o dia tendo que brincar nesses triciclos e fazer desenhos. (risos) Vou falar, gente, era uma época boa. (risos)
P/1 - Dani, e você lembra da rua e da casa onde você passou a infância? Se foi mais de uma...
R - Lembro. Lembro muito bem. Na verdade, eu morei em duas casas. Uma era na Chácara Santo Antônio, curiosamente do lado do escritório de onde eu trabalho hoje em dia. Era um conjunto, assim, de prédios, eram quatro prédios, na verdade, na época uma inovação sem igual, tipo, tinha uma piscina entre eles. Hoje em dia coisas tão comuns, mas na época era o suprassumo, sabe, da oportunidade residencial. E era um local, assim, que não tinha muita coisa em volta. Hoje em dia, olhando - digamos assim, para quem conhece São Paulo - da rua, do outro lado tem o Panambi, que é aquele bairro que tem o Parque Burle Marx, aqueles prédios maravilhosos. Naquela época não tinha nada, nada, nada, era literalmente, sabe, um campo verde à frente, o rio, à nossa frente esse conjunto de prédios e monte de casinhas em volta. Então, era uma rua, assim, em si, muito pouco movimentada, porque poucos carros, muitas casas. O condomínio em si era ultra movimentado, aquele monte de crianças que foram morar lá, era pertinho da escola também. Então, enfim, essa é a lembrança que eu tenho do meu prédio da infância. E aí depois eu fui morar em Moema, meu pai quis mudar para Moema, e aí eu falo que a gente foi pra um prédio chato, porque era um prédio branco, com sacadas cinzas, não tinha criança nenhuma, uma piscininha, sabe, pequenininha. Então, assim, eu falava: “Ai, que saco, porque a gente saiu do paraíso e veio morar nesse prédio, sabe, super sem graça, não tem bosque, não tem quadra, não tem nada, um prédio super sem graça”. Mas, enfim, foram essas duas minhas residências da infância e adolescência.
P/1 - E o que você fazia, durante a infância, em São Paulo, assim? Quais eram as coisas que você mais gostava de fazer, durante a infância?
R - Música, como eu falei, sempre foi muito forte pra mim, aprender inglês também, que era também... era algo, essas eram coisas da minha mãe, porque tipo anos 1980 eu acho que eu era uma das poucas crianças que falavam inglês. Hoje em dia, nossa, super comum, mas naquela época, eu falei: “Gente, por que eu tenho que estudar inglês?” Ela: “Vai ser importante para o seu futuro, você vai me agradecer”. Eu falei: “Está bom, vamos lá”. Estudar inglês era algo muito forte na minha vida. As artes marciais, eu amava, era o único esporte que eu gostava, detestava todos os esportes. Eu fazia natação, inclusive, mas eu odiava a natação. Hoje em dia, novamente, sou super grata à minha mãe, porque eu sei nadar, nado super bem (risos) e é graças a ela. Mas, enfim, na época eu detestava a natação, artes marciais eu gostava e escrever. Isso eu sempre escrevi, desde criança, eu tinha cadernos e mais cadernos que eu ficava ali, escrevendo minhas histórias, fazendo histórias em quadrinho, mundos fantásticos e tudo mais. Então, para mim essa era a grande diversão. Inclusive eu trocava muita cartinha com as minhas amigas, também, sabe, acho que hábito dos anos 1980, 1990, você pegava aquele conjunto enorme de cada canetinha de uma cor e ia fazendo cada... e, às vezes, eu acho essas cartinhas, sabe, cada letra é uma cor. Nossa, devia passar a tarde inteira fazendo essas cartinhas para as minhas amigas. É tão engraçado. Outro dia eu encontrei, eu achei uma cartinha dessas, falando: “Ah, eu queria te pedir desculpas, que na festa eu não fiquei no mesmo grupo que você”. (risos) É tão engraçado, problemas da infância, tipo, eu mandando para uma amiguinha minha que tinha ficado brava, que eu fui numa festinha e aí formou dois grupos de meninas, eu fiquei num grupo e não fiquei no grupo dela, ela ‘fechou a cara’ pra mim por, sei lá, (risos) três meses e eu mandei a cartinha para ela: “Desculpa, não foi por mal, eu queria ter ficado na festa, no seu grupo”. Enfim, eram coisas mais de criança, muito engraçado.
P/1 - Você estava falando da música, de como foi importante durante toda sua vida, mas principalmente na infância, eu queria saber se você guarda com carinho alguma música que você tocava com a sua mãe.
R - Sim. Aquela música: “Hoje acordei com saudades de você”, que é “A Praça” que chama, não é? “A mesma praça, o mesmo banco”. Nossa, tocava o dia inteiro! Basicamente são três acordes: o ré, mi menor e lá com sétima, a música inteira (risos) ‘gira’ nesses acordes. Então, para mim, nossa, era muito gostoso. Inclusive o violão que minha mãe me deu, eu tenho até hoje. Não é aquele que está aparecendo no fundo. Esse violão, na verdade, quem fez para mim foi um luthier, alguns anos atrás, ele é um violão profissional, mas o violão que minha mãe me deu eu guardo... é o único instrumento que eu tenho porque, assim, eu tive muitos instrumentos ao longo da vida, ocasiões que eu mudei de país, eu me desfiz de todos, eu só fiquei com o violão que minha mãe me deu. Ele está todo destruído, empenado, eu já mandei arrumar mais de uma vez. O pessoal fala: “Nossa, mas não tem mais o que fazer, o braço já quebrou, as tarraxas não ficam”. Eu falo: “Mas esse violão é especial demais para mim, pode, por favor, arrumá-lo”. E ele está sempre comigo. E curiosamente no momento está na casa de amigos, porque eu fui morar nos Estados Unidos, eu não tinha como levar o violão e o storage que eu tinha alugado já estava lotado. Eu estava com amigos meus, ele: “Não, a gente guarda pra você”. Eu preciso ir lá buscar. Eu fui até jantar com ele e ele falou: “Ó, seu violão está aqui”. Eu falei: “Ai, gente, eu vou arrumar o storage e pegá-lo”, porque esse violão é uma preciosidade pra mim.
P/1 - E quando você era pequena tinha alguma coisa, assim, alguma profissão que você queria seguir, naquela época? Assim, um sonho de criança.
R - Música. Sempre foi música e escritora, sempre foram as minhas duas profissões, assim, que era o que eu mais queria fazer. Escritora até um pouco mais premente do que a música. Eu sempre sonhei, sabe, um dia, nossa, eu via escritores da época, Paulo Coelho, aquele nível de fama e tudo mais, falava: “Nossa, eu queria tanto ter os meus livros lidos nesta proporção, as minhas histórias valorizadas nessa proporção”. Então, se você perguntasse pra mim quando eu era criança: “O que você quer ser, quando você crescer?” A resposta seria escritora ou musicista. Ia girar em um desses dois.
P/1 - E voltando um pouco agora, pra escola, na época assim, que você começou mesmo, na escola, tinha alguma matéria ou algum professor, professora que era, foi muito marcante para você, ou não foi importante?
R - Olha, na verdade a escola, para mim, era um local de grande dificuldade, porque como eu era uma criança trans e obviamente existia a expectativa de que eu fosse um menino, eu tinha muita dificuldade de me adequar aquilo que estavam pedindo, então, assim, a minha relação com a escola é uma relação que até hoje, quando eu lembro, sinto uma carga um pouco pesada porque, sabe, parecia que queriam me colocar numa conformidade, que fosse o jogo de futebol: “Ah, você tem que sair com os meninos”, tudo mais, que não funcionava pra mim. Então, a escola não foi um ambiente que eu lembro com aquele carinho, sabe, delicioso? Nossa, é quase um local que parecia que estava tolhendo a minha personalidade, a me tornar alguém que eu não era, entendeu? E aí eu tive muitos professores, ao longo da vida, mas eu lembro deles muito como repressores, eu não lembro como, sabe, não tem nenhum professor que eu fale: “Não, esse professor me ‘sacou’, me entendeu, me respeitou”. A maioria dos professores que eu lembro... e aqui eu não estou julgando o trabalho deles, não, eu acho que era informação disponível, realmente eles estavam querendo me ajudar, mas assim, me ajudar com base numa informação que não era a correta, entendeu? Então, assim, o que eu lembro era de muita repressão por parte dos meus professores, no sentido de, sabe, querer... era quase como se eles quisessem ‘despertar’ o garoto em mim. Olhando para a história hoje, eu sinto muito isso, uma cobrança muito grande: “Não, você é um menino. Não podemos deixar” - imagino que na cabeça deles – “você ‘virar gay’”. (risos) Então, era muito isso que eu passava, nessa época da escola. Eu lembro só de uma diretora que ela, sim, teve uma relação de... ela foi muito carinhosa, porque quando a minha mãe faleceu... imagina uma criança de onze, doze anos de idade, de repente se vê sem a mãe. Eu lembro que ela sempre encontrava comigo na porta da escola e ficava comigo, sei lá, duas, três horas caminhando, sabe, para eu desabafar, para conversar. Eu achei que foi bonito o que ela fez porque, claro, falar: “Ah, é a função dela”. Talvez, mas talvez não precisasse, ao mesmo tempo, ela podia simplesmente: “Não, vai pra sala, que você vai estar com seus coleguinhas e vai se enturmar”. Então, eu lembro que ela, assim, eu lembro das conversas com ela, ela sempre falava comigo do violão, ela: “E como é que está o violão?” E talvez eu não tenha parado, porque as artes marciais eu parei, o violão talvez eu não parei por causa dela, porque ela falava muito para mim: “Não, toca, é bonito demais quando você toca, continue a tocar o violão”. Então, eu acho que é a única pessoa... e é engraçado, de tantos mestres e professores que a gente teve, é a única que eu lembro, sabe, foi essa moça que pareceu, de alguma forma, não sei se me entender, mas pelo menos respeitar ou desempenhou a sua função com, sabe, bastante afinidade.
P/1 - E adolescência você contou que passou em Moema.
R - Sim, Moema.
P/1 - E como foi o momento da adolescência, você começou a sair sozinha, com amigos? Como foram as mudanças da adolescência?
R - Caos, perfeito caos, honestamente. Hoje, quando eu falo, eu falo muito do que eu penso também, em especial em relação ao período da adolescência porque, quando você é trans, a adolescência tem sobre você um peso descomunal. Para todo mundo adolescência é pesada, acho que não conheço nenhuma pessoa que fala: “Olha, minha adolescência foi a coisa mais tranquila do planeta”. Nosso corpo está mudando, começa aquela explosão hormonal e tudo mais, você começa a deixar de ser uma criança. Agora, quando você é trans, começa a ficar muito claro que existem dois universos, o masculino e o feminino, e ainda que eu não compreendesse o fato de eu ser transgênero, eu percebia que tudo estava mudando e mudando rápido demais, aquelas amigas... tinha amigas, né? Por mais que eu falei da questão da conformidade, mas eu tinha, minhas amigas já não queriam mais saber de mim e as que queriam, os pais já não queriam que eu frequentasse a casa, porque eu era um rapaz, eu era um garoto. Então, assim, começou a ficar todo mundo estranho para mim, e a minha reação foi literalmente parar de comer e provocar vômito, então eu comecei a ter uma relação com o corpo super destrutiva, eu cheguei a pesar, assim, muito pouco, mesmo para uma adolescente em crescimento, que geralmente a gente pesa pouco, eu cheguei num nível assim relativamente perigoso do meu peso, daí decorreu muitas doenças, a minha imunidade era muito fraca, eu adoecia com muita facilidade. Na escola foi a época que o bullying era um negócio realmente, digamos, muito pesado, muito horroroso, e a saída que eu encontrei para isso, no final da adolescência, foi o consumo de álcool. Se eu paro pra pensar hoje eu não acho que eu bebia mais do que qualquer adolescente, no final da adolescência, da minha época, mas o ponto era tudo que estava dentro de mim: o mecanismo perigoso de uma provável anorexia, uma fragilidade emocional enorme, por ser uma pessoa trans, soma isso o consumo do álcool. Você fala: “ ‘Cara’”. Assim, eu tive realmente por um fio, sabe, de efetivamente perder o controle e não estar aqui para contar história, porque era um período muito complexo, não tinha ninguém para falar, não tinha minha mãe pra me acolher e eu me sentia, digamos, a pior pessoa, assim, sabe, do planeta, com medo de tudo, querendo ser aceita, querendo me integrar, querendo curtir as festas que todo mundo curtia, querendo... sabe, eu olhava para as minhas amigas, eu queria usar aquelas roupas legais que elas passavam a usar, mas eu não podia. Eu olhava pros rapazes, eu achava as roupas tudo sem graça ‘pra caralho’, aquele... ainda mais nos anos 1990, era um monte de roupa esquisita, tudo larga, roupa chata, não quero usar essas coisas. Então, assim, foi muito complexo. O que me salvou mesmo novamente foi a música, isso realmente foi o que me deu estabilidade para eu passar por essa época. E o rock foi, pra mim... era um movimento lindo nos anos 1990, nada a ver com o rock de hoje em dia, era um movimento que falava de liberdade, de androginia, né? Pega David Bowie, qual o gênero do David Bowie? Era impossível dizer qual que era. Então, assim, era esse rock que me influenciou e eu passei a viver de acordo com aquilo, então os meus cabelos cresceram, deixei meus cabelos crescerem, eu passei a usar roupas pretas, justas, não era que nem dos outros rapazes, porque rock, então eu tinha a desculpa perfeita, para quê? Para começar a me expressar de uma maneira trans. E, assim, também não foi fácil, as pessoas me cobraram muito, especialmente porque eu comecei a parecer muito com uma garota, alguns lugares que eu ia, achavam que eu era uma menina, tudo mais. Então, assim, começou uma cobrança muito forte sobre mim e eu não aguentei a pressão social, acho que com dezessete ou dezoito anos de idade, raspei meu cabelo, sabe e falei: “Não, eu não vou mais por esse caminho” e comecei a abandonar esse lado roqueiro, mesmo, de mim. E, assim, eu tinha uma sexualidade, nessa época, muito ‘adormecida’, acho que por tudo que eu passava, era muito difícil, mas ao mesmo tempo era curioso, porque eu me relacionava tanto com meninos, quanto com meninas, nessa época, só que eu não me entendia como uma pessoa bissexual, muito menos como gay. Se perguntasse para mim, eu sou um menino hetero, é isso que eu ia responder (risos) nos anos, sabe, quando eu estava lá com meus dezesseis, dezessete anos de idade. Mas, assim, ali já começava a aflorar um pouco, de fato, quem eu era, mas assim que isso começou a tomar volume, eu rapidamente cortei tudo isso, entendeu, e foi no fim da adolescência que eu falei: “Não, eu vou me adequar ao que o social espera”.
P/1 - E como foi esse momento de... não sei se a palavra é pressão de si mesma, como foi passar por isso?
R - Péssimo. Na minha biografia, no meu livro, eu chamo de década perdida, que começa aos vinte anos de idade e vai mais ou menos até os trinta e pouquinho. Foi assim, foi um dos períodos mais difíceis da minha vida, porque eu mergulhei no trabalho... imagina, chega aquela pessoa... aí, se a música me salvou da adolescência, o trabalho me salvou dos vinte aos trinta. Eu mergulhei no trabalho ‘de cabeça’, eu comecei a colher todos os feedbacks que tinham sobre mim, sobre a minha feminilidade, sobre o fato de eu ser feminina e tudo mais, eu comecei a colocar tudo isso como uma forma de que eu precisava me transformar, que eu precisava deixar de ser a pessoa que eu era e comecei a construir em mim um personagem, literalmente. Esse personagem era um executivo bem-sucedido, que suprimiu todos os seus trejeitos lidos como feminino, começou a abandonar tudo aquilo que gostava de fazer, mesmo a música, eu comecei a ir por outro caminho, não mais... foi nessa época que eu fui ensinar música erudita, inclusive, então eu comecei... e, claro, toda música é bela, toda música é libertadora, mas perto do que eu fazia, era algo muito mais técnico, em conformidade, sabe, do que eu experimentava em outros gêneros musicais. Então, assim, foi basicamente uma construção de uma pessoa em mim e foi muito difícil, muito, muito difícil. Não raro, com trinta anos de idade, eu desenvolvi um transtorno de pânico severo e aí eu tive que começar a reconstruir tudo do zero, a partir daí.
P/1 - Quando você saiu da escola, você começou a trabalhar ou você foi para faculdade? Como foi esse período?
R - Eu fui trabalhar. Na verdade, o trabalho sempre me acompanhou na vida. Quando eu era adolescente, a gente acabou não falando disso, tinha mais uma coisa que eu gostava, que era programação, e nessa época era supremacia nerd gostar de programação. Ninguém, ninguém, ninguém! Que hoje em dia é comum, acho que os pais até incentivam: “Os filhos têm que aprender inteligência artificial, não sei o quê”. Mas naquela época, nossa, era a coisa mais esquisita do mundo eu gostar de programar. E eu tinha um computador em casa, sei lá, devia ser um 486, um Pentium, (risos) que chamava na época, e aí eu arrumava alguns ‘bicos’ no Centro da cidade e eu ia comprar livros de programação, porque eu adorava programar. Sei lá, eu achava legal, eu sempre tive essa curiosidade, sabe, da máquina... como fala? Como resposta consciente. E é algo que eu estudo hoje, inclusive, já numa linha de mestrado e tudo mais, uma inteligência artificial senciente, o que será isso. E na época não tinha ferramentas tão avançadas como a gente tem hoje, mas eu tentava sempre construir robô: robô que jogava xadrez, robô que jogava pôquer, tudo mais, porque era uma curiosidade muito grande que eu tinha, que era o aprendizado de máquina, mas não da vertente que a gente estuda hoje, numa vertente muito mais estruturada, de programação antiga, né? Então, com dezessete... não, dezoito anos de idade, eu comecei a formalmente trabalhar numa seguradora. Eu queria, assim, muito sair da casa do meu pai, eu queria começar a construir minha vida, tudo mais, então acho que foi com dezoito anos de idade que eu comecei a trabalhar numa seguradora e passei a faculdade para noite. Na verdade, comecei a faculdade à noite e levei essa vida, sei lá, até os 24, 25 anos de idade, que depois que eu me formei administradora, eu tive que fazer contabilidade para profissão, me tornei auditora, aí eu precisei fazer contabilidade, eu continuei estudando à noite e dei sequência, assim, no começo da minha vida profissional.
P/1 - Você lembra o que você fez com o seu primeiro salário?
R – ‘Cara’, eu acho que comprei um celular, acho que era Gol na época que chamava, um negócio desse tamanho, que tinha uma antena e estava na época da expansão de telefonia celular, aí eu comprei esse negócio. Acho que, na época, eu lembro mais ou menos do valor, acho que era uns duzentos reais, tipo, que era ‘carérrimo’. Duzentos reais, na época, devia ser basicamente o meu salário líquido do mês. Na época o salário-mínimo devia ser uns quinhentos reais, então. Acho que era basicamente o meu salário líquido do mês, eu coloquei pra comprar o celular, mas eu achava o máximo, sabe? E não podia ligar. Na verdade, não podia ligar porque, se ligasse, era mais, sei lá, tipo dez reais, sabe, (risos) uma ligação, mas eu tinha meu celular. Então, foi uma das primeiras coisas que eu comprei.
P/1 - E você lembra como era sua rotina, nessa época, de trabalho e depois de ir para faculdade?
R - Olha, era uma rotina pesada porque, novamente, para conseguir construir essa pessoa masculina, eu tive que abdicar de toda e qualquer forma de prazer, vamos chamar assim, porque não funciona. Se eu vivesse uma vida, digamos, prazerosa, não funcionava. Então, eu comecei a trabalhar, eu ia logo cedo, pegava ônibus pra ir pro trabalho, eu não tinha carro, na época, ia no Centro da cidade, essa seguradora ficava no Centro de São Paulo, tomava um café com pão de queijo, alguma coisa assim, e ia trabalhar, passava o dia inteiro lá. Naquela época, enfim, era tudo muito pouca comunicação, tudo muito hierarquizado, o ambiente de trabalho era muito diferente do que a gente tem hoje em dia, de muita pouca mobilidade. Eu levava meu almoço também, porque eu não tinha dinheiro para comer fora todo dia e, enfim, a tarde era mais uma rotina de trabalho, para noite ir para a faculdade. Então, era basicamente esse meu dia a dia, sabe, todos os dias da mesma maneira, e finais de semana eu ia cantar nos corais, entendeu? E aí foi quando eu comecei com a música erudita, tudo mais, inclusive, nossa, eu desenvolvi belamente a minha voz nessa época, porque eu não era uma boa cantora, mas me tornei uma exímia cantora, nessa época. Eu comecei a cantar em alguns corais, que na época eram muito bem quistos, sabe, no meio da música e tudo mais, então. Mas era assim. Mas era basicamente isso, a única ‘válvula’ que eu dava mesmo, para mim, era a música. Em algum momento, um pouco mais à frente, que aí eu considero que foi o que efetivamente me ‘salvou’, além do trabalho, foi o budismo, porque eu comecei a frequentar um centro budista e aí eu comecei a mudar, de fato, os meus valores, foi o que me afastou do consumo de álcool, foi o que me permitiu perceber, digamos, a agressão do mundo e parar de conflitar com ela e foi o que, enfim, abriu caminho pra eu me tornar vegetariana. Então, foi algo muito importante também, pra mim, a prática budista, foi acalmando a minha mente. Porque é aquilo que eu falei: imagina aquele conjunto de traumas, insatisfações que eu trazia, já estava começando com o consumo de álcool, estava num trabalho que eu detestava, num gênero que não era o meu. ‘Cara’, sabe? Quando me perguntam: “Como é que você sobreviveu a essa época?”, eu falo: “Bom, o próprio trabalho foi o alicerce, o segundo alicerce foi o budismo, porque isso me deu, digamos, uma força”. Não impediu que eu adoecesse, eu adoeci, no final dos trinta anos eu estava extremamente doente já, com o transtorno de pânico se agravando cada vez mais. No começo dos trinta anos, na verdade. Mas pelo menos ele me deu uma estrutura de filosofia de vida para, sabe, encontrar caminhos, encontrar força, cultivar sentimentos de uma forma um pouco mais nobre, porque eu estava tão frágil, que qualquer coisa eu poderia ter me ligado, mas eu me liguei numa filosofia de vida que me deu sustentação. E aí você soma isso o universo dos animes também, que eu adorava e era uma forma, primeiro de eu exercer a luta, que eu não estava mais lutando, mas pelo menos eu assistia ali aquelas lutas, e a própria androginia, porque você pega animes com personagens extremamente andrógenos, alguns são entidades divinas, que você olha, fala: “Nossa, qual que é o gênero desse personagem? É masculino, feminino, os dois?” Então, essas foram as minhas sustentações, nessa época.
P/1 - E por que que você escolheu... tem um motivo para você ter escolhido cursar Administração?
R - Foi uma questão totalmente financeira, em busca de independência. Como eu falei: eu queria, poderia ter feito música ou artes. Ao mesmo tempo... sim, foi uma busca de independência, foi uma busca financeira, ao mesmo tempo eu precisava de uma profissão que me colocasse numa conformidade. As artes, se fosse a escrita, se fosse a música, ela não permitiria que eu, digamos, ‘segurasse’ o meu gênero por mais dez anos, vamos chamar assim, porque eu estaria num universo muito distinto. E parando para olhar hoje os mecanismos que estavam na minha volta, a fragilidade emocional que eu tive, eu acho que novamente foi uma decisão de sobrevivência, daí eu não teria condições emocionais de me tornar uma artista com vinte anos de idade, ou talvez me tornasse até, sabe, aquela arte que vem daquela forma meteórica, e a pessoa está com trinta anos, já partindo para outra existência, entendeu? Porque é aquela coisa que vem numa força, mas você ainda não consegue, digamos assim, dominar. Então, eu acho que o meu lado artístico é muito forte até hoje, ele é extremamente forte, mas hoje em dia eu o controlo, não ele me controla, né? Se eu tivesse feito isso aos vinte anos de idade, eu acho que a história teria sido completamente diferente da minha vida. Então, novamente, assim como me tornar uma pessoa masculina foi um ato de sobrevivência, me tornar uma administradora, depois contadora, também o foi. Foi uma forma de eu não entrar em contato com algo que eu não tinha força pra lidar, ainda.
P/1 - E para conseguir abarcar toda sua trajetória profissional, eu sei que você depois foi para um trainee, mas eu queria que você fizesse uma avaliação de quais foram os três momentos mais importantes da sua trajetória profissional, até chegar no seu trabalho atual.
R - Tá, mas posso falar do presente também, então, não preciso falar só... tá. Eu acho que teve três momentos que foram fundamentais na minha carreira: o primeiro foi quando eu me tornei trainee de auditoria, porque foi ali que eu decidi, digamos assim, que eu poderia ter um futuro. Não que eu acreditasse nele porque, assim, para mim, a minha vida estava quase que predestinada a ser um fracasso, né? Porque imagina: tudo que a gente conversou sobre infância, adolescência, ‘cara’, qual era a autoconfiança que eu tinha, quando eu tinha vinte anos de idade e comecei a trabalhar? A vida já tinha me mostrado que eu era um fracasso, que eu era inadequada. As pessoas duvidavam da minha inteligência, tudo mais. Então, já estava com tudo isso aí feito. Quando eu me tornei trainee, eu lembro que algumas pessoas da minha volta até me criticaram, no sentido de falar: “Ah, você está começando uma profissão, é uma carreira muito difícil a de auditoria, vai ter que trabalhar demais. Você devia fazer outras coisas, com mais tranquilidade”. Eu falei: “Tá, mas é que é assim, me prometeram uma carreira” - aquela época, pra mim, isso era o suficiente - “Me prometeram que, se eu me esforçar, eu vou me desenvolver e eu vou apostar nisso”. E foi interessante, porque eu comecei a ver que realmente funcionava, então eu virei trainee, depois assistente, depois semi-sênior, na época, de auditoria, depois sênior, supervisora. Então, assim, eu comecei a trilhar uma carreira e aquilo falei: “Caraca, parece que dá certo”. E pra mim se tornou... porque parecia que era a primeira vez na vida que eu estava fazendo alguma coisa certa, tipo: as pessoas me elogiavam, eu falava: “Nossa!” “Ótimo trabalho que você fez” Sério que é um ótimo trabalho?” Então, comecei a me cercar de um ambiente positivo, algo que eu nunca tinha tido na minha vida, então foi um momento extremamente importante. O segundo momento importante foi quando eu fui pela primeira vez para os Estados Unidos, trabalhar. Eu ainda era relativamente júnior, comparada a como eu sou hoje e eu apliquei para trabalhar numa vaga como sênior de auditoria em Houston, no Texas. Eu tinha, sei lá, vinte... um pouco antes de eu começar a ter transtorno de pânico, dois anos antes, na verdade, né? Devia ter uns 26, 27 anos de idade, era super jovem. E para mim aquilo foi interessante porque, assim, eu tenho uma ligação curiosa com os Estados Unidos, que eu até já fiz teste de DNA, sabe? Não tem ninguém da minha família, não tem a menor relação com os Estados Unidos, mas por algum motivo. E, claro, a gente pode falar sobre a questão cultural que nós, brasileiros, temos, porque a gente foi muito, digamos, influenciado culturalmente pelos Estados Unidos, mas não é uma via de uma mão só, de fato eu tenho muita aderência naquela sociedade, o que é curioso. E aquilo, para mim, foi muito especial, porque eu comecei a perceber que eu dava certo numa outra sociedade. Eu estava, comecei a me tornar, naquele momento, sei lá, uma cidadã global, assim que eu comecei a dar menos importância para minha nacionalidade e muito mais importância pelas minhas habilidades interpessoais. Era curioso ver como eu dava aderência naquela sociedade. Então, pra mim foi um momento muito importante da minha vida, que foi subitamente interrompido pelo pânico. Eu tive o primeiro ataque de pânico nessa época e ele se agravou demais, então eu fiquei dois anos e voltei pro Brasil. Aí o terceiro momento foi o meu retorno para os Estados Unidos, de novo, que eu falei: “ ‘Cara’, eu não acabei essa história com os Estados Unidos”. Nessa época, já tinha passado muitos anos, eu já não tinha mais conflitos de gênero, eu era a Dani e ponto. A primeira vez que eu fui, eu ainda era a minha pessoa masculina, a segunda vez eu era a Dani e ponto. E dessa vez eu não apliquei para uma vaga júnior, eu apliquei por uma vaga de executiva sênior, em Manhattan, Nova Iorque, sabe? E eu falei: “‘Cara’”... por um segundo eu pensei: “O que eu tô fazendo?” Tipo: não tem a menor chance de passar. Eu sou uma pessoa trans e isso, digamos, a autocobrança, auto transfobia é forte, é um negócio que eu tenho que lutar todo dia. Aí eu falei: “Não, quer saber? Eu vou aplicar, sim. Dane-se. Eu vou aplicar, vamos ver se eu consigo passar nessa vaga” e eu fui aprovada. E aí, de repente, eu me vi lá em Nova Iorque. O ano era 2019 e eu falei: “‘Caraca’, meu, eu saí do meu país, me tornei uma executiva sênior, trabalho agora”, sabe? E, assim, eu consegui fechar essa história. E dessa vez eu estava com uma intenção de ficar lá no longo prazo, mas aí veio o segundo, digamos, incidente, que dessa vez foi um acidente global, chamado Covid e aí eu olhei para tudo aquilo... sabe quando você começa a repensar sua vida e começo a me perguntar: “ ‘Cara’, que bacana que eu consigo vencer nessa sociedade, que eu tenho aderência, que as pessoas olham para mim e não consegue nem imaginar que eu sou imigrante recente”. As pessoas pensavam: “Ah, você veio o que, pra fazer faculdade, quando você tinha vinte anos e continuou morando?” Que é óbvio, o sotaque a gente tem, de brasileiro. Agora, as pessoas olhavam para mim: “Nossa, mas você veio quando para os Estados Unidos? Faz uns vinte anos que você está aqui?” Eu falava: “Não, foi dois e agora faz mais dois. (risos) Então, são quatro anos, só”. Então, assim, era muito legal ver isso, era muito gostoso ver a aderência àquela sociedade, mas veio a Covid e eu comecei a repensar tudo, tudo, tudo, tudo, entendeu? “O que eu estou fazendo aqui? Por que eu estou isolada? Por que eu tô longe do meu país? Por que eu estou longe da minha família?”, né? As pessoas começaram a ter gravidades, teve gente próxima que começou a ser internada, gente que veio a óbito, e você começa a repensar tudo: “Cara, o que eu estou fazendo?”, né? Tipo: “Ok, é lindo esse objetivo profissional e que lindo saber que eu consegui vencer em algo que parecia tão impossível, especialmente eu sendo transgênero, mas eu preciso pensar, minha esposa tem a mãe dela, a gente está longe, o aeroporto está fechado, fechado, eu não tenho como sair do país, então assim, ‘cara’, não vai dar”. E aí, assim que as coisas acalmaram um pouco, os aeroportos voltaram a abrir, eu pedi demissão e voltei para o Brasil, que é o trabalho que eu estou atualmente.
P/1 - Queria saber qual foi o sentimento de retornar para lá, o que você sentiu quando você passou na vaga de executiva?
R – ‘Cara’, assim, foi literalmente começar a viver um filme, porque literalmente, literalmente eu, de repente, estava lá... tipo assim: porque imagina, eu fiquei no Brasil, sei lá, a década anterior lutando primeiro contra mim mesma, para conseguir compreender quem eu era e o meu gênero. Porque quando você é uma pessoa trans é um aspecto que as pessoas que são cisgênero já nascem com, digamos, o direito de existir e o direito ao gênero, elas têm isso, as pessoas cisgênero nascem como meninos, meninas, têm essa atribuição e vivem a vida a partir desse aspecto, satisfeitos ou não com as condições, especialmente as mulheres, geralmente indignadas com algumas ocorrências ao gênero feminino, mas tem essa, digamos, você está nesse gênero. Eu não, eu tive que entender qual era o meu gênero. Por que qual é o meu gênero da infância, adolescência, que a gente conversou? É o erro. É o ‘você não pode’, é o ‘você não pertence’. Então, assim, eu passei uma vida a construir quem eu era, então eu tinha passado a década anterior mergulhada na terapia, para entender quem eu era, para entender por que eu sofri o que eu sofri, para entender por que a sociedade consegue ser tão cruel com uma pessoa por ela, sabe, ser diferente. Assim que eu venci isso na terapia, porque eu falo: transição de gênero é uma palavra que eu acho que é muito mal-empregada. Porque a gente usa a transição de gênero imaginando que a gente se torna o gênero. Não é raro alguém perguntar pra mim: “Quando é que você deixou de ser homem e virou mulher?” Sério que a pergunta é essa? Nunca aconteceu isso, eu nunca me tornei homem, eu nunca me tornei mulher, eu sempre fui trans. Então, (risos) é essa perspectiva. Ah, alguns momentos eu fui trans masculina e outros momentos eu sou trans feminina, é verdade, mas eu sempre fui trans e ninguém nunca teve dúvida de me encaixar na caixinha gênero de “erro” ou gênero “diferente”, isso nunca ninguém teve problema em fazer, né? Eu que, em um determinado momento, passei, digamos, a reivindicar o meu gênero ao feminino, então eu vou passar a viver dentro dessa verdade. Foram cinco anos de construção disso, em um processo terapêutico, né? Depois foram mais cinco anos de luta pra me adequar a um mercado de trabalho, a construir uma carreira, para as pessoas perceberem que eu era a mesma pessoa que eu tinha sido antes, para colocar minha carreira no trilho de novo, para conseguir conquistar o respeito das pessoas novamente. Você alcança isso com plenitude? Claro que não, a sociedade é machista, racista, transfóbica, vai continuar sendo, mas você consegue silenciar, digamos, as ocorrências mais graves a seu entorno. Então, assim eu tinha conquistado muita coisa, e aí foi mais ou menos quando acabou esse caminho, que eu falei: “Ok, está na hora de partir”. Todo mundo à minha volta: “Você é maluca, como assim? Você vai se enfiar num outro país? ‘Cara’, foi super delicado o que você fez”. Eu falei: “Pois é, mas aqui eu vou viver a vida inteira à sombra da pessoa que eu fui. Sempre vai ser o Torres, que era como eu era conhecida: “Ah, o Torres que construiu essa carreira, como é que foi deixar de ser o Torres? Como é que foi um dia colocar roupas femininas?” Falei: “Gente, pelo amor de Deus, eu não aguento mais esses assuntos, eu tô cansada de tudo isso. Eu vou para um lugar que ninguém vai conhecer o Torres, ninguém vai saber da história da transição, ninguém vai saber quem eu fui, pouco importa. As pessoas não vão saber se eu fui trans feminina desde os seis anos de idade, se foi aos dez, foi aos quinze, aos vinte, aos trinta, ninguém vai saber, e eu vou viver a minha vida sendo eu”. Então, o sentimento quando eu chego lá é esse: “Eu sou eu” e essa foi a coisa mais maravilhosa e isso me curou, inclusive, do preconceito dos outros, porque depois eu voltei ao mesmo círculo social, mas eu já não trazia dentro de mim. Se as pessoas ainda olham e falam: “Ó, o Torres”, eu falo: “Legal. Ele foi bacaninha na minha vida, deixa lá para trás”, entendeu? Mas eu já estou curada dessa cobrança, entendeu, de ter sido ele. Porque é claro que eu me culpei por ter sido ele, é claro que eu me culpei: “Por que eu não fui forte o suficiente?” A gente aqui, óbvio, conversou, tem maturidade suficiente pra entender que não tinha essa possibilidade, não tinha força para isso. Não tinha força pra ser nem uma carreira que, sabe, me colocasse em contato com os sentimentos mais profundos. Então, não tinha força pra isso. Mas, ao mesmo tempo, a cobrança existia em mim. Então, chegar em Nova York como uma executiva bem-sucedida foi, literalmente, virar e falar: “‘Cara’, eu não preciso mais olhar para minha história como, sabe, nichos, como silos: infância, masculino e feminino”. Eu posso olhar para essa história pelo contínuo, porque a pessoa que eu sou hoje é a história dessa criança, é a história dessa adolescente, a história desse homem que eu fui e a história da pessoa que eu me tornei, é todo mundo junto comigo, sabe, nesse momento. E foi Nova York, por mais curioso que seja, que deu, digamos, uma canalização para tudo isso.
P/1 - Dani, e qual é o seu cargo atual hoje, na empresa onde você trabalha? E como é o seu trabalho lá?
R - Eu sou sócia de práticas profissionais, que chama. É engraçado que, às vezes, as pessoas brincam comigo: “Nossa, hoje em dia a gente não sabe mais o que ninguém faz, todo mundo tem nome diferente nos cargos”. Eu falo: “Pois é, só que práticas profissionais é bem antigo”. Não é um negócio... na verdade, talvez esteja desatualizado, mas ficou tão desatualizado que ficou novo, (risos) ficou moderno. O que é ‘práticas profissionais’? Na verdade, tem relação com, digamos, tomar decisões acertadas no exercício da profissão. Então, eu trabalho numa posição que lida com assuntos extremamente complexos, e basicamente eu analiso questões da empresa que eu trabalho, que eu trabalho numa empresa de prestação de serviços, então, às vezes, numa determinada prestação de serviço, surge uma dúvida: qual é o melhor caminho a seguir, né? Geralmente eu sou a pessoa - eu e meus outros sócios, que trabalham na mesma área - que liga, assim: “Olha, a gente está com essa situação, o que a gente faz?” e a partir daí eu vou analisar literatura, eu vou analisar o cenário que a gente está falando, vou conversar com essa organização, entender o que que a gente está falando e falar: “Na minha opinião a gente tem que seguir esse caminho". E aí obviamente esse é o trabalho que eu faço, tenho um mega orgulho do que eu faço, acho super chique (risos) fazer esse tipo de profissão, sabe? E, às vezes, é engraçado, eu falo: "Bom, como é num universo de finanças, às vezes, não fica tão tangível". E outro dia eu estava conversando com uma pessoa de Educação Física: "Imagina o seguinte: você recebeu um paciente que está com problema no joelho, muito sério, e você vai prescrever um treino para ele. Só que você olha e fala: 'Cara, é um problema tão sério, que eu quero uma segunda opinião profissional, para aprovar o treino que eu vou te prescrever', a segunda opinião profissional é uma pessoa que você liga, que sou eu, no caso”. Só que eu não trabalho com Educação Física, eu trabalho com Finanças, então a minha segunda opinião eu dou para assuntos relacionados a Contabilidade.
P/1 - E pensando assim... você falou que trabalha com finanças, né? Desde que você entrou, até hoje, se você enxerga, quais são as mudanças em relação à diversidade e inclusão? Tanto no mercado financeiro, quanto na empresa onde você trabalha.
R - Não, eu acho que é total. Total. É outro universo que a gente fala. E aí, dito isso, falta tanto ainda. (risos) Então, assim, é muita alteração. Quando eu comecei a trabalhar na empresa que eu trabalho, por exemplo, acho que tinha três sócias mulheres. Hoje em dia a gente já está caminhando, ainda não chegamos pra uma equidade em posição sênior, de liderança. A gente tinha um sócio abertamente LGBT, hoje em dia a gente tem um grupo de pessoas, expressivo, que são abertamente LGBTs na organização. Temos inclusive uma sócia que é transgênero, sou eu. Então, assim, a coisa mudou, muito, muito, muito e foi uma mudança rápida demais. Parece que, assim, foi construída toda uma sedimentação, sei lá, durante quinze anos, de 2000 a 2015, de 2015 pra frente a coisa tomou outro rumo e chega aonde chegamos hoje. Isso não só onde eu trabalho, mas no mercado como um todo o movimento foi muito semelhante. Mas, assim, ao mesmo tempo, a gente tem que tomar muito cuidado com tudo isso, porque a não-compreensão é enorme ainda. Você ainda fala com muitas pessoas que não entendem o valor da diversidade, não entendem o que é privilégio. Só de ouvir a minha história, dá para perceber que eu sou uma pessoa privilegiada. Só de eu falar como era o lugar que eu morava quando era criança e tudo mais, dá para perceber que eu sou uma pessoa privilegiada, que nasceu na classe alta e tudo mais, é impossível não conectar isso à minha história. Então, quando a gente fala sobre a questão do mérito, o mérito existe na proporção do seu privilégio, também. Se eu não tivesse sido essa pessoa, provavelmente eu não seria a executiva que eu me tornei. O que não significa que não tem pessoas que ‘furam essa bolha’, claro que tem, e não significa também que todos que estão na mesma condição, digamos, de privilégio, vão chegar no mesmo lugar, também não, mas a gente, em algum momento, parar e olhar, e falar: "Olha, eu sou quem eu sou também pelo fato de eu ter vivido a possibilidade que eu vivi, de ótimos estudos, de uma segurança alimentar durante toda a vida, de desenvolver artes marciais, inglês quando era criança, de ser branca". Então, assim, tudo isso vai formando e possibilita ser quem eu sou, e é exatamente esse ponto que eu tenho plena consciência do meu privilégio, que permite ser quem eu sou, que eu vejo ainda uma discrepância enorme. Que as pessoas pensam na Diversidade como: "Ah, a gente vai dar chance para pessoas que não se esforçaram". Daí isso é tão assustador, você ainda ouvir isso. Falo: " ‘Cara’, compara - eu vou trazer pra minha história - o meu desenvolvimento com a maioria das outras pessoas trans do nosso país. Qual é a grande diferença entre mim e elas? Oportunidade. De onde vem a oportunidade? De uma base educacional. Percebe?" Então, é disso que a gente está falando e é isso que a gente tem que tomar cuidado. Eu poderia ter escorregado 'n' momentos na minha vida, minha vida não foi nada fácil, mas eu parto com um conjunto de ferramentas que permite que eu encontre um caminho, mesmo no impossível, percebe? Agora não fui eu que fiz o impossível acontecer, eu estava extremamente instrumentalizada, para conseguir encontrar um caminho, mesmo na névoa do impossível e é esse ponto que eu ainda me preocupo, quando eu olho os diálogos de Diversidade, por vezes atingindo uma questão de: "Olha, as coisas estão resolvidas, não precisamos mais falar sobre isso" ou "As pessoas querem privilégios". ‘Cara’, então isso me mostra o quanto a gente tem para caminhar e o quão distante a gente está de qualquer, digamos, plena equidade na sociedade.
P/1 - Eu queria saber como você vê a inclusão de mulheres e de outras pessoas trans dentro da empresa onde você trabalha, se tem avanços. Como é que está esse quadro?
R - Os avanços são muitos, né? Falando especificamente das mulheres trans, não é mais incomum. Quando eu, digamos, assumi publicamente o meu gênero, eu era a primeira executiva trans ou a primeira executiva abertamente trans de visibilidade. Hoje em dia é raro você ir em uma organização de ponta, não estou falando de organizações que ainda estão com uma mente muito ‘fechada’, mas organizações de ponta é raro você ir e não tem nenhuma pessoa trans que trabalha. O que me preocupa ainda é a formação de lideranças, né? Que é um assunto que já passamos por isso no universo da mulher cisgênero, estamos longe de resolver esse problema, e para as minorias, especialmente as ultra minorias, vamos chamar assim, a população trans é uma minoria da minoria, extremamente marginal ao social. Como é que a gente vai colocar essas pessoas numa posição de liderança? Imagina as barreiras que não são enfrentadas. As pessoas falam: "Ai, você não enfrenta?” Eu falo: “Eu enfrento muitas barreiras também, mas eu ignoro a maioria delas”, porque assim, eu costumo dizer: numa sociedade em que existe direitos, em que existe uma estrutura legal que permita, digamos, algum grau de justiça, a única vantagem que o preconceituoso tem sobre você é a sua reação. Então, assim, tem que realmente pensar qual briga você quer comprar e qual caminho você vai seguir e isso realmente eu tive muita habilidade, ao longo da minha vida, para conseguir separar brigas que eu realmente preciso entrar, porque aqui não tem jeito, e brigas que eu falo: “‘Cara’, só deixar a pessoa falando sozinha, que ela vai ficar pra trás, mesmo, daqui a pouco, é mais um”. Então, assim, agora, eu olho para tudo isso, eu olho ainda para essa restrição e penso: “Como será que está para quem está começando a carreira hoje?” Eu, como falei, de fato eu fiz praticamente, sabe, o inimaginável: eu consegui, digamos, assumir o meu gênero, consegui resgatar a minha saúde, consegui colocar minha vida no eixo e eu não consegui me desenvolver exponencialmente mais depois disso. Parece, realmente, como diz a prefacista, no meu livro: “Ninguém acreditaria na história, se a gente contasse”. Porque realmente não parece, fala: “Espera aí, o que está faltando de elemento?” Falo: “Pois é, os elementos são os que eu contei, não tem outros”. Então, assim, de fato isso é muito improvável e eu tenho essa percepção, essa clareza, imagina quem está começando a sua carreira e se vê diante desse inimaginável obstáculo, que te empurra o tempo inteiro pra baixo, porque a gente já aceita a pessoa trans numa organização, mas a gente aceita em posições extremamente juniores e ainda muito à margem do poder e da decisão. Pessoas trans que estão numa posição de poder e decisão? Olha, além de mim, deve dar para contar algumas muito poucas, entendeu? Estou falando do nosso país. Como é que a gente muda essa situação? Então, essa é a grande pergunta que eu me faço. Porque os avanços existem, agora a gente não pode ser, digamos, eternamente junior, eternamente numa função, digamos, sem relevância. Não é um favor empregar a mim e a minha comunidade, é uma relação de troca profissional, isso precisa ficar sempre muito claro, as pessoas querem crescer, as pessoas querem se desenvolver.
P/1 - Dani, você já sofreu algum episódio de transfobia, dentro do mercado de trabalho?
R - Olha, mercado de trabalho, eu me lembro de um. Mas, assim, antes de responder, é até importante a gente ter em mente que a transfobia é estrutural, então ela acontece e está acontecendo agora, tipo, nesse exato momento, porque a transfobia vem, digamos, com preconcepções que a gente tem do outro, e é só olhar as narrativas ficcionais que, ao longo do último século, trataram a pessoa trans, é impossível... estou falando de filmes mesmo, é só - tem inclusive documentários que falam sobre isso - você ver um documentário desses, que você fala: “Uau, olha como a pessoa trans foi retratada”, né? É sempre com base na violência, na repulsa, na risada. Então, assim, é impossível uma pessoa não trazer isso para mim, em qualquer relação que eu tiver. Então, a transfobia existe, e o que eu falo para as pessoas é o meu modo de, digamos, abordá-la, é encará-la como satélites. Nesse momento que a gente está conversando tem um monte de satélites lá em cima, um monte, uma quantidade que a gente nem imagina, não está nem tomando conhecimento deles, estamos vivendo a nossa vida normalmente e eles estão operando, permitindo nossas comunicações e que nosso mundo funcione. Se em algum momento alguém falar no jornal: “Um satélite vai cair em São Paulo”, a gente vai se preocupar, vai falar: “Onde que ele vai cair? O que eu preciso fazer?” Então, é mais ou menos assim que eu ajo com a transfobia: ela está lá, eu a ignoro, a deixo, digamos, viver, atuo, que com isso eu consigo, é quase como se eu ‘empurrasse o satélite’ de volta. (risos) Tipo: eu o minimizo. Mas, seja como for, eu procuro não tomar conhecimento dela. Isso posto, eu sofri poucos casos, na minha vida, de transfobias, digamos, materializadas, felizmente foram muito, muito poucos casos. Um deles foi na organização, eu nem tomei conhecimento, mas alguém abriu alguma espécie de denúncia, que tinha uma pessoa que estava se recusando a trabalhar comigo por eu ser transgênero, alguma coisa assim, eu não tomei nem conhecimento dos detalhes. E é bastante interessante, porque aí a gente começa a falar de algo muito diferente, porque a gente começa a falar do ódio, e o ódio não tem lógica: “Eu não quero trabalhar com você por você ser quem você é”. Ninguém falou que a pessoa não é competente, que ela não trabalha bem, que não é uma boa gestora, é simplesmente: “Eu me recuso”. Então, você percebe a gravidade de uma colocação desse tipo. E, enfim, eu sei que na época fizeram um evento e tudo mais, para treinar as pessoas. Falei: “Não, acho muito bacana tudo, de forma alguma...”. Assim, eu não acredito que a gente tem que, digamos, tratar uma pessoa preconceituosa com cancelamento, entendeu? Que a gente não educa no cancelamento, a gente simplesmente deixa a pessoa com mais raiva. Se você vira e fala: “Tem que demitir essa pessoa!” Eu falo: “Gente, você só vai deixar a pessoa com mais raiva”. A gente precisa dar a oportunidade, uma vez que a pessoa tem a oportunidade de se olhar no espelho e refletir sobre o seu preconceito, ela continua sendo preconceituosa e agressiva, aí são outros ‘quinhentos’, mas a gente não pode, no primeiro momento, cancelar a pessoa. E sei que foi feito um evento, chamaram diversas pessoas para palestrarem etc., eu falei: “Olha, eu não quero estar neste evento, mas, no final, me dá cinco minutos” “Ah, mas vai ser muita exposição para você” “Não tem problema, não. Estou acostumada com exposição, não tem problema. Eu vou lá falar, me dá cinco minutinhos”. No final do evento, foi cinco minutos e eu fui falar, e eu lembro das minhas palavras, eu falo: “Bom, eu queria, tipo assim, primeiramente agradecer de terem se reunido para ouvir alguma coisa, eu entendo que tem pessoas que concordam, eu entendo que tem pessoas que discordam, eu não estou pedindo para ninguém entender nada, eu estou pedindo para as pessoas respeitarem. Talvez eu tenha algum valor, talvez eu tenha alguma capacidade, talvez eu esteja nessa função por ser alguém, digamos, relevante naquilo que eu faço. E eu queria fazer um último lembrete, para todos os senhores presentes: somos executivos, somos da área de negócio, enquanto a gente está discutindo isso, cada um de nós tem a sua meta para cumprir, eu olhei um pouquinho antes de juntar, para essa palestra com vocês, as minhas metas estão ‘batidas’. Quem está aí sentado pensando, digamos, em um comportamento nada que a gente deveria se orgulhar e não está com as metas ‘batidas’, eu acho que deveria voltar e começar a pensar em outra coisa. Então, fica uma sugestão para vocês”. E foi basicamente isso que eu falei, que basicamente é uma mensagem: “A gente está aqui para trabalhar, a gente não está aqui pra julgar uns aos outros”. Isso já faz muitos anos, tá? Já vai fazer, sei lá, seis, sete anos. Eu estou trazendo um assunto literalmente ‘do baú’. Foi a única vez que eu passei por uma situação mais delicada dentro do ambiente de trabalho. Fora do ambiente de trabalho, algumas pouquíssimas ocorrências também, sabe, lembro de muito poucas delas, porque nada que me influenciou demais, entendeu? Mas, assim, feito esse enorme parênteses, eu lembro novamente: a transfobia é estrutural, não se aplica a mim, não se aplica... se aplica a todos nós. Então, não falo: “Ai, comigo não acontece”. Não, gente, não é que comigo não acontece, é que eu pertenço a uma classe social, eu pertenço a um ambiente em que ela é menos incisiva. Agora, não significa que a pessoa que ‘abriu uma porta’ para mim não é transfóbica. Ela pode não ter manifestado a transfobia dela. Não significa que se amanhã ou depois a gente muda uma lógica de direitos, essa ‘porta’ não vai ser imediatamente ‘fechada’.
P/1 - Eu queria saber qual foi o maior desafio da sua vida profissional.
R - Olha, o maior desafio que eu tive foi meu mestrado, porque eu comecei, na verdade, no meio da pandemia, em 2020, e eu fui fazer um mestrado em tecnologia. E eu não só fui fazer em tecnologia, como fui fazer Inteligência Artificial e era um negócio que, assim, eu confesso que atualmente eu tenho um domínio bem razoável do termo, mas na época eu tinha muito pouco domínio nessa área. E para mim foi uma dificuldade enorme, de repente, me ver... eu estudo em uma faculdade americana, seríssima, extremamente, digamos, bem quista no mundo acadêmico, e de repente eu estava ali no meio e foi a primeira vez, em muito tempo, que eu comecei a flertar com o fracasso. Porque, assim, chegou um momento da minha vida que eu literalmente me acostumei com o sucesso. Eu rompi tanta coisa, e eu me acostumei com o sucesso. Eu falei: “Olha, é quase assim: parece que tudo que eu faço dá certo”. É óbvio que isso é uma narrativa, não é realidade, mas eu estava acostumada a ter sucesso. E foi a primeira vez que eu fui, digamos, para um novo contexto, numa posição de humildade, que eu falei: “Olha, eu não tenho a capacidade de fazer o que eu tô fazendo, eu não tenho conhecimento e existe uma chance muito grande de eu fracassar”. Isso, para mim, foi algo muito interessante, porque isso mostra como não importa o quanto a gente vença na vida, a gente é sempre bom em um contexto, a gente não é bom em todos os contextos, né? Então, assim, eu precisei me sentar e estudar muito. Daí eu me perguntava: “Gente, estou com quase quarenta anos de idade, para que eu fui me meter a fazer esse negócio”. E, claro, eu estou na metade do curso já, eu não fracassei em nada, mas estudei muito, muito, muito. Se você pegar o meu boletim, transfer que chama, é tudo A, e todas as matérias eu tirei A e uma eu tirei B. No sistema americano é por letra. Então, nossa, o meu GPA, que é a média, é altíssimo, altíssimo. Aí, se alguém chegasse e falasse: “Então, você não teve tanta dificuldade”. Não, gente, teve prova que eu estudei cinquenta horas, pra conseguir fazer a prova. Então, assim, foi realmente algo que eu falei: “Dessa vez isso não está dado. Se eu não ‘ralar’ loucamente, se eu não estudar loucamente, eu vou fracassar, é fato que eu vou fracassar. Eu não tenho condição de fazer o que eu estou fazendo, eu vou ter que estudar”. Então, foi um desafio muito grande, foi um desafio de reafirmar a minha própria humildade, foi um momento de perceber “eu não sou tudo isso”, ninguém é e algo tem sempre que fazer, esse exercício de sair dessa posição de ego, de achar que a gente consegue tudo e somos, sabe, quase que seres prontos pra vida, na verdade nós não somos, estamos muito distantes disso, mas ao mesmo tempo foi uma superação interessante. Eu estou na ‘metade do caminho’ ainda, sou uma super especialista em inteligência artificial, jamais imaginei que eu ia falar isso, mas eu manjo muito de inteligência artificial. Tem ainda metade da ‘rota’ pela frente, não consigo nem imaginar o conhecimento que eu vou ter, quando eu acabar esse programa, e ele me deu frutos muito interessantes, porque eu olho para o nosso mundo, o mundo em franca, digamos, transformação, eu já olho para ele com outros olhos, com os olhos de alguém que entende o que é que está acontecendo. Eu não consigo prever exatamente para onde a gente vai chegar, mas eu consigo ser desperta em relação aos fenômenos que igualmente me afetam. Não é por compreendê-los que eu não sou vítima dos algoritmos, que todos nós somos, mas eu pelo menos tenho consciência de como eles funcionam, o que é essa inteligência artificial e, principalmente, quais são os limites dela e o que a gente pode fazer, para se desprender um pouco desse domínio.
P/1 - E quais os aprendizados, maiores aprendizados, da sua vida profissional?
R - Olha, eu acho que o maior aprendizado é não desistir. E, assim, cultivar dentro de si uma esperança. Eu sou uma pessoa que eu falo: “‘Cara’, eu tinha tudo pra dar errado, tudo, tudo, tudo pra dar errado”. Eu vim de uma infância, de uma adolescência coercitiva, que me diziam que eu não era inteligente, que me diziam que eu não tinha capacidade, eu me tornei uma adulta totalmente ‘travada’. Até hoje, né? Eu sou uma lutadora, eu estou aprendendo bem artes marciais. Eu brinco, se eu fosse me selecionar no videogame, né, vai estar lá “destreza, força, foco”, aí tipo “flexibilidade”, ‘bota’ a barrinha no último. (risos) Eu falo: “Gente, eu vou ter uma lutadora sem flexibilidade, tá?” Porque, de fato, vivendo a vida que eu vivi, isso encurtou todos os meus músculos. Então, assim, eu tinha tudo para dar errado, tudo, tudo, tudo pra dar errado e eu tinha poucas coisas ao meu favor. Por mais que eu fale do meu privilégio, tem muita gente também que é branca e estudou em ótimas universidades, fala vários idiomas, tudo mais. Então, assim, era muito pouco ao meu favor, para construir o que eu precisava construir. Mas aí eu volto para base que o budismo me deu, e uma delas é um aprendizado muito forte, que o impossível é um estado da mente e a gente não tem que, digamos assim, aceitar o impossível, a gente tem que utilizar o meio como compreensão do carma, que basicamente isso quer dizer que o que está na sociedade, aquilo que a gente consegue ou não socialmente, espelha quem somos, a nossa limitação e principalmente o nosso carma. Só que o carma é algo mutável, é algo que a gente consegue transformar ao longo da presente existência, então a gente não pode aceitar nada como impossível. Isso não significa que não existem limites. Existem limites, mas o limite não é o impossível, o limite não é a existência. Então, o maior aprendizado que eu tive ao longo da minha vida foi, primeiro, crescer profissionalmente, para aprender a me desprender da minha própria, do meu próprio sucesso, isso é muito importante, novamente volta pro budismo: o sucesso é uma felicidade relativa, ele não é uma felicidade absoluta e a gente tem que, de certa maneira, alcançar o sucesso, para um dia olhar para o sucesso e se perguntar: “Quem me controla?” É a mesma coisa lá dos algoritmos e outros exemplos, que eu já usei esse exemplo, né? Mas o sucesso é a mesma coisa: “Quem controla? O sucesso controla você ou você controla o sucesso? Você depende do sucesso, entendeu, ou você aproveita o seu sucesso?” Então, assim, foi um grande exercício que eu tive ao longo da vida, de certa maneira, para aprender a manter uma humildade, porque novamente eu volto à filosofia budista: “Estamos todos de passagem nesse mundo e o que a gente faz ao longo da vida é cultivar um estado de mente, que nos conduza a uma existência de paz e, principalmente, realiza aquilo que nos é importante”. Então, meu principal aprendizado com a minha carreira, sabe, foram esses: lidar com o impossível, aprender a me desprender e aprender a sempre cultivar uma humildade e a paz.
P/1 - Dani, você contou um pouco do seu processo terapêutico, como foi nessa época, e eu queria que você me corrigisse se eu falasse alguma coisa errada, mas no momento que você assumiu publicamente que você era uma mulher trans, eu queria saber se você contou com uma rede de apoio e como foi esse momento.
R - Foi um momento muito solitário, na verdade, eu basicamente tinha a terapia. Porque as pessoas à sua volta, veja: aqui, novamente, não estou culpando ninguém. As pessoas trazem o aprendizado que elas tiveram. E o que é a mulher trans, para a sociedade? No meu caso, eu não tenho nada a ver com o ator que fez essa novela, eu passei a ser, falavam: “Ah, eu conheço a Sarita”. Teve uma novela, provavelmente você nunca ouviu falar, (risos) pela idade. Estou pressupondo aqui. Mas era uma pessoa que nem se define como homem, mulher, como trans ou travesti, mas ela atua, digamos assim, lidando com todo o preconceito da sociedade. E é engraçado, que a maioria das pessoas a minha volta - isso foi nos anos 1990, final dos anos 1990. Se um dia você tiver curiosidade, ‘bota’ ali no Google, pra ver quem que era a Sarita - falavam: “Ah, você é a Sarita”. E quem é a Sarita? É a pessoa que é expulsa das entrevistas de emprego, é a pessoa que é violentada o tempo inteiro, pelo jeito. Então, percebe o peso que é uma pessoa falar: “Você é a Sarita”, né? Eu não tenho nem semelhança física com ela, nem de jeito, nem de gostos, nem de nada! Então, sabe, é literalmente a única referência que existia para essas pessoas e A Garota Dinamarquesa, que novamente é um homem interpretando uma mulher trans e referência péssimas, basicamente, que tinham à minha volta. Então, assim, foi muito solitário, muito, muito solitário, porque ninguém conseguia entender. As pessoas, algumas pessoas tornando um espetáculo a minha vida: “Nossa, você é uma pessoa ‘fora da caixa’, ‘quebrou’ os limites do gênero”. Falei: “Gente, pelo amor de Deus, eu sou eu, eu não fiz nada disso. Vocês estão falando de mim, eu não fiz nada disso, eu só estou vivendo a minha vida, nem me acho tão espetacular assim, sabe? Se eu fosse tão espetacular assim, eu tinha feito isso com vinte anos, eu ia ter força pra fazer isso com vinte anos”. Eu fiz com trinta e poucos, dá pra ver como eu estou longe de qualquer ato espetacular, né? Então, assim, foi um momento que eu tive que aprender a lidar com muita coisa, porque é quase como se tudo aquilo que eu vivi na infância, na adolescência, todas aquelas agressões que eu ‘adormeci’ na minha vida por vinte anos... porque o Torres, de fato, sofria um machismo-transfóbico, mas era muito pouquinho, porque você podia até falar: “‘Cara’, essa pessoa aí é diferente, mas eu estou vendo um homem. O que será essa diferença? Mas eu estou vendo um homem”. Então, assim, você ficava o tempo inteiro naquele diálogo: “Não”. Então, assim, eu sofria a exclusão, eu sofria o machismo, mas é muito diferente de você estar totalmente à mostra, né? Então, sabe, à medida que eu fui, digamos, assumindo esse gênero social, comecei a sentir uma solidão profunda, uma solidão extremamente profunda, sabe, uma solidão da rejeição, das pessoas à sua volta se afastando, né? Eu não tive, como muitas pessoas trans, uma história de que, sabe: ‘ninguém mais fala comigo, as pessoas sumiram’, tudo mais, mas teve muita gente que depositou o seu ‘lixo’ em mim, muita gente que começou a trazer suas questões e começaram a colocar em mim, tipo: “Ah, quando eu era criança, eu me vesti de mulher, você está falando que eu sou trans?” “Eu não faço a menor ideia, vai conversar com seu terapeuta, eu não sou psicóloga”. Mas, enfim, as pessoas começam a falar: “Ah, não, espera lá, isso não é certo, você está querendo mudar...” “Eu não falei nada, gente, estou querendo nada! Só quero ser quem eu sou”. Então, assim, foi um momento de muita solidão, de muito sensacionalismo, mexendo muita coisa que não tenho nada a ver, nada a ver! Mas estava à minha volta, né? O único alicerce que eu tive nessa época foi a terapia mesmo, fazia muita terapia. E é engraçado que você faz terapia, não era nem para lidar com o meu gênero, era para lidar com os outros, pra conseguir separar o que era o assunto dos outros, o que eram os meus assuntos, né? Mas, assim, se você perguntar: “O que você lembra, dessa época?” Nossa, era tão solitário. Tão solitário, sabe? Porque não tinha ninguém. Ainda as pessoas que queriam estar do meu lado, elas não tinham a capacidade de me ajudar, elas não tinham conhecimento, elas não tinham, digamos, referências. Então era, sabe, “mais atrapalha do que ajuda”. E eu lembro em especial de uma amiga minha, que ficou muito próxima de mim nessa época, teve um dia que eu liguei pra ela e falei: “Eu queria estar com você”, aí eu fui na casa dela. ‘Cara’, eu desabei de chorar na casa dela, eu passei a tarde inteira chorando. Eu falei: “Vai dar tudo errado, não tem jeito, ‘cara’”. Tipo, sabe? E foi, parecia mesmo, naquele momento, o ano era, sei lá, 2015, 2016, parecia que realmente a coisa ia dar muito, muito, muito errado na minha vida, parecia que basicamente: “Puts, eu fiz esse caminho, eu fiz o que eu tinha que fazer, mas assim, eu vou pagar um preço por isso, mas um preço!”. E aí eu lembro que nessa tarde eu chorava, assim, copiosamente na casa dela, uma das poucas pessoas que estiveram próximas de mim, ela me abraçava, me dava água, ela: “Vai ficar tudo bem”. Mas, assim, dentro dela eu sentia também que ela sabia, assim: “Não vai ter jeito”, porque parecia ser o único caminho possível. E aí você fala: “Nossa, mas o que mudou essa história?”. Falo: “Pois é, o que mudou essa história?”, eu me pergunto isso também. (risos) Porque você fala: “‘Meu’, sete anos depois, eu estou falando como uma pessoa extremamente bem-sucedida que, ‘meu’, não parece em nada àquele desastre que ia acontecer. Uma das coisas eu sei que foi o meu casamento, né? Pouco tempo depois, eu conheci uma moça e, assim, ela me aceitou de uma forma... que nós somos casadas, né? Desde essa época, nós somos casadas. Quer dizer, casamos algum tempo depois. Mas, enfim, ela me aceitou de uma forma que parecia surreal. Enquanto eu vivia rejeições à minha volta, ela me trazia um ambiente de amor, um ambiente de afeto. E eu falava com ela: “Mas, ‘meu’, o que você está fazendo? Você mora em outra cidade, outro estado, você está mudando, para morar comigo? Eu sou a pessoa que vai se perder, eu sou a pessoa que, sabe, eu vou acabar com a sua vida, eu vou ‘afundar no poço’, eu vou te levar junto”. Ela: “Não, mas você é a mulher da minha vida” “‘Meu’”, sabe? Começou a brotar em mim um desespero de falar: “Puts, cara”. E é engraçado que, eu vivendo tudo isso e reportagens minhas na mídia, que eu era, sabe, a “desbravadora”, a “fora da caixa”, e eu dentro de mim vivendo esse conflito enorme, de falar: “‘Cara’, eu não vou conseguir manter uma vida num universo corporativo, num universo de finanças, eu não sei nem o que eu vou fazer ainda, direito”. E ela ali comigo: “Não, você é maravilhosa, você é isso...”. E aí eu voltei de novo, pra quê? Pra terapia. Eu voltei para terapia e falei: “‘Cara’, eu estou com uma pessoa na minha vida que me ama, que eu a amo, mas assim, eu estou com um negativo dentro de mim tão forte, que eu vou destruir essa relação” - porque é uma auto rejeição, é um senso de fracasso - “Eu preciso salvar essa relação, porque eu nunca na minha vida fui amada”. Quando você... eu acho que teve duas pessoas na minha vida que me amaram assim, aquele afeto por afeto, né? Uma foi minha mãe, ela morreu quando eu era muito jovem. E outra foi essa mulher, que eu senti um afeto, assim, fora do, sabe, comum. “Essa pessoa me ama” É muito estranho isso. Quando a gente tem alguém que nos ama, é muito diferente a relação, que a maioria das pessoas que estão perto de nós, podem até cuidar de nós, podem até ser gentis, mas amar é muito profundo. E são muito poucas pessoas que realmente nos amam. E aí eu levei isso pra terapia, eu falei: “‘Cara’, eu preciso me curar, eu preciso me curar de tudo isso que a gente está falando, preciso me curar da rejeição ao meu corpo, eu preciso me curar de ser tudo negativo na minha vida, tudo mais”. E aí começou a acontecer umas coisas muito malucas porque, ao mesmo tempo, eu ia, sabe, nesse senso de carinho, esse senso de amor, esse senso de validade social... foi nessa época que eu criei a teoria do satélite e comecei a ‘jogar os satélites’ para atmosfera. Foi muito doido isso, né? Porque eu sofria, assim, essas pequenas transfobias no dia a dia, não me ignorava, né? E aí eu falava: “Pô, eu tenho a base espiritual para saber que a agressão é da pessoa, não é minha. Então, a pessoa está me agredindo? Está me agredindo, mas ela está agredindo muito mais a ela”. Isso é budismo, né? Então, eu tinha a base espiritual, tinha a base afetiva e eu tinha a base psicológica. Cara, aí ferrou, porque eu comecei a me curar, eu comecei a 'satelitizar' os problemas e mandá-los tudo de volta para a atmosfera, pra beeeem longe de mim. E eu tinha algo ao meu favor: eu sou uma pessoa muito inteligente, e tinha oportunidades, que talvez no nosso país fossem difíceis, mas lá fora elas estavam disponíveis. Apliquei para uma posição em Londres, consegui, comecei a me tornar referência em um assunto extremamente importante, e aí tudo isso culminou comigo indo pra Nova Iorque. E quando eu voltei, os ‘satélites’ estão tão distantes, né? Gênero? O que a gente está falando? Não precisamos falar sobre gênero. Então, assim, novamente tinha tudo pra dar errado, tudo pra dar errado, um desastre, a receita do desastre estava dada: o sensacionalismo, a transfobia gratuita, tudo mais, estava dada a receita do desastre. E foi assim, ‘cara’, realmente uma conjunção de momento, sabe, uma preparação espiritual, uma força psicológica, digamos, surreal. Eu sempre agradeço a minha psicóloga: “Nossa, que bom que eu consegui uma pessoa, sabe, como você, que de fato nunca me julgou nessa, sempre me ajudou a encontrar as respostas em mim”. E uma base espiritual. Porque o que é interessante da espiritualidade, cada um tem a sua, mas a espiritualidade faz com que a gente rompa limites. Porque o humano é muito, muito fraco, muito efêmero, muito cheio de regrinhas. O espiritual permeia tudo isso. Então, quando você se liga no espiritual, você transforma o humano em ‘satélite’, os manda para bem longe de você. E tendo afeto, tendo a psicologia como alicerce, você não se aliena, porque o espiritual tem uma, digamos, veia que pode ser complicada, que é a alienação. Todo mundo já lidou com alguma pessoa que aparenta estar com uma certa, digamos, alienação espiritual, mas agora, a hora que você alicerça no afeto, você alicerça no psicológico, nossa, é um instrumento extremamente forte, que te faz olhar para tudo, a partir do ponto de vista da efemeridade, que a vida é efêmera, inclusive a vida do preconceituoso. Teve uma vez que eu falei numa palestra, me perguntaram: “O que você teria a dizer ao preconceituoso?” Eu falei: “Olha, se o preconceituoso me ouvisse” - que muitas vezes a pessoa se ‘fecha’ e ela sequer se ouve – “a minha mensagem seria a seguinte: não é por você impedir o meu progresso e me colocar numa posição de tristeza, que vai aliviar as questões que você tem em você. Então, pensa muito bem o que você está fazendo, porque um dia a vida vai te mandar a conta de tudo o que você fez de ruim, o que você racionaliza, justifica, fala: ‘Faço isso, não é porque tenho nada contra você’, falo: ‘Olha, toda essa historinha que você conta para você, tudo que você fala que, na verdade: ‘Eu tenho que fazer isso, porque eu tenho que fazer, eu não queria, mas eu preciso’, ‘cara’, um dia essa conta vai chegar pra você. E essa conta vem de ‘n’ formas, um dia você vai ter que lidar com isso. Eu espero que você ‘desperte’ e passe a lidar agora porque, olha, eu já lidei com a negação também, eu lidei com a negação por dez anos, ela é completamente alienante”. Então, enfim, mas cada um vai seguir o seu caminho.
P/1 - E como é o nome da sua esposa? Você quer falar?
R - Sim! Ayana Jonas.
P/1 - E como vocês se conheceram?
R - Bom, a gente se conheceu por uma rede social profissional. A gente tem uma brincadeira entre nós que todas as redes sociais podem ser o Tinder, basta você saber usar. (risos) É que, na verdade, é uma brincadeira, que a gente se conheceu no LinkedIn, ela comentou um post meu e depois me mandou uma mensagem, falando: “Olha, eu sou lésbica, achei a sua história fantástica e tudo mais e, enfim, queria te agradecer por ser essa pessoa tão forte que você é”. Eu falei: “Não sou forte não, gente”. Aliás, naquele momento estava longe de ser forte, né? Então, não sou forte coisa nenhuma. Mas aí, enfim, eu gostei da mensagem dela, a gente começou a trocar mensagem no próprio LinkedIn, depois passamos para o Facebook. Eu nem tenho mais Facebook, hoje em dia, mas na época eu tinha. Aí a gente, em algum momento, trocou o telefone, começou a usar o WhatsApp e tudo mais, e a gente marcou um encontro, eu marquei com ela num restaurante vegetariano. E aí foi muito engraçado, que ela sentou na mesa, ela falou: “Ah, eu sempre quis também ser vegetariana”. Eu falei: “Sério?” Tipo, que eu falei: “Puts, vamos nesse restaurante vegetariano, é gostoso e eu não como muita coisa, tudo mais”. Falei: “Nossa, sério mesmo que você gostaria de ser vegetariana?”. Foi interessante isso, né? E aí a gente começou a conversar, quando a gente viu - ela é executiva, como eu - o universo super semelhante, a gente começou a se dar super bem e tudo mais. E aí aquela história que a gente brinca, a história de muitas lésbicas: a gente se conhece, um mês depois está namorando, nunca mais se separa, quando vê está noiva, quando vê está casada, e a gente já está todo esse tempo juntas.
P/1 - E o que é importante para você, hoje?
R – ‘Cara’, o que é importante, para mim, hoje, é a simplicidade, sabe? Eu tenho me esforçado muito porque, assim, eu tenho uma mente muito dinâmica, muito rápida e eu tenho me esforçado muito para me cobrar menos e estar mais presente. Isso eu culpo muito os algoritmos... a internet trouxe coisas muito legais para a gente, as redes sociais nem se fala, a visibilidade que a minha comunidade tem hoje em dia é graças às redes sociais. Se não fosse as redes sociais, a gente continuaria contando as mesmas histórias horrorosas no cinema, as pessoas continuariam repetindo esses padrões. Foi a rede social que mostrou que as pessoas trans existem, que elas amam, que elas têm uma vida, independentemente de todo esse caos que nos cerca. Então, assim, mas ao mesmo tempo, acho que o preço de tudo isso é a gente estar sempre ligado em algo. E, assim, eu costumo pensar, eu falei: “‘Cara’, eu sou a última geração, certamente, do que eu chamo dos ‘despertos’, que viram o mundo antes de tudo isso, antes da inteligência...”. Porque, assim, as pessoas, às vezes, me perguntam: “Você que pesquisa inteligência artificial, quando que ela se tornará predominante na nossa vida?” Eu falo: “Gente, já faz dez anos que ela se tornou predominante na nossa vida”. (risos) Eu não sei se você assistiu a esse filme, mas se não assistiu, ele é antigo já, o Matrix, é um filme extremamente interessante, especialmente o um. Tem até o quatro. O quatro já vai muito mais pela linha do ‘meme’, quase, mas o um é extremamente interessante. Eu falo: “Gente, faz dez anos que a matrix foi ligada, acho que o pessoal não percebeu que já foi, já passou, isso aí já passou, a gente já vive inserida num contexto que a inteligência artificial é predominante na nossa vida”. Ela vai se tornar ainda mais predominante? Provavelmente sim, e pode ser que um dia a gente chegue completamente num metaverso, que é um matrix, de fato. Mas já aconteceu, a matrix já foi ligada. Então, assim, isso nos coloca numa posição... e como eu falei: eu sou a última geração daqueles que foram ‘despertos’, daqueles que antecederam a tudo isso. Isso nos coloca no mundo das curtidas, o algoritmo domina o que a gente pensa, o que a gente quer fazer, e ele nos prende. Assim, é o maior especialista em capturar a nossa atenção. A gente está o tempo inteiro ali, aquela ‘fome’ de não perder nada, aquela ‘fome’ de saber tudo que está acontecendo, aquela carência: “Eu fiz um post, será que eu vou receber mais de quarenta likes? Será que eu vou receber quatro mil likes? Será que eu vou me tornar influencer, com dez milhões de seguidores?”, como se fosse mudar nossas vidas, né? Então, assim, a busca é muito por isso, né? Então, eu, por mais que eu pesquise tudo isso, eu sou vítima de tudo isso. E, assim, o meu grande desafio hoje em dia é conseguir desligar, sabe, é conseguir não checar meu celular, conseguir pensar num mundo em que a inteligência artificial não é tão poderosa assim, ela é poderosa porque a gente dá poder para ela. O algoritmo não é inteligente, ele captura padrões nossos - a inteligência continua sendo nós - e começa a repetir esses padrões e escalá-los. Então, assim, a gente tem como, digamos, permanecer ‘despertos’, mas agora é um exercício muito difícil. Antigamente era um exercício natural, a gente acordava ‘desperto’. Enquanto a gente não chegasse no trabalho, o trabalho não tinha começado. Se eu não estou em casa e alguém me ligou - porque o telefone era de linha, ele ficava na mesa - e eu não estou em casa, acabou, não vai falar comigo. Eu estou no parque, eu estou no parque. Fotografia era um negócio caro, eu lembro, tinha aquelas fotografia de rolo, não dá para tirar muitas fotos. Hoje em dia, nossa, a gente testa 45 posições de selfie, pra ter o selfie perfeito e ainda coloca na internet: “Gente, esse é o meu natural”. (risos) Todo mundo faz isso, eu também faço. (risos) Eu não estou criticando. Aí a coisa mais absurda: a gente tira foto, assim, de uma paisagem e escreve: “Pra mim o importante é estar presente e viver o momento”. Por que você postou, então, entendeu? (risos) Então, a gente faz isso porque a gente já se alienou, eu faço isso também. Então, assim, a gente tomar essa consciência, reconhecer que, apesar de tudo isso, o nosso ‘chassi emocional’ é o mesmo, nós permanecemos as mesmas pessoas. Eu estou com uma - deixa eu pegar aqui - coaching literária, na verdade é uma mentora de literatura, ela está me ajudando a desenvolver, digamos, um novo projeto literário, e ela falou: “Ah, você precisa ler Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, né? E é interessante pensar que essa obra foi escrita em 1956 e ela relata fatos da ‘virada’ daquele século, e é interessante pensar que a gente se relaciona com isso. O que isso mostra para mim? Que o nosso ‘chassi emocional’ é o mesmo. A gente mudou, mudou, mudou, mudou, mudou, mudou, mas eu consigo perfeitamente me relacionar com as emoções de tanto tempo atrás. Isso aqui é presente, isso aqui é recente, né? Se a gente voltar para as Reflexões... é Reflexões ou Diálogos, de Marco Aurélio, que foi escrito acho que cento e sessenta depois de Cristo. Só estou tentando lembrar se é Reflexões ou Diálogos. Enfim, o famoso livro do Imperador Marco Aurélio, você super se relaciona com tudo aquilo. Tem até algumas coisas que: “Nossa, está descrevendo, parece, até uma rede social”, (risos) sabe, tipo? Por quê? Porque a emoção é a mesma. Então, a tecnologia nos foi dada, mas a nossa emoção é exatamente igual. Se a gente tivesse evoluído emocionalmente, eu não conseguiria entender: “Mas do que estão falando?”, mas a gente entende com perfeição. Então, pra mim o grande desafio atual é esse, é o desafio de como é que eu consigo, sabe, provocar estar ‘desperta’, porque o tempo vai passar, a vida vai passar e, honestamente, não vai importar quantos seguidores a gente tem. A hora que a gente estiver naquele momento, sabe, a minha psicóloga fala, que é “a escada rolante da vida”. “O degrau final chegou!” ‘Cara’, eu não vou olhar nesse momento e falar: “Gente, o meu último post teve quatro mil curtidas”. Não, não vai ser isso. Daí obviamente naquela época não vai ser nem mais curtida, a gente vai estar em outro ambiente, que a gente não consegue nem conceber agora, mas a carência emocional certamente será a mesma, né? A não ser que a gente efetivamente consiga evoluir a nossa biologia, o que até hoje não foi possível. Então, é o que eu penso. Eu falo: “ ‘Cara’, como é que eu consigo estar ‘desperta’, num mundo que o tempo inteiro me convida a me alienar?” Esse é o meu grande desafio.
P/1 - E seus maiores sonhos, para o futuro?
R - O meu maior sonho continua o mesmo: eu ainda quero me tornar uma... assim, eu sou uma escritora já, eu sou uma escritora de sucesso já, tenho livros publicados, mas eu ainda quero me tornar a escritora que eu quero ser, e isso não significa me tornar, se eu puder ser uma best-seller, sabe, mundial, muito obrigada, agradeço a humanidade, mas não é... quando você é escritora de vocação, não é necessariamente, sabe... óbvio que você quer escrever e que as pessoas leiam, porque não faz sentido você escrever para ninguém ler, mas eu não preciso ter um público de dez milhões de leitores no mundo. Como eu falei: se eu tiver, vai ser excepcional, mas eu não preciso (risos) ter esse público, mas encontrar minha escrita. Isso, para mim, é algo assim, ainda é algo, é uma missão. Então, eu tô com essa pessoa que está me ajudando agora, que está fazendo um mentoramento literário. Ela tem, nossa, pós-doutora em Letras, é um conhecimento absurdo. E muitas vezes o que eu quero com ela é: “Me ajuda a encontrar a minha escrita, me ajuda...”. Assim, eu sou uma escritora habilidosa, eu escrevo extremamente bem, eu consigo, sabe, escrever, tudo mais, eu lido muito bem com editor, porque para muitas pessoas que escrevem, o editor é o ‘pesadelo’, que é aquela pessoa que vai pegar o seu livro, vai começar: “Hum, nossa, isso aqui está péssimo, não vou nem começar a ler”. Então, assim, eu não tenho problema com isso, porque isso me faz evoluir. Eu acho muito interessante. Inclusive foi muito engraçado, eu estava num mentoramento com ela ontem e eu mandei pra ela um conto, estou mandando muitos contos pra ela, aí eu mandei um conto pra ela e ela começou a reunião: “Olha, Dani, eu li o seu conto. Assim, é interessante, literariamente está muito fraco ainda”. Então, era isso que eu queria saber. Então, assim, quando você se acostuma a ser escritor, esse diálogo você fala: “Beleza, vamos lá, porque agora que...”. E aí acabou a reunião, ela: “Esse aí, sei lá, é o conto o número dez que você submete para mim e é bonito ver que esse é o seu melhor conto. Apesar dele estar ruim, (risos) é o melhor”. E, assim, porque é exatamente esse o exercício. Então, assim, encontrar essa escrita é algo muito mais profundo, não é a mera técnica, não é o dia. Porque, assim, o editor, eu nunca espero, na minha vida... um dia eu posso ser essa best-seller de dez milhões de leitores, eu nunca espero encontrar um editor que diga que meu texto está bom, porque senão ele não está servindo como editor, ele tem que dizer que o meu texto está ruim, porque essa é a função dele, é me instigar a encontrar o meu melhor texto. E se tiver algum editor ouvindo, gente, dá pra fazer isso, às vezes, com mais carinho (risos) também. Eu já me acostumei com a maneira. (risos) Mas, enfim, a função do editor é essa. E o que eu quero, o meu maior sonho é encontrar essa escrita, é escrever, sabe, o livro perfeito, sabe, mais ou menos como o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. Acho que ele nunca pensou em escrever o Livro do Desassossego. O Livro do Desassossego é uma compilação. E recentemente eu estive na casa do Fernando Pessoa, em Lisboa, nas minhas férias, e até eu cheguei, assim, tinha a cômoda original dele, coloquei a mão, assim e falei: “‘Meu’, venha, inspiração”, sabe? Porque eu quero encontrar o meu Livro do Desassossego e se esse Livro do Desassossego vai ser lido por dez, vinte, trinta, dez milhões de pessoas, pouco me importa, mas eu quero encontrar essa escrita e falar: “Não, beleza, é essa a minha palavra, enquanto escritora”. Isso é uma missão de vida e é uma missão que não se encerra, sabe, nem agora, nem com minhas produções futuras. É um negócio que talvez, sabe, muito próxima, enfim, à minha velhice, eu chego e falo: “Beleza, é essa a minha escrita”. Eu tenho um caderno - eu tô pegando aqui minhas coisas, que aqui tem uma prateleira - eu amo esse meu caderno. Nossa, estão caindo as coisas. Desculpa, gente. Eu amo esse meu caderno, e eu gosto que ele tem esse nozinho aqui também e é onde eu anoto. Aqui dentro desse caderno tem, digamos, a minha obra suprema, né? Quem sabe um dia eu consiga acabar de escrever. É na forma de um diário, que eu coloco exatamente essas reflexões mais profundas de alma. Nem sempre são textos bonitos, nem sempre são textos positivos, mas são reflexões de alma muito profunda. Eu falo: “Bom, será que um dia eu vou conseguir acabar de escrever as páginas desse diário? E será que o dia que eu acabar, eu vou olhar e falar: ‘Isso aqui tem um valor literário?’” A minha busca como escritora é essa, esse é o meu sonho.
P/1 - Dani, e qual é o legado que você deixa para o futuro?
R - Olha, eu acho que eu tenho uma posição extremamente privilegiada, porque o sucesso se tornou tamanha realidade na minha vida, o que é muito raro mesmo, muito, muito raro eu ter alcançado o sucesso que eu alcancei. E claro, sempre dá para ir pra... o pessoal fala “tem muita coisa para mim”, tem muita coisa pela frente. Eu posso continuar minha cadeira executiva para o resto da vida, sempre vai ter mais alguma coisa para fazer, entendeu? O ponto não é esse, mas chega num ponto que você chega no ponto que você achou que você não chegaria e eu já passei desse ponto, (risos) entendeu? Então é óbvio, da minha dimensão pessoal, o sucesso já se tornou pleno há muito tempo. Agora, eu tenho uma outra sorte muito grande, porque eu já deixei um legado também. Porque assim, quando a gente pensa numa vida de uma pessoa, o legado é quase uma atividade do nosso ego, de querer a nossa a nossa perpetuidade, como, assim, “ah eu preciso continuar a existir”. Acho que isso é algo muito instintivo nosso, no sentido de falar “não, a minha vida não é finita, a minha vida teve um propósito”, né? E eu tive a sorte de com trinta e poucos anos de idade, construir um legado, e um legado não significa que eu serei lembrada por ele, né? Eu até falo “eu não preciso ser...”, eu já falei em algumas entrevistas “eu não preciso ser lembrada”. As pessoas falam “ah você já parou para pensar que com sessenta anos vão olhar e falar ‘nossa, a Danielle...’”, cara, eu não preciso não. E muito provavelmente, vamos falar uma coisa, vai ser ótimo se não lembrarem, porque vão ter muitas outras Danielles por aí. Então vai ser excelente se ninguém lembrar de mim, mas o legado eu deixei, independentemente de um dia a gente ir numa pracinha e ter uma estatuazinha minha ali, sabe, que a gente... é engraçada essa relação com a estátua, né? A gente vai numa praça “ah, essa pessoa aqui”, a gente nem sabe quem ela é. Então repara que é uma atividade do ego mesmo a gente pensar em legado. Agora, eu não preciso que alguém digamos lembre-se do feito que eu fiz, de quem eu etc., mas o legado eu deixei. Quantas pessoas não foram empregadas após a minha história, quantas organizações não pararam e pensaram “nossa, a gente é preconceituoso mesmo, vamos mudar isso” e tudo mais. Então assim, o legado eu já construí, isso já é, isso é maravilhoso e é uma satisfação enorme. E como eu me exercito muito, seja pela terapia, seja pelo budismo, a controlar, amenizar o meu ego, que como humana eu não consigo deixar de ter ego, eu estou muito pouco preocupada se vão lembrar do meu nome ou não. Então o meu legado ele já foi construído. Agora, se eu conseguir encontrar minha escrita, novamente eu vou mostrar aqui o meu caderninho, se eu conseguir encontrar minha escrita, acho que vai ser um belíssimo legado e aí para quem tiver disponível a lê-lo. Mas é, de fato, o legado que eu ainda quero construir, é encontrar o meu livro. E eu já escrevi tantos, eles falam “nossa, mas como assim”, tem um que é... vou fazer de novo referência a Fernando Pessoa, é “O livro do desassossego”, eu preciso encontrá-lo ainda em mim.
P/1 - Dani, a gente está chegando no fim, eu tenho só mais duas perguntas. Uma é mais curta. A primeira delas é se você quer contar algo que eu não tenha perguntado a você.
R - Deixa eu pensar se tem. A gente falou de tanta, tanta coisa, né? Mas acho que tem uma história interessante de quando eu voltei a lutar. Como eu falei pra você, eu voltei a lutar no ano passado depois de um hiato de quantos anos? Não sou muito boa de contas aqui, mas deve ser mais de 26 anos que eu parei, mais de 26 anos. 25 anos se puder seguro dizer. E teve um momento que eu voltei pro tatame, e eu voltei assim pro tatame, mas com um medo, um medo enorme de entrar, sabe? E eu liguei na escola, e eu perguntei, sabe, se ia ter luta... vai ter luta, você tem que lutar. (risos) Eu falei “mas como é que vai ser?”, “não, mas a gente preza a segurança, ninguém vai sair machucado”, tudo mais. Eu estava ali num nível tão exagerado. E aí num belo dia eu fui. Fiquei um tempão ligando, né? E aí no último dia da escola, acho que era um pouquinho antes da véspera do Natal, eu fui fazer minha primeira aula. Tinha basicamente eu, mais duas pessoas e o mestre, a gente estava lá, e eu fiz a minha primeira aula. E aí, nossa, foi tão apavorante, foi tão assim, eu congelava, e assim, o medo que eu tinha era exatamente de tudo que a gente falou hoje, da vida inteira. Porque a música, ela permaneceu em mim, a luta, ela parou, eu tinha doze anos de idade, só que eu comecei a lutar dentro de mim, né? E quando eu estava lutando era quase como se eu tivesse trazendo Torres de volta para minha vida e é quase como se ele estivesse lutando pela Danielle, com a Daniele, assim. E é óbvio que a Dani prevaleceu nessa luta, mas para mim foi uma dificuldade enorme. E aí eu demorei para tirar o meu o meu kimono, mas aí uma hora eu coloquei, eu consegui colocar. Para mim conseguir lutar uniformizada pela primeira vez foi, nossa, mexeu tanto comigo. E a escola que eu faço parte, você não ganha nem a faixa branca, você realmente tem que merecer a faixa branca, e assim, e o merecimento que o mestre fala é meramente você ter uma meta pessoal e dizer que está pronta. Eu falei “ah eu estou pronta” e aí teve a minha cerimônia, a minha primeira cerimônia de faixa branca. Para mim foi, nossa, um momento extremamente mágico para mim na faixa branca. E eu postei na internet “nossa, mas você é muito corajosa de postar a faixa branca”, não é coragem, a gente tem sempre perceber que a gente aprende na vida, a gente começa de algum lugar, que tem gente só quer apostar quanto está na faixa preta. Falei “eu não, vou postar todas que eu conquistar, porque é um caminho muito bonito” e a faixa branca para mim foi a mais importante de todas. E eu lembro que o Mestre ele perguntou para mim “E se você quiser comentar comigo qual foi o seu objetivo”, falei “olha, meu objetivo foi parar de ter medo de lutar”. Ele “nossa, mas você veio, você...”, “pois é, mas você não imagina a luta interna que foi pra mim todo dia de manhã acordar e falar ‘eu não vou’, ‘eu não vou’, ‘eu não vou’”, é triste demais pra mim, é triste demais olhar a vida toda que eu vivi, é triste demais saber que minha mãe nunca mais vai estar comigo e “eu não vou lutar”, né? Hoje em dia já vai fazer quase um ano que eu voltei a lutar. Está difícil pra mim ainda? Ainda é difícil. É bem diferente, não é mais aquele desespero, mas tem dia que eu não consigo focar. É impressionante, tem dia que eu não consigo, sabe? É uma atividade, por mais que seja uma atividade física, uma atividade que mexe com o nosso corpo inteiro, e tem dia que eu estou lá lutando e eu não consigo, literalmente não consigo me concentrar, eu não consigo lutar, eu não consigo chutar. É impressionante, né? Mas assim, essas incidências estão se tornando cada vez menores. E eu falo “bom, o caminho da faixa preta, quem sabe um dia eu chego lá de verdade, quem sabe eu consiga chegar”, mas ele para mim é um caminho de espiritualidade, ele é um caminho de, sabe, aplacar em mim a luta que foi a minha vida, porque dessa vez eu estou lutando de novo, mas dessa vez eu estou lutando com o controle, eu estou lutando com afeto, eu estou lutando dentro de uma filosofia de artes marciais. A minha vida foi uma grande luta e uma luta pela sobrevivência, então eu me vejo no tatame, eu me vejo de novo lutando, mas uma luta por sobreviver. E eu falo “não, não é essa luta agora. Agora é uma luta espiritual que você está fazendo, é outra”, mas é algo que mexe muito comigo ainda. Mas é bonito! Eu estou prestes a me graduar de novo e é bonito perceber que, nossa, eu já estou conquistando a minha terceira faixa e está cada vez se tornando algo mais tranquilo, em que pesa, ainda é algo difícil para eu fazer. Talvez fosse, se a gente se encontrar daqui dois, três anos, eu te falo “não, agora é só o prazer, é só espiritualidade, é a luta, é o exercício, não tem mais essa luta interna por existir”, é uma metáfora, mas assim, especialmente quando você é um escritor, as metáforas, percebe muito as metáforas na vida. Então você não consegue não lidar com a metáfora.
P/1 - Dani, como foi contar a sua história hoje e rever um pouco da sua trajetória? Enfim, contar um pouco sobre você.
R - Olha, eu gostei muito. Na verdade, eu acho que foi extremamente prazerosa, pelo menos pra mim foi extremamente prazerosa a nossa conversa. Eu sempre penso na escuta, porque eu sou uma pessoa que eu sou muito acostumada a falar, muita gente quer saber da minha vida. O que é interessante e ao mesmo tempo me coloca em uma posição de diálogo o tempo inteiro. Mas ao mesmo tempo, super desenvolve a minha capacidade de falar sobre mim, a minha capacidade de olhar para a minha vida com sinceridade. E eu sempre penso “eu tenho que lembrar de ouvir também”, porque é ouvindo que a gente aprende. Então sempre que eu exercito a fala, e atualmente... há muito tempo, falar para mim era extremamente desconfortável, ia, sabe, eu ia passar muito mal para gravar uma entrevista, qualquer coisa. Hoje em dia, para mim é super tranquilo falar. Porque assim é como se meu músculo fala, ele está superdesenvolvido, sabe, de tantas e tantas e tantas vezes que eu contei, eu escrevi a minha história, eu limpei toda... tem vezes que eu até brinco com a minha terapeuta “a gente não vai encontrar alguma coisa”, assim, olhando para o passado. Do presente, muita coisa, óbvio. Mas olhando para o passado, ela fala “olha, a gente já mexeu com tanta coisa, mas vamos sempre deixar o canal aberto, se vier uma lembrança nova, a gente acolhe?”. Falei “beleza, vamos deixar esse canal aberto”. Isso é bonito, a gente chegar num momento de uma maturidade emocional, de olhar para trás e falar “nossa eu ainda tenho coisas para entender do meu passado” ou “agora é só entender o presente”. Porque assim, a terapia ela não transforma, ela não transforma ninguém, mas ela dá luz nos assuntos e você compreende os padrões que você desenvolve, porque você desenvolve, aí você consegue canalizá-los melhor. Então assim para mim conversar é uma delícia, ao mesmo tempo que eu sempre penso “Eu preciso escutar também”, porque é como... e eu fico muito feliz com toda digamos todo carinho que muitas pessoas têm pela minha história e o quanto elas julgam que a minha história pode inspirar, e eu acho isso maravilhoso, mas assim, eu falo “poxa, é como se fosse, meu braço fala muito forte. Esse meu braço escuta, eu preciso fazer uma musculação dele também”. Então, mas foi assim um enorme prazer estar com você hoje, eu adorei a conversa e espero que tenha atendido ao propósito de vocês também.
P/1 - Super! Eu adorei te entrevistar, adorei te conhecer. Muito obrigada mesmo por participar desse projeto, eu acho que engrandece muito, de verdade, o projeto. E agradeço em meu nome e em nome do museu.
[Fim da Entrevista]
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