Projeto BTP Mulheres Empreendedoras
Depoimento de Rosemeyre da Conceição Duarte
Entrevistado por Jonas Samaúma
São Paulo, 13/11/2020
PCSH_HV941
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Fernanda Regina
P/1 - Então, gostaria de começar com você fechando os olhos se possível, fazer uma respiração bem profunda e na medida que o ar entra, que o ar sai, que você respira, você busca abstrair o seu dia, tudo que tá acontecendo, para gente entrar na sua história. E aí nesse túnel da sua história, eu queria que você pegasse lá, qual é a memória mais antiga que você tem, a primeira lembrança dessa vida.
R - A primeira lembrança que eu tenho dessa vida...
P/1 - Pode abrir os olhos, se quiser.
R - Eu fui lá atrás, é alguma coisa quente, tipo um colo. Eu acho que era a voz assim, da minha mãe, que eu imagino cantando, que ela gostava de cantar para me ninar, pra eu dormir.
P/1 - Olha só. Então já que você falou da sua mãe, qual é o nome dela?
R - A minha mãe é falecida e o nome Marilena.
P/1 - Marilena. E qual é a história dela, você sabe um pouquinho?
R - A história dela é inspiradora, que bom que você perguntou. Porque assim... Bom, se hoje eu percorri os caminhos que eu percorri, se eu me tornei o que eu me tornei, se eu fiz o que eu fiz ou deixei de fazer, é totalmente por conta da minha mãe. Então assim, ela sempre foi a minha inspiração, o meu modelo, minha melhor amiga, o meu tudo. Então assim, eu não tenho vergonha nenhuma de falar que ela tinha... A decisão, a opinião dela, tinha uma enorme interferência na minha vida. Mas eu acho que sempre foi positiva. Nunca eu acho que ela ultrapassou o limite e nunca eu acho que foi uma interferência que fosse me atrapalhar, era algo que ela... Talvez achasse que tinha de falar e que de alguma maneira fosse trazer algo de bom pra mim, nas minhas decisões. E eu sempre pesei muito a opinião dela. Então assim, a minha mãe prestou concurso público na idade dela, e mulher, por volta dos anos 60, para antiga a antiga Cosipa, que hoje é Usiminas. E ela passou nesse concurso e foi a primeira mulher a ser aprovada para trabalhar na área operacional da Cosipa, Companhia Siderúrgica Paulista, em Cubatão. Então eu já nasci numa casa onde mãe e pai trabalhavam, o que já era meio assim, né, uma novidade, principalmente em área operacional. Então, ela conheceu o meu pai também em Cubatão, mas não na Cosipa, porque logo depois que ela entrou na Cosipa, alguns meses depois, ela me contou que abriu um concurso para trabalhar na Refinaria Presidente Bernardes em Cubatão, da Petrobras. E na década, de 60, aí depois 70 e 80, a Petrobrás era "o concurso", porque era o melhor lugar para se trabalhar no país, por conta de tudo, por conta de ajudas de custo, por conta de incentivos, décimo terceiro, férias, plano de saúde, tinha... O que ela fala para mim, PLs, que eram as Participações no Lucro da empresa. Então aquilo acrescentava no final do ano tipo, mais dois salários, era um décimo quarto e um décimo quinto salário. Então a minha mãe pegou e falou "não, vou estudar mais um pouco e vou prestar o concurso da Petrobrás". E aí ela passou. E também foi a primeira mulher que entrou aqui, na Refinaria Presidente Bernardes em Cubatão, na área operacional. Então quando eu cresci, quando eu me dei por gente, vai, tipo... Eu me lembro claramente de eu ter tipo, 15 anos, e estar começando a despertar aquele meu lado assim de vaidade e não sei o que, aí a minha mãe falava: "Filha, eu só vou te falar uma coisa, seja independente. Estude e trabalhe pra você se garantir, pra você não ter que depender de ninguém. Não interessa a profissão que você vai escolher, mas seja independente". Então tipo, não pare de trabalhar porque casou, não pare de trabalhar porque engravidou, sabe? Continua na estrada, porque olha o exemplo? Então a minha mãe era uma pessoa super antenada, super a frente do tempo dela. Ela usou calça comprida quando mulher nem sonhava em usar calça comprida, e as que usavam eram taxadas de guerrilheiras, maconheiras, sei lá, esse tipo de coisa. Então ela foi uma mulher inspiradora. E sempre em movimento, sempre se atualizando, nunca parou. Mesmo aposentada abriu uma empresa de consultoria, que ela gostava daquela área. Então é e sempre foi, e sempre será a minha inspiração, a minha mãe. Então você já tocou num assunto, porque assim, eu poderia ficar falando pra ela, assim... Dela, até o fim, mas, porque eu tô falando isso... Porque o meu concurso...
P/1 - Não, calma. Lá na sua infância...
R - Lá na minha infância, tá. (risos) Então vamos lá.
P/1 - Vai chegar o seu concurso... Não, você quer falar agora, você pode falar.
R - Não, não... Eu ia falar até um pouquinho antes, porque eu fiz duas faculdades, então assim, quando eu tinha 17 anos, eu fiz aquele teste...
P/1 - Não, rapidinho, a gente vai chegar aí.
R - Melhor, né? Tá.
P/1 - Então, infância.
R - Infância.
P/1 - Quando você era criança assim, o que você lembra da sua mãe, pequena, de memória com ela?
R - Então, a minha mãe viajava muito por conta do trabalho dela. Ela ficava muito na refinaria do Rio, que é a sede, e na Revap, que é a Refinaria do Vale Paraíba, que é... [pausa]... Em São... Onde é o ITA? Em São José dos Campos! São Jose dos Campos. Então assim, a minha mãe viajava muito. Então, praticamente até os 22 anos, eu fui criada pela minha avó. Mas com a minha mãe chegando em casa à noite, tomando a lição, perguntando como é que foi o dia, presente na medida do possível que ela poderia estar. Então assim.
P/1 - E você cresceu onde?
R - Cresci na mesma casa onde eu moro até hoje.
P/1 - Ah, é? Que é...?
R - Que é em São Vicente.
P/1 - São Vicente. E como era São Vicente nesse período?
R - Ah, era tão legal, mais uma cidade do interior. Era muito gostoso, a gente podia brincar na rua, jogar bola, meu pai desenhou uma amarelinha na calçada da minha casa, brincava de queimada, de empinar pipa, eu sempre foi "Maria moleque". Jogava bolinha de gude. Sabe, uma infância extremamente feliz, como eu não vejo hoje.
P/1 - E você brincava com quem?
R - Com os vizinhos e com os meus primos. Os meus primos foram criados praticamente juntos comigo, meus dois primos por parte de mãe. Minha mãe só tinha uma irmã, que é minha madrinha, e aí como eu moro em casa e eles moravam em apartamento, eles vinham para a minha casa na sexta-feira. Aí ficavam com a minha vó e a gente ficava junto, sexta, sábado e domingo.
P/1 - Mas sua avó ela morava na mesma casa que você?
R - Ela morava pertinho, uma quadra.
P/1 - E aí ela ia todo dia?
R - Todo dia.
P/1 - E a sua vó, então, já que você falou que a sua mãe é uma inspiração tão grande, você sabe um pouquinho da história da sua avó?
R - Sei. Bastante (risos). A minha avó também é inspiradora, até porque praticamente foi ela que me criou. Então assim, a vovó é uma pessoa enérgica, era portuguesa, e o meu avô, espanhol. O "Royas" do meu nome vem do vovô. Então assim, a minha avó veio com 14 anos e desembarcou aqui no Porto Santos, meu avô idem.
P/1 - De onde eles eram mesmo?
R - Meu avô Espanha e minha avó Portugal.
P/1 - Eles se conheceram...?
R - Aqui em Santos, no Brasil. Minha avó acho que conheceu o meu avô com 16 anos, casou super jovem e meu avô não sei ao certo quantos anos ele tinha, mas como ele era um pouquinho mais velho deve ter sido alguma coisa em torno dos 18, 19 anos, alguma coisa assim. Então assim, eles moravam no porão, no centro de Santos, onde vários imigrantes moravam também. Eles dividiam o porão, inclusive, com várias famílias, tanto que às vezes quando... Minha avó falava, que às vezes a grande preocupação dela com a minha mãe e com a minha tia sempre manter bem limpinha, dar o banho, porque se um tivesse piolho passava pra todo mundo, sabe assim? Era bem complicado. E minha avó cuidava das coisas da casa ali, do porão, depois o meu avô trabalhando conseguiu alugar uma casa, aí foi tocando a vida. Só que aí meu avô foi servir, ele era médico, foi servir na Segunda Guerra Mundial. Então ele ficou mais de um ano fora, enquanto... Só que a minha vó estava grávida da minha mãe. Então minha mãe nasceu no auge da Segunda Grande Guerra e meu avô só depois que conheceu minha mãe, quando minha mãe já tinha nascido. E aí depois veio minha tia. Então eu sei que minha avó foi uma guerreira, foi guerreira. E meu avô, então... Assim, como eu era menina, eu acho que eu não tinha aquela curiosidade de perguntar como era servir na guerra, né? Eu nunca fiz muito essas perguntas, mas eu me lembro por exemplo do meu avô fumar muito, muito, e o cigarro de palha, aquele cigarro que tinha um cheiro forte, e que ele ficava enrolando, fazia... É até meio que um... É toda uma preparação, todo um gestual, era legal, porque eu me lembro de eu sentar do ladinho dele, minha perna nem dar direito para alcançar no chão, e ele: "olha, Lina", porque ele me chamava de Lina, de Karina, Lina, "olha, Lina". Aí ele ficava e eu observava, e ele lá, aí ele fazia assim (gesto), aí acho que fechava, né, o negocinho. Ai eu não lembro como é que ele... Eu me lembro de ele acender uma vez no fogão. Mas aí era aquele cheiro forte, e aí o engraçado era que ele me punha no ombro, no cangote, que ele falava "sobe no cangote", e aí passeava comigo. Gente, ele era muito forte. Ele andava comigo São Vicente inteira no cangote. É assim, surreal imaginar isso hoje em dia. Ficaria todo ferrado da coluna, mas assim... Gente, e foram anos assim, eu já estava pesadinha e ele continuava. E era engraçado que o cheiro (risos) do cigarro subia, eu meio que fumava por tabela, mas eu não estava nem aí, primeiro porque eu via o mundo alto, né? Enxergava as pessoas assim de cima. E ia curtindo, porque aí ele ia... Ele as vezes cantarolava, acho que alguma canção de guerra, as vezes ele falava alguma coisa "Lina, essa vida aqui é dificil", falava alguma coisa assim que deveriam ser experiencias que ele passou lá. Então assim, eu acredito que ele deve ter visto altas coisas, mas detalhes eu nunca perguntei.
P/1 - Nossa, que legal. Você tem outras memórias além de andar no cangote dele?
R - O meu avô me apresentou o mar, então assim, foi amor à primeira vista. Como eu sou dependente do mar, gente, nossa senhora. Então eu lembro dele falando muito disso também. E caminhar na areia, e escutar aquele barulho, e eu ver as pessoas entrando na água, e saindo, se divertindo, e eu queria muito entrar. E aí ele que me levou a primeira vez. E nossa senhora, mas assim, não levei brinquedo nem nada, mas aquela experiencia da onda vindo, e voltando, aquilo pra mim era algo surreal, eu falava: "Nossa! Meu Deus, isso...". E olha, engraçado, porque até hoje é uma das coisas que mais me relaxa e uma das coisas que eu mais gosto de fazer na vida. É, sabe, desestressante, é entrar um pouquinho no mar, nem que seja pra... Eu brinco, eu falo "marido, preciso dar um 'tchibum'", então é assim. Eu não me imagino em nenhum lugar no interior sem mar.
P/1 - Olha só. E que massa, né? Então você tem essa... E aí a sua avó, ela ia... O seu avô te criava também, ele ia pra essa casa todo dia?
R - É que nessa época assim, eu bem pequenininha, então a minha mãe ela pegava o ônibus pra refinaria junto com o meu pai perto de casa, acho que umas duas ou três quadras, e como a minha vó morava a uma quadra, ali pertinho, ela me deixava na vovó e já ia com o meu pai a pé até o ponto onde passava o ônibus da empresa.
P/1 - E seu pai trabalhava com o que?
R - O meu pai em elétrica, lá na refinaria também.
P/1 - E o que você lembra do seu pai?
R - Meu pai eu lembro até hoje, graças a Deus (risos). Meu pai é vivo ainda.
P/1 - Mas dessa época.
R - Dessa época, então... Dessa época eu lembro que o meu pai trabalhava bastante. Porque como ele era da parte de elétrica, eu lembro que eles tinham que fazer uma coisa chamada "parada". Eu lembro que a minha mãe falava muito isso, "Ai, Roberto, vai ter outra parada, vai ter outra parada". As paradas na refinaria, tanto na Cosipa quanto na Petrobrás, eram coisas em que as caldeiras tinham que ficar ligadas initerruptamente, e aí acho que depois tinha uma manutenção. Então ele tinha que ficar, tipo, três dias na empresa, alguma coisa assim, a equipe. E aí eu lembro que era extremamente cansativo, e aí quando meu pai voltava, minha mãe falava: "Ai, filha, não faz muito barulho, pelo amor de Deus, porque o pai voltou da parada", eu me lembro muito disso, dela falar da parada. Parada da UFCC, que aí depois quando eu cresci eu perguntei, era Unidade de Fracionamento e Capitalização de Carbono, alguma coisa assim.
P/1 - E da escola, o que você lembra da escola? Você ia na escola?
R - Ia. Então assim, eu estudei prezinho, prezinho, foi... Não, prezinho não, minto, maternal, jardim, essas coisas, foi numa escolinha que tinha, se não me falha a memória, o nome era Cinderela, perto de casa, que aí era minha vó que levava, que foi aquela coisa de massinha, acho que alguma coisa assim. Quando já foi para... Na minha época falava assim, era pré, tinha pré 1, pré 2 e pré 3, eu não sei como que é hoje, mas já maiorzinha, aí o resto da minha vida foi no colégio São José, que é aqui em Santos, na da Costa, que era um colégio só de meninas. E assim, é a experiencia mais maravilhosa que uma pessoa pode ter, é muito, muito legal. Muito legal, assim, porque por mais que falem "Ah, mas você não interagia com homem", gente, você tem o resto da vida inteira pra interagir com homem. Então assim, agora as brincadeiras que rolassem, assim como com os homens, só entre eles, a gente só entre nós, "entre elas", são brincadeiras que a gente leva pro resto da vida.
P/1 - Opa, quais são essas brincadeiras?
R - Ah... Tudo, gente. Sei lá, o que eu vou lembrar... Tinha umas danças de roda que a gente fazia e cantava o hino junto, que é um hino só de... O hino do colégio São José, que é feito só para mulheres, tem estrofes só de mulheres, que faz referência só a menina. Eu creio que hoje em dia, como o colégio é misto, não sei se mudaram o hino, mas eu acho meio estranho talvez um rapaz cantar aquilo. Mas assim, e é muito engraçado porque, gente, a gente no intervalo tinha que cantar o hino. E tinha aula de música, você tinha que saber o (compasse?), tudo. E a gente fazia, tirava sarro, eu fui Virgem Maria durante oito anos.
P/1 - Como era ser Virgem Maria, como era isso?
R - É, porque no final do ano a gente tinha um presépio, você fazia encenação do natal e tinha o presépio. Então tinha uma menina que se vestia de menino, de José, e eu era a Virgem. Da licença. E assim, porque eu era a Virgem, gente, mas aí as meninas todas tiravam sarro, né? "Aí, porque encruou", "Aí, porque não sei o que". Fora as freiras falando que achavam que eu tinha inclinação pra ser freira, tudo. Aí eu fiquei pensando, falei: "Ah, acho que eu não dou pra coisa, né, irmã?". Então era muito engraçado (risos).
P/1 - Mas no presépio, como era esse presépio?
R - O presépio era... Tinha um palquinho assim, no anfiteatro, e aí a... Lá as professoras eram chamadas de "mestras", e aí a mestra de música ela fazia a manjedoura, eles decoravam tudo. Então tinha a manjedoura, de papelão, mas aí tinha o bezerrinho, a vaquinha, tinha até a estrela guia, tinha os três reis magos, tinha tudo, e eram todas alunas. E eu a virgem maria, eu não sei, acho que eu interpretava bem, embora eu não tivesse fala nenhuma (risos), era só ___ (00:22:45:00), só ficar com aquela cara lá, assim, meio prostrada, meio de santa. E eu incorporava assim, e era uma bata, um... Minha mãe fez, era uma bata branca com um véu azul e eu segurava um boneco, tinha a encenação. Eu não paria nada, mas tinha a encenação só do (corpo?). E assim, tinha os cânticos das... A gente cantava até em latim, tinha música que a gente cantava em latim. E as músicas temas de natal, que tem mais ou menos até hoje. Era linda a encenação de final de ano, linda. Mas só as mais velhas, assim, um pouquinho já, que aí faziam o presépio, porque aí tinha toda uma expressão corporal, ensaiava, lá era legal. Depois também fui aprender a tocar piano, eu fiz onze anos de piano porque aí despertou, despertou, na aula de música eu gostava. Eu sempre gostei de música, mas assim...
P/1 - E aí você foi estudar piano onde?
R - Em dois conservatórios, primeiro no Souza Lima, que era lá em São Vicente, por muitos anos. E lá inclusive tinha coral, tudo. E depois no Lavignac, que existe até hoje, que eu acho que agora é na ponta da praia, era na rua Paraíba.
P/1 - Nossa, porque conservatório é puxado, né? Você tinha piano em casa?
R - Isso, depois a minha mãe comprou, me deu um piano.
P/1 - E quais são, você tem alguma memória afetiva com o piano?
R - Ai, tenho. Você sabe que assim, se não me falha a memória, foi com 12... Aí, eu não quero mentir, mas eu acho que foi com 12 anos que eu ganhei meu piano. Era um piano branco, lindo, de laca. Lindo. Não era de cauda, mas lindo. Com a banqueta branca também, mas o estofado de vermelho purpura, bonito, de veludo. Agora o que eu nunca mais esqueci é que eu não lembrei de trazer, mas eu tenho esse bilhetinho até hoje na cabeceira da minha cama. A minha mãe fez um... Fez uma cartinha para mim como se eu fosse o piano escrevendo para mim. Ele é assim: "Oi, eu sou seu piano e estou muito honrado em fazer parte da sua vida. Gostaria de encantar a sua vida e trazer, despertar em você, muitas emoções". Então assim, é linda a carta que a minha mãe fez, com a letrinha dela, que era linda, e ao final, "assinado, o seu piano". Quando eu li aquilo, aí foi uma correria porque aí estava no... Lá na minha casa, até hoje tem uma edícula e lá na edícula meu pai reformou e tudo, mas aí eu achei que era, sei lá, para ele guardar ferramenta. Mas aí não, é porque Ele preparou aquilo para ser uma salinha de música mesmo. E depois lá, aí eu tinha professora particular por conta de estar próximo ao vestibular, eu não tinha muito tempo de ficar indo ao conservatório, e aí a professora vinha em casa três vezes por semana. Aí eu tinha aulas com a professora Ligia.
P/1 - E você tocava que música?
R - Clássico. Não gosto de MPB no piano.
P/1 - Teve algum dia que você fez, tocou em algum lugar que marcou sua vida assim, algum dia que você tocou?
R - Então, assim, eu sou muito envergonhada pra esse tipo de coisa, eu não gosto de me expor ao público, nunca gostei. Então, por exemplo, quando eu fazia a Virgem Maria, eu não abria a boca. Aí pra mim tudo bem, entendeu? Eu ficava quieta no meu canto ali. E depois... Agora, falar em público, com as pessoas olhando pra mim, porque uma coisa é cantar também no coral, você tá no meio de todo mundo, você também é cinza. Mas se eu tivesse que falar pra uma plateia ou tocar, alguma coisa que eu fosse o foco das atenções, até hoje não rola pra mim. Então eu me apresentava porque era obrigatório me apresentar no final do ano nos conservatórios, porque era obrigatório. Então a professora escolhia uma peça de acordo com o nosso estilo e o nosso grau de desenvolvimento, e aí até depois a gente vai amadurecendo a gente também julgava, "ah, essa aqui não gosto muito, essa aqui eu gosto", então eu sempre gostei muito de Mozart e de Bach, então geralmente eu tocava uma sonata, alguma coisa deles, no fim do ano, mas porque era obrigatório. Mas assim, por exemplo, o meu pai e a minha mãe eram meio frustrados quando tinha algum jantar ou recebia visitas, porque eles adoravam falar: "Olha, a minha filha toca piano". Aí todo mundo olhava para mim, né? Tipo, você vai tocar, você não vai tocar? E eu, oh, não conseguia nem falar. Aí minha mãe ia no quarto, "minha filha, você não vai tocar uma?", eu falei: "Aí, mãe, pelo amor de Deus, não pede isso", porque cara... Minha mão tremia, já não dava, já transpirava, já escorregava da tecla. Não dava certo.
P/1 - E você sempre foi assim tímida? Ou foi algo que surgiu?
R - Eu acho assim, que com o passar dos anos até foi melhorando um pouco, mas... Eu não sei.
P/1 - É, vamos pra adolescência. E aí você chegou, como foi a entrada da sua adolescência, o que você lembra?
R - Ah, eu não gostei muito não, de ser adolescente.
P/1 - Oxe.
R - (risos) Porque... Porque assim, eu sempre fui muito magra. E nos anos 80 o nosso cenário musical fervia, pra mim acho que foi o melhor cenário musical nacional de rock que a gente já viveu. E as minhas amiguinhas todas já bem desenvolvidinhas, já despertando vaidades, despertando um monte de coisa, e eu assim... Gente, extremamente magra. Pensa assim, canela, bolinha, canela. Era um pau. Eu não tinha coxa. Entenda, passava um vagão aqui no meio. Então assim, muito, muito, muito magra. Muito maria moleque. Então assim, eu já me sentia sem graça as vezes porque, principalmente minha prima, as amiguinhas do colégio, "ah, mas você não vai não sei onde? Ah, só você que não vai". E assim, eu não queria ir, eu queria continuar brincando com os meninos, era muito mais interessante, era muito mais legal, eu me divertia muito mais. Essa que era a verdade. E eu sempre gostei de diversão simples, então as brincadeiras com eles eram melhores, até porque eles eram mais novos que eu, porque o meu primo é quatro anos mais novo que eu, então eu ficava na turminha dele, que eram quatro anos mais novos. Então assim, eu estava com 15, 16, a molecada com 12, e eu lá com eles. E a minha prima que é um ano... Eu sou a mais velha, minha prima que era um ano mais nova que eu, tipo, com 15, falando "’hello’, vamos no cinema, vamos não sei aonde, vamos falsificar a carteira", falei: "que falsificar a carteira". Carteirinha, né? Sei lá, eu não gostava. Mas ao mesmo tempo também, eu me achava muito feia, eu falava "meu Deus do céu". Eu me olhava no espelho e falava: "meu pai, isso não vai ter jeito, cara". Aquele cabelo, então, do Chitãozinho, aquela coisa, meu. Que era um negócio espetado aqui, mas que todo mundo usava. Você entrava no cabeleireiro, o cabeleireiro automaticamente já fazia aquilo, era aquela coisa cumprida aqui e espetado aqui. Eu falava "meu Deus do céu". Aí eu falei "bom...". Aquelas roupas também, estranhas, aquelas coisas balonês, o negócio balonê, era horrível. Essas calças que estão voltando agora, semi baggy. Gente, aquilo, não há corpo feminino que resista aquilo.
P/1 - Mas deixa eu te perguntar uma coisa, você sentia que isso... Você olhava, era muito dito essa coisa da beleza?
R - Ah, é que assim... Por exemplo... É, normal. Por exemplo, tinha uma novela na época, eu lembro que despertaram, que era "Guerra dos sexos", então eram as meninas contra os meninos, aquela coisa. E todas as atrizes muito bonitas. Então as meninas brincavam muito "aí, eu queria ser a fulana", a outra "ah, eu queria ser a fulana", aí eu olhava assim, meu... 'No way' (risos), nunca vou. Tinha As panteras. As panteras pra mim era um marco, tanto que é até hoje. E tinha a Jill, que era a loira, a Farrah Fawcett com aquele cabelo, então toda menina depois queria aquele cabelo. Toda menina. Toda revista nacional na época, todas as modelos usavam aquele cabelo. Então era tipo um padrão de beleza da época, né? Aquele coxão, sem peito, abdômen ninguém nem ligava, mas era coxão. Coxão, bundão, sem peito e aquele cabelo. Então assim, eu olhava e falava "pff, meu Deus". Eu falei: "imagina, eu com essa coxa, nunca vai rolar".
P/1 - E você chegou a ter alguns namorados, alguma coisa assim?
R - Ah, cheguei, mas olha... Também irrelevante.
P/1 - Nada que vale a pena eternizar?
R - Ah, é. Não.
P/1 - E aí foi chegando o vestibular.
R - Vestibular, então. Era isso que eu ia falar. O que eu sempre foquei... Já que eu não sou bonita, eu vou ser inteligente (risos). Era a sacada. E a minha mãe falava isso, falava: "Filha, quer saber? Vá pra uma coisa perene. Beleza depois você constrói e muda o padrão. Vai estudar, filha. Não perde tempo". Então assim, as meninas muito iam pra bailinho já, essas coisas todas, e eu sempre lendo muito, lendo muito.
P/1 - O que você lia?
R - Tudo.
P/1 - Tudo? Tudo o que? (risos)
R - Tudo que você possa imaginar. Desde bula de remédio até... Shakespeare, até Mário de Andrade, Oswald, José de Alencar.
P/1 - Qual era o seu livro favorito?
R - Meu livro favorito? Ah, não tenho um só não.
P/1 - Os livros favoritos.
R - Olha, pra mim o melhor escritor, é que ele nasceu no Brasil, se tivesse nascido na Inglaterra, aí melhor seria Shakespeare, mas Machado de Assis. Depois Jose Alencar. Camilo Castelo Branco, quando eu li pela primeira vez "Amor de perdição" eu falei: "Nossa!".
P/1 - Na adolescência você lia isso?
R - É, na adolescência.
P/1 - E você se identificava?
R - Sim, eu viajava.
P/1 - E você lia porque era pra escola ou você ia atras?
R - No começo... A minha mãe lia demais. A minha mãe lia tipo um livro a cada dois dias. Minha mãe era estupidamente leitora assídua, ferrenha. Estupidamente. Ela ia na livraria Siciliano aqui em Santos, ela tinha conta lá já.
P/1 - Nossa, mas ela não trabalhava muito?
R - Trabalhava. E o tempo que ela ficava em casa, até no banheiro, ela levava livro. E ela lia de tudo, desde Agatha Christie, então eu acabei lendo um pouco de Agatha Christie, os mistérios todos, por conta dela. Aí depois fui envergando por contos, poesias.
P/1 - Ela lia pra você?
R - No começo sim, quando eu era pequenininha, ela lia contos de fadas, essas coisas. El ame deu uma coleção da Disney quando eu era pequenininha, com as histórias mais famosas, da Disney.
P/1 - E aí como foi? Você falou, ah, então eu tinha que ser inteligente, decidiu estudar, começou a ler.
R - Isso.
P/1 - E aí você decidiu que queria estudar o quê?
R - Tudo. Pra depois eu ver o que eu ia... Então assim, eu sempre gostei de química e matemática. Eu sempre fui da exatas e fui fazer direito. Mas isso é normal, é de geminiano. Mas assim, química. Adoro. Até hoje. Aí depois matemática. E acima de tudo, português. Sempre. Porque eu acho que você falar a boa língua sua, o vernáculo, você ganha o mundo. Você acaba se destacando, entendeu? Porque é o diferencial até hoje. Bom, hoje então, "menas", né? Então hoje, fora de cogitação. Mas na época já era. E aí a minha mãe falava o seguinte, falava "bom, aprenda primeiro bem a sua língua. Depois você vá aprender as outras", então assim, era a base de tudo. Aí depois eu fui aprender inglês e depois francês. E falo.
P/1 - Você foi aprender inglês... Mas você foi aprender depois quando?
R - Junto com o colégio, mas a parte. Foi no CCB e Aliança francesa.
P/1 - Na adolescência.
R - Sim. Junto com o piano. Junto com patinação.
P/1 - Patinação?
R - E jazz. Sim, eu sou hiperativa (risos).
P/1 - Você quer contar... Eu queria te perguntar, na verdade, de todas essas coisas que você fazia assim, que realmente preencheria bibliotecas, qual que era... Algum episódio marcante, sabe, alguma história, que você contaria para o seu neto, que você lembra.
R - Dessas experiencias? Ai, e agora, meu pai? Porque é tanta coisa... Deixa eu ver, da escola... [pausa] Olha, não sei se talvez essa seria a mais...
P/1 - Pode ser pro filho. Não precisa ser aquela pro neto...
R - É, não sei se essa talvez seria a mais interessante, porque graças a Deus a minha vida é recheada de bons exemplos. Mas eu posso destacar duas, pode ser?
P/1 - Duas, até três!
R - Eu vou falar bem rápido. Olha, então assim, o meu professor de química, por exemplo, ele notou que eu tinha uma inclinação, que que gostava e tal. Aí na época, o colégio São Jose, ele participava das olimpíadas de química e matemática. E aí o professor que indicava as pessoas, meio que dava os exercícios mais de (ionizados?), num outro nível, para os alunos que ele achava que teriam condições de participar. Então primeiro você participava da olimpíada de química na cidade, com alguns outros colégios, as outras escolas, e tanto públicas quanto particulares, não tinha divisão, era tudo junto e misturado, as melhores cabeças, tanto de uma quanto de outro. E aí depois você passava para Olimpíadas de química estadual. E o colégio assim, ele falava assim "ah, a gente dá o incentivo", mas na verdade não houve incentivo nenhum. De um professor me dando os exercícios e eu levando pra casa após a aula, e eu sozinha, batendo minha cabeça, pesquisando, sem internet, graças a Deus, pesquisando mesmo em livros, pesquisando por curiosidade. E parando pra pensar "gente, _____ (00:38:45:00) sem trazer nada pronto", então assim, tinha muitas formas que eram de demonstração até, então você chegava no fim, o legal era você chegar naquela formula que já existia pronta, mas pra você saber como se reduziu pra chegar ali. E aí no final você colocava CQD, que era "conforme queríamos demonstrar". Então assim, era muito legal. Porque você treina o cérebro, isso é legal, você usa a lógica, treina o raciocínio, isso é muito legal. Aí eu lembro que tinha um menino, então era assim, era menino com menina também na hora da prova, não tem prova só pra mulher e prova só pra homem. Tinha um menino que era do... Escola era Santista? Acho que era do Santista, que era um japonês, que era meu concorrente. E aí eu falava "aí, eu tenho que vencer aquele japonês, aí, meu Deus do céu, eu tenho que ser melhor que ele, eu tenho que ser a primeira", e aí eu ficava, aí eu ia, decorava aquela formula, a tabela periódica tinha que saber de cor, os números atômicos, tudo. Bom, aí começou, né? Vamos, vamos. Aí assim, eu fiquei feliz porque eu ganhei a olimpíada de química (risos) e ele ficou em segundo. Aí a gente foi pro estadual. Aí tinha o onibuzinho do meu colégio, que o meu colégio levava. Só isso que o colégio deu, pra participar, a olimpíada ia ser no colégio São Jose, que eu nem sabia que tinha, em São Paulo. E aí foi lá a prova, tudo, super legal. Num auditório assim também, maior nervoso, tudo. Aí eu lembro que eu ganhei, né. E ele ficou em segundo. E aí no final do ano eu fui homenageada. Assim, quer dizer, eu achei que eu ia ser homenageada, né? (risos) E aí eu ____ (00:40:39:00) "eu ganhei uma bíblia e um terço". E assim, na minha cabeça, não era isso que eu esperava, entendeu? Eu esperava assim, uma medalha, uma referência no microfone, que eu fosse lá em cima receber um troféu, sabe assim, a cabeça, eu já estava mirando, né? E aí a freira no final do ano, tipo assim, foi correndo ne, "e a aluna Karina Royas Marques pela participação na olimpíada, primeiro lugar, de química, bla bla bla, professor" olha o nome do meu professor, Tisto. Tudo a ver, uma pessoa que nasce com esse nome só pode ser professor de química, ele não pode ser outra coisa na vida. Ele era maior bonzinho e foi o meu grande incentivar, e aí... E o Patela. E aí tudo bem. Aí eu nem praticamente escutei meu nome, sabe assim? E aí todo mundo batendo palma, e a freira me deu o embrulhinho, e era a bíblia (risos), que eu já tinha tantas, e o terço. E aí depois de algum tempo, eu encontrei esse japonesinho, só que a gente tá falando de adolescente. Eu tô falando disso, 13, 14 anos, mas olha como é legal. Ele me encontrou e eu acho que a minha cara quando eu recebi, eu sei que pelos olhos eu me entrego um pouco, minha mãe falava isso. Então eu tenho que ser mais blase. Mas assim, eu acho que na época com 13, 14 anos, a minha cara foi de decepção quando, eu não consegui muito disfarçar. E eu acho que as outras mães, a minha mãe por exemplo, ela depois chegou em casa conversou comigo, "filha, calma. Você fez sua parte, o que interessa é que você aprendeu e isso você vai levar pro resto da vida", mas na minha cabeça, tipo assim, não tive muito reconhecimento. Mas tudo bem. Você sabe que depois eu encontrei esse japonesinho num shopping, passeando com a minha mãe, de mão dada, não sei o que. E eu vi ele passeando, eu o vi, com a mãe e tudo, e eu reconheci ele, ele me reconheceu também. Você sabe que ele veio e me deu um abraço? E falou "não fica triste". Cara, ele foi o segundo. Então assim, quem tinha todos os motivos do mundo para estar triste, era ele, porque eu ficaria muito triste se eu fosse a segunda. Na minha cabeça, nunca nasci pra ser a segunda. Aí aquilo foi um tapa na cara pra mim, né. Então assim, ali eu já comecei a aprender que as vezes o caminho é mais legal que a chegada, se você souber aprender com o caminhar. Porque o que você leva mesmo é a experiencia do lugar, do caminhar, e não efetivamente a linha de chegada. Porque as vezes você pode chegar em primeiro e você não desfrutou de nada do caminho, como fui eu. Como fui eu. E, no entanto, a pessoa que chegou atras de mim, essa pessoa aprendeu. E nunca mais eu o encarei como meu concorrente, porque foi uma graça. Até porque eu nem sabia que comportar direito com menino, porque eu não tinha esse contato lá. Então aquilo foi... E não foi nada ensaiado, e não foi nada, foi natural dele e o mesmo tempo aquilo me fez um bem tão grande, que aí depois eu fiquei pensando, eu falei "caraca, é mesmo". Só que depois, lógico, a gente cresceu e eu perdi o contato, mas essa foi a primeira coisa que eu acho marcante pra eu aprender a dimensão das coisas. E a segunda foi quando eu passei no meu concurso de conferente, que eu entrei naquele ambiente só de homens, tudo, mesmo morando na cidade eu não fazia a menor ideia do que era um porto, você estar ao lado de um navio ali, cheio de homem estivadores e tal. E aquilo era muito romantizado, muito... "Ah, porque estivador, aqueles brucutus, e não sei o que". Nada a ver. Mas mesmo assim, olha, a de gente tá falando de 94. Então assim, nasci em 71, tô falando com 23 anos, então eu era jovem também para estar naquele meio. Bem inexperiente. Então deles, dos "brucutus", eu tive sempre, desde sempre e até hoje, os maiores e melhores parceiros. Mesmo eles sendo os mais broncos, os mais incultos, os mais ignorantes, digamos assim, eles sempre foram os que me receberam de braços abertos, sem nenhuma objeção. Em compensação, os da minha categoria, esses, sempre que possível, me colocaram pra baixo. Sempre. Sempre. De fazerem as maiores maldades comigo. No sentindo assim de... Físico, não, mas assim de nunca me incentivar. 90% não queria que eu estivesse ali. E uma das minhas primeiras experiencias, que eu fiquei assim, tão chocada, foi que um senhor, porque ele era um senhor, hoje já é falecido, mas ele chegou pra mim e falou assim: "Você não vai durar aqui. Eu não dou um ano pra você não estar mais aqui. Você não vai aguentar, isso aqui não é pra você. Você não tem ideia do que é isso aqui, você não devia estar aqui". Ele falou assim. Aí eu fique... Nossa. Então por tudo, depois a gente crescer e ir entendendo, como é que foi o concurso público, como é que conseguiam fazer o concurso público de 94, porque eles fizeram concurso público. Então assim, eles não queriam, eles queriam que aquilo passasse de pai para filho, entendeu? Eles não queriam que fosse aberto para o concurso público, principalmente para mulher entrar, entendeu? Eles achavam que aquilo já era garantia para a prole deles. E aí caiu por terra. E aí até porque a maioria dos filhos deles não conseguiram passar na prova. Então aquilo "eu não deveria estar ali", "eu não vou durar", tinha toda uma conotação não só de ignorância, de preconceito, era uma coisa mesmo de raiva, de inveja. Aquele senhor principalmente porque o filho dele não entrou.
P/1 - Karina, a gente vai se aprofundar nesse pedaço, que esse pedaço realmente é importante. Mas vamos voltar lá para quando você queria... Estava com 13 anos, teve essa história da química, da competição, naquela outra competição do vestibular, como foi que você decidiu o que você queria estudar?
R - Então, aí eram muitos alunos. Então assim, eu queria fazer de um tudo, na verdade. Queria fazer de um tudo. Porque eu tenho meu lado de música, por exemplo que eu sempre gostei, de arte de uma maneira geral. Então eu gostava de música, de dança, fazia jazz. Eu gostava disso. Ah, e gostava muito de exatas. E aí dei uma passeada por humanas, principalmente por causa da leitura. Aí eu falei "meu deus do céu, e agora?". Porque, principalmente no meu colégio, quando você chegava no terceiro colegial você tinha dois tipos de classes, unificado, que era pra quem queria prestar pra exatas.... É, exatas. Que dava uma ênfase nas matérias que caiam no vestibular, de exatas, e a parte humanas e biomédicas, porque na época existia essas coisas, que aí era uma outra classe, com ênfase na carga horária em biologia, português, as matérias. Então aí eu fui fazer o teste vocacional na psicóloga, Diva Maria Seffi o nome dela, ela chegou a me dar aula no São José, de psicologia. E eu fui fazer o teste vocacional com ela. Ela clinica até hoje. E aí Graças a Deus deu o teste de QI lá que deu acima da média, mas assim, inclinação ela falou "ela vai ser o que ela quiser, onde ela quiser. Ela vai se dar bem onde ela quiser". Aí na época estava bombando a história de computação, nascendo Microsoft, nascendo ______ (00:49:58:00), mas gente, aquela coisa assim, bebes. Entendam o que eu tô falando, é linguagem de baixo nível, é linguagem de programação mesmo, de hardware. Então eu falei "ah, vou fazer". Aí eu prestei vestibular e passei na Fatec, aqui em Santos, na ponta da praia. Aí eu fiz Fatec, minha primeira faculdade. Aí eu fui depois trabalhar em São Paulo, aí eu trabalhei um ano, fiz estagio e trabalhei um ano em São Paulo, só que assim, gente, eu trabalhava no CPD e assim, eu tinha... É, eu entrei com 17 e me formei com 19, porque eram três anos. Então com 19 anos eu não tinha vida, eu entrava num fretado cinco e meia da manhã e chegava em Santos nove, nove e meia. Com 19 anos. Então aquilo estava pesado pra mim, porque ao mesmo tempo eu também via as minhas amigas, todo mundo saindo, se divertindo, indo pra praia, esse tipo de coisa, e eu vivia doente porque eu trabalhava num CPD que era praticamente abaixo de zero, vocês não tem noção. Porque eram aqueles grandes... Eram rolos assim, que a gente tinha que depurar o sistema e ver onde estava o erro na programação, porque travava o sistema, porque não ia. Então eu me lembro de viver de casaco, viver de casaco. E na hora que a gente sair pro almoço, a gente num calor ali na Berrine, na Luis Carlos Berrine, um calor. E eu vivia doente porque eu tenho rinite alérgica. Então eu vivia doente. E aí eu falei com a minha mãe, eu falei: "Mãe, não vai dar. Não vai dar", e aí eu vivia mal, com olheira. Aí eu falei: "Ah, mãe, eu não quero mais trabalhar nessa área. Tá muito penoso para mim e eu quero ter vida. Quero também namorar, quero crescer". Aí falei pra ela que eu não queria mais. Aí ela falou: "Meu Deus do céu, mas vai zerar, vai começar tudo de novo?", falei: "Vou, mãe. Vou fazer o vestibular de novo". E aí foi em 93 que eu larguei minha carreira na computação, uma carreira bem... (risos) e aí fui. Estudei seis meses, fiz um cursinho de seis meses pra me atualizar de novo, e aí fui prestar vestibular pra Direto. Por que, porque aí, fugindo de exatas, mas no sentido de querer abrir um leque de opções maior.
P/1 - Não entendi por que, o que te cansou tanto na computação.
R - É porque assim, computação só tinha em São Paulo, aqui em Santos não tinha mercado pra quem tinha um diploma de computação, de Análise de Sistemas, como eu fiz, especialização. Você não tinha como trabalhar aqui. Então a gente tinha que trabalhar em São Paulo. E aí era fretado, então eu acordava muito cedo, chegava muito tarde, quando tinha então o comboio, que pegava, nossa, eu chegava muito tarde. Então não dava.
P/1 - E o trabalho era como, a rotina?
R - A gente visitava os clientes que tinham sistemas, eu trabalhava na ABC Dados, era o nome da empresa. Então ela prestava serviços pra vários bancos, então a gente entrava no CPD tinha alguns bancos tipo o Itaú. E na época tinha umas companhias telefônicas, que elas não existem mais. É... [pausa] É uma de São Bernardo do Campo, que a sede era lá. Eu lembro que eu era a mais nova da equipe, eu entrei como estagiaria e depois fiquei na equipe, e eram três meninos, a Helena e eu. E a gente se dividia, pegava o carro da empresa e ia prestar esse tipo de assessoria, ver o que estava acontecendo quando o sistema travava. E tinha que ir lá, entrar no computador, na salinha dos CPDs, no centro de processamento de dados, aquela coisa enorme, bem gélida, bem branca. E aquilo... Gente, até hoje eu tenho trauma de frio. Eu não me dou bem com frio, minha rinite ataca, então eu não nasci pra baixas temperaturas, em hipótese alguma. Meu nariz trava, acaba comigo. Então eu vivia doente, minha rinite ataca muito. Eu vivia doente, entendeu?
P/1 - Entendi. Então lá no direito, você decidiu estudar direito porque mesmo?
R - É, porque aí eu conversando com a minha mãe, né, aí eu falava: "Bom, embora eu goste de exatas, eu queria alguma coisa que me abrisse possibilidades de poder fazer alguma coisa dentre várias". Porque quando você escolhe uma carreira, quando você faz o diploma, quando você tem o diploma de computação, por exemplo, você vai trabalhar em que? O seu universo é bem restrito. Então geralmente você vai trabalhar exatamente nisso, numa empresa ou que presta serviço, ou que desenvolve um sistema, então era uma coisa, um universo muito restrito, e um universo incipiente, era uma coisa que estava nascendo ainda aqui no país. E, lógico, em São Paulo, celeiro de tudo. Então era uma coisa ainda, um desenvolvimento bem pré-histórico. Então a gente tá falando de computador com válvula, com transistor, entendeu? Era esse tipo de coisa. Era lente fosforo, o fosforo do computador era verde. Aquilo doía tua vista. Depois passou pro laranja e depois pro branco. Então pensa, entra pra você ver. A tela era massacrante, depois de duas horas trabalhando naquilo a tua vista já... Então assim, era terrível. Então eu falei "bom, mãe, o que eu poderia estudar pra então fazer", "olha, filha, acho Direito legal. Você conheceria um pouco de leis, você poderia dar aula, você poderia prestar um concurso, você poderia advogar". E aí eu achei interessante, falei "é..." não por dar aulas, mas prestar concurso e advogar, eu achei legal. E porque eu achei legal, porque minha mãe tinha pensado no curso. E eu gostava. Dava uma certa segurança. Aí fui fazer direito.
P/1 - E aí, como foi o processo de fazer Direito?
R - Então, aí a gente tá falando de 94. Aí eu tenho que esbarrar no concurso.
P/1 - Pode trombar com ele.
R - Posso? Então tá. Segundo semestre de 93, então eu estudando no ano, cursinho, seis meses vou prestar vestibular, tudo novo, rapidinho, tá. Aí fiz... Aí estudei bem, porque eu falei "ah, quero ver se eu passo bem numa faculdade aqui pra ganhar bolsa", sei lá, alguma coisa assim. Aí tá, e aí porque eu estava estudando para o vestibular de Direito, olha como o universo conspira, olha como é bom a gente estar sempre preparada, é sempre bom ler, essa que é a verdade. Pro resto da sua vida, é a melhor dica que eu posso dar pra uma pessoa, leia qualquer coisa. Um bom jornal, mas leia qualquer coisa. Nem que seja pra enriquecer o teu vocabulário, entendeu, numa entrevista você vai ser diferente. Então assim, eu estava estudando pra faculdade... Pro vestibular de direito.
[pausa]
P/1 - Então, você estava se esbarrando ali no concurso, né?
R - Tá, vamos lá. Eu estava estudando então pro vestibular de Direito e aí eu tinha várias amigas que também estavam estudando, cada qual pra alguma coisa, a faculdade, assim, eram amigas. E aí uma amiga minha, da minha academia de ginastica, ela virou pra mim, o nome dela é Naíla, e ela chegou e falou assim pra mim: "Ka, você viu que vai abrir um concurso aqui na cidade?", falei: "Concurso? Concurso pra que?", "Ah, é um concurso lá pra trabalhar no porto", eu falei: "No porto? Fazer o que no porto?", "Ah, Ka, eu não sei direito, mas já que é um concurso na cidade, a gente não teria que se mudar, é um concurso aqui, e tem horário flexível", essa pra mim foi a palavra-chave, "horário flexível", falei "Ah, é? Horário flexível? Mas o que é isso?", "Ah, Karina, é assim... Ah, depois você lê o edital", eu lembro dela falando assim, perfeitamente, ela assim. Por que ela falou isso pra mim, porque ela era oficial de justiça. E então ela já tinha um trabalho com horário flexível, porque na época ela não precisava bater cartão, hoje em dia oficial de justiça bate. Na época ela não precisava, então ela ganhava uma quantidade X de processos naquela semana e ela tinha que notificar, citar. Ela podia fazer as citações, notificações, em dois dias ou um pouquinho a cada dia e depois ela ficava em casa os outros dias. E escolher um horário para ir fazer as citações, então era muito legal, para não dizer que era muito fácil o trabalho dela (risos), mas era muito legal. Até porque ela vivia na academia e eu invejava aquilo. E aí ela falou isso para mim: "aí, Ka, vai dar para eu conciliar", ela falou, "e da pra eu conciliar, dá para eu continuar como OJ, oficial de justiça, e dá para eu trabalhar no porto. E você, você conseguiria fazer a faculdade num período e trabalhar no outro, e já ter o seu dinheirinho". Com... Tipo, tendo a estrutura de um concurso. Aí eu fiquei pensando, aí eu perguntei pra minha mãe. Imagina a resposta da minha mãe? Faça agora, né? Aí eu lembro que eu esqueci de dar o dinheiro pra inscrição, pra minha colega, porque eu pedi para minha mãe o dinheiro e aí esqueci, ficou na minha carteira. E aí ela me encontrou na academia e falou: "Ka, você não vai fazer a prova?", falei: "Eu vou, eu não falei que eu vou com você?", aí ela: "Ka, amanhã é o último dia de inscrição". Aí eu falei: "Caraca, Naíla. Meu, eu me esqueci completamente". Aí ela falou assim: "Ka, deixa. Depois tu me dá o dinheiro. Eu vou e vou pagar a inscrição pra mim", olha a ironia do destino, olha. Ela... Eu dei o dinheiro pra ela depois, ela foi no banco e pagou a inscrição pra mim, na época era uma folhinha assim, um formulário que você preenchia, nome, endereço, bla bla bla. E o concurso você não tinha várias opções, era o concurso para ser conferente, era só aquilo, então você preenchendo aquilo, pagando pro banco, automaticamente você já estava inscrito. A coitada fez tudo pra mim, nem dinheiro eu dei pra ela, fui dar depois o dinheiro. Aí tá, fez a inscrição pra mim no último dia, por que, porque ela tinha flexibilidade de horário e eu rachando pra passar na prova, no vestibular. Meu foco era no vestibular. Aí tá, fez a inscrição, e eu com a primeira fase, vou prestar, não sei o que, foi em dezembro. Aí fiz. Aí o resultado saiu em janeiro e o edital foi mudar a data das provas do concurso e os locais né, saiu junto. E aí ela foi numa escola, eu fui na outra, então não deu para a gente ir junto. E foi logo depois da primeira fase, e eu passei na primeira fase. E aí eu falava "meu Deus, putz grila, porque eu tenho que estudar pra segunda fase do vestibular e ainda tenho que fazer esse concurso no meio que não tem nada a ver", eu falei "vai me roubar um tempo precioso" (risos). Falei "aí, meu Deus do céu". Então assim, literalmente eu não me preparei para o concurso, só que eu estava estudando pro vestibular e as matérias do concurso, de conferente, foram análogas, foram praticamente as mesmas. Então caiu inclusive formulas que eu tinha acabado de ver no vestibular. Então pra mim foi um facilitador e tanto. E assim, isso eu me lembro perfeitamente, a prova foi em fevereiro, fui num domingo em fevereiro, a prova do concurso. Foi assim, uma das madrugadas que mais choveu em Santos, se você procurar acho que fevereiro de 94, teve uma madrugada de sábado pra domingo que alagou Santos, alagou. Mas assim, a minha casa foi a única vez na vida, a gente nem sabia que tinha uma telha solta, e entrou água a madrugada inteira, vocês não acreditam, um calor, o ventilador... Era um calor de fevereiro, o ventilador, eu estava com o ar-condicionado e o ventilador de teto ligado, porque aí ventilava mais. Gente, começou a vazar água do forro pelo meu ventilador de teto, nunca vi aquilo na minha vida. Começou a voar água, o meu quarto inteiro, o meu computador... Assim, os meus livros, que era o que eu tinha de mais precioso. E eu tinha carpete no quarto, aquilo... Gente, começou a água, nunca mais na minha vida aconteceu aquilo, nunca mais. Eu fiquei com água, tipo assim, uns três ou quatro palmos de água, o meu carpete, minha mãe arrancou o meu carpete depois, porque ficou um cheiro, minha rinite atacou. E aí eu falei: "Mãe, eu acho que eu não vou. Não tem condição", porque choveu a madrugada inteira e a prova era tipo, sete horas da manhã. E o meu colégio era o Primo Ferreira, que era na Vila Belmiro. Que é aqui perto. E eu tive um Escort na época, carteira nova, e eu fiquei um pouco com medo. E eu não dormi nada, como eu tô hoje, virada. Porque comigo sempre foi assim, gente, foi sangue (risos). Nunca foi fácil, nunca. Isso é assim. Então eu falei com a minha mãe, sem dormir, a casa alagando, a cidade inteira embaixo d'água. Aí eu falei: "Mãe, eu acho que eu não vou". E aí a minha mãe ficou falando assim: "É, filha, é verdade, porque eu acho que você vai correr um risco desnecessário, né? Deixa pra lá, é uma pena, você pagou a inscrição, você tá bem preparada... Poxa o negócio aqui na cidade, um negócio legal então né, a Naíla pagou pra você, fez tudo pra você. Mas eu acho melhor pela sua segurança". Aí sabe quando você para um pouquinho, aí você olha e você fala "quer saber?", eu acho que é nessa hora, quando tudo fala para você não ir, não fazer, é nessa hora que eu vou. Porque sou brasileira, eu. Eu falei "quer saber? Eu vou nesta merda". Aí fui, gente. Sem dormir, cansada, nervosa e aí foi toda uma epopeia para eu chegar, que se eu contasse para vocês... Gente a cidade, o meu carro quase fundiu o motor. Porque a cidade estava embaixo d’água. A Carvalho de Mendonça aqui, eu parei o meu carro no Canal 1. E eu fui com água pelo joelho, porque eu vi que se eu continuasse pela Carvalho de Mendonça, o meu carro ia fundir mesmo. Eu parei ali onde era um pouquinho mais alto e fui a pé até o Plinio Ferreira, com água no joelho. E torrencial a chuva, torrencial. Eu lembro de estar com a minha mochila, com os meus documentos, tinha que ter pra eu me identificar, e assim, e aí eu... E a cidade escurecida, porque era seis e pouca da manhã, então escura. Alguma meia dúzia de gato pingado, porque com certeza ia prestar o mesmo concurso que eu, então era meu concorrente, andando também. E a gente fazia barulho de água, gente, eu me lembro. O barulho da água, da perna fazendo uma força pra chegar. E eu falava "gente, o que é isso que eu tô fazendo? O que é isso que eu estou fazendo?". Eu com medo de pisar em algum buraco, em alguma lata... Sei lá, xixi de rato, sabe aquelas coisas que você fica pensando? Em cair num bueiro, cortar meu pé, sabe assim? Aí eu tirei o sapato, porque eu ia perder, tirei sapato e fui descalça. Com a calça arregaçada até aqui. Agarrada na minha mochila, eu totalmente ensopada, aí consegui chegar no Plinio Ferreira, o índice de abstenção foi grande, pelo menos do meu colégio. Eu lembro que a minha sala era muita "Maria", porque o K ficava junto com o J, junto com... Enfim, era muita Maria. E eu lembro das carteiras, muitas carteiras vazias. E era etiquetado o lugar, eu não podia escolher o lugar, era etiquetado, então tinha o lugar da Karina. E do meu lado muita Maria. E tudo vazia. E assim, eu até vendo que tinha várias meninas que iam prestar, eu fiquei feliz de ver, mas a minha sala, 50% não foi por conta disso. Só que foi um concurso nacional, tá, gente? Então assim, em Santos caiu aquele diluvio, mas nos outros lugares não. Então foi bem legal, foi bem concorrido. E a prova foi uma prova que depois nunc amais eu vi uma prova igual. E olha que depois eu fui prestar concurso, outros concursos, mas assim, era uma prova que... Acho que era seis matérias e era cronometrado, e eu não sabia dessa... Porque eu não me lembro inclusive de estar no edital isso. Então era tipo, 50 minutos cada matéria. Só que eu tô crente... Que nem hoje, você tem quatro horas de prova e você dividir o seu caderno, você que escolhe quanto tempo você vai se debruçar sob tão matéria. Então geralmente você inicia pela matéria que você tem mais habilidades, que tipo, você passeia naquela matéria. Lógico que teu cérebro tá descansado, então vai lá porque que seu cérebro vai continuar descansado, porque aquilo você tira de letra, você faz rapidinho. Se você já cara você desafia teu cérebro na matéria mais complicada, você vai perder tempo, você vai se cansar, e aí quando chegar nas matérias que você domina, provavelmente você vai errar, porque você já perdeu tempo, você vai ter que fazer com pressa, e teu cérebro já tá... Então dá um descanso, vai pela matéria que é mais fácil, que foi o que eu fiz. Então assim, casquei logo em matemática, química, física, que era inclusive que estavam fresquinhas as fórmulas. Só que o engraçado, o caderno era um caderno que aí eu olhei e era só... Tipo, fórmulas. Eu falei "nossa, que engraçado, né? Cadê português, cadê a dissertação, cadê história?". Mas falei "bom, vamos indo", e foi a minha sorte, porque eu não fiquei muito... Gente, 50 minutos, tipo, eu estava terminando de fazer a última, a mulher gritou "tempo esgotado". E foi passando nas carteiras e retirando o caderno. E eu fiquei assim... A sorte que a minha carteira era mais pro final da sala, porque quando eu vi que começou a pegar, eu sai correndo e marquei no gabarito. Então tipo, eram 20 questões lá de matemática, vamos supor, alguma coisa assim. E deu tempo, mas as pessoas foram "Poxa, mas eu não sabia, eu não acabei, bla bla bla". Aí foi aquele salseiro na sala. Aí eu já, falei "nossa, gente". Aí todo mundo já ficou esperto. Aí distribuíram o segundo caderno, e aí foi sendo assim. Eu nunca mais fiz uma prova assim na minha vida, eu nunca vi isso depois. Mas foi o concurso de conferente. E aí acabou que eu fiz a prova. A Naíla fez a prova também, lá pela ponta da praia, o colégio dela foi lá, acho que foi o Objetivo, não sei. Aí acho que passou tipo... Ah, não vou lembrar quanto tempo, gente, mas acho que uns 15 dias talvez, pra sair a lista de aprovados e tudo, e a Naíla não passou. A minha amiga que fez tudo pra mim ela não passou (risos), no concurso que eu passei. E nossa, na época eu fiquei muito chateada, coitada. E ela ficou bem chateada também. Mas e aí eu fui vendo. Falei "bom, vamos ver o que acontece". Aí logo depois que você passou na prova de múltipla escolha, tinha um negócio de exame que até hoje eu dou risada, "exame de robustez". Eu falei "cara, eu não vou passar nisso". Eu continuava a magrela do século, que robustez é essa, eu não tenho robustez nenhuma. Aí eu fiquei pensando, será que eu tenho que levantar um peso, um saco de açúcar, alguma coisa assim? E não era, é que assim, no porto até hoje vige esses nomes meio arcaicos, umas coisas que remetem assim a escravidão, que é engraçado, mas ao mesmo tempo cria toda uma aura em volta do porto, que eu até acho legal hoje em dia, é até meio que poético. Mas esse exame de robustez nada mais era do que um exame de saúde, só, não tinha que carregar nada. Era um exame clinico, um exame médico, digamos assim. Mas era a condição pra você... É como se fosse uma segunda fase. E aí depois você ia na delegacia regional do trabalho, existia isso, DRT, e você ganhava a sua carteira pra você ter acesso ao cais. E aí foi. E foi assim.
P/1 - E aí como é que foi o primeiro dia?
R - Então, aí eu lembro... Ah gente, eu não fazia a menor ideia de que poucas meninas tinham sido aprovadas, por que na época quando saiu a lista eu não fiquei olhando quantas mulheres, eu olhei se meu nome estava lá e isso me bastava. Só que depois a repercussão foi nacional desse concurso, eu não fazia ideia da dimensão que a coisa ia tomar. E aí só quatro meninas tinham sido aprovadas no concurso. E aí eu fui me dar conta disso quando... Porque assim, você passava no concurso e aí você tinha o sindicato dos conferentes. E era o sindicato que fazia a escalação dos trabalhadores, então o sindicato até hoje, mas lógico, naquela época muito mais, ele tinha uma força muito grande, indo nos anos 90 os sindicatos tinham um peso muito, muito forte. Sindicato dos estivadores até hoje é forte. E o dos conferentes também era forte na época. Então eles faziam a intermediação entre o operador portuário, que é o cara que requisita, ele precisa do trabalhador, e eu tô na outra extremidade. Então o sindicato fazia essa escalação, que era aquilo que depois a gente vê que o estivador fazia assim com a carteira né, "eu, eu, eu, escolhe eu", eles gritavam assim. Era mais ou menos isso, só que para o conferente era um pouco mais organizado, até porque eram menos pessoas, menos quantidade, era bem mais restrito. Então o sindicato ele sempre teve um peso, uma força grande, e logo que eu passei no concurso eu me sindicalizei, como todos que passaram no concurso. Porque você tinha que se sindicalizar pra você ser escalado. Então era condição 'sine qua non' praticamente você exercer a sua profissão você começar a contribuir pro sindicato. E através do sindicato eu acho que os jornalistas fizeram contato e chegaram até mim e as outras meninas para... Pata contar aquilo, que eu não sabia, que eu não fazia a menor ideia, que no concurso nacional, para 150 vagas só quatro meninas tinham passado. Aí que eu comecei a ter ideia daquilo, que para mim era corriqueiro.
P/1 - E como é que era trabalhar nesse ambiente só de homens?
R - Então, veja bem, essa é uma pergunta que até hoje, assim, as pessoas me perguntam. E é aquilo que eu já mais ou menos comentei. Eu... Como é que eu posso explicar, também é o meu jeito de ser, talvez. Eu sempre fui uma pessoa assim, que eu sempre respeitei muito limites. Mas eu também sempre tive uma postura, mas uma postura muito mais próxima, muito mais acessível, digamos assim, e de tratar as coisas com mais naturalidade, mas de uma forma mais inteligente, sem fazer daquilo um... Então eu sempre tentei trazer a coisa pro modo natural, digamos assim. Sem "aí, um ambiente só de homem". Eu me coloquei na posição como se eu tivesse, eu invadindo, vai, o campo, o habitat deles. Eu era a estranha no ninho. E assim tipo, e eu me colocar à disposição pra aprender, pra estar perto junto deles, pra ver que eu também não era um bicho de sete cabeças. Porque do mesmo jeito que eles estavam estranhando a minha presença lá, eu também estava tentando me adaptar e eu tinha idade para ser filha deles. E assim, tipo, me ajuda, porque amanhã pode ser você que pode precisar de ajuda. E eu falava "gente, eu aprendo rapidinho, me ajuda", eu sempre me coloquei... Então assim, sabe essa coisa de "ah, eu quero me empoderar", longe disso, gente, eu queria só conquistar o meu lugarzinho. Nada de emblemático, nada. Porque se for natural, a coisa vira. Se começa com muito bate no peito e levanta a bandeira, por imposição, sabe, rasgando, é um processo muito mais doloroso. E às vezes, inócuo. Então, meu, sem bater no peito, sem rasgar bandeira, sem queimar sutiã, eu tô até hoje lá. Então assim, eu acho que as coisas tem que ser encaradas de uma forma natural e cada um se colocar na sua posição. Não tem problema nenhum, como eu me coloquei na posição de que eu era a estranha, por mais que aquele lugar fosse legitimamente meu e que eu devesse estar ali mesmo, mas qual é o problema? Gente, a mili anos aquilo era assim. Então pra eu conquistar o meu espaço lá, eu não precisava bater o pé, nem me impor, nem forçar barra, era muito mais natural que a coisa acontecesse ao longo do tempo, gradativamente, porque hoje eu ia estar lá, amanhã também, e depois de amanhã também, e depois, depois e depois também. Então foi assim que eu fiz. Então eu procurava não me chocar muito com as coisas, para fazer aquelas Caras e Bocas, como se eu tivesse "oh", até porque eu tinha estudado em colégio de freira, até porque eu sou filha única, então assim eu tinha um uma certa visão romantizada da coisa. Realmente tudo que me falavam, na hora que você chega e ver, não tem romance nenhum é fava na caveira (risos), e chega a ser até surreal, tinha umas coisas assim, e surpreendente, tanto positiva quanto negativamente, mas a experiencia que eu tive desde sempre, por exemplo, com o estivador, como eu já falei, poxa eles... Olha, eles vinham trazer água pra mim. E não tinha água as vezes nem para ele, nem para eles. Eles conseguiam as vezes a bordo e eles dividiam, um calor. Gente, um calor desumano. Na época não tinha uniforme, não tinha OGMO, não tinha uniforme, então eles iam trabalhar de bermuda, camiseta regata, amarrava a camiseta aqui pro suar não... Às vezes no porão do navio eles ficavam de cueca mesmo. Ficavam mesmo. Eu também ficaria se eu pudesse. Porque eu não fazia ideia do que era o porão de navio. Então até hoje as vezes, quando eu subo e eu vou ver, gente, aquilo é um mundo, é um prédio pra baixo.
P/1 - Como é que é esse porão de navio?
R - Então, um navio cargueiro, ele tem especificidades que outros não tem, e mais ainda alguns navios que são específicos pra determinada carga. Então por exemplo, na época era o auge da safra de açúcar no brasil, açúcar em sacos. Então era um trabalho braçal desumano, você pegar e bater das carretas, bater a frente, então as carretas vêm com vários sacos de açúcar empilhados até o alto, e você tinhas as fundas, que são coisas de um tecido forte, entrelaçado, como se fosse um tecido do saco do algodão, é uma trama bem forte que você jogava assim no chão, na forma... De uma forma esticada, aí tinham duas extremidades que eram cordas bem robustas, bem grossas, que aí você ia colocando certinho, você tinha a queda certinha dos sacos de açúcar pra fazer e ir empilhando, e aí você pegava aquela funda depois e pa, fazia assim para fechar, aí aqui tinha um braçalote, que é o nome, que aí você colocava o gancho assim e aí o guindaste erguia aquilo, pumba, e levava para o porão do navio. O porão do navio, até numa das entrevistas, até me filmaram, porque fizeram questão de ver nós quatro, na época as quatro meninas, a gente chegando no porto. E aí tem o pessoal olhando assim pra gente, porque eles olhavam meio que assim, tipo surpresas com a gente lá, e aí eu quis ir a bordo para ver. E quando eu cheguei e me debrucei, primeiro que eu nunca tinha subido a escada do navio, então fui meio atrapalhadinha, o navio velho, todo enferrujado, E aí subi assim meio que um degrauzinho assim e me debrucei. Quando eu me debrucei, eu não sabia que aquilo era tão grande. E tão quente. E tão grande. E vou frisar: e tão grande. Gente, era enorme, era um mundo de gente lá dentro batendo o saco, que é tipo arrastando os sacos, para ir nivelando, porque o porão é quadrado. Então o guindaste joga aqui no centro, onde a gente fala no centro do porão, mas você tem que preencher as pontas, então eles arrastavam, você vai arrastando mesmo. Então a coluna toda envergada, arrastar até o cantinho do porão pra ir colocando lá e ir empilhando e ir nivelando o porão. E eles de cueca. Mas eu me surpreendi não pela cueca, eu me surpreendi pelo tamanho, porque eu não fazia ideia que aquilo era tipo, oito andares pra baixo, de um prédio. E eu fiquei chocada, eu falei "nossa senhora". E era muita gente, era um formigueiro aquilo. E eles gritando, alguns cantando. E eu fiquei maravilhada. As outras meninas já não gostaram muito. Uma já não apareceu mais (risos). Uma já caiu fora. E a Gabriela... Porque foi assim, fui eu, Gabriela, que até hoje ainda tem a carteira, mas não exerce. A Adriana Gibas, que passou em medicina. A Adriana não apareceu mais. E a Maria Antonieta. E a Maria Antonieta foi a que infelizmente faleceu atropelada na Cosipa. E aí praticamente ficou só eu e a Gabriela. E aí mais tarde, bem mais tarde, a Gabi casou, aí teve neném e parou de trabalhar. Nessa área.
P/1 - E aí você passou a ir sempre nesse lugar? Que você disse que é um formigueiro humano, que você nunca tinha ido?
R - É, então, porque aquele navio que eu fui, especificamente, era no Armazém 12, que é lá perto do Saboó. Mas a safra de açúcar, ela tomava praticamente o porto inteiro, o cais inteiro. Ia desde o Saboó, Armazém 10, 12, 15, 20 e 21, 23, que é a Santa, 25, onde é o Concais, era só navio de açúcar na safra, só. Tipo, 20 navios só de açúcar, até a ponta da praia. Não tinha o corredor de exportação que tem hoje, que é la na ponta da praia onde é a Louis Dreyfus, não tinha. Então era a safra do açúcar, e tudo em saco. Tudo em sacaria, não era em container, não era em 'shiploader'. Então aquilo era muito legal, demandava muito estivador, muito o pessoal de capatazia. Olha o nome, "capatazia". Feitor. Olha isso, isso é da escravidão. Mas é assim, sindicato capatazia. E aí que eu fui aprender, fui enfiando as caras. E adorei.
P/2 - Você está trabalhando lá há quantos anos?
R - 26.
P/2 - E qual foi a maior dificuldade nesses 26 anos?
R - Olha a maior dificuldade que eu vejo é dentro da minha própria categoria dos conferentes. Sabe, é meio que um ranço que eles carregam, desde aquela época, não adianta. E assim, são os mais preconceituosos até hoje. De uma forma velada, às vezes não, mas eles sempre foram. Então, a minha própria categoria, assim, na cabeça deles é aquilo que eu falei, alguns não queriam que houvesse concurso público, outros não queria que mulher entrasse, 'any' coisas. Mas eu acho que a maior dificuldade é dentro da minha própria categoria. Mais em relação a mim, mulher, mas todos os "novos", que eles chamam, de 94, eles não aceitaram muito a nossa entrada.
P/2 - O último concurso foi em 94?
R - Foi.
P/2 - E aí agora que não tem concurso, como que entram esses novos?
R - Não entram.
P/2 - Não entram?
R - Não.
P/2 - É só vocês e não?
R - É, a gente percebe que é uma vontade política que não haja mais concurso nesse sentido e que não tenham mais trabalhadores avulsos, que é o que nós somos. Que é uma categoria híbrida. Na verdade, é uma categoria bem específica, a gente chama híbrida porque é isso, ela pega um pouquinho das categorias convencionais, digamos assim, de trabalhadores do nosso país e junta, faz um mix, e é o trabalhador avulso. Na verdade, ele é um meio termo, é uma criatura que ficou no meio que não é nem uma coisa nem outra. Nós não somos nem empregados normais, da iniciativa pública pra iniciativa privada. Nós somos equiparados a CLT, tudo que é equiparado é porque não é. Porque se fosse não precisava ser equiparado. Então nós temos algumas garantias constitucionais. E ao mesmo tempo a gente teve que entrar no mercado como, através de um concurso público, mas eu não sou funcionária publica, eu não tenho estabilidade, não tenho estatuto. Não tenho patrão. Não tenho a quem me superiorirá. Não tenho a quem me remeta. Graças a Deus. Então assim, não tenho uma carga horária para cumprir. 44 horas semanais? Não tenho. Sou turno de revezamento, de seis horas.
P/2 - E quem separa os turnos? Vocês mesmos?
R - O OGMO. O Órgão Gestor de Mão de Obra, hoje em dia. São turnos estabelecidos. De uma às sete, de sete às treze, de treze às dezenove, das dezenove às uma. Sendo que, quando eu entrei no concurso, o cais, o porto, não era 24 horas. Então assim, na verdade a gente tinha dois turnos grandes e eram de oito horas. E aí quando você precisava, você fazia hora extra. Então a sacada política, o jogo político, foi transformar o porto em 24 horas e em turnos de revezamento de seis horas para não ter que pagar hora extra. Essa foi a jogada política, sempre tem jogada política. Sempre. Porque aí é interesse do operador portuário, que é o patrão, digamos assim, e de poder executivo, legislativo, tudo. Então essa foi a sacada no porto 24 horas, foi isso. Na verdade, o mercado nem tinha essa demanda toda, de ter que trabalhar 24 horas. Virou mesmo, a verdade, é para não ter que pagar hora extra. E aí tá assim até hoje, esses quatro turnos de revezamento de seis horas.
P/2 - E como que é conciliar a sua vida pessoal com esse trabalho em turnos?
R – É... Olha, no começo foi um estranhamento maior, porque é penoso trabalhar de madrugada, claro, não vou dizer que não é. Mas ao mesmo tempo, tem gente que se adaptou melhor, de ter que trabalhar a noite do que durante o dia. Eu particularmente terminei minha faculdade, fiz meu mestrado, casei, separei... Sabe, assim? Eu organizo a minha vida porque... Na verdade é aquilo que eu falei, você não tem patrão. Então assim, você trabalha "teoricamente" quando você quer. Entretanto, se você não trabalhar você não ganha, então você acaba querendo sempre. Então... Que nem por exemplo, para vir aqui hoje, demandou um certo arranjo, mas gente, dá pra você fazer. Então assim, é mais cansativo? É. Talvez você não consegue ter um planejamento mais certo, como é quando você trabalha num escritório, oito horas por dia, de segunda a sexta, bla bla bla? Lógico que é. Mas ao mesmo tempo você também tem essa bendita desse "horário flexível". Então que nem hoje, eu fiz a madrugada. Talvez hoje eu vá ter que fazer de novo, mas se eu tiver muito, muito, muito cansada, gente, eu fico em casa, eu não preciso arranjar um atestado médico pra mim. Você entendeu? Então assim, como tudo na vida, tem o seu lado bom e o seu lado ruim. Exige um planejamento, uma disponibilidade maior pra atender, lógico, exige. Mas eu gosto porque é um trabalho que não é maçante no sentido de ser aquela coisa de bater carimbo, de trabalhar num escritório de advocacia por exemplo, aquilo pra mim era a morte. Sabe, era um tédio aquilo pra mim. E eu trabalhando no cais e indo trabalhar no escritório, quando eu fazia o estágio, eu podia fazer uma comparação na hora. E aquilo pra mim, nossa, esquece. Eu não sou pra trabalho burocrático. Pra aquela coisa que eu sei o que eu vou fazer amanhã, e depois de amanhã. Eu gosto desse, de não saber o que vai acontecer, de usar a criatividade, de ter que me preparar e entrar com a cara e com a coragem.
P/2 - Karina, quando você falou "talvez eu tenha que trabalhar essa madrugada", como que você fica sabendo o horário que você vai trabalhar?
R - É porque você tem os horários da escala. Então aí você tem que comparecer aos horários de escala. Se você quiser trabalhar... Por exemplo se eu quiser trabalhar agora, das dezenove às uma, a minha escala é às... Cinco e quinze. E aí antigamente era presencial, tinha que estar no meu sindicato, e estar lá presente e falar "olha, eu tô aqui, eu tô participando" e eles anotavam no papel, as pessoas que estavam trabalhando, a fim de trabalhar. Aí via quantas requisições de serviço tinha e aí escalava de acordo com aquela quantidade. Então geralmente sobrava a gente, geralmente tinha mais gente querendo trabalhar do que serviço. Então geralmente sobrava. Então várias vezes a gente voltava pra casa e não trabalhava, e aí tentava no próximo período. Aí por exemplo, o período da madrugada, minha escala é às dez para as nove da noite. Então quando for dez para as nove, se eu tiver a fim de trabalhar na madrugada... É que hoje em dia tem aplicativo, é uma modernidade, é uma coisa recente, de um ano e pouco pra cá a gente consegue fazer a escala remota através de um aplicativo de celular. Ou no computador. Isso é uma maravilha, mas também como eu falei, tem o lado bom e o lado ruim, se cair a rede, ferrou. Se tiver em algum lugar sem sinal, ferrou. Eu teria que estar lá presencialmente, lá no meu sindicato. E aí eu perco a escala porque geralmente a gente está em algum outro lugar longe, né? Então assim, tem gente que ainda vai presencial, prefere, porque você ainda pode fazer dos dois jeitos. Então já aconteceu comigo, eu tive muito medo disso. Principalmente no começo, quando estava iniciando o aplicativo, que dava muito pau pra você entrar, pra você logar, eu morria de medo. Eu me logava no computador, mas lá no sindicato. Porque se desse alguma coisa errado, eu estava lá. Porque tudo é questão de dinheiro, você entendeu? Você tem que saber, tô precisando, preciso trabalhar, porque é coisa séria, não é brincadeira, então você não podia perder a sua escala. Então até hoje é assim. Então eu não consigo muito prever, até porque você tem o número, é um rodizio de números, então só pra vocês terem uma ideia, a minha categoria tem quase 300 pessoas. É muita gente. E tá tirando 20 trabalhos por período. Então assim, demora pra chegar em mim, eu acho até que...
P/1 - Qual que foi a madrugada assim, que nesses turnos de madrugada que você pegou, que foi marcante no seu trabalho?
R - Olha... Eu já trabalhei no cais público, então o cais público ele tira trabalho pela escala, essa que eu te falei. Mas você também pode trabalhar num terminal privativo, por que? Porque vários pedacinhos do porto foram "fatiados", digamos assim, e arrendados e licitados. Então hoje a gente tem terminais que arrendaram partes do porto e que trabalham de uma forma celetista, privatizada, funcionário. Ganhando décimo terceiro, férias, bla bla bla. Tem um supervisor, tendo a quem se reportar. E que eu tenho assim as melhores lembrança, e o trabalho era... Gente, era estressante, era na Libra. Eu trabalhei de 2017 até quando faliu a Libra, até 2019. Então assim, era um terminal pequeno, na ponta da praia, mas com uma demanda boa, um terminal só de containers, veja bem, não operada outra carga. As vezes um pouquinho de carga geral, mas assim... Era fogo trabalhar ali. Gente, eram seis horas de pauleira, embaixo de chuva. Gente, mas eu já tomei tanta chuva, tanta. Porque não tem pra onde se proteger, você não tem para onde correr. É tentar esconder o celular para não molhar o celular, pra você não perder o celular. E o vento cortando, e o guarda-chuva você tinha até que fechar, porque o guarda-chuva mais atrapalhava. E você no coletor, lá no coletor, lançando o número do container, o container você não enxergava naquela chuva. Eu falava "meu deus do céu". Era assim, vocês não fazem ideia. Vocês não fazem ideia. Teve uma madrugada que eu nunca mais esqueci na minha vida, que eu brinco até com os meus dois amigos, são meus amigos até hoje. Eu fiz a madrugada e eles vieram me render às sete da manhã. E eu estava a bordo, porque você trabalha na minha lingada, o nome é esse, você trabalha no costado, embaixo, e o planista, que é o que diz em qual posição vai estar o container a bordo. Então, "olha, esse container vai no convés, na B e tal, posição tal, ____ (01:38:44:00), quinta altura.". E o lingadeiro ele mais acertava as carretas, ele te dava o suporte, porque a gente trabalhava em dupla, um interno e um a bordo. E eu estava no plano, então eu estava a bordo. E choveu praticamente a madrugada inteira. Desde a hora que eu entrei, uma da manhã, eu já entrei me molhando, e assim, uma das coisas que mais me irrita na vida é molhar a meia dentro da bota. Gente, aquilo era insuportável, aquilo te mina, mina tua saúde, mina tua concentração, mina tudo. Você não consegue se locomover direito, assa teu pé. Cara, isso pra mim é a tragédia do ser humano. Bom, então eu já cheguei em baixo de chuva, já me molhou a meia. Então pra mim, meu humor já foi lá embaixo. Aí vamos indo, mas mesmo assim, como estava todo mundo literalmente no mesmo barco que você, o estivador estava ensopado, eu estava ensopada, o coitado do marinheiro estava ensopado, então você acaba até, eu acabava rindo da minha situação. Eu vou fazer o que (risos), eu vou chorar? Eu tinha vontade de chorar, mas eu vou fazer o que, eu tinha que trabalhar. E aí fui (risos). E aí foi chovendo, foi chovendo, e o convés, era um navio meio velhinho, no convés é estreito, tá? O convés é estreito, aqui é container, aqui é um mundo de containers, e é uma fileirinha estreita. Cabem duas pessoas no máximo passando uma do lado da outra. Então assim, imagina se fosse covid? Todo mundo ia se contaminar, porque você esbarra um no outro, não tem como não tem espaço físico. Então assim, ele não tinha muitos ralos aquele navio. E quando chove muito, os marinheiros vêm e liberam os ralos pra dar vazão a água. E aqueles ralos, acho que era navio velho, eles estavam entupidos. Gente, então assim, em uma hora de chuva, torrencial, eu tinha as fotos até pouco tempo, não sei se ainda tenho. Tiraram foto dessa madrugada, porque foi um turbilhão, foi um negócio assim que choveu. Alagou santos também. E alagou o convés. E o nosso gestor não deixou parar o trabalho, não deixou. Eu já estava trabalhando com água pelo joelho, gente. Pelo joelho. E assim... Era surreal. Três ternos, quer dizer, três portainers operando ao mesmo tempo. Aí vocês imaginam assim, que é um pouquinho de física, vocês imaginem os containers de mais ou menos 30 toneladas ao mesmo tempo embarcando na mesma... (lado?) de terra, por exemplo. O navio dava aquela desestabilizada, normal, você tem mais ou menos 90 toneladas, mais ou menos do mesmo lado do navio. Então ele dá aquela... Então a gente estava em pé... Posso me levantar? Aí fazia assim, você fazia assim (gesto) (risos). E a água toda do convés, que estava em cima dos containers, caiam em cima de você. Era um maremoto. Então já estava com água pelo joelho e ainda vinha o banho por cima. Então eu perdi meu relógio, sabe, assim? Perdi tudo. Eu perdi uma das minhas botas, uma das minhas botas foram embora, porque começou a fazer correnteza. Eu nunca vi aquilo na minha vida. E os estivadores até, "Karininha, tá bem aí? Karininha, tá bem?", porque, gente, era um braço tentando me segurar e o outro eu lançando o container, foi surreal aquilo.
P/1 - Como assim uma mão lançando o container?
R - Porque você tinha o coletor. O coletor era a prova d'água, o meu celular que não era, então o meu celular estava na calcinha. E o coletor eu lançando o container, é um coletor como se fosse uma máquina calculadora. Você lançava os números do container, é uma sigla de quatro letras, CRXU 314380-0, você tinha que digitar isso, porque ele estava entrando para bordo. E aquilo vai direto pra rede, pro servidor, pra fazer o relatório de embarque ou da descarga, mas aquele dia era embarque, pra piorar mais ainda. Porque eu ainda tinha que falar pelo rádio, então eu também tinha um rádio que eu falava com o operador lá de cima qual era a posição do container. Aí pra piorar mais ainda, tá ruim, não tá? Pra piorar mais ainda, começou a trovejar e relampear, gente. E aí os estivadores desceram do convés, porque aí no rádio falou: "Olha, gente, desce do convés, não fica aí porque pode vir um raio e vocês morrerem eletrocutado", só que aí eu falei: "Gente, só que se cair um raio em qualquer lugar dessa embarcação, morre todo mundo", estava todo mundo com água pelo joelho. Então assim, na verdade eu queria que parasse um pouco o trabalho porque estava muito perigoso, muito. Mas não pararam o trabalho, não parou o embarque. O operador do portainer ele ficou com pena, ele via... Porque assim, estava sofrendo pra todo mundo, mas pra mim, eu não sei como eu não empastelei aquele dia, como eu não embarquei alguma coisa errada, porque estava... Aquele dia foi o pior dia da minha vida, de trabalho. Quando os meninos vieram me render de manhã, quando foi por volta de seis horas, parou, diminuiu um pouco a chuva. Então a água começou a melhorar um pouquinho a vazão, então estava água por aqui (gesto). Mas assim, eu estava ensopada. E os meninos entraram já rindo, porque eu acho que eu com o capacete... Então assim, meu cocoroco não estava molhado, mas aqui, o resto, estava tudo molhado, a roupa toda molhada. E aí (risos) os meus amigos chegando: "E aí, madrugada triste", tirando sarro, zoando. Aí eu falei "olha...". Meu, dá pra fazer um livro essa madrugada. E os estivadores da época, da minha equipe: "Nossa, gente, vocês não têm noção". E eles: "Karininha, pelo amor, isso aqui entrou pra história", eu falei: "Gente, entrou. Pelo amor de Deus, eu não vejo a hora de ir pra casa". E aí eles assim "E aí, Karininha? Você está toda cagada?" (risos), eu me lembro até hoje, eu falei: "Gente, eu tô toda ferrada aqui". E assim, foi a pior. A pior madrugada. De todas da minha existência, acho que nenhuma vai superar isso. E mesmo assim, foram as melhores amizades e o melhor tempo de trabalho, foi lá nessa empresa. Melhor. Foi desafiador, cada dia era uma coisa nova, mas as equipes eram muito unidas, os nossos gestores eram os melhores que podiam ter, a gente fazia por eles. Tratavam a gente como irmãos, como filha, eu era muito bem tratada, muito. Melhor terminal que eu já trabalhei e assim, nada de discriminação, nada. Nada de piadinha, nada. Nunca, um se não pra falar. Bem diferente da minha categoria no cais público, por exemplo. Que sempre soltavam uma, sempre tinha uma piadinha, alguma coisinha assim, que a gente entendia o recado, mas tudo bem.
P/1 - Nossa. E aí eu queria aprofundar um pouco, voltar lá praquele caso que você estava contando no começo e eu falei "Calma, a gente vai chegar nele", queria voltar nele agora. Da sua relação com os brucutus e com os conferentes. Então eu queria que você contasse, os "brucutus", entre aspas falando, quais amizades, quais casos, episódios você viveu com eles que fez você falar que a relação foi boa?
R - É, então... Com os estivadores, é a melhor relação possível. Eu tenho muitos amigos, muitos, principalmente dessa época, que eu trabalhei num terminal privado. Mas assim, todos, até no cais público, então... A maioria quando eu chego, ainda mais agora, depois de 26 anos, "Karininha, Karininha". Então por exemplo, essa madrugada eu cheguei no trabalho tipo dez para uma, todos eles estão chegando junto, a gente para o carro mais ou menos no mesmo lugar, então assim, todo mundo já se conhece. "Karininha. Ah, a Karininha tá no trabalho, então vai ser um bom trabalho. Ah, então hoje a gente vai ganhar dinheiro". Sabe, assim? Sempre, da parte deles, sempre foi uma palavra legal. Sabe assim, de incentivo, de acolhimento. Sempre. Eu não tenho um se não pra falar pra você. Eu não me lembro um dia sequer que alguém tenha soltado uma piada, pelo contrário, eles sempre me defenderam. “Olha, se a senhora precisar de alguma coisa, pode falar comigo". Sempre. Então as várias vezes que eu tive que ir a bordo, que as vezes algum marinheiro, as vezes algum oficial ficava meio assim, "Dona Karina, a senhora precisa de alguma coisa?", eu falava "Quer saber? Fica aqui do meu lado". O cara ficava como uma sombra. Então, sabe? Sempre. Sempre. Dos conferentes, os que passaram no concurso junto comigo, a gente tem essa de cuidar um do outro. Mas muito pouco dos mais velhos, muito. Os mais velhos, ou tipo, "se vira, segue teu caminho, quem mandou estar aqui?" ou faziam de um tudo pra dar errado. Sempre. Então isso não posso negar. Sempre. Por exemplo, quando eu passei no concurso, eu não fazia a menor ideia, como vocês não devem fazer, quer ver, vocês já notaram número de armazém como que é? Nos armazéns do cais? Então que nem eu falei pra vocês na entrevista, eu estava trabalhando no Armazém 12, que tinha um navio parado no Armazém 12. O que é o Armazém 12 pra vocês? Como era pra mim, pra qualquer leigo, pra você, pra você, o que é Armazém 12? O que é o número 12? De onde se inicia? Tem Armazém 0? Tem Armazém 1? Então assim, Armazém 12. Não tinha GPS, gente. Não tinha Google. Era cara e coragem. Então o que eu fazia, eu pegava o meu carro, aí perguntava pra um estivador, alguém assim, feitor, que trabalhava muito com a gente, doqueiro. "Ah, como é que eu faço para chegar em tal lugar?", "Ah, você vem pelo Saboó, vem aqui pelo Saboó, entra na Portuária, você vai contando, dali começam os Armazéns, mas não existe o Armazém 1, começa do Armazém 9, 10 e aí vai indo em direção a ponta da praia, é um crescente em direção a ponta da praia". Então eu já... E aí fui indo com o meu carro, e fui vendo. Só que, o que acontece, quando você chegar na Portuária, então eu tô indo pela ponta da praia. Quando você chega na Portuária, você tem Armazém, em determinado momento, você tem Armazém do lado direito e do lado esquerdo. Sempre do lado esquerdo eu estou pro lado de mar, da água. Esses Armazéns do lado de mar, do lado da água, aquele que dão pro costado mesmo, pro cais mesmo, pra onde está o navio, esses são em numeral cardinal. Esse é o 12, 12. E do lado direito, que é do lado da Portuária, digamos pro lado do continente, também existe Armazém 12. Só que ali são os Armazéns retro portuários, os Armazéns secos, digamos assim, de armazenagem mesmo. Esses são em numeral romano. Só que ninguém me explicou isso. Ok. Então assim, aí o meu navio está no Armazém 12. Tô indo eu de carro, eu vejo número 12 em numeral romano deste lado e o outro Armazém 12, que é o do cais, você não enxerga ele pela Portuária. Porque o número está virado pra quem já está no porto, pra quem já entrou pelo portão da guarda portuária. Ali você enxergava o número 12. Então eu tô me guiando pelo Armazém que eu tô vendo o número romano. E aí eu ia sempre para o Armazém errado. E quando eu perguntava, eles falavam "Ah, ué. Armazém 12, Armazém 12 é 12, você não sabe ler?". Aí eu falei "Ah, tá bom", só que aí eu chegava no Armazém 12, ou seja, perdia meu tempo, perdia tudo. Chegava lá, gente, era uma escuridão. Eu juro por Deus, eu acho um crime fazer isso com uma menina, entendeu, que nem eu era, uma menina. O que custava falar? "Olha, o Armazém 12 você vai assim, assim e assado, entendeu? É do lado da..." na época tinha uma cantina ao lado, ou seja, tinha um ponto de referência. "Então você para o seu carro ali perto da cantina, onde tem mais movimento, entra por aquele portão e aí você vai ver que quando você tiver do lado de dentro, você vai olhar e você vai enxergar o número 12, o numeral normal. Não é aquele romano que tá lá, não é esse", o que custava? Aí o que acontece, nós todos, concursados, nós fomos apanhando, entendeu? Um apanhou lá na ponta da praia (risos), eu apanhei aqui no Saboó, e aí a gente ia se falando. "Não, não, olha, o Armazém 12, não, não é aquele, não é aquele ali não, é perto da cantina, é um aqui mais pro Saboó.", mais indo pra perto de onde é o museu Pelé hoje em dia, na época não era. Então a gente ia usando as referências que tinha no momento. E assim foi. E assim, sempre que eu tinha dúvida, poucos eram os conferentes mais velhos que eu tinha confiança que ia me mandar pro lugar certo, porque até por lugar errado me mandaram. Então assim, eu falava "gente?". E aí depois eles riam, sabe? Viam assim que a gente perdeu tempo, que a gente se perdeu, eles riam. Tipo, po? Na época eu com 20 anos, eles tinham o que? 48, 50. Pareciam que não tinham tido infância, né? Poxa. Teve uma vez até que eu falei, falei "Poxa, você não tem filha? Gostaria que fizessem isso com a sua filha?".
P/1 - Nossa.
R - Aí ele assim: "Ah, nem vou te responder, nem fale a pena". Sabe, assim? (risos) Sempre assim.
P/1 - E aí teve algum momento, quando você chegou você disse que eram bem poucas mulheres, né?
R - É.
P/1 - Teve algum momento que você viu aparecer mais mulheres, o cenário se transformar lá no Porto?
R - Então, na minha categoria não entrou mais porque...
P/1 - Teve o concurso, você falou.
R - É, teve o concurso. Pra estivador, nenhuma mulher se candidatou. Com o passar dos anos, o que eu fui vendo é na parte dos Armazéns. Então por exemplo, começou a época de vir celulose, por exemplo, como tem até hoje. Então eu comecei a ver moças trabalhando na empilhadeira, no Armazém, nas carretas, comecei a ver esse tipo de coisa. Mas algumas visitadoras. Visitadoras são coisas que fazem o agenciamento, essa parte mais de documentação do navio, que o nome é visitadora mesmo. E aí eu as via subindo, indo a bordo, embora elas não tivessem que falar comigo nem eu, mas assim, foi quebrando, eu fui vendo mais "cor de rosa", digamos assim. Mas principalmente as carretas. Muitas motoristas foram surgindo, muitas. E aí depois... Não no açúcar, mas nos containers principalmente, aí quando eu fui trabalhar no terminal de containers, aí um monte de motorista de carreta, a gente tinha até banheiro feminino. Aí eu fiquei muito feliz, falei "nossa, que legal. Pode trocar figurinha". Foi nesse sentido. Mas no cais público assim, bem mais raro, bem mais. E bem mais demorado o processo, muito mais.
P/1 - Entendi. E aí eu ia te perguntar se teve alguma outra história marcante que você viveu dentro do porto de Santos que você acha que tem que deixar registrado essa história de vida que você viveu.
R - Olha... Teve várias, mas uma que foi bem triste, bem traumática, foi quando a Maria Antonieta faleceu. Então a gente passou em 94, ela faleceu em 97. E assim, pouquíssimos foram os casos de óbitos de conferente, infelizmente estivador, como o trabalho é braçal, muito mais próximo as cargas, infelizmente eles põem a cara mais a tapa, o índice é maior de acidentes entre eles do que entre conferentes, conferentes, assim, na época eles até me falaram, só tinha um, um, que foi atropelado por uma empilhadeira. Um. E era um senhor. Então assim, a gente sabia que é um trabalho no porto, um trabalho perigoso, lógico que é, mas a gente... Como a gente não fica com a cara a tapa assim, a gente sempre se achou um pouco mais protegido. Mas a gente ia... Nessa época, a gente ia pra Cosipa, porque a Cosipa tem um cais lá, ela embarca carvão mineral, acho que bauxita, e chapas de aço. E tinha os navios lá, coreanos, chineses, que trabalhavam muito com essa parte de chapa de aço. E havia a conferência do trabalhador avulso, A gente ia lá no Cais, tinha um ônibus que saia do sindicato e a gente ia fazer a conferência lá. E já eram turnos de revezamento de seis horas. Só que assim, por exemplo, eu não gostava muito de ir pra Cosipa porque a escala lá era antecipada, era uma hora antes, justamente por causa do deslocamento até Cubatão e os turnos lá eram assim, das oito às catorze, não eram das sete às treze. Era oito às catorze, catorze às vinte, e aí eu não gostava por causa da minha faculdade, me atrapalhava. Então eu não ia muito. A Maria Antonieta já gostava, ela preferia. E ela ia direto pra lá. Ela trabalhava até mais do que eu nessa época porque eu estava na faculdade ainda. Então eu ficava de manhã na faculdade e só vinha trabalhar a tarde ou a noite. Ela não, ela tinha as 24 horas para ir trabalhar a hora que ela quisesse. E aí, olha só, aí nós duas fomos trabalhar de manhã cedo. Eu não me lembro se eu não tive aula, se eu faltei, eu não sei. Eu lembro que eu fui trabalhar das oito às catorze com ela, então a gente pegou o ônibus que saia do sindicato, lá na João Pessoa, e levava a gente até o terminal lá da Cosipa, que era longe, porque eram três berços de atracação. E a gente pegou um trabalho que ninguém queria pegar, por isso que sobrava pra gente que era mais novo, que eram chapas ponta de estoque, isso eu me lembro perfeitamente. Eram chapas, gente, de tudo quando era tamanho. Chapas largas, mais finas, mais grossas. E porque era penoso esse trabalho, porque você tinha que ficar bem perto da carreta, porque elas vinham em carretas enormes, largas, e o guindaste de bordo, o guindaste do navio, de bordo, os estivadores amarravam assim, umas três ou quatro dessas chapas e justamente porque elas eram de tamanho diferentes, era muito perigoso na hora que erguia. Era muito fácil uma delas, porque não estavam niveladas, uma delas se soltar, tinha acidente direto, gente, direto. Se ventasse, o trabalho parava, porque aquelas chapas iam que nem navalhas, aquilo vinha cortando tudo, vocês não têm noção. Era gente decapitada, era assim, era um terror. Todo mundo morria de medo. Então assim, o medo sempre era do alto, era de cima, justamente na hora que erguia. Tanto que a gente tinha que ficar colado da carreta, elas tinham umas etiquetas com um código de barras, vocês creem que a gente tinha que anotar num papel esse código de barra? De cada uma das chapas? Então ninguém queria, por isso que sobrava para a gente, que era os mais novos. E aí foi eu e ela. E foi assim durante seis horas daquele dia, das oito às catorze, a gente anotando num papel aquela cacetada de número, tipo... Eram 12, 15 em cada carreta, e a gente lá, anotando, anotando, anotando. E aí: "Pode ir", eu gritava pro estivador, aí eles pegavam, aí colocavam os ganchos para aquilo erguer e aí a gente vazava, todo mundo, sai correndo de perto da carreta, porque se aquilo se soltasse vinha, né. Então era assim, bizarro. Estou falando de 95, 96, 97. Aí nesse fatídico dia, o que aconteceu, precisou de gente a tarde também. Das oito às catorze, aí quando foi por volta de meio-dia, que era a escala mais ou menos, aí naquela época não era aplicativo, não era nada, era por telefone, tinha uma guaritinha lá e tinha um escalador do sindicato que ficava lá e que fazia a intermediação. Aí o que ele fala: "Gente, tá precisando de gente aqui, tá precisando de mais", não lembro, acho que mais dois, "Alguém quer dobrar?". Aí eu falei: "Eu não, chega. Pra mim, deu". Era o suficiente. A Maria Antonieta estava adotando uma criança, que ela acho que não podia ter filhos, e ela estava adotando uma criança, e ela falou: "Eu dobro". Por que, porque ela queria decorar o quartinho do neném, que era um menino. E ela dobrou, ela aceitou dobrar. E eu fale: "Aí, Toni", era o apelido dela, "Toni, eu vou embora, vou te abandonar, porque pra mim deu". Aí ela: "Ai, Ka, vai lá", porque assim, até hoje, quando você trabalha como avulso, 48 horas depois o dinheiro cai na sua conta. Você não tem um salário fixo, esse é um dos problemas também, você não consegue muito fazer planejamento, você faz um carnê aí, que nem de carro, a três, quatro anos, você não sabe nem se vai conseguir pagar (risos), você não tem muito, entendeu? Você vai indo devagar, porque você pode se estabacar. E ela na empolgação de fazer o quartinho da criança, ela quis dobrar pra ganhar um a mais. E aí eu entrei no ônibus para ir embora junto com a minha guarnição das oito à catorze e acho que só ela dobrou, quis. Ficou né, continuou, porque ia dobrar até às vinte horas. Aí quando a gente tá no caminho de Cubatão aqui para Santos, a gente já ouviu um zum zum zum, de que tinha tido acidente na Cosipa. Aí, acidente na Cosipa, gente, era coisa trivial, infelizmente. Quando eu cheguei no sindicato, a diretoria estava toda na porta quando o ônibus chegou, e eu estranhei. Eu fiquei meio assim, olhando, porque eu falei "nossa". E o pessoal do ônibus, os outros que estavam voltando comigo, falaram: "Gente, aconteceu alguma coisa, porque olha o fulano", na época eu não lembro quem era o presidente, "Olha, o fulano tá na porta junto com o tesoureiro, junto com o primeiro secretário e não sei o que". E aí a gente foi descendo e eles assim, eles assim, aí quando eu desci, aí eles pegaram: "Puta, foi a Toni", falaram assim. E eu fiquei assim "Foi a Toni o que?". Aí eles pegaram: "Calma, filha, vem cá. Senta, pega uma água". Aí me colocaram ali numa salinha e isso eu já estava ficando nervosa, eu falei "gente, o que tá acontecendo?", eu achei que tivesse acontecido alguma coisa na minha casa. Aí eu fiquei "O que tá acontecendo?". E aí eles falaram: "Olha, Karina, infelizmente aconteceu um acidente lá na Cosipa e a Maria Antonieta morreu". Eu falei: "O que?", falei: "Vocês estão de brincadeira comigo. Como que a Maria Antonieta morreu, eu estava com ela até agora". Aí eles me contaram lá o que aconteceu, que o problema foi o seguinte, a carreta... Tinha um cais, um dos berços de atracação, que é o lugar onde o navio atraca né, um dos berços lá, o navio não encostava de ladinho, pra vocês entenderem, não encostava assim, como encosta os de passageiros. Um dos berços lá era muito estreito, entendeu, muito estreito. Então o navio ele meio que ficava embicadinho e as carretas entravam, pra sair elas não tinham como fazer curva, elas saiam de ré. Era o pior berço de atracação que tinha. Era bem no canto, bem estreito, bem afunilado. Então, a carreta larga, enorme, a Toni estava conferindo, como a gente estava, bem encostada no... [pausa] no cavalo... Eu nunca sei quando é cavalo e quando é reboque. Bom, na traseira da carreta, ela estava bem encostada ali conferindo e o outro conferente, mais velho, idoso assim, bem mais idoso, e muito gordo, ele era muito gordo. O apelido dele era Luís Bobina, só pra vocês entenderem, porque ele era uma coisa enorme. Ele estava do lado dela. Quando o motorista não percebeu que eles ainda estavam atrás da carreta, o motorista engatou a ré, e uma carreta daquela na hora que você engatava a ré, ela dava um tranco, um belo de um tranco. E ele achou que já tinham anotado tudo, entendeu? E pelo retrovisor, com aquela largura, ele não enxerga uma pessoa se ela tiver no centro. Não enxerga, não tem angulo pra isso. E ela percebeu que ele ia ser atropelado, ele. E ele lentão, lerdão, o que ela fez, ela se jogou pra empurrar ele, e empurrou, só que ela ficou na linha da roda. Então a carreta deu a ré, gente, pegou ela em cheio. Esmagou. E ele se salvou. Então assim, não tinha nem o que falar.
P/2 - Quantos anos ela tinha?
R - Gente, eu tenho 49, ela era mais nova que eu na época, acho que ela tinha uns 42... Não quero mentir, 42, 43. Ela era nem mais velha que a gente. E até por isso, tipo, a gente estudando, eu e a Gabriela fazendo faculdade e ela já com família, casada e adotando uma criança. Então quando eles me falaram isso, gente, eu fiquei assim... E aí o pior de tudo, que eu nem fazia ideia, eles tinham ligado pra minha casa, pra minha mãe, por que? Porque quando a Cosipa informou que houve um acidente com uma conferente lá, a dúvida ficou. Porque eu estava... Eu estava e ela, as únicas duas estavam trabalhando. Entendeu? Então eles não sabiam identificar quem era na verdade. Até porque ela foi esmagada. Então eles não sabiam quem tinha dobrado.
P/2 - E como foi pra você continuar trabalhando lá depois do acidente?
R - Exatamente, entendeu? Então assim, eu lembro que foi pontual esse acidente porque me fez repensar um monte de coisa. Se realmente eu queria aquilo pra mim, se realmente eu estava no caminho certo, se valia a pena esse tipo de exposição. Já não bastava tudo aquilo que a gente enfrentava, né? A minha mãe não queria mais. Minha mãe foi categórica. Não queria mais que eu voltasse a trabalhar no porto. E eu fiquei vários dias sem trabalhar, aquilo me deixou arrasada, e eu fiquei repensando, fiquei analisando uma série de coisas, entende? Eu falei "Po, eu sou jovem, sabe? Tenho uma... Estudei tanto", eu falei "nossa, gente, eu estudei tanto, se acontece um negócio desse, eu viro alma penada. Eu fico aqui no limbo, assombrando, porque eu não vou me conformar, eu não vou evoluir, não vou virar luz (risos), eu vou ficar aqui". Então eu fiquei pensando, poxa, será que vale a pena, será que é isso que eu quero pra mim, qual o futuro que eu vou ter? Aí depois de... Acho que uma semana, uns dez dias assim, aí eu decidi ir voltando devagar, tipo ir escolhendo. Eu demorei muito pra voltar pra Cosipa, muito. Isso eu lembro. Demorei meses, uns seis meses pra voltar lá. Mas voltei. Porque aí...
[pausa]
P/1 - O que fez você querer voltar depois desse episódio, a trabalhar?
R - Então, aí eu fiquei pensando, aí eu falei... Bom, eu estudei para ser aquilo que eu era, conferente. Aquilo já estava me cativando mais ou menos por tudo isso que eu te falei assim, de cada dia ser diferente do outro, eu já começar a ter as minhas amizades, mais ou menos ter meu grupinho. Assim... Eu gostava mais ou menos daquele desafio que era todo dia eu enfrentar, ir marcando a posição, devagar, mas estar lá presente. Então aquilo na minha cabeça, eu achei em algum momento que se eu não voltasse, eu seria uma "loser". Eu acho, que eu estaria me renegando para tudo aquilo que eu me preparei. E tipo, eles estariam vencendo, de uma maneira indireta, eles venceriam. Eles, todos aqueles que falaram que eu não ia durar, que aquilo não era para mim. E aí o que vocês acham que eu fiz? Se num dia de chuva, eu larguei o meu carro, fui andando a pé quase um canal, com água pelo joelho, para fazer a prova, sendo que eu não dormi. Vocês acham que eu ia largar? (risos) depois de tudo que eu tinha passado? Sendo que, sendo que, a Antonieta adorava trabalhar, ela era contagiante, a alegria dela. Ela adorava. Tanto que ela tinha passado no concurso no Fórum, só que eu não lembro direito o que ela era, eu acho que ela era escrevente, mas ela era concursada mesmo, não era híbrida, ela era concursada, funcionara pública. E ela pediu exoneração para ser conferente. Eu acho que eu devia aquilo a ela. Então isso tudo ficou na minha cabeça. Só que o voto da minha mãe era para eu não voltar, não voltar. E aí eu fui escondida (risos). Então eu falava pra minha mãe que eu tinha trabalho para fazer na faculdade à noite, à tarde, e eu ia para o meu sindicado participar da escala. E ir trabalhar (risos). E foi assim. E aí depois, aos poucos, eu acho que a minha mãe foi percebendo. Porque não tinha tanto trabalho assim pra eu fazer, né? E aí eu expliquei mais ou menos isso tudo para ela, que se passava na minha cabeça, principalmente essa história de encarar como um desafio. Eu sou muito assim, quando... Olha, veja bem, em alguns momentos da minha vida eu tenho muita intuição, eu sempre procuro ficar um pouquinho quieta para tentar ouvir a voz, da tua consciência e a voz de Deus, meio que dando uma letrinha para você. Então assim eu sempre... Minha mãe fazia muito isso, eu sempre tentei parar e ouvir o silencio, o silencio, gente, nossa, ele é uma coisa magistral. E aí eu lembro que... Por exemplo, teve uma festinha, um aniversário de uma amiga minha quando eu tinha 15 anos, vai, que todo mundo "vamos, vamos, vamos" a menina... Era São Paulo, a menina, a família, alugou uma van, não sei o que, então vamos todas, lindas, maravilhosas. E aí no meio daquela empolgação, eu comprando roupa e pensando como é que eu ia, não sei o que, sabe que eu parei por um momento assim... Aí eu falei: "Cara, eu não vou". Aí todo mundo "Porra, você tá maluca? Você comprou roupa, não sei o que". Aí eu falei "quer saber, eu não vou". Alguma coisa me dizendo pra eu não ir. E a van teve um acidente. Lógico, graças a Deus, ninguém se feriu. Mas assim, a van teve um acidente. Furou o pneu lá, as meninas chegaram atrasadas na festa, perderam praticamente a festa. Então assim, eu... Minha mãe era rosa cruz, sabe, assim? Então ela me passava umas coisas assim, filha... Então eu procurei ficar em silencio e aí depois eu falei com a minha mãe, falei: "Mãe, eu acho que é pra eu tomar como um desafio". Me veio isso, entendeu? Pra eu não abandonar, não. Que aquilo era legítimo meu. Que aquilo que aconteceu foi uma fatalidade, eu acho que era a missão dela, entendeu? E a minha é essa, é continuar o legal dela. E aí minha mãe aceitou muito bem quando me veio isso. E não foi improvisado não, juro por Deus, eu pensei muito mesmo em não voltar, mas...
P/1 - E aí o que mudou depois que você voltou?
R - Eu diminuí o ritmo. Diminuí o ritmo. Uma coisa que mudou, que foi muito interessante, vocês sabem que até hoje as carretas, hoje em dia quando dão ré, elas não têm uma sirene? Foi por causa dela. Foi por causa desse acidente da Maria Antonieta. Todas as empresas e todas as carretas, virou até item de fábrica, mas é item de segurança, obrigatório que tenha a sirene quando você engata a ré. Então, mudou para todo mundo, porque foi traumático para todo mundo. Dizem que inclusive o motorista da carreta ele se aposentou. Dizem que ele ficou tão esperado com o que aconteceu, porque eu não vi a cena, graças a Deus, mas eu imagino, né?
P/1 - Só para gente ir caminhando, tem algum último caso do Porto de Santos que você gostaria de compartilhar?
R - [pausa] Ah... [pausa] Ah, não sei... São muitos. Por exemplo, eu tive... Eu tenho que falar um pouquinho da Elen, porque embora o nosso trabalho tenha sido por um curto espaço de tempo, mas a gente trabalhava no antigo TECONDI, no Terminal Privativo de Contêineres, e aí (risos), eu lembro que quando eu entrei, ela era da minha equipe. E eu entrei depois dela, porque ela era da empresa, mas ela não era conferente. Ela exercia um outro cargo, e ela foi promovida, e era o sonho dela trabalhar como conferente, no costado. E eu por ser concursada, a legislação fala que prioritariamente, eu, elas brincam que eu sou conferente raiz, eu... Tem que ser oferecida primeiro a vaga para mim. Só que na época eu não me interessei. Então eles fizeram um critério de promoção interna. Então a Elen virou conferente de costado. E alguns anos depois, eles fizeram outro... Outro... Não é concurso... É entrevista, né? Abriram vagas pra conferente. E aí na época eu quis trabalhar, eu achei que era uma experiencia que eu não tinha tido ainda, você trabalhar num terminal privado, e aí eu me candidatei a vaga, e aí eu fiz entrevista e passei e fui trabalhar. E aí eu cai na equipe dela. Então ela já estava acostumada, ambientada, tudo. E aí quando ela me viu e que eu fui entrar na equipe dela, ela no começo ficou meio assim, tipo "não sei o que", mas aí ela me cumprimentou normal, com muito respeito. Aí depois com a convivência, tipo, no segundo dia, que aí eu já cheguei... Aí ela viu que eu já sou de boa, que não tem nada demais, porque o pessoal tem muito assim, ah, o conferente do sindicato e o conferente, tipo, o cara que exerce a minha função, mas que não é concursado. Tem muito isso. E na época todo mundo, né, quando eu entrei, ficou meio assim, principalmente ela ficou melindrada, porque era uma moça, outra moça, tipo concorrente, sei lá o que se passou na cabeça dela. E aí quando ela viu, eu falei assim pra ela (risos): "Ai, que bom. Eu tenho alguém pra trocar batom comigo". Aí ela deu uma gargalhada, e aí o negócio ficou muito mais, assim, legal, eu me aproximei e aí eu brincava com ela, era tão gostoso porque eu nunca tinha tido essa experiencia. Porque por mais que a Antonieta muito no início ela trabalhasse bastante, era muito difícil nós duas trabalharmos juntas, porque eu estava na faculdade ainda. E a Antonieta era mais velha também, não tinha muito... A Elen não, a Elen era igual praticamente. Então o jeito, o trato, era muito mais fácil. E aí virou uma brincadeira, aí a equipe virou a equipe das meninas, o pessoal tirava sarro, e era muito gostoso, entendeu? Eu com ela, assim, foi muito legal, foi uma experiência super válida para mim, adorava, a gente se protegia. E era muito legal, a gente... Eu podia falar do universo feminino com alguém, porque eu nunca falava. Então se eu tivesse uma cólica, não tinha a quem recorrer (risos). Porque ninguém entendia o que eu estava passando. Então eu falava: "Puta, hoje tá difícil, cara. Tô com uma cólica", aí os caras: "Tá, então, vai lá, sobe lá", e eu falava "po, ele não entendeu que eu falei que estou com cólica, que eu queria ficar sentada hoje". Tipo, se tivesse que ir a bordo, eu queria que ele fosse e não eu. Porque, né, vocês não têm noção. E com a Elen, tipo, "Não, Ka, calma. Deixa que eu vou lá", quando ela era, tipo "Não, fica aí de boa, fica sentada, deixa que eu vou lá", entendeu, gente? Então assim, era muito gostoso. Então é até uma homenagem pra ela, ela merece.
P/2 - Eu queria te fazer uma pergunta, Karina. Você falou do dia da chuva, que você ficou até com medo de errar algum container, já aconteceu algum problema assim, de errar o container, algum erro?
R - Comigo, graças a Deus, não.
P/2 - E o que acontece quando acontece esse tipo? Alguém manda o container errado?
R - É, então... Olha, geralmente é uma remoção que você tem que fazer, e a remoção ela é onerosa, ela gera custos, sabe? Então teve navio, só pra vocês terem ideia, teve navio que deixou, perdeu prático, sabe, de ir embora. E isso gera atraso, porque o navio sai daqui e ele tem um outro porto, que tá esperando, dá o horário, que chama janela de atracação, porque é um cliente que está esperando, ele precisa daquela carga pra desembaraçar, tipo, pra Natal, digamos assim, pra ficar bem claro. Então já aconteceu de colocarem o container que ia no convés, colocar no porão. E ter carga já embarcada no convés. Então assim, remoção de 30 containers. E aí perdeu o prático, atrasou pra ir embora, e aí esse conferente tomou advertência. E o terminal ficou com o prejuízo da remoção. De pagar um prático, vinte mil. De pagar o demurrage, que é o atraso, não sei mais quantos mil, paga multa. É um prejuízo enorme. Então assim, a profissão de conferente, esse que fala o lugar é planista o nome, conferente planista, é o... Na escala assim de importância, eu acho que é a principal, não pode se cuidar nem por um segundo. Você quer ver um erro fatal é você atender telefone e estar embarcando. Você tem 90% de chance de fazer merda, só falando assim. Porque às vezes até fala "olha, em tal posição", só que ele as vezes entende errado, ou ele não tá prestando atenção, que é o cara que tá operando o guincho, o container, só que a culpa nunca é dele, a culpa é do conferente. Porque além de falar a posição correta, eu tenho que verificar se foi na posição correta. Não é só falar, eu tenho que estar de olho, porque o estivador nada sabe, e nem é da obrigação dele saber. O cara jogou ali, o estivador vai lá e vai colocar a castanha, vai apertar, vai começar a fazer a piação. Vai travar o container. Eu é que tenho que me certificar, por isso que o nome é conferente, eu que tenho que conferir se corresponde ao lugar que tem que embarcar e se foi colocado naquela posição. É muito... Demanda muita atenção. Muita atenção. Aquele dia, por Deus, meu. O operador no portainer, ele estava fazendo exatamente o que eu estava mandando e eu falava: "Pelo amor de Deus, meu, não erra. Pelo amor de Deus, porque eu não tenho como enxergar, eu não tenho como subir aí agora pra verificar se você tá colocando na posição correta". Ele: "Não, Karininha, calma, calma, calma que da tudo certo", falei: "Você prestou atenção?". E eu falava, tipo: "É a terceira ____ (02:25:19:00) da terra", cara, se ele contou errado 1, 2, 3, meu, não tinha como olhar. Então também tive que contar com sorte. Se é que tinha alguma sorte naquele jeito que eu estava. Mas naquele dia deu tudo certo. Então graças a Deus eu nunca tive um erro crasso desse que demandasse uma remoção, sempre que acontecia um errinho, tipo, eu ia, olhava, falava: "Onde você tá colocando, onde você tá colocando?", "Aí... Não, Karina, não é aqui?", "Não, filho, é do lado", "Ah, desculpa, desculpa". Então... Ou as vezes eu via que colocou assim... É que você tem que estar de olho, aquela intuição que eu te falo, falei: "Deixa eu ver ali o porão se tá certo", aí eu olhava assim: "Tira esta merda daí" (risos). Aí ia rapidinho, então assim, eu sempre dei aquela... Passava aquele paninho e ninguém via. E nunca, mas nunca, nada grave.
P/1 - E deixa eu te perguntar, o que mudou no Porto de Santos do momento que você entrou até hoje?
R - Tudo. Tudo. É outra Santos, é outro panorama, outro contexto político, econômico, financeiro, tudo.
P/1 - Então me pinta como era antes e como era agora, só pra gente encerrar.
R - Olha... Primeiro, era aquilo que eu falei né, não eram 24 horas no porto. Era... O porto era lindo, posso falar? Eu achava muito mais lindo, porque você tinha uma movimentação, você tinha navio de ponta a ponta no cais. Então assim, eram outros tempos, falando né? De importação de exportação, outro contexto político, outra vontade política. Então... Foram se criando muito... Como posso dizer? Muita burocracia. Muitos fatores que foram, que... Eu acho, de uma maneira geral, economicamente falando, a gente viu, a gente sabe que a nossa economia decaiu. Então assim, era um formigueiro de navios, gente. Importação e exportação bombavam. Era uma demanda de pessoas muito maior, o trabalho não era tão informatizado, não era... Não existiam as balanças que existem hoje, não existia... Por exemplo, quando teve o atentado do 11 de Setembro, criaram um ISO e essa ISO teve que ser implantada, por causa de terrorismo, em todos os portos do mundo. Então eles instalaram os gates, que são as catracas que você coloca a sua mão, você tem a biometria. Tanto que agora em época de pandemia, a gente tá com a biometria liberada, porque é nojento aquilo. Então assim, esses entraves, esses gargalos todos, antigamente o porto era uma festa de luzes, de gente. Lógico que tinha guarda, lógico que tinha. Lógico que também tinha menos segurança. Mas assim, eu também não via tanta... Sei lá, eu não via tanta maldade, eu não via tanto perigo, digamos assim. E, meu, embarca gente, embarcava até acho que mais... Coisas, entende? Eram muito mais tipos de carga, porque eram muito mais navios. Então assim, quando tiraram os guindastes do Armazém 12, 13, 10 e desativaram aquela área, por que? Porque foi uma vontade política tirar o embarque de açúcar em sacaria aqui do porto de Santos, foi vontade política, então... Na época, o presidente da Comesp, se não me falha a memória, alguma coisa assim, ele do nada falou: "Não, vamos desativar, não quero mais, tira esses guindastes". Então assim, da noite pro dia sucateou tudo aquilo. Então assim, dói ver porque... Ali, por exemplo, eram três berços que atracavam, demandavam gente, era tão legal. E o açúcar ele promovia uma movimentação de dinheiro, econômica, era riqueza que trazia pra cá, digamos assim. Gente, até a General Câmara, até os prostibulo (risos), bombava tudo, porque o dinheiro é direta e indiretamente, são coisas interligadas ali. Até aquilo era bonito, o pessoal fala até “Ah, tinha a BC House, tinha não sei o que", nem isso existe mais. Então assim, é todo um panorama, era riqueza que transitava na cidade. A cidade empobreceu demais, empobreceu demais. E o Porto ele é, Santos pra santos, e adjacências, ele é uma das nascentes de riqueza pra cá. Então mudou tudo nesse sentido. Leis que foram mudando, não pode isso, isso pode. O achatamento também, a desvalorização, o mercado de trabalho, tudo isso. Muito... O porto foi muito fatiado, muito privatizado. É interesse político. Que nem agora a Libra na ponta da praia, que é um exemplo clássico, né? Aquilo ali, gente, aquilo ali empregava muita gente. Muita gente. E na hora que quebrou, quebrou, foi todo mundo posto na rua, tchau e benção, entendeu? E as famílias estão aí. E aí, tanto que se pediu pra colocar, pra licitar, restringir, pra que fosse uma área nobre pra container, porque tinha toda uma estrutura pronta pra container. E não. Virou celulose.
P/1 - E Karina, vou te fazer a última pergunta. Queria que você fechasse os olhos, que nem a gente começou, de olhos fechados, vai embora dessa terra também de olhos fechados, então vamos fechar pra mim. E eu queria te perguntar, se você só pudesse levar uma memória dessa vida pra eternidade, de tudo que você viveu só fosse uma memória que você pudesse levar, qual seria a memória que você levaria?
R - Do colo da minha mãe. Acho que é a melhor memória. A mais gostosa, a que mais eu sinto falta. Acho que todo mundo, se um dia perder a sua mãe e se tivesse esse contato que nem eu tive, eu acho que é a memória mais terna e mais pura que eu tenho. Acho que é a melhor. Acho não, tenho certeza, é a melhor.
P/1 - E como foi pra você contar a história hoje aqui?
R - Ah, muito bom, gente. Isso aqui você lava a alma. (risos)
P/1 - Muito obrigado pela sua entrevista.
R - Imagina, obrigada vocês.
P/2 - Obrigada.
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