Entrevistadora - Ok, então, gostava de lhe pedir que começasse por dizer o seu nome, a sua data e local de nascimento.
Domingos Oliveira - Chamo-me Domingos Oliveira Dias, nasci a 3 de julho de 53, neste local, neste lugar de Moinhos da freguesia de São Félix da Marinha, um dos 11 lugares da freguesia de São Félix.
Entrevistadora - E tal como eu lhe dizia antes, fale-me um pouco da sua infância, da sua família, os seus pais, os seus irmãos… como é que eram as vivências nessa altura?
Domingos Oliveira - Bom, sou o mais velho de 8 irmãos, 3 rapazes e 5 raparigas, não é, o meu pai é tanoeiro, numa família que vivia com privações, com muitas dificuldades, como era a situação da generalidade deste lugar; como costuma dizer uma irmã minha, havia malta remediada, alguns que viviam melhor, mas o resto vivia com muitas dificuldades. Tal como, digamos, é uma zona que, estando a 16 km, um lugar a 16 km do Porto, contudo ele tinha as características de um lugar do interior, não é? Envolto numa paisagem bonita, só que mais tarde é que admirámo-la, não é? Não tínhamos condições de admirar. Portanto, toda a nossa formação foi condicionada, o nosso crescimento, a nossa infância, pelo meio familiar, pelo meio social envolvente, que era um meio pobre em geral, pobre materialmente, pobre espiritualmente, portanto, culturalmente, designadamente. A informação era muitíssimo limitada, naturalmente, que adequávamos a nossa infância a esta realidade, construímos os nossos brinquedos, portanto, eu recordo-me que com uma lata de sardinhas construí um carrinho e até um guindaste, por exemplo… ainda sou do período de 50, depois 60, já não tanto, mas em que as bolas eram bolas de farrapo, não é… ficamos contentes, principalmente, quando conseguíamos encontrar aquelas, não sei se é agora ainda, que são as meias de vidro, chamavam-se meias de vidro, a gente colocava panos lá dentro, farrapos e construímos as nossas bolas, eram os...
Continuar leituraEntrevistadora - Ok, então, gostava de lhe pedir que começasse por dizer o seu nome, a sua data e local de nascimento.
Domingos Oliveira - Chamo-me Domingos Oliveira Dias, nasci a 3 de julho de 53, neste local, neste lugar de Moinhos da freguesia de São Félix da Marinha, um dos 11 lugares da freguesia de São Félix.
Entrevistadora - E tal como eu lhe dizia antes, fale-me um pouco da sua infância, da sua família, os seus pais, os seus irmãos… como é que eram as vivências nessa altura?
Domingos Oliveira - Bom, sou o mais velho de 8 irmãos, 3 rapazes e 5 raparigas, não é, o meu pai é tanoeiro, numa família que vivia com privações, com muitas dificuldades, como era a situação da generalidade deste lugar; como costuma dizer uma irmã minha, havia malta remediada, alguns que viviam melhor, mas o resto vivia com muitas dificuldades. Tal como, digamos, é uma zona que, estando a 16 km, um lugar a 16 km do Porto, contudo ele tinha as características de um lugar do interior, não é? Envolto numa paisagem bonita, só que mais tarde é que admirámo-la, não é? Não tínhamos condições de admirar. Portanto, toda a nossa formação foi condicionada, o nosso crescimento, a nossa infância, pelo meio familiar, pelo meio social envolvente, que era um meio pobre em geral, pobre materialmente, pobre espiritualmente, portanto, culturalmente, designadamente. A informação era muitíssimo limitada, naturalmente, que adequávamos a nossa infância a esta realidade, construímos os nossos brinquedos, portanto, eu recordo-me que com uma lata de sardinhas construí um carrinho e até um guindaste, por exemplo… ainda sou do período de 50, depois 60, já não tanto, mas em que as bolas eram bolas de farrapo, não é… ficamos contentes, principalmente, quando conseguíamos encontrar aquelas, não sei se é agora ainda, que são as meias de vidro, chamavam-se meias de vidro, a gente colocava panos lá dentro, farrapos e construímos as nossas bolas, eram os brinquedos característicos do jogo do arco… um tio meu, serralheiro, fez o arco… e, pronto, era esta a realidade, no qual, obviamente, naquele quadro e com uma visão muito curta e estreita, nós fomos seres felizes, naturalmente, pese as dificuldades grandes, não é.
Nós, ao contrário do meu pai, não chegámos a passar fome, não passámos fome, mas era uma comida muito simples, pouco diversificada, embora hoje, com uma grande interrogação.
O meu pai era tanoeiro, a minha mãe estava em casa, mas arrendava pequenas parcelas de terreno, ali produzindo alguns produtos, na altura não havia a noção da dieta mediterrânica saudável, não é… mas hoje diria que, apesar de tudo, tendo em conta uma parte dos produtos básicos, eram oriundos da terra, batata, feijão, cenoura, as couves e tal, hoje diríamos que era uma nutrição saudável [risos] pese do ponto de vista proteico, podia ser mais pobre, sardinhas e bacalhau e criávamos um porco, ao fim do ano era morto, o meu pai matava os porcos aqui nesta zona e quando havia matança, havia sempre algumas febras, não me recordo até aos 10, 12, 13 anos de ter entrado carne de bovino, nunca, ou até mesmo de porco comprado, era para isso, criavam-se uns galos, umas galinhas, era um meio característico rural. Eu estive mais tarde, década de 90, na zona do interior, Guarda, Castelo Branco, não é, e recordo-me que, no fundo, este lugar, digamos, a vivência que eu tinha, não seria diferente daqueles sítios mais recônditos, a ruralidade marcava, naturalmente, a presença, pronto.
Há depois esse crescimento, há alguns valores que os meus pais, particularmente, o meu pai é induzido, que era o valor da seriedade, ser honesto, não encher, não roubar e o trabalho e a exigência de que soubéssemos ler, escrever e contar, no mínimo, porque dificilmente se iria mais longe.
Digamos, há uma fase, depois, importantíssima, que é a instrução primária, a escola primária. Obviamente alarga um pouquinho mais os horizontes, não é, de conhecimento, saber contar, escrever, para mim foi muito positivo, mas, diferentemente de todas as minhas irmãs, tiveram uma apreciação muito negativa, porque foram sujeitas à violência como método pedagógico, era método pedagógico, no caso delas, elas não iam para lá criar problemas, muitas vezes, colocavam a violência para conter excessos das crianças e tal, tal… num quadro de um meio atrasado em que alguns falavam “senhora professora, se ele está mal, você já sabe” e incentivavam com… chicotadas, com reguadas… a menina de 4 ou 5 anos, ou 4 ou 5, não me lembro, a menina de 4 ou 5 anos cuidava, portanto, e nesse sentido, elas têm, em geral, as raparigas, uma apreciação negativa. Para todos os efeitos, foi um elemento importante. É claro, no quadro que a gente vivia, terminávamos a escola primária e era o trabalho, o ingresso no trabalho, não é, a trabalhar. Pronto, eu, tal como as minhas irmãs, também algumas delas, e entre aqueles 3 meses, havia os 3 meses na altura da 3ª para a 4ª classe, também fui para trolha, nesse período, não é, e conheci alguns momentos um pouco difíceis e… naturalmente, depois da 4ª classe, assim, sucedia imediato, com as raparigas era inevitável, com os rapazes podia se colocar uma outra perspectiva, podia estudar ou não, fazer a admissão para estudar, mas não havia… possibilidades, digamos, na altura, não percebia, eu sei que andei meses e meses a sonhar com aquela história, não é, mas a recordação que tenho foi de ter numa sexta, uma quinta ou uma sexta, feito o exame da 4ª, no Cedro, em Gaia, e na 2ª, fui para trolha e pronto.
Aos 12 anos fui para serralheiro, civil, serralharia aqui do Corvo, a Renascença, que era uma das maiores serralharias ali do Corvo, o Corvo tem os antecedentes de Ferreiros, no século XIX, depois foi evoluindo, e as principais serralharias situavam-se ali, assim, na zona do Corvo, não é, pronto.
Posteriormente, a ingressão… enfim, na vida ativa, no mundo do trabalho, naturalmente, outras possibilidades daria, mas na altura, recordo-me, a gente, pronto, o dinheiro que ganhámos era entregue totalmente à minha mãe, portanto, eu nem me lembro se tinham uma mesada ou não, as raparigas não teriam, era quando era necessário, já os meus dois irmãos mais novos iam trabalhar aos sábados, e pronto, e então já ficavam com o dinheiro para eles e tal, já tinham uma outra autonomia para compra de coisas, etc. Momento importante, fase essencial e decisiva que iria determinar o futuro, no qual ainda não previa, mas ainda antes disso, a percepção que eu tinha, pronto, consciência, evidente, social, política, inexistente, mas o sentido de justiça em relação às coisas, uns terem tudo, outros não terem nada. Os filhos dos mais, da malta, enfim, do pessoal das famílias que eram mais abastadas, em geral eram tratados pelo diminutivo, não é, a Aninha, a Rosinha… os filhos dos outros, não, era a Rosa, o Manel, não era Manelinho nem nada disso. Havia diferenciação, isso saltava à vista, sem perceber as causas, sem entender, mas era algo que ia evoluindo, que ia amadurecendo, não é, que em determinado tipo de circunstâncias poderia disputar, mas isso implicava que nunca seria se eu me mantivesse neste lugar, portanto, dificilmente.
E então aí surge, como eu referi voltando atrás, o acontecimento mais importante que é aos 13 anos o meu pai… ter colocado… “ó rapaz, não queres estudar à noite e tal? Para o teu futuro, etc, etc.” Eu, algum entusiasmo já tinha perdido, mas aceitei, pronto, e então aos 14 anos fui estudar à noite. Ainda um momento, talvez volte atrás, que era o seguinte, como em geral eu aplicava-me nas coisas, o padre da freguesia, o padre João, colocou ao meu pai que pagava as despesas do seminário para ser padre, e o meu pai “o meu filho para ser padre, nunca”, soube mais tarde, portanto, depois, então, colocou-se essa situação. Ora bem, então, aí assim, a partir daí, digamos, abrem-se novos horizontes, ainda não como aqueles que sucederam quando fui trabalhar para o Porto, mas sem dúvida que o estudar à noite foi um momento central, pelo menos do ponto de vista de uma maior informação, ao nível cultural, ainda incipiente, os cursos de aperfeiçoamento industrial, não é, um convívio mais alargado, não condicionado, não limitado exclusivamente aqui, assim, a este buraco, a este lugar. Este lugar, que chamando de buraco, pode ter uma conotação pejorativa, mas eu admiro muito as pessoas, que eram pessoas trabalhadoras, pessoas do povo, independente depois do ponto de vista da formação cívica, cultural e tudo o que seja, aquela que era característica aqui na altura, não é? Pronto, o estudar à noite, sem dúvida que abriu novas perspectivas, eu depois apliquei-me fortemente, pronto, e na altura, já havia a bolsa de estudo, e se eu tinha determinado tipo de média geral, passei a ter bolsa de estudo, quer dizer, era uma fonte interessante, que eu acho que, eram 1600 escudos, não sei, mas eu gastava cento e tal só nos livros, o resto, pelo menos, eu sempre aproveitava. E depois deixei, como trabalhava bastante, deixei de, de ir a exames, porque uma média geral determinava, portanto, a malta era dispensada dos exames, não é, dependia do terceiro ano, pronto, e as coisas decorreram nessa forma, com experiências interessantes, já uma evolução e tudo isso.
Dá-se, depois, o segundo momento que permitiu concretizar este salto que eu perspectivava, ou seja, que se colocou, que foi chegar ao quarto ano, mas para o terceiro, quarto ano, eu colocar o meu pai que precisava… eu trabalhava na Renascença, a serralheiro civil, mas que precisava de ter um trabalho mais em consonância com o que eu estava a estudar e tal, tal. Aí, tenho um segundo mérito, assim, consegui… mas indo ganhar menos, não sei se algum pai aqui na aldeia aceitaria que o filho mudasse de profissão para ganhar menos, mas fui. Vou para a Eduardo Ferreirinha & Irmão, que era já uma grande empresa, tecnologicamente evoluída, de construção de motores, de tornos, de máquinas de furar, de tiaras e etc.
A Eduardo Ferreirinha & Irmão era junto ao Palácio de Cristal, não é, empresa já com centenas de trabalhadores, acho que eram mais de 700 trabalhadores. Então, naturalmente, com um outro nível de consciência, que não se tinha na Renascença, a Renascença tinha trabalhadores aqui da região, não é, nesta zona, já com um outro nível de consciência de classe, não é, uma outra perceção… bom, e foi em meados de 70. Portanto, e logo poucas semanas depois surge, de alguma forma, digamos, eu também procurava… fui encontrar numa banca um documento da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, lembro-me de perguntar ao encarregado de quem era aquilo e tal e ele dizia “olha, vai lá ter com aquele e tal”, indicou-me um trabalhador que operava uma grande fresa, uma gigantesca fresa, que era maior que isto tudo, Libertário Pinto, seu nome, que já faleceu… e, naturalmente, a partir daí que começámos a contatar, a falar, a conversar e iniciou-se o processo, eu não o larguei, ele também não me largava, após eu, outros elementos, iniciou-se o processo da minha intervenção ao nível do Movimento da Juventude Trabalhadora, no quadro da luta antifascista.
Portanto, podemos assim dizer que este foi um momento importante neste percurso que tive, ou seja, passei a contatar e aí sim, aí a perceber, comecei a perceber, através de informação que na verdade a gente não teria, em que formação económica e social estava, em que regime de ditadura fascista estávamos, não é, a questão da liberdade, da democracia, e a entender que não era uma fatalidade o facto de eu não ter conseguido conquistar o meu sonho de estudar durante o dia, do meu irmão mais novo, o Joaquim, é um moço que desejaria muito também estudar e não conseguiu, foi um desgosto para ele também… a perceber, porque nesta sociedade, às vezes, se a gente não percebe que as causas radicam na própria sociedade, e não percebendo, naturalmente, as causas “olha, é inevitabilidade, é a pobreza, calhou-nos, os nossos pais não compreendem, é isto, aquilo, aquilo” sem perceber que as razões radicam… ainda hoje, muito sério, e é difícil, perceber o que é que implica perceber os mecanismos e compreender a própria sociedade em que estamos inseridos. Esse é um aspecto importante que se desenvolveu.
Ora, é neste quadro, primeiro, com uma consciência, ao nível político e ideológico, muito incipiente, eu, como disse, nem sabia que existia partido comunista, enfim… a informação era mais básica, básica, embora na escola, nos três primeiros anos, neste quadro da escola de Espinho, algo, a gente, portanto, íamos falando, conversando, e… e digamos, alguma consciência, em termos, além da formação geral, íamos tendo.
Pronto, esse período de dezoito meses até ao período em que dei o salto, foi um período, uma intensa atividade. A primeira prova de fogo foi logo em maio de 71, a participação na manifestação, era o ano dos 50 anos do partido, o 1º de maio. Pronto, e recordo-me da violência da PIDE, e tenho como elemento marcante o Jorge “Pisco”, que estava a levar porrada de um PIDE com uma pistola, e eu fui a correr dei um pontapé no rabo do PIDE, pus-me a fugir, enfim, com uma intensidade, não é [risos] o gajo olhou, tentou mas não, não largou o Jorge, mas apesar de tudo, preparava-se para me atingir, mas, pronto, foi o que me recordo dessa primeira ação, foi uma coisa, pronto, algo do qual não tinha a mínima ideia. Passei a intervir no quadro do Movimento de Juventude Trabalhadora, um movimento de características legais e semilegais, pronto, que desenvolveu uma atividade direcionada para os problemas dos jovens trabalhadores, muito na componente também do convívio, principalmente, para os jovens trabalhadores nas empresas, nas escolas técnicas, a nível sindical, na localidade, para referir aí. No que respeita à empresa, o que resultou logo de imediato era o seguinte, já havia na altura duas horas de dispensa para os trabalhadores estudantes poderem estudar, porque eu estava no público, eu tinha que ir depois no autocarro para ir para Espinho, ora um gajo tinha que se levantar às 6h30 e depois chegava a casa à meia-noite, e aos fins de semana, pronto… entretanto tinham sido retiradas essas duas horas, tivemos uma reunião de cinco jovens, faz de conta que era uma reunião do MJT, mas enfim, encontramo-nos num café, como é que iríamos ver e tal, procurámos movimentarmo-nos, pressionar e etc, até que culminou numa reunião na cantina com o chefe de serviço de pessoal, com dezenas de jovens, pronto, e as duas horas foram conseguidas, a recuperação das duas horas para estudarmos à noite. Uma outra experiência que tenho ainda ali na [impercetível] foi, eles atribuíam dois prémios aos melhores aprendizes, o primeiro era uma bicicleta e o segundo era uma caneta, mas eu já na altura referi ao meu encarregado “que raio, eu estou a fazer o mesmo trabalho que os outros todos fazem e ganho muito, muito menos e tal, e é uma insatisfação” já se ia, a partir daí já se ia evoluindo na compreensão de alguns aspectos, então não fui receber, tive, fui o segundo melhor aprendiz, não fui receber a caneta.
Eu tenho a ideia que foi depois de ser preso, a 15 de Abril, nem sei se foi antes, mas depois eles chamaram-me, porque é que eu não tinha recebido, e aí o que me recordo, acho que foi antes… foi não ter ainda a sagacidade de fundamentar “ah, não tive tempo e tal e tal”, ou seja, na altura não tive ainda a argumentação e a capacidade de dizer “não, porque isto é injusto, quer dizer, dão-me uma caneta que vale X e no entanto não sou aumentado, porque deveria ganhar mais e etc. etc.” não refiro esse aspecto, mas foi essa a razão, mas não tinha ainda, ainda está muito no início das coisas, mas esses dois elementos eu recordo.
Na escola de Espinho, então foi uma atividade interessante, a gente criou uma comissão de jovens, editamos, com a ajuda de malta do Porto, na altura o Nelson Bertini, um boletim, de trabalhadores estudantes, tivemos uma reunião à volta de 50 jovens trabalhadores, tivemos relativamente aos problemas, não é, que depois culminou numa reunião com o diretor, muito ameaçadora, então é à volta, a primeira reunião com todos, eram uns 60, com o diretor acho que foram uns 50, tenho a ideia, pronto, e as questões principais eram simples, mas eram aquelas, era, o rádio tinha sido pago pelos trabalhadores estudantes, não funcionava, precisávamos pô-lo a funcionar, não tínhamos acesso à biblioteca, precisávamos ter acesso à biblioteca, passávamos a ter, estavam umas obrazitas para estacionar as bicicletas, e o raio das obras não andavam, e a gente queria, o acesso às oficinas também, lembro-me assim… porque não tenho cópia do boletim, mas tenho todo o texto do boletim, coisas simples, mas que íamos unindo, íamos procurando elevar o nível de consciência, de unidade daquele pessoal, que lutando pela defesa dos seus interesses básicos, muito elementares, mas objetivamente dirigia-se contra o fascismo, pela liberdade e a democracia, porque a maldade era sempre condicionada. Na verdade, nessa reunião com o diretor, ele ameaçou e tal, mas a verdade é que deu resposta a algumas questões, alguns aspectos.
Aqui nesta localidade, nesse período de 18 meses, criámos aqui um pequeno núcleo de jovens e tal, alguns trabalhadores estudantes, outros também, fizemos alguns convívios… no 28 de março, dia da juventude, ali no campo de futebol, fizemos um grande corta-mato, com convívio, a malta… o pessoal do Porto que trazia, vinha declamar poemas, nós estávamos longe disso, uma viola, tocar umas coisas, e fizemos em duas garagens, com gira-discos também, a mesma coisa. Depois a PIDE, mais tarde, os informadores, viemos a saber que tinham aqui vários informadores, espalhou que… eram bailes de nudismo, não é, que resultou, que chegando ao meu pai, ele foi muito violento com a minha irmã Rosa, “a minha filha anda ali e tal tal” e, foi assim muito violento… mas fizemos assim várias iniciativas, a nível do convívio, e depois não só, depois quando foi a preparação do célebre 15 de Abril de 72, alguma dessa malta, depois fizeram as pichagens, nas coisas e tal… pronto, aí a nível local, e depois a nível sindical, lembro-me de participar nos metalúrgicos, que já tinham uma direção de trabalhadores de confiança, a gente tinha uma direção, que era da confiança dos trabalhadores, tinha sido eleita, não é, criou-se uma comissão de jovens, portanto, eu participei em duas reuniões, lembro-me assim de um documento, ali não teria participado muito mais, depois participava naturalmente nas tarefas gerais de agitação, e era num elemento essencial, que era, para reportar para o partido e… reportei dois elementos, particularmente, um deles, depois veio a ser funcionário do partido, hoje é diretor de um jornal [impercetível]. Pronto, foi um período de uma intensa atividade, que em 71, portanto, logo no início do ano de 71, em julho de 70 desse ano, já um outro elemento, no segundo andar do autocarro, Lordelo-Campanhã, propõe-me ser membro do PCP, eu… aceitei, ou seja, estava amadurecido, tinham amadurecido as condições para que eu fosse sucessivamente aceitando as propostas, que eram dadas no sentido de uma maior responsabilidade a esse nível, não é. Passei a ter ligação com a estrutura clandestina do partido, por via do Ernesto Afonso, que era na altura um funcionário, e poucos meses depois, é-me colocado à questão de poder ser, passar à clandestinidade… portanto, eu não respondia positivamente, referia que era o mais velho de oito irmãos, a saída de casa era muito complexo para a minha família, não é, fui mantendo… e havia um outro elemento, no quadro, enquanto comecei a estudar à noite, de uma consciência política quase inexistente, não é, e tudo isso, eu fui formulando as perspectivas do futuro de um jovem naquela altura, e qual era, e que me agarrei com força? Acabava o curso, os 5 anos, ia para o Instituto Superior Técnico, podia-se adiar a ida para a tropa, não é, depois ia para o furriel, era aquela ideia que havia, não é, já ia como furriel e tal, tal, tal, depois continuaria… e isso envolvia-me. Ora, ter a perspectiva de colocar de parte todo esse projeto, numa determinada fase, eu agarrei, foi um processo muito complexo, e devo ao meu carácter, não à consciência política e ideológica, mas ao meu carácter, ter-me aguentado, porque em determinada altura, eu também deveria referir isso, porque é a segunda vez que refiro, a determinada altura… “epá eu não vou ao encontro revolucionário, eu vou faltar, mas não pode ser, eu não posso faltar, não dá para faltar, tenho que ir”, portanto, aspectos já de carácter que, nesse caso, me acompanharam sempre, não é, e foi esse elemento que me levou a ter aguentado, e depois fui vencendo, embora a resposta ia dando… sempre a mesma. Portanto, as coisas depois evoluíram, até que se dá a manifestação de 15 de Abril, uma manifestação intensamente participada, com formas criativas de, portanto, divulgação, primeiramente, com as que vocês já ouviram falar, as caixas com os petardos, eu tive a responsabilidade de colocar três, a mais complexa do qual foi na estação de São Bento, à direita, na rua que sobe, colocar lá uma às 6 horas, mesmo que era às 6 horas, e aqui surgiu, aliás, um assunto muito, pronto, que ficou muito marcado… eu subi, logo na primeira porta, à direita, aquelas portas grandes, já estavam abertas, das habitações, agora até é um bocado diferente, entrei para dentro e acendi… aquilo, portanto, é uma caixinha, uma bomba de foguete, e depois umas centenas, umas quinhentas tarjetas em papel bíblia, fininho… e de facto era espetacular, era uma ação, bastante espetacular, ponho debaixo do casaco, venho para fora e está um PSP, ao lado… e então ali foi uns segundos, uma trama do diabo, o que é que eu ia fazer? Eu não tinha a noção, o pessoal tinha esse cálculo, eu não tinha a noção do tempo que o rastilho demorava, sabia que era um rastilho, que a malta referia, parecia que estava a tremelicar, quer dizer, era mais lento, tinha, mas pronto, não tinha essa noção. Até que, por fim, disse “olha que se lixe, agora se for preso que se lixe” eu lembro-me que acho que disse “se for preso que se foda” era assim… e pousei aquilo quase junto ao PSP e psst para a Batalha, não é, aquela rua à direita, esquece-me o nome dela, pode-se ver, não é, que sobe, em forma muito acentuada, e segue para a Batalha, pronto. Depois cometi um outro erro também… que era, tinha duas, para colocar duas caixas na Electrocerâmica do Candal em Vila Nova de Gaia, pronto, e fui com outro colega, mas esse colega à segunda, pôs-se a mexer, e eu, pronto, acendi a primeira e a segunda, então fui colocá-la no sítio que não devia ter feito, porque estava previsto uma outra brigada lá colocar, que foi na EFI, na Eduardo Ferreirinha & Irmão, na casa de banho, tem a Maternidade, a EFI era ali à direita, depois tem lá uma casa de banho, agora está tapada, é meia subterrânea e coloquei lá aquilo, e… dei muito nas vistas, porque eu ficava assim muito decorado nestas coisas, e os colegas iam “ó… isto foste tu e tal” né, depois a PSP a levantar aquilo… Pronto, mas nessa manifestação do 15 de abril, objeto de uma grande repressão, portanto, no qual as forças repressivas mobilizaram tudo, né, a Guarda Fiscal, a PSP, a Polícia Marítima, a Legião, foi tudo, portanto, com uma violência, que aqui não procuro tanto aprofundar, mas foi nesse quadro que foram presos à volta de 50 pessoas, quase malta jovem, a malta jovem tinha um papel do arco da velha, dos quais 11 depois foram entregues à PIDE.
Aqui assim, nesta ação, na atividade violenta, de facto, gostaria de relevar o papel que sempre teve a juventude, e a juventude trabalhadora também. Aliás, vocês vão ver depois no documento que eu deixei a atividade, porque continua a ser subestimada com um conjunto complexo de razões, mas isto não importa, é a questão da juventude, da organização e da luta da juventude trabalhadora. Naturalmente, que o impacto era maior da juventude estudantil e foi real a sua participação e muito importante, a juventude trabalhadora estava dispersa até, não há uma empresa que tenha 3 mil jovens trabalhadores, como têm as universidades, etc, etc, quer dizer, uma atividade, mas que não era de menos subestimável. Aliás, o trabalho do MJT tem um grande mérito, ter construído um alforje de futuros quadros para… para o PCP, nesse caso, para a estrutura clandestina, muitos, portanto, podíamos aqui citar já uns 12 ou 15, naquele ano que foi, mercê disso.
Pronto, na prisão, obviamente, ali no quadro da manifestação, apenas fui objeto de um ferimento no lábio, o PIDE, quando agarrou, deu-me com a pistola, com a coronha da pistola, mas a razão principal foi que também ia com outro colega e construímos uma brigada para lançar tarjetas ao ar, e eu tinha que lançar uma faixa e eu acho que só mantive a faixa para aí uns segundos, quando saí deitei logo para o chão, porque na PIDE, nem o Rosa Casaco, que foi quem entregou, nem outros, nunca colocaram isso, mas depois no casaco coloquei as minhas e o outro grupo dos papéis, das tarjetas, que era o que estava lá e tudo isso, e com os objetivos, não é, debaixo do casaco, e é claro, que era, foi demasiado visível e eles apanharam, não é? Portanto, ali, naturalmente, na prisão, vária malta coloca “pá, a malta foi torturada e tal”, pá, não, por um contexto determinado e concreto. Primeiro, foi um movimento, um impacto que teve a ação, um movimento de solidariedade muito grande, eu acho que um ou dois dias depois foi um telegrama com 1200 assinaturas, que é muito significativo recolher naquele quadro, naquele período, um número tão grande de assinaturas, para o Marcelo Caetano, protestando contra a violência que foi utilizada e exigindo a libertação dos presos.
Depois, internacionalmente, também houve ações de solidariedade e isso dificultou que a PIDE utilizasse o processo de tortura, para além do condicionamento da pressão brutal, do isolamento, porque eu acabei por ser isolado… três… três dias, lá naquelas, lá no fundo da PIDE, pronto, e estivemos lá até o dia 2, então, dia 2. Estivemos todos num grande salão, num grande espaço, espaço, ao menos depois, naturalmente, fomos para celas, distribuídas, alguns de nós, por celas diversas, conforme o que eles consideravam o maior perigo.
Ali, recordo-me, o Rosa Casaco, há existências dele, duas situações, mas há uma delas que eu tenho que utilizar um termo, que não sei se deve ser utilizado ou não… primeira razão “Como é? Como é que foi? Quem eram as pessoas que atiraram os papéis? Quem eram? E tal, tal, tal” e então eu inventei uma história, tinha a noção antes, tinha noções poucas, já tinha lido, já tinha lido o livro “Se fores preso, camarada”, mas, naquele caso, tinha uma noção diferente, mas, o que eu dissesse, tinha que manter “Olhe, eu vim ao Porto, portanto, vi lá muita gente, juntei-me, e depois veio uma pessoa e… o fulano, e, olha, pega lá estes papéis e distribui, tal, tal” e o gajo disse, então desculpe agora o termo, mas foi mesmo assim, o Rosa Casaco “porra, se te pusessem uma piça na mão também aceitavas” e tal, não é… depois [impercetível], mas foi, foi assim, não é? Claro que, nem eu enfiava o chapéu, nem ele mo enfiava, mas, o que eu tinha que manter era sempre esta versão, a partir daí, não é? Depois, o outro aspecto, lembro-me de falar em operários, ou não sei o quê “operários! operários!” e tal, tal, nem eu próprio tinha bem até o significado ainda na altura, estava no início, não é? Mas, ele, naturalmente, já considerava…, inseria-se na terminologia marxista, não é, sem dizer, naturalmente, então, foi um dos momentos em que o gajo gritou e tal, tal… e eu até fiquei, até fiquei assim, depois é que acabei por perceber tudo, não é, perceber melhor, não é, pronto, depois, saímos.
Agora, nesta manifestação, uma nota que às vezes se coloca, a malta ia com um medo brutal, não é, mas ia determinada, mas ia com muito medo, o coração devia ser… como quando um gajo que foi à lua, pá, que chegou aos 130, 120 mil, não é, pronto, era evidente, mas, aí, a malta, apesar dessa situação… e sabia, não é… porque, como é que foi? Eu estava lá, não é, eu estava junto ao hotel, a malta principal que fazia parte do grupo de arranque que estava junto ao hotel, aquele hotel cá em baixo, não é, pá, quando se deu a palavra de ordem, uma série de gajos pegavam as faixas, que era a Legião, a PIDE, as forças repressivas e eram coisas diferentes, cada grupo, não é… e começavam logo, antes, começavam logo “olha a polícia” e tal, tal… para procurar dispersar, né, a gente via os gajos “olha a polícia” e tal e viemos a saber que eram os gajos da PIDE, eram os gajos das forças repressivas, né? Pronto… tiraram cassetetes e houve porrada ali fortemente, mesmo assim, a malta ainda conseguiu, tirou um breve arranque, mas era muita gente dispersa.
Ora bem, no que respeita ao percurso seguinte, dá-se depois então… uma terceira fase, talvez a mais importante do percurso, que é… novamente é colocada a questão. Bem e eu sinceramente quando fui preso, eu comecei a pensar “eu vou dar resposta positiva”, mas estava com muitas hesitações e posso dizer que as hesitações foram vencidas num célebre encontro entre… com o Ernesto e o Zé Carlos de Almeida, que é um dos responsáveis, debaixo da ponte da Arrábida, pronto, epá, e depois foi desta forma muito simples “tá bem, mas como isso são milhares de famílias, a gente tá a lutar para acabar com isso, para alterar esta situação”, que eram as questões que eu colocava, como era a minha família, não é, com tantas dificuldades financeiras, as minhas irmãs já trabalhavam… elas começaram a trabalhar cedo, mas aquilo ganhava-se muito pouco então nos… nos Arraiolos era uma desgraça, os tapetes de Arraiolos tinham uma expressão muito grande, nesta zona de São Félix, Serzedo e Arcozelo… ainda fiz uma trabalho sobre história sobre isso, porquê que começou e tal… pronto, e aí, assim, ficou assente então, pronto, assente… entrar… ser funcionário clandestino do partido. A partir daí a orientação geral é para reduzir a atividade, nesses dois meses ou três meses de preparação, não é, porque a PIDE depois mantinha o contacto. De dar nota que nesta ação… junto dos meus pais, o meu pai, particularmente, a Comissão Nacional de Construção Civil, tinha um papel importante, portanto, prestava apoio material e jurídico, não é, portanto… e prestou apoio mesmo material, portanto, pelo período em que eu estive preso… pronto, foi também um momento a relevar, acho que comecei a conhecer melhor a Comissão independentemente de ser à base desse papel que me levou ao contacto, né, procurar o contacto.
Bom, e aqui entra-se numa outra fase, outra fase que é o período então, como é que foi? Como referi, do conjunto de malta que passou nesse período a estruturas clandestinas, uns passaram diretamente, outros tiveram um… uma primeira passagem pela antiga União Soviética, no conhecimento da realidade, nas ações de formação política e ideológica, na área da Filosofia, da História e etc, não é. E aí há um momento, que também gostaria de precisar, porque, digamos, já está inserido… considera-se que, a partir daí, já sou funcionário do partido, portanto, estava inserido no conteúdo que vocês referiram de como é que foi a vida na clandestinidade, que foi a passagem da fronteira. Menos conhecida, ao longo dos anos, existia um aparelho de fronteira do partido, que teve uma única baixa, que foi o Francisco Miguel, que foi preso, o resto… é um aparelho que tratava da passagem de dezenas, centenas de quadros clandestinos para o estrangeiro e de regresso ao país, existiam quadros responsáveis, não é, o Francisco Miguel, o Manel Silva, foram vários quadros… depois num outro setor que era a fabricação dos documentos, no meu passaporte chamava-me Leonel Porfírio das Neves, tinha 28 anos, tinha ali 19, tinha sido criado na margem sul e, provavelmente, pronto, no qual houve vários camaradas… a Margarida Tengarrinha, o Zé Dias Coelho e muitos outros passaram, não é, por esse processo de construção de documentos que permitisse, não é… e aquilo pelo menos funcionou nas fronteiras que passei. Ora bem, então como é que funcionou? Aquilo marcou-se para início de agosto um encontro com o Ernesto Afonso, que me apresentou ao camarada que se chamava… soube depois ao 25 de abril, Manel da Silva que… conduziu a Chaves, conduziu a Chaves, portanto, ele ia atrás, naturalmente, se houvesse problemas, havia menos possibilidades de eu ser… em Vila Real passagem, paragem e… em… em Chaves, apresentar-me ao “Lambaça” lá do sítio, o “Lambança” é o nome que é atribuído no livro de Manuel Tiago, Álvaro Cunhal, que é o passador, não é, do “Cinco dias, cinco noites”, “Cinco dias, cinco noites”, de facto… neste… em todo o período deste funcionamento, desta história, portanto, o partido tinha muitas ligações com as populações, com os passadores, com tudo isso, mantinha ligações, contactos, não é… eu não sei se o homem saberia ao certo o que é que faria, mas podia ter a noção de que era… que era contra pagamento, não é, pagamento. Pronto, ali era-nos apresentado o passador, um camarada provavelmente faria as contas com ele, o que lhe dava ou não, o passador depois levava-nos à fronteira e atravessar a fronteira… lembro-me que foi um dia de muito calor e ele dizia “estejam à vontade que aqui ninguém passa”, não é, em determinada altura já estávamos do lado de Espanha, mas não havia nada que referisse, ele dizia “olhe já estamos em Espanha”, não havia marcos, não havia nada, não é, aquilo era calcorrear montes e serras e etc. não é. Depois do lado de lá havia um carro à espera e depois iam-nos colocar em Ourense, na estação de Ourense, íamos de comboio até San Sebastian, em San Sebastian tínhamos que sair, dar duas voltas para cortar, para quebrar, portanto, dali passamos de autocarro a fronteira para a estação de Baiona, em França, estamos já em França, portanto, o perigo mais difícil que era atravessar os dois países fascistas, não é, portanto, tinha passado, não é, pronto. Em França íamos a chegar a [impercetível], era uma estação de França que saíamos, não é, depois tínhamos indicações para… era-nos fornecida uma credencial para a gente estar com um camarada, portanto, a credencial passava por uma revista, de um lado visível e depois uma frase que diríamos, a pessoa diria outra frase e então estaria estabelecido. Agora, o objetivo era chegar à União Soviética, mas só tínhamos informação até Paris, portanto, não sabíamos nada de como ia ser a partir daí, percebe-se, pelas medidas conspiratórias, não é, portanto… ou seja, a informação era dada em duas fases, só em Paris é que depois a informação ia ser dada sobre como as coisas decorreriam até chegar à União Soviética. Da primeira vez erámos muitos, éramos vários né, tivemos duas semanas… que eu fui uma segunda vez, aí só foi dois dias depois, mas é… a primeira questão foi então entrar em contacto com um camarada, que era o… não sei se era o… o Sérgio Vilarigues, foi na segunda volta, era um bastante conhecido, era o corticeiro, da direção do partido, um quadro destacado… pronto, funcionou junto ao Louvre, acho que era junto ao Louvre, não é, depois há aqueles 15 dias de conhecer França e, naquela altura com o tipo de formação e de valores que a gente tinha, a primeira coisa era ir ao Pigalle, não é, que depois mais tarde a perceber que, de facto, aquilo era uma coisa desgraçada, portanto, em termos… aquela zona… de prostituição, não é, mas claro para nós que vínhamos da provincia e à luz da ruralidade, das zonas rurais [risos] aquilo era assim uma coisa… pronto, e então daí como é que as coisas funcionavam? Era… ah, era-nos fornecido dinheiro, em várias moedas, francos, francos suíços, dólares e etc, não é… e uma nota também, e se alguma coisa falhasse até França? Por exemplo, em França a malta não tinha o mínimo, eu tinha o mínimo… tudo… para dormir era assim [faz gestos com as mãos] eu não sabia o mínimo de palavras em francês, em inglês, o quer que seja, era as coisas mais básicas, mas lá nos desenrascamos com umas casitas e tal... mas se falhasse, epá, pelo menos, no nosso caso, não nos era dado qualquer Plano B, portanto… claro, a malta… em último caso [impercetível], isso era um grande risco, porque a PIDE tinha uma presença acentuada e vigiava tudo aquilo e tal, tal… mas a ideia era que para trás nunca viríamos, a informação que depois que fiquei na altura, não é, admito que… fosse já uma fase em que houvesse Plano B, pronto.
Nessa primeira altura fui então de comboio até Berna, Suíça, até Berna não, até outra cidade Suíça, não sei se era Zurique, lembro-me… depois de… de avião até Praga… e depois de Praga, ficamos lá, levaram-nos a conhecer Budapeste, fiquei a conhecer porque é que era uma parte Buda, e outra Pest e tal… que era num hotel do partido, que era uma coisa que para nós, pessoas simples, me surpreendeu negativamente foi… o tipo de artefactos… aquilo talheres… eu cheguei a contar [risos] e nem sabia utilizar aquilo, era uma série de talheres, eram coisas do maior luxo e a malta… aliás, depois mais tarde vim até a questionar mais, mas ali ficou uma dúvida, uma interrogação, “epá isto assim, isto caraças…” tal, tal… pronto e há a chegada a Moscovo. Houve ali um percalço, que foi, houve uma deficiência e não tava ali ninguém à nossa espera, portanto, a gente não sabia de inglês, não sabia francês, não sabia russo nem nada, lá conseguimos mais ou menos explicar, íamos para a escola e dizíamos “shkola komsomol”... “shkola komsomol”... pronto, eles então colocaram-nos na sala dos Vip’s, percebemos que estariam a tratar, não é, portanto, contataram e depois então veio uma tradutora espanhola que nos conduziu… à shkola komsomol. Quando digo nós, neste caso, eu fui com um outro primo meu, que morreu na União Soviética, num acidente, o Américo, não é, e eu acho que a partir de Paris já fui sozinho, penso eu, pronto… e depois a partir… essa situação se regulariza… depois o camarada [impercetível] estava na União Soviética e fazia a ligação ao pessoal e tal. Pronto, a escola, epá, para mim foi de uma importância brutal, porquê? Do ponto de vista político e ideológico era o básico, já estava envolvido na luta, tinha a consciência da necessidade de derrubar o fascismo e lutar pela democracia, pela liberdade e percebia tudo isso, mas do ponto de vista do marxismo, do ponto de vista da teoria… era insuficiente e ali, pá, foi importante do ponto de vista das minhas convicções, por duas razões: uma, era… e esta não sei se pesou mais se pesou menos… que os aspetos de formação e estudo e tal… que foi o facto de estarem jovens de cerca de 80 países, eu acho que eram cerca de 80 países, quase de todos os continentes, das mais diferentes culturas, religiões e tudo isso, era aquelas indianas, que eu tinha curiosidade, com aquela coisinha vermelha, não é, e com aquela forma… era os árabes com aquilo… o vestimento determinado… da América Latina estavam quase todos os países, exceto Estados Unidos e Canadá, penso eu, estava México, Peru, Bolívia, Equador, toda essa… da Nicarágua era um índio, da Nicarágua… do Chile era uma delegação, que era do… do Mapru que era um movimento operário camponês, que era do partido socialista e era do partido comunista, na altura, equacionava-se, não é, por causa da revolução ter a possibilidade de, depois foram quase todos [impercetível], quando a malta saiu em Agosto, depois do golpe do Chile, portanto… ora, isso deu-me… ou seja, com essa situação de formações culturais, culturas, tradições diferentes, mas com um objetivo comum e foi isso que me deu muita força também… e convicção que era a transformação da sociedade, portanto, lutar por uma sociedade diferente, o que tínhamos em comum era isso, não é… há inclusive malta de alguns movimentos de libertação, pronto, que tavam lá, suponho que eram da Guiné… pá, malta, dizia o professor “isto é muito difícil, o pessoal da Guiné perceberem que a terra é redonda, não é, é muito difícil perceberem”, porque era malta que andava de “canhotas” [metralhadoras] na mão, mas do ponto de vista da formação, enfim, era formação elementar, básica… de cultura geral e tudo isso, mas pronto, mas estavam… e pronto foi depois mais uma…
Éramos quatro nesta escola, as regras de clandestinidade mantinham-se, eu era o Fernando, portanto, a União Soviética era um país fechado, havia os serviços de informação dos diferentes países e a malta contou que algumas delegações chegaram aos países e foram liquidadas, o caso de uma africana, como referiram, que foram apanhados e logo mortos, na América Latina também, porque… aquela malta, pá… nós éramos três países de ditaduras na Europa, era a Grécia, Espanha e nós… mas as medidas conspirativas era praticamente só nós, não se podia tirar fotografias, não sermos fotografados, obviamente, tal como no trabalho clandestino, nunca podia saber de onde é que tu eras, de onde é que vinhas, de onde era a família, depois do 25 de abril fiquei a saber, não, é, claro, agora no caso de haver uma falha em face da estrutura, a malta ser mais difícil de denunciar, mas lá mantinha-se esse aspeto, portanto, o partido era o partido que estava há mais tempo, mais anos internacionalmente na clandestinidade e participava até em iniciativas, o [impercetível] e outros, em reuniões com outros partidos que vinham de situações de ditadura para discutir a experiência que o partido tinha de regras na clandestinidade… mas, por exemplo, os gregos e mesmo os espanhóis… ó, o pior tivémos uma reunião com uns brasileiros, era um casal, não sei se era casal… maritalmente falando, mas era um rapaz e uma rapariga, que vinham da ditadura brasileira e eles não percebiam, não compreendiam… contestavam os métodos que a gente tinha de… de… pronto, para… as regras conspiratórias, não percebiam, não é… pronto, e mesmo os outros gregos e tal, tiravam fotografias do que quer que seja e tal e tal… não era difícil que depois chegasse aos serviços secretos dos seus países, muitas vezes, não é, portanto, também havia lá jovens, provavelmente, em tanta gente que… pronto, mas foi uma experiência interessante.
Regresso a Portugal, depois… epá, segue-se, à similitude de lá, portanto, há mesmo aspetos que eu me esqueci, porquê? Porque a 18 de abril… ah depois fui colocado em Lisboa, fiz um coletivo com o Martins, ele já estava com o trabalho da juventude trabalhadora, não é, portanto ele foi… na altura, quando o… Horácio Rufino, que era o principal responsável pela juventude trabalhadora, foi preso, a gente fazia a ligação aos que estavam no MJT, né, para dinamizar e impulsionar e tal… o Nelson Bertini foi colocado em Setúbal para… chegou o reparo que tinha sido preso também, portanto, e eu fui reforçar o trabalho da juventude, ligação aos jovens com o… Martins, fiquei com a linha de Sintra, numa zona de Lisboa, pronto e… fazia a ligação aos jovens com… o partido.
Agora, qual é que foi assim outro grupo de questões que surgiram?
A primeira questão foi encontrar casa, pronto, e aí foi uma história do arco da velha, portanto, primeiro ficamos em contacto… o primeiro contacto foi com o Carlos Brito, que era um dos responsáveis da [impercetível], depois passou para um outro camarada e… nós éramos num aspeto muito jovens e a primeira zona… eram zonas específicas, não podíamos sair daquelas, não é, era a zona da Pontinha, fica ali em Odivelas, Amadora e essa zona… epá e não conseguimos, pronto, a malta não podia dar fiador… os nomes não eram reais… portanto, havia assim uma certa confiança que se estabelecia, depois o Carlos Brito “pá vocês têm que comprar uma aliança, têm que comprar uma aliança para ajudar”, pronto lá fomos, compramos uma aliança, tínhamos dinheiro e fomos lá comprar uma aliança, depois então… ok, aquilo falhou pá não conseguimos, fomos para uma zona da Amadora, Amadora conseguimos, não me esquece um fulano que morava na rua da… da… morava não, tinha escritório na Avenida da Liberdade, não sei se era advogado se não era, a minha companheira diz que parece que era advogado e tal… pronto, tínhamos a casa, compramos mobília. O camarada que estava em ligação connosco em termos da [impercetível], que eu… como é que se chama… o Zeferino, não é Zeferino, é… ai esquece-me agora o nome do… do camarada… que foi da associação de estudantes da faculdade de engenharia… e tudo isso, foi preso! No momento em que a gente já tinha comprado as coisas, não estava lá, pronto, teve de voltar tudo ao zero. Tenho ideia que a mobília ainda conseguimos vender por algum preço, a casa telefonamos ao fulano… não me recordo se ficamos com o sinal ou sem sinal… portanto, falhou.
Entrevistadora - Mas foste com quem? Foste… eras tu e….
Domingos Oliveira - E a Lurdes! Não, eu e a Lurdes, estamos a falar… porque depois eu chego, exatamente, não referi porque não tenho assim, às vezes, apontamentos… não dá para… chego da URSS, poucos dias antes do golpe fascista do Chile, por isso, é que eu digo dos vinte e tal elementos, a informação que eu tive é que quase todos tinham sido assassinados… pronto, vou para um quarto de um amigo do partido em Queluz, depois venho a Ovar ter um encontro com a Lurdes, a minha namorada, depois marcamos para… não sei se é em setembro ou outubro, porque ela vai ter comigo e aí fomos para um quarto junto ao Marquês de Pombal, uma situação, mas depois aquilo ficámos a saber que alugaram a prostitutas, também era uma coisa assim um bocado lixada e depois então procurou-se a casa. Pronto, e é nesse processo… na primeira falhou, a segunda não falhou, mas tivemos que deixar tudo, não havia hipótese… ah João Resende, João Resende foi o presidente da associação de estudantes de engenharia e era funcionário do partido e depois digamos… quando foi preso, ficou novamente o Carlos Brito a ficar em ligação connosco, mas era com quem reunimos, não é… depois fomos atribuídos a uma nova zona, que era Carnaxide e aí seguimos, então… uma casa em Carnaxide cujo… nome… deixa ver se tenho aqui… o nome da… eu era o Manuel Rodrigues Costa e a Lurdes era a Maria Albertina Costa, eram os nomes com quem a gente ficou, aí eu fiquei com os papéis da eletricidade, da água e tal, pronto, e logo a seguir ao 25 de abril, portanto, como era das casas… suponho, que a malta referia, que era das que tinha das rendas mais elevadas, o partido não tinha possibilidade e saímos logo… e pronto. Ora bem, esta foi a questão das casas, foi um processo que não foi fácil [risos], característico, não é? Depois o resto… naturalmente, a Lurdes tinha a defesa da casa, não é, aquelas questões que vocês também já saberão… a malta saía e punha um sinal para entrar, tal, tal… também não será novidade, não é. Ali há dois aspetos, que foi por um curto período de tempo, não é, a gente foi para a casa em janeiro de 74, portanto, tivemos ainda em quartos e tal, tal, tal… há um problema, há uma ocasião que eu vinha a pé de Queluz para Lisboa para um encontro e vim pela estrada de Benfica, onde ficava a escola técnica da PIDE, que tinha sido objeto de uma ação da ARA, de uma ação tripla, foi nesse dia, foi em… em… na escola e foram em mais dois sítios, pá e… e o que é que sucede? Depois fui severamente criticado “epá aquilo está super vigiado e vais passar por aí” e tal, tal, tal… pronto, fiquei, lembro-me disso. Um outro assunto que me recordo, foi num autocarro, junto do arquivo de identificação, vinha com um saco de plástico, uma… uma… como é que se chamava, para imprimir… que raio… vou ter que ler o documento para depois vos dizer, desse aspeto esquece-me… para imprimir documentos, portanto, aquilo tinha a redezinha e… pronto, e aquilo, o saco rebenta-me e cai tudo, portanto, foi um momento nada fácil, não houve problemas cá fora, se houvesse alguém, gente que visse sabia que aquilo obviamente era [risos], para o trabalho clandestino... [corte] era uma [impercetível] de stencil, daqueles simples que a malta fazia, que imprimia os documentos e tal. Pronto, o outro episódio foi mais complicado, que obrigou a mudar de zona… aparece um fulano a determinada altura “ó Domingos por aqui?” tal, tal, tal… e eu “mas eu não conheço, nada”, “sou o fulano tal, tal”, “ah não conheço” e mantive sempre isso e tive que me afastar, é claro que foi suficiente para depois, com o Carlos Brito, a malta ver a mudança de zona, porque podia ser perigoso manter a mesma zona e tal, mas foi um caso caricato, nunca soube ao certo até o nome desse elemento, gostava de ter estado com ele depois… [risos] nunca o vi, a malta também depois do 25 de abril era trabalhar dia e noite, não é, no período da revolução. Portanto, a clandestinidade foi… curta, deu para ter a perceção de… de vários aspetos, naturalmente, que não passei aquilo que muitos outros camaradas antes passaram, mas recordo-me… uma das coisas interessantes era… durante três meses, o partido criou um organismo de ajuda à juventude trabalhadora, que era gerida pelo Carlos Costa, aqui no Porto, e então... eu participei em duas outras reuniões aqui no Porto, em que vinha naturalmente o Nelson, com o Ernesto, com o… Avelino, que estava comigo, era não sei mais quem… pá e eram reuniões, eram reuniões que a malta chegava ao Porto, pronto, uma credencial também, depois os olhos vendados… soube depois do 25 que era para ali para a zona ali da… uma zona próxima… pronto, mas depois aquele período era interessantíssimo tendo em conta a troca de experiências fora das reuniões propriamente ditas, não é, e o Carlos Costa era um animador também do arco da velha, corria-se experiências e ia-se contando, tínhamos um ponto também sempre para o reporte da polícia, daquele documentozinho “Se fores preso, camarada”, não é, e eram… documentos importantes, aliás, tenho os documentos de duas das reuniões que participei, fez-se um documento de conclusões… um memorando, memorando, que consegui manter, o que é interessante também, também feito de forma… também se caísse nas mãos da PIDE pudesse não colocar em perigo, não é, esse foi um momento muito interessante e… digamos, o Movimento da Juventude Trabalhadora estava já a ter uma expressão importante, fantástica, né e nesse aspeto… Pronto, assim, em termos do período da clandestinidade… admito que a situação era mais ingrata para as mulheres, que ficavam a tomar conta da casa, não é, no caso da Lurdes, eu digo, “olha, felizmente veio o 25 de abril, veio rápido”, porque não era fácil, mas era uma tarefa essencial, era uma tarefa necessária mesmo, imprescindivel mesmo, mas não era fácil, suponho que em algumas situações algumas companheiras passaram a ter atividades também de organização, não é, mas… se fosse assim até havia pouca compreensão e etc. pá… pronto.
Entrevistadora - A Lurdes já era sua namorada, antes?
Domingos Oliveira - Sim, nesse caso, já era minha namorada, já não estávamos naquela situação em que a malta… o caso da Rosa, minha irmã e etc…. também estudava na escola à noite, na escola à noite, estudava… porque era ali de Espinho, próxima, aqui na aldeia não havia ninguém, não é, nem sequer se concebia que uma mulher saísse à noite, uma rapariga saísse para ir estudar à noite, não é… e daqui da aldeia éramos três, três não, éramos um, dois, três, eu era o quarto e o único de família mais pobre era eu, o resto era malta que… pá, não sei isto agora tem que ser estruturado, não é, ou seja, conforme… e ver que questões é que vocês acham.
Há um aspeto que eu gostava de referir em relação à infância, que foi muito importante. Em 1959, constituiu-se o CRP, Centro Recreativo e Popular, que tem ali a sede, um rancho, chamado rancho, epá foi um avanço histórico… o que era a vida das pessoas até essa altura? Nessa altura, já muitas pessoas, muita gente tinha deixado o campo, eram… na construção civil, trabalhavam como serralheiros, marceneiros, carpinteiros… portanto, digamos, que tempos livres é que os trabalhadores… sem falar especificamente nas jovens que vai ser o elemento mais importante, como é o caso das minhas irmãs… a malta vinha do trabalho, ficava pela tasca, classicamente, voltava ou não, os fins de semana era na tasca, depois era o futebol ao domingo, que eu cheguei a ir algumas vezes, porque havia sempre porrada e gostava de ver [risos], pronto, é por isso, depois era… as atividades ainda de caráter profano… o São João, algumas excursões, mas depois era a atividade religiosa, que era a mais vasta, que era as festas religiosas, a de São Sebastião, da Nossa Senhora das Necessidades, depois era tudo o que havia em volta das comunhões, dos batizados… as comunhões é porreiro, porque foi um momento em que tínhamos fotografias, todos nós tínhamos fotografias daquela altura, não é, da chamada comunhão solene, não é… as raparigas eram muito condicionadas, por exemplo, muitos pais não deixavam sair antes dos 15 anos, 14, 15 anos, não é… ora o rancho, o clube criou um grupo de teatro, tenho uma irmã minha, várias irmãs, todas elas passaram pelo grupo de teatro, quase todas pelo rancho folclórico… isto abriu horizontes e perspectivas que de outra forma… do ponto de vista associativo e cultural, não é, e havia uma irmã minha com características impressionantes para a representação, de tal forma que uma vez foram convidados para a “Outra Causa”… acho que para a peça “Outra Causa”, depois posso precisar, ali no Porto, com outra estrutura, de tal forma que… o fulano, lá o responsável, veio ter com o amigo que parecia ser o ensaiador, o encenador, nem era tanto… “vocês são profissionais, não são?”, “não, não somos profissionais” e depois disse à minha “tu és profissional?” e ela “ai eu não”, “e não queres ser profissional?”, a uma irmã minha, ela depois nem sabia o que responder “ah não, o meu pai” tal, tal, tal… porque ela nessa peça e noutras chorava e fazia chorar as pessoas, a malta toda tinha fé nisso, tinha características, não é, numas circunstâncias diferentes podíamos ter na família… pá, porque, de facto. Depois, sendo uma associação da freguesia, mas estava localizada num dos onze lugares de Moinhos, em 1959, das dezassete pessoas que enfim intervieram junto da FNAT na legalização eram todas de Moinhos, uma das quais o meu pai, o meu pai tinha uma grande participação do ponto de vista associativo também, né, nesse aspeto, porque em geral… eu farto-me de dizer, epá, valorizar os homens que tiveram a audácia de construir, enfim, de constituir, de formar esta associação e da importância que ela teve, hoje ela tem 50, 60, 70 anos, quase toda a malta aqui do lugar, de um lugar extremamente atrasado, digamos assim, do ponto de vista cultural, do ponto de vista cívico e tudo, tiveram um papel muito importante, um papel mesmo importante… para eles mesmos, não é, com o associativismo e tudo isso… portanto, e, naturalmente, valorizar as pessoas que ainda hoje dão continuidade num quadro diferente, porque o movimento associativo atravessa muitas, muitas dificuldades, não é.
Entrevistadora - Hm-hm. Tenho uma curiosidade, tanto na altura em que estava na União Soviética como depois na altura em que esteve aqui em Portugal na casa clandestina, como é que era feito o contacto com o partido?
Domingos Oliveira - Na União Soviética tínhamos a ligação regular com o do partido, que era o Carlos Aboim Inglês, que estava lá, que dava conta, que fazia a ligação e etc., portanto, no que diz respeito à União Soviética, depois o Álvaro veio ter connosco também, estava em Paris e tinha todos os anos, portanto, pessoal, portanto, foi-se interessando pelas questões colocadas e tudo isso, não é, em 72, até foi logo na primeira metade de 72, na primeira metade não, na primeira parte, chegámos lá em agosto, pronto, saímos em julho, agosto, depois há o… setembro no Chile, pronto, foi setembro… pronto e mantínhamos assim os contactos e tal.
Como era… a saída da família, a família foi complicado, aqui esta malta, às vezes, fala “quando tu fugiste”, eu não fugi mas…
Entrevistadora - Mas achavam…?
Domingos Oliveira - Era para França, não é, era para França, pronto, foi… a justificação devia ser outra, independente de eles depois saberem, tenho ideia de terem a perceção de que… teria dado o salto, não é, mas… na empresa dei uma justificação “então você vai sair porquê?”, “arranjei trabalho noutra empresa”, até indiquei uma outra empresa, tinham-me dito “diz que vais para esta empresa” e tal, tal… digamos, ser o mais pacífico possível, não é, em casa não foi pacífico, porque o meu pai pá, muito violento… como a Rosa deu uma informação, ou seja, como a carta foi ela a entregar foi objeto de uma violência grande da parte dele, não é, pronto, acho que ainda chegou a ir a França ver se me encontrava e tal.
Entrevistadora - E que orientações é que tinha, nessa altura, para não revelar a sua identidade?
Domingos Oliveira - Não dar a conhecer nada, de onde eu era, quem era, que família, tal… isso era manter em rigor, ou seja, seja aqui seja na União Soviética, não é, em todo o lado, isso era. Portanto, nós trabalhávamos… eu só soube quem era o João Resende e o Carlos Brito depois do 25 de abril, porque não tinha a mínima ideia, a segunda viagem eu fui com o Francisco Miguel, o que me colocou em Vila Real, eu só soube quem era o Francisco Miguel… e tenho ligado a ele uma experiência muito interessante, interessante para a minha formação, mas quando encontrei o Chico Miguel, o Chico Miguel tem um historial determinado, foi um homem que naquela fase em que houve cedências, ele suportou as torturas e, nomeadamente, a questão da estátua, a tortura da estátua era fisicamente muito violenta de tal forma que os pés inchavam, os sapatos rebentavam, não é, e ele aguentou isso várias vezes, havia até uma auréola sobre o Chico Sapateiro, era assim que se chamava, era o Chico Sapateiro. Quando no Porto me encontrei com ele, vinha ele com um tipo de casaco assim muito rural, com dois sacos com legumes e tal e outras coisas e tal, tal, pronto ok… quando eu cheguei na segunda viagem, no dia 6 de maio, em Lisboa vinha com a indicação de Paris para telefonar ao Otávio Pato e liguei, estava ele no corredor, e ele “então e tal, como é que está?” pá e eu ainda com os traços e valores característicos de uma informação do meio e tal, não valorizei… quando depois vim a saber que era o Francisco Miguel e conhecendo-o já nas reuniões que a gente tinha com o Carlos Costa e com o Francisco Miguel, eu fiquei muito… epá, porquê? Porque objetivamente pronto era um camarada, simples e tal, tal, e uma certa informação que ainda vinha daquela altura, não é… e esquecendo que tava perante um camarada que tinha um historial, que teve uma história, que teve um comportamento… foi um autêntico herói para o partido, mas era muito simples, baixinho, e ele na altura parecia aqueles camponeses por ali acima [risos] eu acho que ele levava mesmo um saco de legumes ou para as suas necessidades, não sei, portanto, foi assim um caso de… para mim foi uma lição, e a partir desta altura, uma certa modéstia, um certo traço e tudo procurei aprofundar pronto… para… ter em conta isso, não é.
Entrevistadora - Hm-hm. E depois aqui, quando esteve aqui na clandestinidade em Portugal, que tipo de tarefas é que tinha, nesse período?
Domingos Oliveira - Era a ligação com os jovens trabalhadores, com os camaradas que estavam no MJT e, por via deles, a procura de dinamização, portanto, fazíamos reuniões com um, dois, três, a reunião não podia ter mais de três, não é, era inconveniente ter mais que três, portanto, a malta tinha um núcleo em Torres Vedras muito interessante, lembro-me da Adelaide e do companheiro que ainda está… ela também, jovens também, eram do MJT e que depois desenvolviam iniciativas de caráter legal, semi-legal, não é? Às vezes, por exemplo, havia… tínhamos em Pedrouços um [impercetível] do MJT e a gente interagia, muitas vezes, com a JOC e fizeram lá várias iniciativas, mas se fossemos pedir em nome do MJT, a coletividade dificilmente cederia, então utilizamos a JOC, a JOC pedia para a malta fazer, e fizemos lá várias iniciativas até dos jovens metalúrgicos, da comissão dos jovens metalúrgicos e tal, havia vário pessoal da juventude trabalhadora que tinha vindo da JOC, de vários sítios, né, e…
Entrevistadora - E esteve… portanto, esteve duas vezes preso?
Domingos Oliveira - Não, portanto, eu só estive preso uma vez, que foi no 15 de abril e tive as duas semanas, do dia 15 de abril até ao dia, saímos no dia 2 de maio, todos, não é, saíram todos nesse período.
Entrevistadora - Mas foi duas vezes para a União Soviética, é isso? Em que períodos é que isso… ou seja, a primeira foi em…
Domingos Oliveira - A primeira foi em finais de… princípios de agosto, e a segunda era para ir eu e a Zita Seabra, ela acabou por não ir, mas para o que era? Era para apresentar os jovens trabalhadores-estudantes numa iniciativa em Moscovo, saí no dia 18 de abril… e já agora conto outra história que tem muito interesse para o 25 de abril… e cheguei lá no dia 24 de abril, o percurso foi um pouco diferente, mas no essencial foi aquele primeiro que eu tinha retratado, passar por outros países, a Alemanha, por exemplo, que tinha passado antes e etc. etc. No dia 25 de abril, de manhã, eram para aí oito horas, estávamos numa mesa, colocaram numa única mesa os três países de ditadura da Europa, Grécia, Espanha e Portugal, chegou lá o Carlos Aboim Inglês “camaradas, vocês tenham calma e tal, tenham calma, há acontecimentos em Portugal e os camaradas soviéticos dizem que pode ser…” - isto nunca mais esqueço eu - “pode ser um golpe mortal do fascismo”, porquê? Porque tinha havido os esforços do Arriaga, dos ultras, que vocês já ouviram falar, não é, também em termos de inverter a situação, tornar ainda uma ditadura mais férrea, como se fosse possível e tal, pronto, havia esses aspetos e a informação não é como hoje, não é, pronto, aquilo era de escuta rádio que os serviços tinham dos países e tal, tal… epá depois, passado pouco, veio… as informações foram surgindo, cada hora parecia um dia, a passar, não é… depois a libertação dos presos, éramos para estar lá 15 dias, estar lá 15 dias, eu, estava sozinho, mas nesse caso fui logo antecipado, não é, ainda fomos fazer uma visita, sempre que havia, quando a malta ia lá, havia sempre visitas, aquilo que a gente gostasse mais, eu era sempre empresas, indústria pesada e tal… gostava da indústria e tal. Pronto, depois chegamos a Paris, cheguei a Paris, um encontro com o Sérgio [impercetível] “epá e agora? Bora? Destróis o passaporte”, lá o Porfírio das Neves, epá, eu arrependi-me tanto de destruir, eu gostava tanto de ter mantido aquilo, mas pronto naquela altura… “e vais à embaixada”, fui à embaixada, mas não tinha suporte nenhum, “mas o senhor não tem um documento?”, “não, eu vim a salto, fugi à guerra, vim a salto” e tal, tal… então esse eu ainda o tenho, passaram-me um passaporte só de regresso a Lisboa para me apresentar na tropa, no quartel, que era já refratário, não é, nesse aspeto, pronto, e foi assim. Pronto, ou seja, eu não estive cá no 25 de abril nem no 1º de maio, não é, independentemente de ter a memória histórica, como é natural, mas não, não… não estive…
Entrevistadora - Na altura, o que é que significou para si o 25 de abril?
Domingos Oliveira - Epá… [risos] o 25 de abril foi um dos maiores acontecimentos, ou seja, era… não era o objetivo supremo, mas era um grande objetivo para o qual, digamos, toda a luta era conduzida, era pôr fim ao fascismo, lutar pela liberdade e a democracia, pelo direito de construir partido, o direito de constituir sindicato, pelo direito de reunir, acabar com aquelas coisas retrógradas, não é, que vocês conhecem… então em relação às mulheres era incrível, pá, em 1941, numa reunião de ministros estar a discutir se o bikini, porque o tecido não podia ser transparente, mas se o bikini tinha que ter isto ou aquilo, o fato de banho, não era bikini, para os homens também… era uma coisa, mas isso vocês já conhecem de certeza absoluta, não é, inclusive as professoras, as enfermeiras… a separação entre rapazes e raparigas… a mini-saia, alguns colégios tinham… a saia tinha que estar por aqui assim e pronto… um beijo era 7 escudos, salvo erro, um beijo público, mulheres e homens… na rua, não é, era assim… pronto aí há documentos, vocês também devem ter esse…
Entrevistadora - Mas valia a pena… valia a pena, a multa [risos]
Domingos Oliveira - [Risos] pá era uma coisa pá… então as mulheres não poderem fazer negócios… aqui nos Moinhos, neste projeto tenho falado com a 3ª e 4ª geração dos proprietários… e… é giro que muitos dos moinhos, quem eram os proprietários? Vinham por via da mãe ou da… da… da família da mulher, mas depois tudo o resto era para o homem, porque quem tinha que negociar e… a mulher estava proibida, só o homem podia comerciar, podia entrar no comércio, não é… mas o moinho não era dele, veio da propriedade da mãe, a mãe é que herdou… eu, sei lá, casava contigo, tu eras muito rica, trazias muita coisa, mas depois, a partir do momento que casasses, eu é que geria e tal, tal… portanto, nesse aspeto era aquelas coisas assim, ao nível dos costumes era uma coisa mesmo brutal, claro que nesta que estávamos a falar da repressão, não é, vinte mil informadores no 25 de abril foram detetados pá… duzentos assassinos, trinta mil presos, portanto, foi… e o Tarrafal, pá, o Tarrafal, foi.
Entrevistadora - E na sua vida, o que é que sente que mudou mais no 25 de abril?
Domingos Oliveira - Epá, nesse caso, as minhas opções tiveram continuidade, ou seja, eu mantive-me a tempo inteiro, segui essa opção, colocada pelo partido, portanto, de, naturalmente, me manter a tempo inteiro, portanto, a minha vida foi muito ligada. Bem, entretanto, e vocês não imaginam o que era nos primeiros três, quatro anos o que era a atividade da malta pá… o meu filho não pôde estar connosco, mesmo assim, nessa altura, não é… pronto, aí foi até mais a Lurdes, portanto, era uma atividade brutal, era quase de dia e noite, era uma dinâmica, hoje uma reunião de jovens… a gente convoca uma reunião de jovens, de trabalhadores estudantes e só aparece meia dúzia, uma dúzia e tal, mas naquela altura [risos] era montes, porque a malta via perspectivas de transformação! Pá, aquela questão do salário mínimo nacional aquilo aumentou, em várias situações, por dois e três o rendimento de famílias, foi uma conquista brutal, do Avelino Gonçalves, que era o primeiro ministro comunista, não é… portanto, foi ali… depois o envolvimento das forças armadas em dar resposta a problemas básicos, eu fui em 79, abril de 79, fui para a Guarda, deixei o trabalho da juventude, para ir para o partido na Guarda, ali no concelho de Pinhel, que tem… várias freguesias rurais, que no inverno ficavam completamente isoladas, eu ainda sou do período, já tendo tudo arrefecido muito, não é, mas as máquinas militares ainda abriam caminhos, ruas… as pessoas todas a participar, não é, pronto, porque viam resposta concreta a… depois o recuo de tudo isto, pronto, levou a que… conduziu a ação que conduziu, não é, portanto, começaram a mentir, a mentir… promessas, enfim, não cumpridas… as questões da corrupção, esquecendo e omitindo as causas… nunca falam que em 74, 75, 76 não havia corrupção, não há casos nenhuns de corrupção no país nesse processo… pronto e criou-se a situação… um caldo de cultura favorável, mais tarde, em relação aos outros países da Europa, mas também do nosso, a extrema-direita fascista dá passos e tal… e continua a dar, porque aquilo que é esquecido e que a malta tem sempre que referir, há malta que põe muitas coisas na internet sobre o Chega e tal, tal, tal… nunca esquecer as causas, as causas radicam e criam o caldo de cultura… não dar resposta aos problemas, muita gente afastou-se completamente de participar nos processos eleitorais, a comissão refere a… a participação… representativa, né… portanto, não é utilizada, desvalorizada… é só eleitoral, pronto, a malta vai mentindo, enganando, vão ocultando outras perspectivas e outros caminhos possíveis… os partidos são todos iguais, pronto, e é evidente que isto cria as condições para que a extrema-direita dar passos, no quadro de uma crise geral, foi assim na década de 30 na Alemanha, foi assim a seguir à 1ª guerra mundial na Itália… a gente pensa que isto não se repete, mas… numa situação de crise… as classes dirigentes, não é por acaso que o Hitler teve os apoios dos grupos, da Siemens, de todos aqueles grandes grupos financeiros, mas não chega, em certas situações de crise, socorrem-se a isto… para se conseguir manter, que agora é diferente, não é, é diferente, mas o conteúdo é o mesmo, não é. E nas grandes massas… encontram o apoio de pessoal completamente descrente, pá, enganada por aquilo, preparada para tal, não é. Portanto, a primeira questão é que era necessário dar resposta… não dando, é evidente que… com a… as ideias de extrema-direita, seja no Chega, seja nos partidos de direita que se vão… há uma série de países na Europa que já estão no governo, não é, e a União Europeia dá-se bem, dá-se bem com essa situação… e vai adaptando as leis de acordo com… o caso da imigração pá… os valores da União Europeia com milhares de pessoas ali a morrer no Mediterrâneo, mas…
Entrevistadora - Sim. A sua… a sua irmã falou que o seu pai foi ao 1º de maio à sua procura…. lembra-se assim…
Domingos Oliveira - O meu pai?
Entrevistadora - Sim, sim. E que encontrou lá alguém que lhe disse “o Domingos está bem, ele há de chegar”.
Domingos Oliveira - Mas o 1º de maio em que ano?
Entrevistadora - Em 74.
Domingos Oliveira - Ai em 74, no Porto?
Entrevistadora - Sim, que ele foi à vossa procura e que… lhe disseram “o Domingos está bem”.
Domingos Oliveira - Pronto, aquilo que se coloca… eu volto no dia 6, não é?
Entrevistadora - Pois… como é que se dá esse reencontro depois com o pai, que tinha ido procurar o filho a França, o pai que depois tenta, sabe do 1º de maio, e vai procurar os filhos…
Domingos Oliveira - No quadro de uma família com muitas dificuldades, eu admito que o meu pai criasse uma certa expectativa “o meu filho vai ser engenheiro” e depois dos mais pobres, não é, dos mais pobres… percebi… e percebe-se, neste quadro, neste quadro, não é… epá e aquela questão de deixar de estudar, por exemplo, ele foi violento no período até ser preso “ah lá vais preso? levas um estalo e isso passa” e tal, tal, tal… não é, depois percebeu após a minha prisão que já não era assim e o comportamento mudou totalmente, não é. Eu admito também que aquilo que eu queria e consegui superar, expectativas num determinado quadro de valores, né, ele também os tenha criado, de um pai que era analfabeto, só aprendeu a ler e escrever aos 23 anos, que, apesar de tudo, participou socialmente, participou em tudo que era clubes, associações, tal, tal… e também tenha criado expectativas em relação a mim e pronto… e tudo isso foi por água a baixo, foi num quadro muito diferente [risos], não é, muito diferente, porque eu lembro-me que depois veio o 25 de abril e ele com os outros colegas e tal… se eu tinha o curso, se eu não tinha o curso… nesse aspeto, e era natural que fosse assim, portanto, e por isso… ele foi muito violento para a minha irmã inclusive. Quando eu tive com ele opá, pronto, telefonei a dizer que estava cá, uma das primeiras coisas, lembro-me, a minha mãe estava a cozinhar e eu já tinha alguma experiência e comecei a ajudar ali numa coisa qualquer na cozinha, fui lavar uma coisa “ó filho, ó filho” claro, não se concebia que um homem pudesse intervir nas coisas domésticas, isso era… ainda hoje o meu mais novo tem esse aspeto, pá não… pronto era exclusivamente… e era as próprias mulheres que autolimitavam-se, não é, para ela era… [risos] nunca me esqueço disso, foi um escândalo e foi aqui assim, claro, aqui que era uma casa muito modesta. [corte]
Entrevistadora - E o Domingos teve filhos também?
Domingos Oliveira - Tenho, o Luís Filipe que tem… faz 50 anos agora em julho, portanto, o Carlos Brito lançou-se ao ar “porra, engravidaram já agora”, ele não percebia nada daquilo [risos], nasceu em julho. Tenho uma fotografia dele, a gente a seguir fez um grande acampamento do MJT, ali para Torres Vedras lá numa outra área, então o Diário Popular trouxe uma fotografia do Luís Filipe com poucos dias, poucos dias mesmo… ao colo da Lurdes, eu tenho uma fotografia no jornal, na primeira página no jornal, naquela altura os jornais… enfim, aderiram à revolução e tratavam… a atividade, a luta, aquilo que se passava e tal, não é.
Entrevistadora - Portanto, ele já nasceu na democracia…
Domingos Oliveira - Sim, claro! 25 de abril, maio, junho, julho… 18 de julho. Portanto, está a tempo inteiro no Sindicato de… penso que ali há uns anos, no Sindicato de Lisboa… da Câmara de Lisboa, tem um sindicato próprio, é um STAL, mas só da câmara, pronto, fez agora, há uns anos, um mestrado em ciência política e tal, pronto, e está agora… e agora tenho, a Lurdes disse-me “epá não vamos ter descendentes, ó Domingos, isto é uma chatice” agora tenho com 18 meses uma neta! Portanto, tenho duas netas não biológicas, mas que em termos de afetos não altera, a Ana com 9 e o Rodrigo com 6, ainda hoje fui levá-los à escola em Canelas, é semana sim, semana não, os pais estão separados, eles estão com o Jorge uma semana e eu de manhã levo-os, porque ele não pode, trabalha em Matosinhos na Johnson & Johnson e na… pronto e na outra semana está com a mãe.
Entrevistadora - Hm-hm. De que forma é que… sente que… todas as vivências que teve na clandestinidade marcaram o seu percurso de vida? De que forma é que o seu percurso de vida foi moldado por todas essas experiências?
Domingos Oliveira - Eu diria que o percurso de vida é mais remoto… tem como ponto alto a última fase da clandestinidade, que depois se deu o 25 de abril, não é, mas a partir… nesse aspeto, a partir do momento em que vem resposta positiva nessa opção, não é, pronto, ela marcou o desenvolvimento que as coisas tiveram, depois podia ter cessado no 25 de abril ou não, mas naquele processo em curso, no processo revolucionário disse que enquanto pudesse que iria continuar a lutar pela transformação da sociedade e estive até dezembro de 2019, por questões de saúde… porque eu sou insuficiente renal desde 94, mas nunca condicionou, pela conceção que tenho da vida e do mundo e tal, não condicionou a minha atividade, não é, mas tenho dois transplantes, não é, renais, o outro um órgão de doação em vida, portanto, e…. mas… pronto, mantive-me e digamos…. [corte] eu mantive sempre, nunca hesitei as opções… agora tenho uma intervenção no quadro da URAP, na garantia de que não assumo tarefas de direção, porque onde eu agarro-me, agarro-me e depois então volto outra vez à mesma situação… pronto.
Entrevistadora - Como é que se envolve com a política então, nos dias de hoje?
Domingos Oliveira - É participando na atividade geral… por via da URAP também, em várias situações… pronto e tenha a organização a que pertenço, mas tenho sempre estas iniciativas que se proporcionam, que se colocam e etc. e acompanho estreitamente. Agora… quando eu… em… há uns anos já… eu desde que saí em 72 e considerando que anos antes, quando fui estudar à noite, fiquei muito a leste de várias realidades da família, portanto, e houve momentos difíceis que a malta passou, saí em 72, depois prometi a mim mesmo que iria fazer um trabalho sobre a família, os irmãos… a memória na adolescência e na… na infância, na infância e na adolescência, não é, e foi depois esse trabalho que me conduziu, foi o enquadramento, foi necessário saber porque é que é chamada Moinhos e tudo isso… que acabou por conduzir agora ao trabalho que me envolveu, que era secundário, passou a ser principal, o outro ficou em 72 páginas e não avancei mais, mas tem que avançar, que foi este trabalho da molinologia, eu gosto imenso do património histórico-cultural… e natural, portanto, tinha ali material e pronto envolvi-me, mas esse projeto mantém-se, que é na base de recordações de cada um dos meus irmãos, foi todo um trabalho que remete para a memória, para o período da infância, da… da transição, da escola e tal… portanto, uma série de aspetos, tenho que retomar, mas eu agora tenho que terminar a monografia, porque desde já foi feito o recenseamento total dos vinte e dois moinhos que foram funcionar, agora a monografia é mais complexa, vamos lá ver, criou-se agora uma associação de amigos aqui da… amigos destas coisas para ver se podemos facilitar aqui… em São Félix.
Entrevistadora - Olhe, Domingos, nós também já falta pouco para o meio-dia e meio… e… queria-lhe só fazer uma última pergunta que é se… se gostava de deixar algum tipo de reflexão agora no âmbito dos 50 anos do 25 de abril? O que é que gostava de dizer?
Domingos Oliveira - A reflexão é que continuo a acreditar que os valores do 25 de abril, mais tarde ou mais cedo, irão ser projetados e aqui é importante… e que tiveram expressão na Constituição, sempre um objetivo das forças do sistema, não é, para alterarem, porque já não é só da Europa, continua a… é considerada já a Constituição mais, no quadro da evolução disto, a Constituição mais progressista, uma das mais progressistas do mundo, mas progressistas da Europa e do mundo, portanto, tendo sido em certas alterações, sacrificada em alguns aspetos importantes, contém ainda elementos essenciais que foram objeto da revolução de Abril, portanto, e nesse sentido, naturalmente, o grande esforço passa, por um lado, lutar contra a reescrita da história a que assistimos pá, pronto, há muitos até que consideram que já nem se quer é fascismo… é uma ditadura e tal… o branqueamento e, acima de tudo, a despenalização dos crimes que o fascismo cometeu, por um lado, não é. Por outro lado, no quadro das forças de extrema-direita, eu penso que é importante, não é, também este trabalho da memória. Ainda ontem estive na Escola Superior de Educação, eu e a Teresa Lopes, lá numa reunião com malta jovem, malta jovem e trabalhador estudante, já mais velha, não é, reunimos os estudantes também para trocar impressões sobre este aspeto e nesse sentido… a agradabilidade, o agradável que foi, a importância que foi as comemorações dos 50 anos, porque foi… aliás, nenhum setor puderam [impercetível] o facto de uma participação massiva, designadamente, da juventude, designadamente, da juventude, portanto, num quadro complexo, não é, difícil como está, não é, portanto, eu tenho a ideia que era os aspetos que mais queria, naturalmente, era que se mantivessem determinado tipo de valores que conseguimos com o 25 de Abril, de liberdade e democracia, mas muito condicionado em vários aspetos, porque o 25 de Abril não se fez para que a malta tenha hoje a dificuldade na área da habitação, para a precariedade que se mantém, com muitos jovens pá, a dificuldade de constituir família pá, de arranjar casa, estão num emprego, depois se necessário mudam o emprego, um posto de trabalho efetivo, não é, portanto, não foi para isto que o 25 de Abril. Antes do 25 de Abril só 7% dos estudantes eram filhos de classes trabalhadoras, portanto, houve uma redução a seguir ao 25 de Abril, hoje a situação está… portanto, está na mesma, ou seja, está… nesse aspeto um recuo muito grande. A nível da saúde pá… da saúde, em 60 por cada mil nascimentos, ao fim de um ano, setenta bebés morriam, eu lembro-me, eram “os anjinhos”, aqui na aldeia havia muito, não é, era “olha, morreu mais um anjinho” e tal… havia cemitérios até que tinham só uma área para os anjinhos, não é, não havia assistência médica, o meu irmão Manel, completamente surdo de um ouvido e o outro muito reduzido, infeções sucessivas, ia para a escola com o pus a escorrer, ele até tinha, às vezes, vergonha, a minha mãe chegou a ir ao Porto, várias vezes, eram umas simples gotas, tal, tal… não havia assistência, não é, em algo que podia ter sido resolvido. Vocês recordam-se, recordam-se não, têm memória histórica dos médicos à periferia, não é, até a RTP deu há dois anos um programa com alguns médicos que participaram, em Trás-os-Montes situações em que a malta nunca viu um médico na vida, não é, pessoas que nunca tinham visto um médico, naturalmente, essas pessoas…. enfim, os pais, avós, bisavós e etc. etc., portanto, era uma situação muito…
Ora, o que é que se… nós… foram conquistas importantes do 25 de Abril e foram para a Constituição, não é, que ainda se mantêm, mas isto é para alterar, não é por acaso que eles têm recusado as propostas de entrega da Constituição, em suporte papel, nas escolas, não é, não é fundamental para o país? Não, é porque estão sempre a ver se a conseguem alterar, estão sempre a ver quando a relação de forças a permite alterar, para darem novos golpes, não é, como já deram anteriormente. Portanto, eu por mim, pá sem dúvida o que retiro é a necessidade de que vale a pena continuar, apesar de tudo, a lutar, a insistir na defesa… alguns são valores universais, podemos discutir o que é a democracia, liberdade, é democracia quem não tem direito à habitação, quem vive na rua? E liberdade, claro, tem a liberdade de viver na rua, tem a liberdade de morrer de fome, se necessário, mas pronto, podemos discutir esses aspetos, mas nos conceitos gerais eu tenho ideia que é essencial e é a principal lição que se tira, a necessidade de se continuar a lutar. Fica a experiência histórica, já era conhecidíssima, de que nada é adquirido, a determinada altura dá-se como adquirido, aliás, eu lembro-me que o Socialismo era irreversível, aliás, na escola era, a União Soviética, o Socialismo já é irreversível e tal, tal… nesse tempo parecia, mas a experiência mostrou que não era, não era. Embora foram ali experiências interessantes, passei o Natal em casa de uma moça, lá com os pais e tal, e aquilo, de facto, era 12% do orçamento era para a renda, para a água, para a luz, depois não se pagava… claro, quando foi a contra-revolução a destruição daquilo depois foi aquilo que a malta conhecia “epá salários de miséria” e tal, salários de miséria, porque deixaram de ter esses elementos e era necessário tê-los e era uma desgraça… ainda hoje a Rússia não reparou, né, da população que perdeu… milhões e há uma nódoa, uma parte que não é sequer conhecida, que foram as centenas, milhares de mortos pelas bandas… de bandidos, a Rússia ficou sem controlo, sem Estado, há zonas que aquilo foi, mas pronto. Para todos os efeitos é isso.
Entrevistadora - Obrigada!
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