Projeto Vida, morte e fé - Programa Conte Sua História
Entrevista de Pastor Henrique Vieira
Entrevistado por Jonas Samaúma
Rio de Janeiro, 30 de Junho de 2022
Entrevista número: PSCH_HV1272
Transcrita por Bianca Guimarães
Revisada por Larissa Colejo
Segunda Revisão: Nataniel Torres
P - Pastor, primeiro gostaria de te agradecer imensamente por ter aceitado. Eu ia pedir diferente, pra você falar uma poesia, se possível.
R - Minha?
P - Sua!
R - Vejo a vida passar num instante / Será tempo o bastante que tenho pra viver? / Não sei, não posso saber / Quem segura o dia de amanhã na mão? / Não há quem possa acrescentar um milímetro a cada estação / Então, será tudo em vão? Banal? Sem razão? / Seria, sim, seria, se não fosse o amor / O amor cuida com carinho / Respira o outro, cria o elo / O vínculo de todas as cores / Dizem que o amor é amarelo / É certo na incerteza / Socorro no meio da correnteza / Tão simples como um grão de areia / Confunde os poderosos a cada momento / Amor é decisão e atitude / Muito mais que sentimento / Alento, fogueira, amanhecer / O amor perdoa o imperdoável / E resgata a dignidade do ser / É espiritual / Tão carnal quanto angelical / Não tá no dogma ou preso numa religião / É tão antigo quanto a eternidade / Amor é espiritualidade / Latente, potente, preto, poesia / Um ombro na noite quieta / Um colo pra começar o dia / Filho, abrace a sua mãe / Pai, perdoe o seu filho / Pais é reparação e fruto de paz / Paz não se constrói com tiro / Mas eu miro de frente a minha fragilidade / Eu não tenho a bolha da proteção / Queria eu guardar tudo que amo / No castelo da minha imaginação / Mas vejo a vida passar num instante / Será tempo bastante que tenho pra viver? / Não sei, não posso saber / Mas enquanto houver amor mudarei o curso da vida / Farei um altar pra comunhão / Nele eu seria um com o mundo até ver o UBUNTU da emancipação / Porque eu descobri o segredo que me faz humano / Não tá...
Continuar leituraProjeto Vida, morte e fé - Programa Conte Sua História
Entrevista de Pastor Henrique Vieira
Entrevistado por Jonas Samaúma
Rio de Janeiro, 30 de Junho de 2022
Entrevista número: PSCH_HV1272
Transcrita por Bianca Guimarães
Revisada por Larissa Colejo
Segunda Revisão: Nataniel Torres
P - Pastor, primeiro gostaria de te agradecer imensamente por ter aceitado. Eu ia pedir diferente, pra você falar uma poesia, se possível.
R - Minha?
P - Sua!
R - Vejo a vida passar num instante / Será tempo o bastante que tenho pra viver? / Não sei, não posso saber / Quem segura o dia de amanhã na mão? / Não há quem possa acrescentar um milímetro a cada estação / Então, será tudo em vão? Banal? Sem razão? / Seria, sim, seria, se não fosse o amor / O amor cuida com carinho / Respira o outro, cria o elo / O vínculo de todas as cores / Dizem que o amor é amarelo / É certo na incerteza / Socorro no meio da correnteza / Tão simples como um grão de areia / Confunde os poderosos a cada momento / Amor é decisão e atitude / Muito mais que sentimento / Alento, fogueira, amanhecer / O amor perdoa o imperdoável / E resgata a dignidade do ser / É espiritual / Tão carnal quanto angelical / Não tá no dogma ou preso numa religião / É tão antigo quanto a eternidade / Amor é espiritualidade / Latente, potente, preto, poesia / Um ombro na noite quieta / Um colo pra começar o dia / Filho, abrace a sua mãe / Pai, perdoe o seu filho / Pais é reparação e fruto de paz / Paz não se constrói com tiro / Mas eu miro de frente a minha fragilidade / Eu não tenho a bolha da proteção / Queria eu guardar tudo que amo / No castelo da minha imaginação / Mas vejo a vida passar num instante / Será tempo bastante que tenho pra viver? / Não sei, não posso saber / Mas enquanto houver amor mudarei o curso da vida / Farei um altar pra comunhão / Nele eu seria um com o mundo até ver o UBUNTU da emancipação / Porque eu descobri o segredo que me faz humano / Não tá mais perdido o elo / O amor é o segredo de tudo / E eu pinto tudo em amarelo.
P - Agradecido por essa poesia! Você quer falar o que o inspirou a fazer?
R - (risos) Na verdade, foi uma coisa de contexto um pouco inusitada e aleatória, porque eu recebi um telefonema de um rapper, o Emicida, me contando sobre o álbum que ele estava planejando, o “Amarelo”, e uma música específica que era “Principia”, cujo o refrão fala “tudo que nóis tem é nóis”, fala sobre o amor como elo. Então ele me dá essa letra, me dá esse conceito e me pede para terminar a música dele com uma poesia minha. Então, na verdade eu fui provocado a pensar o amor como elo, amaR -elo, amarelo. E foi a partir dessa provocação do Emicida que eu sentei, nem foi no computador, não, foi papel e caneta, mesmo, no jeito mais artesanal, que eu fui rabiscando esses versos, mas a partir dessa provocação do amor como elo, do amor como o que confere sentido à vida. É uma poesia que o tempo inteiro eu falo sobre a fragilidade humana, se você for parar e pensar... “Vejo a vida passar num instante, será tempo bastante que tenho pra viver? Não sei ... Não posso saber”. Porque é uma questão que me atravessa desde sempre, a potência e, ao mesmo tempo, a fragilidade da vida. Então eu tento responder a esse espetáculo frágil que é viver com essa perspectiva do amor e do amar. Talvez seja a única coisa que possa conferir sentido a essa experiência potente e débil que é viver.
P - A gente vai falar bastante sobre o sentido da vida, mas queria começar… que você falasse o seu nome, o lugar que você nasceu, o ano, e se apresentasse…
R - Meu nome é Henrique, filho de Gláucia, neto de Ruth. Isso não é detalhe, são duas mulheres muito importantes na minha vida. Sou caçula de três irmãos, são três ao todo... Eu sou o mais novo, tem Guilherme e Marcely. Nasci no dia 15 de Abril de 1987, em Niterói, e cresci no Fonseca, um bairro da Zona Norte de Niterói, no pé de uma favela, na favela Vila Ipiranga. Então, tive uma infância nesse contexto, uma família mais pobre, meu pai desempregado sempre e muito enrolado financeiramente, e minha mãe professora da rede pública de educação infantil. Nós morávamos na casa da minha avó, que era um apartamento nesse condomínio popular, e éramos cinco pessoas num quarto: meu pai, minha mãe, Guilherme, Marcely e eu. Então, assim, tem esse recorte mas nunca me faltou nada, tinha o simples e o suficiente. Mas a minha infância se dá nesse contexto.
P - Você lembra qual é a sua primeira memória mesmo?
R - De vida?
P - Sua primeira memória de vida! Se quiser ir lá buscar de olho fechado…
R - Sim! Sou eu deitado nesse quarto que eu te falei, do lado da minha mãe. Acho que essa é uma memória que eu tenho, da minha mãe deitada, porque nós dormíamos em colchonetes. Então eu lembro que era minha irmã, minha mãe e eu. Aí, assim, na transversal, meu irmão. E numa cama um pouco maior, meu pai. Então, eu lembro dessa imagem, deitadinho assim, para dormir com a minha mãe do lado. É uma sensação que eu tenho de que essa é a minha primeira memória de vida. Dormindo menininho ao lado da minha mãe.
P - Então, você poderia contar se você tem alguma lembrança, alguma história forte com a sua mãe? Até dentro da sua fé, se tem algo que você aprendeu com a sua mãe…
R - Em qualquer época da vida ou necessariamente na infância?
P - Olha... assim... a que eu perguntei é a mais forte, mas pode ser na infância ou na vida toda também.
R - Sim. Olha, eu sempre vi na minha mãe uma dedicação muito grande aos filhos. Sempre foi uma referência de um amor muito leal, de uma dedicação muito verdadeira. Então, já na minha infância eu tenho registros, memórias, imagens dessa presença materna de dedicação e cuidado. Mas, assim, quando eu tinha dezesseis anos, adolescente já, num momento bom da minha adolescência, entrando de férias, eu tinha ganhado uma bolsa integral pra estudar no ano seguinte, que era o ano do vestibular, e estava muito feliz porque isso honrava muito do esforço da minha mãe, família classe média baixa nesse momento, a situação tinha melhorado um pouco… Mas eu lembro de ficar muito feliz por entrar de férias e por conseguir bolsa integral naquela escola em Niterói, e isso me fez parar de trabalhar num escritório de informática. Eu era aprendiz de montagem e manutenção de computador e eu odiava, não gostava, não tinha nada haver comigo, mas ajudava a pagar a mensalidade da escola. Como eu consegui a bolsa, pude sair daquele trabalho e entrando de férias, enfim... momento divertido. Mas eu tive uma neurite óptica bilateral, eu tive uma inflamação grave e aguda no nervo e perdi, em coisa de um mês, grande parte da minha visão, foi desesperador… para mim! Nem quero universalizar essa experiência, também não quero entrar numa lógica capacitista, mas na minha vida e no meu corpo doeu muito, foi desesperador. Então eu lembro de um dia, oito de dezembro de 2003, primeiro dia de férias, inclusive, era uma segunda-feira, e eu tinha uma consulta no Hospital Universitário Antônio Pedro em Niterói, uma consulta oftalmológica, porque minha visão estava baixando. Mas como eu sempre usei óculos, não estou usando nesse momento, mas sempre usei, eu achava que era só uma questão de ajuste, de colocar um óculos novo... não imaginava que tinha qualquer outro problema, então eu fui para a consulta, na minha cabeça, corriqueira, para fazer um ajuste de lente. E chegamos no hospital, o médico começou a me examinar, o residente em medicina, em oftalmologia, ele fez aquele exame clássico das letras e eu não enxerguei nenhuma letra. Depois ele se aproximou de mim e começou a colocar números pra ver se eu acertava, dois ... três ... cinco... eu também não acertei. Ele fez um exame mais profundo e decidiu chamar o professor, o responsável pelo departamento, era um hospital universitário. Nesse momento eu me desesperei, nesse momento eu entendi que tinha alguma coisa diferente acontecendo com a minha visão. E nesse momento eu segurei firme a mão da minha mãe, e nesse momento eu senti a minha mãe segurando firme a minha mão, e a gente louvou, a gente cantou junto, enquanto tinha essa espera pelo médico responsável. Eu lembro que a gente cantou uma canção da nossa tradição de fé, que diz assim: (cantando) “Se paz a mais doce puder desfrutar, ou se dor a mais forte sofrer. Ó seja onde for tu me fazes saber que feliz com Jesus sempre sou. Sou feliz, sou feliz com Jesus. Com Jesus sou feliz. Com Jesus, meu senhor”. E eu chorava, percebia minha mãe com os olhos lacrimejando e a gente cantando junto, “se paz a mais doce ou se dor a mais forte” porque… a fragilidade da vida, uma companhia de Jesus como elemento não de uma felicidade ilusória, mas de uma paz possível. E esse momento é muito forte pra mim, de naquela hora “H” em que a fragilidade da vida se materializa no meu corpo e eu não vou aproveitar as férias, não vou encontrar meus amigos na praia, nem vou dormir na casa da minha avó, que eu tinha uma mochilinha pronta para dormir naquela noite na casa da vovó Ruth; não ia fazer nada daquilo porque eu estava adoecido. E quando a vida falhou, estava aquela mulher simples do meu lado, segurando a minha mão cantando comigo. Essa é a minha mãe.
P - Conta um pouco como foi essa mudança nesse momento onde você. Como foram os primeiros dias realmente depois que você descobriu que não teria mais a sua visão, que a sua vida ia mudar… como foi a sua relação com a fé nesse momento?
R - Os primeiros dias foram os piores porque era novidade. Neurite óptica bilateral, perda progressiva da visão, tem que fazer exames para entender o que está causando a inflamação. Dependendo da causa o prognóstico é bom, pode recuperar, ou não, pode piorar de vez. O hospital, a enfermaria, são uma complexidade na minha cabeça até hoje. A importância da medicina, do conhecimento, histórico humano acumulado sobre corpo… Então, obviamente, eu agradeço muito a Deus por esse conhecimento, pela pesquisa, pelo medicamento, pelos médicos e médicas que me atenderam. Então sou grato, reconheço o valor. E depois por causa de exame e tratamento recuperei uma parte da minha visão, então só para ficar bem evidente, eu valorizo esse conhecimento. Mas eu tenho um certo trauma com a cultura médica e tenho um certo trauma com a cultura hospitalar. Demorou pouco tempo pra… não só o meu nervo estar inflamado, mas a minha alma estar ferida, não só pela contingência da vida, mas por causa da frieza, da dureza, da antipatia de um ambiente hospitalar. Eu virei um nervo, eu era um menino angustiadíssimo, desesperado, com uma ansiedade enorme, “eu perco ou não perco a minha visão? O que eu tenho é grave ou é tranquilo?”. Eu só queria encontrar os meus amigos ou dormir na casa da minha avó, mas, ali, eu era um nervo ambulante… nervo óptico, isso que eu quero dizer, assim… Você vira uma peça de uma engrenagem, o hospital… Eu espero muito que daqui um tempo a humanidade olhe para trás e diga: “Nossa! É assim que eles cuidavam das pessoas?”, porque eu acho uma cultura… Não estou aqui falando de um médico, ou outro médico, não é uma questão de individualidade, é de lógica. A lógica hospitalar é fria e muitas vezes é violenta, enfim… Então, os primeiros dias foram horríveis pra mim, horríveis. Porque eu era jogado de um lado para o outro e eles usavam termos que eu não entendia, tinha pouco tato com a minha dor, e às vezes pouca paciência com o meu sofrimento. Mas é complexo, porque era necessário fazer exame, era necessário começar a pulsoterapia, que é o corticoide na veia. Então, eu tenho essa relação, ambígua, né? De valorizar o conhecimento, mas questionar a cultura médica e a cultura hospitalar. Acho muito desumano, falta sensibilidade naquele espaço. Então os primeiros dias foram horríveis, até porque os exames eram inconclusivos, ninguém entendia o que estava acontecendo, por quê o meu nervo estava inflamando e minha visão regredindo, então ainda tinha essa dúvida sobre qual a causa. E além da dúvida, da cultura hospitalar, o outro dado, a minha visão continuava piorando. Eu saio do hospital enxergando menos do que quando eu entrei. Eu tenho alta porque não tinha mais o que fazer, tinha que continuar acompanhando, mas objetivamente eu estava enxergando menos. Tudo muito turvo, embaçado, não reconhecendo mais as pessoas, não andando sozinho, não lendo, não escrevendo, então… dias muito difíceis. Depois continuou sendo difícil, mas eu fui ganhando corpo e força para entender a situação e dar seguimento a vida. Fé! Interessante, Deus nunca foi para mim uma solução imediata para problemas complexos. Essa intuição sempre esteve no meu coração, depois com reflexões bíblicas e teológicas eu vou elaborando melhor essa questão, sofrimento humano e Deus. Mas nunca foi para mim, tipo assim… Deus significa anestesia ou Deus significa proteção prévia. Então, nesse sentido, não foi uma questão pra mim. Não me senti, assim, abandonado por Deus… Eu chorava muito no colo de Deus. Isso sempre foi muito tranquilo pra mim, perguntar a Deus o porquê das coisas, não ter nenhuma resposta e continuar crendo, e continuar alí… Eu brigo, eu brigo com Deus, mas entende? É com Deus, eu brigo com Deus, e ao brigar com Deus eu tô reafirmando Deus na minha vida. Então eu chorava no colo de Deus a minha inquietude diante da minha própria condição, mas não exatamente buscando uma solução imediata, mas lamentando com Deus essa imprevisibilidade que constitui a vida. Depois eu li de uma teóloga, Dorothy Stang, que ela fala que, a presença de Deus nunca é observadora, é sempre alegria de Deus ou dor de Deus. Então, resumindo, eu não pensava em Deus como alguém que observava a minha dor, eu pensava em Deus como alguém que sentia a minha dor, gemia comigo e participava comigo da minha condição. Então a minha fé não se perdeu, talvez ela tenha se aprofundado quando a imprevisibilidade constitutiva da vida se materializou em mim, no meu nervo e no meu corpo. Mas ainda que não tivesse acontecido isso, agora enquanto a gente conversa, a vida continua sendo frágil, uma linha muito tênue entre a potência, o futuro e a finitude.
P - Essa sua relação com Deus sempre foi assim? Você sempre… você nasceu acreditando em Deus, acreditou nele dessa forma a vida inteira? Como é que foi Deus na sua história de vida? Como você começou vendo Deus e hoje como você vive?
R - Desde pequeno, mesmo… A minha mãe até relata isso e eu tenho alguma memória também sobre, que as minhas orações, quando eu era menininho, já eram orações tipo bate-papo, uma conversa… “Papai do céu”, que é a primeira expressão que eu aprendi, nem é a que eu uso mais, porque com o passar do tempo, reflexões e experiências, eu procuro tirar Deus e a linguagem sobre Deus do referencial exclusivamente masculino. Então hoje para mim, inclusive em termos de referência de amor, é mais mamãe do céu, do que papai do céu. Mas eu lembro das minhas orações como menino, novinho mesmo, seria uma conversa com Deus “papai do céu”. Lembro de uma música, que hoje eu canto pra minha filha, extremamente simples, três palavrinhas só, eu aprendi de cor, “Deus é amor, tralalala", é só isso. Mas essa referência de Deus como alguém que ama e com quem eu posso me relacionar de forma pessoal sempre foi algo presente na minha vida, mesmo pequeno. Curioso porque quando eu cresço, não é que eu perca essa dimensão, eu nunca a perdi, mas ela começa a ser impregnada pelos dispositivos de culpa, de medo, de controle, de inibição, que são mecanismos próprios da experiência religiosa, ainda mais atravessada pelo fundamentalismo. Então a minha adolescência… É curioso, porque eu abraço de forma mais profunda o Evangelho, a materialização de Deus no corpo do camponês Jesus Cristo, a encarnação de Deus na periferia do Oriente Médio. Eu me aprofundo no amor por Jesus, e aquela semente de menino ganha força… E mais do que herança familiar, é decisão de vida, é encontro pessoal com o Evangelho. Mas ao mesmo tempo que isso se aprofunda, eu sou socializado numa Igreja Batista conservadora, então a dimensão da culpa, do medo, do controle, da inibição, da disciplina sobre o corpo também marca a minha adolescência. Então esse conflito era permanente, mas na juventude eu consigo ir me desvencilhando desses dispositivos fundamentalistas, e abraçando com mais profundidade a espiritualidade do Evangelho. Mas, sim, Deus é uma palavra-presença, uma companhia que me marca desde pequeno. Não lembro uma época da minha vida em que Deus não fosse uma palavra-presença. Não lembro.
P - Sua mãe tava do lado quando você perdeu a visão e como é que desenrolou? Como foi pra você? O que você conseguiu manter do seu cotidiano? O que você precisou transformar?
R - Eu comecei a fazer um tratamento chamado pulsoterapia, corticoide na veia. Nos primeiros meses, o que mudou? Não andava sozinho, então era levado para a escola, para a igreja, porque tinha dificuldades de me reconhecer nos espaços. Depois, com o passar do tempo, minha visão foi voltando gradativamente… Mas mudanças foram feitas, sim. O meu material da escola era ampliado, nos simulados da escola, no vestibular, a minha mãe ia pra escola, e o diretor saia da sala dele para ela ler a prova pra mim, e eu ficava indicando: “Marca a letra A… Marca a letra B!”. Eu não via, perdi a dimensão do futebol, que sempre me marcou muito, então eu não conseguia ver os jogos do Flamengo, ficava com a cara colada na televisão tentando enxergar alguma coisa. Então eu fui me adaptando ao longo do ano de 2004. Mas ali no meio de 2004 eu já estava mais fortalecido, minha visão já tinha voltado alguma coisa, já ia e voltava da escola sozinho ou com os meus amigos, mas sempre ali com aquela questão da baixa visual e com os médicos… os tais médicos… exame pra lá e exame pra cá, isso era sempre uma angústia para o meu coração. O meu vestibular eu fiz no Instituto Benjamin Constant, aqui no Rio De Janeiro, que é um instituto especializado na educação de pessoas com deficiência visual, então todo o meu vestibular foi com essa especificidade de ouvir mais as provas do que ler as provas, tinha uma pessoa especializada nisso lendo as provas pra mim. Então minha vida passou por ajustes de rotina. No final de 2004, assim já na época das provas, do vestibular, eu lembro da minha visão abrindo mais e eu recuperando a periferia da minha visão, e conseguindo ter mais segurança e confiança para andar sozinho, voltando a ver os jogos na televisão, e reconhecendo melhor as pessoas, voltando a ler e escrever… Lembro da minha alegria quando voltei a ler, tinha confiança e certeza que eu estava recuperando a minha visão. E também entendendo ao mesmo tempo, olha que curioso, feliz pelo retorno, mas entendendo que não seria mais como antes, que era uma informação que os médicos já tinham me dado, mas eu estava sacando, que era uma pessoa que jamais veria como vi antes de dezembro de 2003, eu entendi. E até entender a minha visão me ajudou a ganhar mais autonomia, tipo assim, já que eu não tenho a visão central, já que não estou vendo o seu rosto agora, então… O cérebro humano é fantástico, você desenvolve mecanismos de adaptação para se ambientar no espaço, já sei que a minha visão periférica é melhor, se eu quiser ver detalhes, mesmo, do seu rosto, eu vou jogar minha visão pra cá, que daí o seu rosto entra na periferia da minha visão, e eu consigo entender melhor. Sei que o amigo ali da câmera está com os braços cruzados, não está? É isso! Fez assim pra mim agora, mas se eu jogo pra ali eu não vejo mais ele, então… Eu entendi, opa! Eu não tenho uma visão central. A minha visão central é turva, embaçada e verde, acredita? Eu vejo verde, vinte e quatro horas por dia, se fosse vermelho e preto pelo menos, as cores do Flamengo… Mas, não, é verde! É uma mancha verde o tempo inteiro no centro da minha visão. É embaçado, turvo e verde (risos). Então eu fui ganhando compreensão que era o meu limite, mas era minha visão, e graças a Deus por isso, e vida que segue.
P - Eu ia perguntar da própria Igreja Evangélica, mesmo. Como foi que você começou mesmo? A primeira vez que você foi levado para uma Igreja... Como é que foi?
R - (risos) Eu só nasci no hospital, amigo. O resto é tudo na igreja! Primeira vez que eu vou na igreja deve ser bebê, no colo da minha mãe. Eu menino já na escola bíblica dominical, escola bíblica de férias, culto infantil... Minha vida inteira, desde menino, é na igreja. Na adolescência, foi o que eu falei, deixa de ser uma coisa, “meus pais estão me levando”, e passa a ser o lugar que eu quero estar, são os amigos que eu quero ter, é a minha fé, é quando a minha vocação pastoral brota. É nesse contexto de um adolescente na igreja, que alguém me chama para pregar num culto no lar, numa segunda-feira á noite, eu lembro disso, e eu me preparo, leio a Bíblia - acho que eu preguei em Daniel, capítulo 6, um livro do Antigo Testamento, Profeta Daniel - e ali eu preguei. E sabe quando você sente que está fazendo o que você tem que fazer? Eu me realizei. E quando acabou aquilo: “Nossa, você prega muito bem! Bonita a sua reflexão bíblica! Pode pregar amanhã? Pode pregar depois de amanhã? Prega para as crianças... prega para as senhoras... prega na vigília”. Comecei assim e a minha agenda lotou. Eu virei um adolescente pregador do evangelho... E me apaixonando por esse exercício de ler e interpretar a Bíblia, usar a palavra como forma de tocar os corações das pessoas. Isso tem haver então com ser pastor? Então eu quero isso para a minha vida! Então é na igreja que essa paixão brota, inclusive a minha vocação pastoral.
P - Você já tinha pensado antes em ser pastor, antes de te chamarem?
R - Não!
P - Por que ele te chamou?
R - Eu estava… eu lembro que era toda segunda-feira à noite, lá no ministério de jovens da igreja, tinha culto no lar. E o pastor da época, o Pastor Brasilino, ele tinha essa cultura de chamar um jovem ou um adolescente, no caso, eu era adolescente, para dirigir o culto, que é conduzir o culto… quem vai orar agora... os louvores que vamos ter... conduzir uma oração... e quem vai pregar no culto, aquele momento que na igreja evangélica é tão importante, o momento da pregação da palavra. Então era uma cultura do Pastor Brasilino envolver adolescentes e jovens nessa atividade de dirigir e pregar. Eu lembro até de uma certa ansiedade, participando dos cultos e dizendo: “Pô! Deve ser legal pregar! Mais cedo ou mais tarde vou ser chamado”, porque fazia parte da cultura do Pastor Brasilino. Então chegou minha vez, e eu só não sabia que ia gostar tanto, que ia me apaixonar tanto por aquele exercício. Porque a palavra sempre foi uma força em mim, eu sempre falei e sempre fui falado. Eu falo palavras e palavras me falam, e tem hora que eu e a palavra somos a mesma coisa. Palavra para mim é matéria prima, é arte. É comunicação, é ponte. É confronto e encontro. É convocação e convite. É interpelação e futuro. É uma faca, mas também um carinho. É uma ferida, mas também um curativo. Eu acredito no poder da palavra, a palavra é uma ação, a palavra engaja, comove, converte e consola. Não estou aqui, espero ser bem compreendido, desmerecendo o poder da práxis, mas só estou dizendo que a palavra também tem energia e força, ela constrói mundo, ela abre janelas de futuro, ela pode ser destrutiva, verdade, mas ela pode ser encantadora. Então, como aluno, como professor, como escritor, como poeta, como artista, como pastor: a palavra. Ela me vem e é isso.
P - Isso era uma poesia pronta ou você foi....
R - Não, não…
P - Então eu ia perguntar de poesia porque você falou tanto da palavra... Você tava falando que foi chamado para falar.... Como foi que você começou a fazer o seu primeiro poema?
R - Essa é a parte mais desorganizada da minha vida, as pessoas lamentam muito que eu não guardo e organizo as minhas poesias. Se você me pedir uma poesia, eu só vou ter aquela, embora eu já tenha feito centenas na minha vida. Por exemplo, todo casamento que eu faço, como pastor celebrante, eu conto a história do casal em forma de poesia. Essas eu consigo, devem estar no meu e-mail, porque eu vou enviando para os casais, entende? Eu deveria organizar melhor isso na minha vida… Mas eu lembro que na minha juventude, eu comecei a… ai entra uma outra dimensão, né, da política… Então um pastor engajado politicamente, participando de movimento estudantil, movimento negro, direitos humanos, então você começa a ser chamado para participar de umas mesas, debates sobre isso, debates sobre aquilo e eu acho, amigo, que… Ah não, não, não… eu já tinha feito poesias na minha adolescência, com certeza… na minha adolescência eu lembro de fazer poesias sobre a vida, sobre o amor e sobre a sociedade. Mas o que eu estava contando é que quando eu participava de mesas, nesse ambiente da militância, eu sempre terminava a minha intervenção com uma poesia feita na hora, de vez em quando ainda faço isso. Tipo assim, tá rolando aqui, tô ouvindo tal pessoa, “pô, interessante isso que ela disse”, ai tem uma intervenção do público, “pô, interessante”. As pessoas até acham que eu estou disperso, tem gente que reclama comigo dizendo: “Henrique, parece que você não tá prestando atenção porque você tá toda hora com um papel e uma caneta”, mas é ao contrário, eu estou transformando tudo que estou ouvindo em poesia. Daí quando a palavra volta pra mim, eu tenho uma poesia pronta e eu termino a minha intervenção com uma poesia feita na hora. Então isso eu lembro bem, da poesia aparecendo na minha adolescência, já refletindo sobre o mundo, e na minha juventude, como militante, quebrando um pouco o protocolo dos debates e terminando as minhas intervenções em forma de poesias que eu fazia na hora, captando o sentimento do espaço. É isso!
P - Dois caminhos, né? A poesia e a política. Eu já vou voltar para saber sua relação com a política. Mas na poesia, essas criações poéticas, você chegou a apresentar alguma vez na igreja? Falar versos?
R - Já! Já usei de poesia em várias pregações minhas, com certeza, só que sendo muito sincero, assim, a vida é muito corrida. Eu sou um defensor do tempo livre, o mundo que eu defendo terá muito tempo livre, porque eu não consigo, na minha dinâmica de vida, separar tempo para organizar melhor isso, entendeu? Pensar poesia, ler poesia, pesquisar poesia, organizar minhas poesias, eu nunca consegui ter tempo pra isso, ou talvez tenha me faltado o ímpeto e a decisão pra fazer, também posso reconhecer isso, então eu queria ter estudado mais. E tinha uma época que eu até me perguntava se o que eu fazia era poesia ou era uma coisa muito trivial, se um bom poeta olharia para aquilo e diria: “não, isso é qualquer coisa, mas não é poesia!”. Eu não sei nem quais são as regras, eu nem sei se tem regras, eu não sei quais são as definições do que caracteriza ou não uma poesia. Então eu continuo rabiscando, boa parte desses papéis se perdem, mas aos poucos, eu fui entendendo também… como é que eu posso dizer… por quê eu me afirmo poeta. Vou ser sincero e posso estar ferindo uma ética aí, mas eu me considero poeta não por uma produção de poesia, mas porque com o passar do tempo eu fui percebendo que a minha forma de falar carregava em si poesia. A minha pregação tem um “q” de poesia, as minhas falas políticas tem um “q” de poesia. Então eu nem sei se é correto fazer isso, se eu acabo deslegitimando um lugar de fala de quem pesquisa, porque eu gostaria de pesquisar, para compor melhor, para entender melhor… Quando o Emicida me chamou pra fazer a poesia e eu fiz, e muita gente conta histórias lindas sobre essa poesia, lindas assim. Tipo, “salvou minha vida”, teve gente que mostrou tatuado no corpo uma parte dela, enfim… Mas aí eu comecei a pesquisar, o máximo que eu fiz até hoje foi pesquisar as letras de Emicida, Mano Brown, dos Racionais… fui tentar entender um pouco essa métrica, o que rima, aí fui descobrindo coisas, não precisa rimar toda hora, pode prolongar ali o período sem problema, a rima pode ser óbvia alguma hora e não em outra e tudo bem, mas também nem sei se pode… enfim! Olha só que loucura, eu sei pouco sobre isso que me habita. Eu sei que me habita, por isso eu me legitimo como, mas me falta conhecimento e pesquisa sobre essa pulsão poética que me constitui e que me atravessa.
P - Como foi que aconteceu esse negócio de fazer poesia pra casamento? Poderia contar como começou e também algum casamento que foi marcante pra você celebrar.
R - Ah, não, assim… Porque eu acho que casamento na sociedade que a gente vive tem grande potencial de ser chato (risos). Uma sociedade patriarcal com mecanismos…. Pode ser um lugar tão comum um casamento, é tão fácil reproduzir uma lógica de uma normatividade que não dá conta da diversidade da vida. Então eu fui criando mecanismos para impregnar esse lugar, sabe, de afeto, de delicadeza, de horizontalidade, de beleza… Então eu comecei a fazer poesia como forma de impregnar o ambiente disso. Mas também, sendo muito sincero, os casais que me procuram também, com o passar do tempo, são casais que já vem dizendo: “Eu não quero uma coisa padrão, tá? Pelo amor de Deus, não termina dizendo, pode beijar a noiva” (risos), entende? Então eu sou um privilegiado nesse sentido, eu acho os casais que chegam querem ritualizar o amor. É muito menos uma demanda, uma pressão, e mais “eu quero celebrar em comunidade e ritualizar um acontecimento dentro do nosso coração”. Então são casamentos com histórias muito potentes. Não tô romantizando, não, tá? Tudo na vida tem conflito, divergências, zonas nebulosas… Mas foi assim que começou, de poder impregnar esse rito dessa afetividade, e também porque é uma forma de singularizar a celebração. Tipo assim, é uma poesia para você, eu ouço o que o casal me conta, quando se conheceu, como se conheceu, que viagem marcou a vida, e realmente a poesia tem essa função. Não é uma poesia genérica sobre o amor, é uma poesia que conta a história do casal. Então as pessoas riem, as pessoas choram, as pessoas gargalham, os amigos entendem que eu tô passando por espaços que todo mundo ali sabe o que aconteceu. Então a poesia no casamento também é uma forma de dar ao casal um lugar que é dele, não uma reflexão genérica sobre como é importante amar, enfim… é por isso.
P - Agora eu queria perguntar da política mesmo. Porque não é muito comum encontrar… Você, pelo o que eu tava vendo, tem pautas bastante progressistas. Como foi que você se aproximou do movimento negro, periférico…?
R - Olha, desde pequeno, o Evangelho, de verdade, sempre me provocou sensibilidade diante das pessoas e do mundo. Então antes de conhecer Teologia da Libertação, conhecer movimento negro, dialogar com o marxismo latinoamericano na universidade, desenvolver uma crítica profunda ao capitalismo, antes de todas essas formulações, eu era um menino que a partir do Evangelho tinha sensibilidade diante da vida e das pessoas. Sempre me chamou atenção. Lembro de quando menino me incomodou o fato de que existe fome no mundo, não conseguia entender, não conseguia achar razoável, por quê? Talvez tenha alguma coisa aí, também, de recorte de classe associado à dimensão do Evangelho. Vou explicar: eu era de uma família pobre. Miserável? Não! Passando fome? Não, não, não! Mas pobre, cinco pessoas num quarto. Eu não sei o que é quarto, “meu quarto”, eu vou saber isso… Não, eu nunca tive quarto pra mim, eu morei num quarto com a minha família inteira na casa da minha avó, e adolescente dividi um quarto com o meu irmão e minha irmã, que já foi maneiríssimo, só nós três. Isso num país que tem pessoas que não tem nem casa, entende? Uma infância simples, mas não miserável. Mas tipo assim, vou dar um exemplo, quer ver? Na Alameda São Boaventura, onde eu cresci, ali no Fonseca tinha duas escolas particulares muito baratas, vou até lembrar o nome, Colégio Santa Marta e Colégio Externato Lopes, e na sociedade em que a gente vive, infelizmente, quando a pessoa tem um pouquinho mais de dinheiro, ela coloca o filho em uma escola particular, nem queria que fosse assim, mas são questões históricas aí. Então estudar numa escola particular, por mais barato que seja, é um símbolo ali de “tem um pouco mais de dinheiro”. Nesse condomínio popular que eu cresci, no pé da Vila Ipiranga, ali na rua da frente, onde ficava o bloco 15, 304 o meu apartamento… naquela faixa ali, a garotada com quem eu convivi, a maioria estudava no colégio Santa Marta e no Colégio Externato Lopes, e eu achava o máximo, galera que ia pra escola particular, e eu, estudante da escola pública, Colégio Estadual Joaquim Távora. Aquilo mexia com a minha sensibilidade, e aí na hora de ir pra escola eu pegava o ônibus 62, Fonseca Icaraí. E eu não lembro direito porque, mas nem sempre os motoristas nem sempre deixavam eu entrar pela porta da frente, que é de graça - eu não tinha dinheiro da passagem - eu nem sei porquê… É uma boa pesquisa, porque eu acho que era um direito, não sei se as empresas respeitavam, ou se não era um direito e eu achava que era… mas eu achava que, com o uniforme da escola pública, eu podia entrar pela porta da frente. Mas eu dependia da boa vontade dos motoristas, isso eu lembro. Então, tinha motorista que dizia: “sobe!”, e tinha motorista que não deixava, e essa volta em direção ao ponto era muito constrangedor. Eu falo assim, e as palavras me falam assim, mas eu sou tímido, então voltar ali pro ponto com as pessoas me olhando, entendeu? Então meus amigos são da escola particular, e eu não. Nem sempre o motorista deixa eu entrar, então eu volto pro ponto, assim, e as pessoas te olhando… E na oitava série eu consegui uma bolsa em uma escola particular ali em Niterói, Colégio Daflon Ferraz, então consegui uma bolsa, minha primeira experiência com escola particular. E eu lembro bem de no recreio eu não ter o dinheiro do lanche, pode parecer uma coisa banal, e não é uma história dramática, história dramática é a fome, mas eu tô falando de mim, tem uma legitimidade porque é minha mémoria, é meu corpo, e o meu constrangimento de na hora do recreio não ter o dinheiro pro suco e pro salgado, e meio que revezar, cada dia pedir pra um amigo pra não ser o cara chato, entendeu? Então hoje eu peço pro Franco, amanhã eu peço pro Garfield, tem dia que eu não peço, mas eu não tinha um real. Então eu acho que essa questão social sempre me habitou. Por que tem diferenças de acesso às coisas, sabe? Aí na minha adolescência essa intuição/sensibilidade, seja por leitura do Evangelho, seja olhando pro mundo, ou minhas pequenas experiências de constrangimento, por não ter acesso a algumas coisas, essa intuição ganha força. Primeiro quando eu estudo a história de Martin Luther King, um pastor Batista que lutou contra o racismo nos Estados Unidos. Ai na escola eu fui aluno do Marcelo Freixo, professor e amigo, uma escola progressista em Niterói, então uma escola que me fez pensar sobre criminalização da pobreza, política de drogas, violência da polícia, genocídio da juventude negra. Então a escola foi abrindo minha cabeça, e aquela intuição foi ganhando formulações de mundo… Desigualdade social, concentração de renda, violência policial. Já não era mais uma sensação e uma intuição, era o mundo sendo me apresentado pela janela da escola, é importante dizer quando a escola cumpre essa função. Lembro de um projeto chamado… Falo muito? Ah, tá… Lembro de um projeto chamado “O que é loucura?”, primeiro ano do ensino médio, um projeto multidisciplinar que debateu com a gente o conceito de loucura na história. Afinal, o que é ser louco? Quem define a partir de qual critério? O que é uma definição científica, psíquica, psicológica? O que é produção do louco como forma de violência? Uma mulher lutando contra a opressão pode ser uma louca, militantes de direitos humanos podem ser loucos, pessoas foram presas em manicômios durante a ditadura. O que que é louco? Entende… Primeiro ano do ensino médio… Então a gente estudou, a gente viu filmes como “Bicho de sete cabeças”, “Um estranho no ninho”, “Garota interrompida”, conversou com assistente social, psicólogo, a gente foi apresentado à reforma psiquiátrica, luta contra os manicômios, que foi a minha primeira forma de militância. E sabe como termina esse projeto sobre o que é loucura? De uma forma muito louca, a escola nos levou ao hospital psiquiátrico penal. Eu cheguei em casa e falei: “Mãe, tem um passeio, a escola vai fazer uma excursão, e não é um museu, não é um parque aquático. Nós vamos a um manicômio prisional, são pessoas que cometeram crimes, mas houve um julgamento que elas não estavam no seu estado mental adequado, e por isso a prisão é convertida em internação, e não é presídio comum, é manicômio prisional, a escola quer levar a gente até lá.” (risos). Minha mãe: “Nossa! Que coisa! Não era melhor ir no Rio Water Planet?” (risos). Enfim, mas fomos, cara, isso mudou minha cabeça, irmão. Eu já estava assim super tomado pela reflexão, pelos filmes, as conversas, mas quando chegou nessa visita, aí foi potente demais. Porque, assim, do início ao fim da visita eu conversei com um menino que tava lá, cara, ele devia ter uns dezoito anos, no máximo, não mais do que isso. Jovem, negro, pobre, com histórico de várias privações e dependência química, não sei que crime ele cometeu, mas a gente só conversou, conversou, conversou, bateu papo o tempo inteiro na visita guiada ali. Quando chega no final… Só um parênteses, nesse momento, meu irmão e minha irmã já tinham entrado na universidade e estavam fazendo estágio, e a condição da minha família tinha dado dois passos acima, já éramos uma família de classe média baixa, entendeu? (risos) Então, já tava melhor, a gente morava em Santa Rosa, ali, um outro bairro de Niterói, enfim… eu estudava ali nessa escola progressista de Caraí, um bairro elitizado da cidade. Daí esse menino me faz duas perguntas, quando acaba a visita e Freixo chama a gente pra ir embora, ele me pergunta assim: “Pra onde cê vai?” (pausa). E… nunca foi tão estranho dizer o óbvio, sabe: “Vou pra casa”, eu tinha uma casa pra voltar, entendeu: Não era só uma casa, era encontrar meu pai, minha mãe, dormir, comer, acordar, amanhã tinha escola de novo… Um abismo se abriu entre nós, assim. Casa, família, eu volto, você não. Ele perguntou se eu voltava, segunda pergunta que mexeu comigo: “Você volta?”. Eu não lembro o que eu respondi, mas assim, cá entre nós, óbvio que eu não ia voltar, como é que eu ia voltar? Eu tinha quinze anos, eu fui levado por um projeto da escola, mas isso foi em 2001, estamos em 2022, eu não voltei, mas olha como é que ele não saiu de mim, esse menino. Ali eu faço uma decisão militante de vida, ali é política que eu defendo na minha vida, eu quero ser alguém que participa da sociedade pra transformar a realidade, simples assim. Porque eu não quero mais esses abismos, não quero, não quero manicomio, não quero prisão, não quero letalidade policial, não quero genocídio da juventude negra, não quero ver criança passando fome, não quero família ver sem teto, não quero ver família sem terra. Acho que tá errado pouca gente com tanto dinheiro e tanta gente lutando pra sobreviver. Então, eu quero me organizar coletivamente… É isso que eu chamo de política… Quero me organizar coletivamente pra incidir no mundo, pra reduzir abismos, pra eu ir pra casa e ele também, isso que pra mim é política.
P - Ia perguntar então, desse momento, dessa sua decisão de locar a vida em rumo ao social, em 2001. Agora a gente em 2022… Poderia fazer um resumo dentro dessa trajetória, o que você fez de mais importante dentro da militância social e o que mais te tocou, que você viu?
R - Olha, vou te falar, a igreja que eu pastoreio hoje, que a Igreja Batista do Caminho, talvez seja uma parte importante dessa história, porque a fé é política. Eu reivindico esse lugar. Então ter participado de um coletivo que construiu uma igreja, que afirma a diversidade, os direitos humanos, o dialogo interreligioso, uma igreja que produz teologia feminista, uma igreja que produz teologia negra, uma igreja que acolhe pessoas machucadas e massacradas pelo fundamentalisto religioso, isso pra mim é político. A minha igreja é um espaço de militância, ela cuida, acolhe, sinaliza, desenvolve projetos, tem um pré-vestibular comunitário Marielle Franco. Então a minha igreja é um espaço que eu reivindico como um espaço político de militância. Além disso, uma outra dimensão importante é minha filiação partidária, fui vereador em Niterói, um mandato muito potente, trabalhei na Comissão de Direitos Humanos junto com Marcelo Freixo, um outro espaço importante em que esses dramas brasileiros e cariocas ali se materializavam, a violência do Estado, o genocídio da juventude negra, as mães desesperadas pela morte dos seus filhos. Então essa militância nos Direitos humanos, essa militância no Fé e Política também, no Coletivo Esperançar, que é o coletivo que eu faço parte de evangélicos, diversidade, democracia, direitos humanos e justiça social, são coisas que me marcam bastante. A igreja, o partido, o movimento negro e os direitos humanos, e a minha caminhada como artista também, eu vejo como expressão política. O livro “Amor como revolução”, a peça “O amor como revolução”, o filme “Marighella”, dirigido pelo Wagner, também é minha dimensão de ator e eu a interpreto como contribuição política, como expressão de uma concepção de mundo, de sociedade, de humanidade. Acho que nesses vinte anos, nesse resumo: igreja, partido, púlpito, palco e parlamento. Ó, que loucura! Púlpito, palco e parlamento… igreja, parlamento, e teatro, e cinema… Enfim…
P - Público, palco, parlamento e poesia…
R - Tudo meio que junto, eu sempre fui meio assim, entendeu?
P - E pastor…
R - E pastor… Nossa, que loucura! Pô, vamos pensar nisso, hein… Mas nunca… eu não gosto de contar essa história como uma coisa individual, né? É a minha igreja, é o Coletivo Esperançar, é o partido. É sempre em roda, é sempre no fluxo da comunhão, é sempre me construindo a partir das relações, das pessoas. Eu sou fruto de amizade, eu sou fruto de comunidade, eu sou fruto de construções coletivas, eu sou fruto de Teologia da Libertação, de irmã Dorothy, Luther King, Frei Beto, Frei Tito, né? Então não é uma biografia isolada de rodas e de ancestralidade.
P - E falando dentro desse mundo, evangélico, mesmo… Você ter feito da sua fé também uma forma política, houve aproximações, outros pastores que foram na mesma linha e também enfrentamento, gente pedindo que você parasse… Como é que foi isso?
R - As duas coisas. Foi o que eu falei, a minha trajetória tá dentro de um campo, então eu não sou uma novidade e nem um pioneiro. Então, eu que me aproximei de gente que fazia muitas coisas, pastores e pastoras com muito amor pelo povo, pela justiça, pela diversidade, irmãs e irmãos de fé. Mas sim, à medida que eu fui avançando, eu posso dar esse relato com alegria e gratidão, muita gente agradecendo por isso e sendo acolhida por este ministério, por essa pastoral engajada. Então tem muitas aproximações nessa história, muitas mesmo, no Brasil inteiro, em tudo quanto é canto. Agradeço a Deus de fazer parte de uma construção que agrega e aproxima muita gente. Mas o outro lado também é verdade, né? Tipo, desde pessoas que acham que eu me perdi completamente, pessoas que nesse momento devem orar por mim pra que eu me converta “abriu mão da fé, não é cristão”, e isso são as pessoas que se importam comigo, elas acham só que eu estou perdido, mas tem alguma compaixão e amor. E tem ódio, coisas como tipo, “se eu te encontrar na rua quero te fuzilar”, “você vai pro inferno, mas devia ir logo porque tá levando muita gente com você. Então quanto antes você for menos gente você prejudica”, então tem ódio também, isso não é nada legal, pessoas que te odeiam pelo o que você é, pelo o que você faz, e pelo o que você fala. Então tem aproximações e tem rupturas.
P - Teve alguma situação, algum culto, alguma pessoa que você acompanhou, algo que foi realmente marcante na sua trajetória, uma história mesmo que você viveu?
R - Olha, tenho muitas histórias, é difícil até registrar uma. Mas recentemente, acho que faz um mês e meio, uma menina chegou pra mim numa Universidade, que eu participei de uma mesa, ela me chamou no canto depois, chorando, e ela disse que encontrou a minha poesia quando ela tinha decidido morrer. Ela usou a seguinte expressão: “Eu via a morte, quando eu encontrei a sua palavra”, uma menina preta e lésbica, um alvo do fundamentalismo. E ouvir um pastor acolhendo seu corpo, sua orientação sexual, pra ela foi salvação. Isso eu já teria valido a pena, de tudo que eu fiz, tudo que eu vivi. E não é uma história incomum, não é, até queria que fosse, até porque é muita gente machucada, mesmo… Mas essa por ser muito recente me marcou profundamente, de ver uma pessoa dizendo que a minha pastoral poética e política, pra ela foi uma decisão de não suícidio. E acho que tá na Bíblia, né, “uma vida vale mais que tudo”... Então, já valeu a pena.
P - Já que você adentrou na morte, queria perguntar também, como foi seu encontro com a morte? Como você olha… como evangélico, e também como pastor… a morte, mas tantos mortes que você vivenciou, como você tocou, do genocídio?
R - É… Tem uma dimensão da morte que é tipo aquela música do Toquinho, eu acho que é do Toquinho: “às vezes eu fico pensando na vida”, não sei se é do Toquinho… “Às vezes eu fico pensando na vida e sinceramente não vejo saída, como é por exemplo que dá pra entender, a gente mal nasce e começa a morrer”. Tem um padecimento, um falecimento, que é próprio da vida, esse me angustia, mas eu guardo certa resignação. É a vida que se esvai, é a vida que se vai, é a vida que tem o seu ciclo, é nascer e começar a morrer. Acho que é o Rubem Alves que fala, que tem algo que é trágico na vida, tem tragédias e tem o trágico. Ele conta de uma vez andando no apartamento dele, ele viu uma foto de seus filhos pequenos, e ele foi tomado de uma tristeza, mas não uma tristeza porque algo estava acontecendo, mas só esse registro de que tudo aquilo que a gente ama, de alguma forma se vai no fluxo do tempo. Então só lembrar dos filhos pequenos, e aquilo já não estar mais sendo vivido, trouxe uma tristeza, mas não tinha nada de ruim acontecendo, entendeu? É só a vida indo. Isso é belo, mas carrega alguma coisa frágil, fadada ao fim. Nascer é começar a morrer. Essa morte aí está no jogo da vida. Agora, a morte provocada, a morte induzida, no sentido da eliminação violenta da vida, me causa rebeldia. Tanto o deixar morrer, quanto o matar. Deixar morrer pela fome, deixar morrer pela falta de uma água potável, deixar morrer por doenças evitáveis, mas aí não tem saneamento básico. Esse modelo deixa morrer todos os dias. Posso contar uma pequena história?
P - Claro!
R - Um dia eu estava brincando com a minha filha, e passou um pouquinho do horário dela jantar, uma história muito corriqueira… passou um pouquinho do horário da Maria jantar, só isso. Ela ficou um pouco irritada quando acabou a brincadeira e logo falou: “Papai, estou com fome”. E eu não sei por quê, acho que nessa semana eu tinha participado de um debate sobre soberania alimentar, e essa informação de que 30 milhões de brasileiros estão numa situação de fome, mesmo, no Brasil… Eu sei que quando a Maria falou isso, eu olhei pra Carol, a minha companheira, minha amada, e na hora me bateu uma coisa assim: “Carol, e se nós não tivéssemos nada pra dar pra Maria agora? E se, como pai e mãe, a gente abrisse a geladeira agora e não tivesse nada? O que dizer pra uma criança? Entendeu?”. Achei isso muito louco, muito ruim pra criança… Porque eu fico imaginando, cansaço, irritabilidade, a criança fica estressada… O pai, a mãe ou os pais ou as mães, porque vários modelos… Mas o que que vai passar pela cabeça de um pai? Eu falo no meu lugar então: fracasso, medo, raiva, ódio, desespero… Essa sociedade produz isso, entendeu? Isso é deixar morrer, é morrer em vida, e pode levar a morte, mesmo, a subnutrição, uma doença, imunidade frágil, morte. Tem o deixar morrer, e tem o matar. Em uma sociedade como essa, mata pelo prato vazio e pelo fuzil. Então não sei se estou me fazendo entender… O genocídio da juventude negra no Brasil não é o sistema dando errado, não. É o sistema dando certo, ele é feito pra isso. Você não pode organizar uma sociedade tão desigual sem mecanismos institucionais de encarceramento e letalidade, tem que prender e matar pra poder reproduzir uma ordem absolutamente caótica. Então esse tipo de morte, entendeu? Da fome, do fuzil, eu me rebelo contra ela. A morte da dinâmica bela e trágica da vida, aí eu faço uma poesia, eu acolho, “Vai chegar o momento de todos e todas”, mas a morte provocada por uma engenharia desumana, essa morte eu declaro guerra.
P - E você já teve contato com ela assim, de ter que fazer, por exemplo, um enterro?
R - Muitos!
P - A pessoa morre…
R - Muitos! Eu sou pastor, né? Então é maternidade, casamento e velório. Muitos! Muitas mortes. Sim!
P - Mas mortes pela polícia?
R - Ah! Também.
P - E é diferente?
R - Claro. Eu nunca coloco num lugar fácil, né? Tipo, “tá tudo bem, Deus tá com você”. Não é minha linha de tratar a dor humana, então é sempre um lugar de muito respeito à dor. Mas é diferente, óbvio que é diferente, você tá num velório de alguém que viveu a vida inteira, morreu de velhice, e num velório de uma pessoa que a vida foi tirada pela violência, entendeu? É diferente.
P - No livro… No Livro Sagrado tem alguma passagem que você acha que se relacionou muito com a sua história de vida?
R - Tem...
P - Que seria… uma principal passagem que você acha que tem haver com tudo que você vive.
R - É João capítulo 13, versos 34-35, quando Jesus fala pros seus discípulos e discípulas: “Novo mandamento dou pra vocês: que vocês amem uns aos outros como eu amei vocês, nisso todos vão conhecer que vocês são meus discípulos se vocês amarem uns aos outros”. Pra mim o segredo da vida tá por aí, por essas palavras de Jesus. Não tô falando de um amor romântico, burguês, alienado, abstrato, preso ao sentimentalismo, não, não… Estou falando do amor que sofre, que grita, que se inquieta, que trás uma paz que não deixa em paz. O amor que se abre, que sacraliza tudo, que se emociona diante do rio, da cachoeira, do grão de areia e do pôr do sol. Do amor que tem uma gestação de esperança, uma dor que aponta o futuro, que nos faz chorar a dor do mundo como se essa dor fosse nossa. O amor que é ético, político, relacional, concreto. O amor que é enquanto se faz, nas palavras de Bell Hooks, o amor não é, o amor faz, só é à medida que acontece... O amor desse nazareno, que quebrou preconceitos, que foi eliminado pelo sistema político, religioso, que celebrou a diversidade, que repartiu o pão, que denunciou o acúmulo de riquezas. É muito difícil um rico de verdade ter amor de verdade. Tem que ter perdido muito da alma para construir muita riqueza para si, no mundo em que crianças passam fome. Jesus interpretou isso, o egoísmo crônico de quem acumula muito pra si. Esse amor que conhece a cruz, mas mesmo na cruz ainda suspira de amor pela vida, e por isso ressuscita e dribla até a morte. Nesse sentido é um amor que se rebela. Nem a morte dá fim a esse amor como gestação do futuro, e que pare a esperança. Então pra mim, João 13, 34-35, talvez o resumo da minha história de vida e fé. Talvez seja um bom texto pra colocar quando eu for pro reino da brincadeira, dos palhaços, dos poetas e das crianças que é o céu. Aí podem colocar lá que eu tentei viver de acordo com isso. Fazendo do amor uma expressão de Jesus.
P - Tem algo da sua história de vida que eu não perguntei, mas você gostaria de deixar registrado?
R - Eu sou Flamengo! Muito!
P - (risos) E pra fechar, hoje como você olha, dentro de tudo que você viveu e de tudo o que você vive, o sentido da vida? Qual é o sentido da vida?
R - Doar, doer, servir e sorrir. É dar-se ao outro e sentir a sua dor. Servir a humanidade e assim encontrar alegria. Poder se divertir também, poder se deliciar com a experiência de estar vivo. Então é doação e dor, mas é serviço e alegria. Acho que por aí a vida se impregna de sentido. Continuará sendo frágil, continuará sendo como caminhar na beira do abismo, mas nessa beira do abismo, produzir coisas lindas e extraordinárias. Isso pra mim é viver.
P - A última pergunta pra fechar, se você só pudesse levar, de tudo que você viveu, uma memória para a eternidade, qual memória você levaria?
R - O nascimento da minha filha. Porque aí tem a minha companheira e o nosso amor gerando a minha filha, e no primeiro andar ali do hospital, a minha mãe nos aguardando. Então é uma memória que junta três amores, assim… Companheira, filha e mamãe. Acho que eu levaria pra eternidade essa memória assim.
Recolher