Raimundo Rodrigues de Souza
Nascimento: 08/01/1943, Quixadá
Profissão: Usineiro
P/1 – Para começar, eu gostaria que o senhor nos dissesse o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R – Meu nome é Raimundo Rodrigues de Souza. Minha data de nascimento é dia 08 de janeiro de 1943.
P/1 – O senhor nasceu aonde?
R – Eu nasci em município de Quixadá, Ceará. A terra da galinha choca.
P/1 – Qual é a origem dos seus pais?
R – Cearense.
P/1 – Os dois? Tanto parte de pai como parte de mãe?
R – É.
P/1 – E qual que era o nome deles?
R – Ritalina Fagundes de Araújo.
P/1 – E do seu pai?
R – Clementino Fagundes de Araújo.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Meu pai era agricultor lá no Ceará e a minha mãe era doméstica.
P/1 – E quantos irmãos o senhor teve?
R – Nós somos cinco irmãos. Seis com um só por parte de pai.
P/1 – Que profissões eles seguiram?
R – Trabalham com agricultura lá no Ceará.
P/1 – Plantam o quê?
R – Plantam milho, feijão, roça. É aquela coisa de cearense. Cria gado, carneiro, cabrito, porco, essas coisas.
P/1 – E como era essa cidade que o senhor cresceu?
R – Muito pequenininha na época. Depois, eu acabei de me criar em Fortaleza.
P/1 – O senhor foi para lá com quantos anos?
R – Fui para lá com dez anos de idade.
P/1 – E como era Fortaleza nessa época?
R – Fortaleza era uma cidade já grande, mas, em vista de hoje, era um atraso muito grande.
P/1 – Como era a casa da sua infância?
R – Era uma casa simples mesmo, de taipa. De barro com madeira.
P/1 – Isso em Fortaleza ou ainda na cidadezinha do interior?
R – Lá em Fortaleza era assim e também na cidade de Quixadá.
P/1 – E do que o senhor brincava quando criança?
R – Brincava de bolinha, de bola, triângulo. Essas brincadeiras de menino mesmo.
P/1 – Qual era a que o senhor mais gostava?
R – Gostava mais era de jogar bola.
P/1 – Brincou de bola durante muito tempo?
R – Muito tempo quando era criança. Todo o tempo gostei de bola.
P/1 – Depois de jovem não?
R – Também.
P/1 – Achou que ia chegar a ser um profissional ou alguma coisa assim?
R – Não, porque eu nunca me dediquei. Mas eu gostava, era um esporte.
P/1 – Tem um time pelo qual torce?
R – Tenho.
P/1 – Qual?
R – No Rio de Janeiro é o Flamengo.
P/1 – Mas qual é o seu time mesmo?
R – Aqui é Leão Náutico Clube.
P/1 – Que é de?
R – É daqui.
P/1 – Daqui mesmo.
R – É.
P/1 – E o senhor estudou?
R – Estudei lá no Ceará.
P/1 – O senhor estudou até que ano?
R – Fiz até a quarta série lá
P/1 – E como que era essa escola?
R – A escola naquele tempo era uma escola em que se aprendia. Você fazia, estudava a carta de abecê e tinha que voltar todinha. Se não soubesse, você tinha que estudar novamente. Não é como hoje que passa meio direto.
P/1 – Se você não soubesse a lição o que acontecia?
R – Ia voltar a estudar novamente a cartilha.
P/1 – E o senhor estudou até que ano mesmo?
R – Até a quarta série.
P/1 – E o senhor teve dificuldades para se manter na escola ou alguma coisa assim?
R – Eu tive porque eu fiquei sem mãe com seis anos de idade. Aí o meu pai negociava como ambulante, não parava quase em casa. Tinha essa dificuldade.
P/1 – E o que o senhor fazia na juventude?
R – Na minha juventude eu trabalhei aqui em Maués? Comecei a trabalhar na usina de pau-rosa.
P/1 – O senhor já tinha quantos anos?
R – Já ia para os 16, 17 anos.
P/1 – E fora isso o que o senhor fazia mais quando jovem?
R – Depois eu fui trabalhar no mato, aqui a gente chama de centro, trabalhar em pau-rosa.
P/1 – Mas o senhor fazia alguma coisa para se divertir? Como era isso?
R – Só quando chegava aqui na cidade, de seis meses, de ano, a gente vinha para cidade se divertir. Lá no interior, alguma festinha, muito difícil.
P/1 – O senhor ia para o interior e ficava lá vários meses?
R – Ficava lá sozinho. Depois completava o ano para ter dinheiro para gastar. Aí chegava aqui e brincava mesmo.
P/1 – Mas como que era isso? O senhor era contratado dos proprietários? Como era?
R – Era contratado.
P/1 – Explica para gente como funcionava isso.
R – Você ia tirar pau-rosa e vendia por tonelada para o patrão. Se o pau-rosa naquele tempo fosse, digamos, dez cruzeiros, ou 20 Cruzeiros a tonelada, você vendia e comprava um o rancho. E quando passava seis, oito, dez meses tirava um saldo e vinha para cidade gastar.
P/1 – Mas como funcionava isso? O pau-rosa tava na propriedade de alguém?
R – Não.
P/1 – Como era então?
R – O pau-rosa era da terra do Estado. Não tinha proibição nenhuma naquela época, não tinha IBAMA [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], não tinha meio ambiente, não tinha nada. Era devoluto.
P/1 – E como funcionava?
R – Tirava a madeira, cortava e trazia para o patrão e o patrão trazia para o usineiro.
P/1 – E o quê se faz com o pau-rosa?
R – Tirar o incenso. O incenso de pau-rosa é muito valorizado.
P/1 – Mas se faz o que com ele?
R – Faz extrato, perfume.
P/1 – O senhor contou para gente da outra vez que veio do Nordeste para Maués acompanhando o seu pai. Eu queria que o senhor contasse como foi essa história. Por que vocês saíram de lá? Que ano que o senhor chegou? Como foi se adaptar a Maués?
R – A gente saiu do Nordeste porque naquela época havia muita seca, não chovia. Até agora o Nordeste é escasso de chuva. A gente perdia os animais, perdia as lavouras. Aí o meu pai veio para o Amazonas. Eu vim com ele, com meu pai, e mais uma irmã casada e um cunhado. Fomos trabalhar na usina de pau-rosa, onde eu cortei esse dedo. De lá fiquei trabalhando no pau-rosa já no mato. Depois que eu cortei o dedo fiquei com medo de trabalhar na usina e fui trabalhar no mato já tirando da mata para usina. O meu pai foi embora, não se adaptou bem. Eu pedi para ficar, ele deixou e eu fiquei. Nós chegamos em 1968 e quando foi em 1969 ele foi embora. Eu fiquei sozinho, sem pai, sem mãe.
P/1 – Era 1968?
R – 68. 69 meu pai foi embora e eu fiquei só.
P/1 – Ele veio para trabalhar mesmo nessas atividades?
R – Não, ele veio para trabalhar no que ele encontrasse.
P/1 – Ele também não era músico ou alguma coisa assim?
R – É, ele era sanfoneiro.
P/1 – E aqui ele trabalhava com isso também?
R – Ele trabalhava de dia na usina e de noite, quando tinha festa, ele vinha tocar. Eu ainda batia no pandeiro para ajudar.
P/1 – E o senhor manteve essa coisa de tocar pandeiro?
R – Não, eu perdi. Eu tocava sanfona também, mas eu fui para o mato e abandonei tudo. Aí foi só o trabalho.
P/1 – Vocês ficaram um só ano em Maués juntos?
R – Só um ano juntos. Nem chegou a um ano completo.
P/1 – E o resto da sua família que veio também foi embora?
R – Foi embora.
P/1 – Ficou só o senhor mesmo?
R – Só eu.
P/1 – E como era Maués quando o senhor chegou?
R – Maués, aqui onde nós estamos, era uma rua que a gente andava com a calça arregaçada porque o mato molhava a gente. Eram três ruas que tinham quase.
P/1 – Quais eram elas?
R – Pereira Barreto, que é hoje. Eduardo Ribeiro, e essa daqui, o Largo Marechal Deodoro que era matagal ainda, mas já era rua.
P/1 – E o resto era o quê?
R – Não tinha. Era rua, casa para um lado e pra outro, mas não tinha pista, não tinha nada. A energia aqui só funcionava até dez horas. Quando era dez horas, apagava e todo mundo ficava no escuro.
P/1 – Mas o senhor fala que não tinha rua porque não era asfaltada ou porque não tinha nada aberto mesmo?
R – Não, porque era sujo, não era asfaltado nada.
P/1 – E o que mais era diferente em relação a hoje?
R – Maués era diferente porque nessa época era pequena, mas era uma cidade muito tranquila. Não tinha tanta coisa como tem hoje.
P/1 – Por exemplo?
R – Acontece tanto acidente, marginalização. Tem muito jovem que não procura trabalhar e só procura o caminho errado. Aí vai criar problema para sociedade. Isso mudou muito, mas não é só em Maués. É o país, é o mundo inteiro.
P/1 – E o senhor não pensou em voltar pro Nordeste?
R – Eu fiquei aqui 14 anos sem dar uma notícia para minha família. Eles pensavam que eu já tinha morrido. Quando eu fui lá foi uma animação pra eles. 14 anos.
P/1 – Então o senhor estava decido a não voltar mesmo?
R – Eu não tinha com o que ir para lá. Eu tinha que ganhar dinheiro para voltar. Quando eu arranjei dinheiro, fui pra lá.
P/1 – Na época, pensou em ficar por lá mesmo?
R – Não. Gostei daqui e graças a Deus vivo bem aqui.
P/1 – E o que tem de diferente de lá?
R – Aqui a gente vive com a natureza, as matas, a floresta, o rio. E o Ceará tu já viu: quando não chove, é seco. É sacrificada a vida do cearense por causa da chuva que é escassa lá.
P/1 – E o senhor ficou quanto tempo nessa coisa de colheita do pau-rosa?
R – No pau-rosa eu fiquei, mais ou menos, uns dez anos.
P/1 – Nessa época também fazia o trabalho de copaíba também?
R – Copaíba, sorva. É um produto, é um leite, que ela dá. Uma borracha, idêntico a seringa, mas não é a seringa. É uma outra madeira que dá um leite que a gente chama sorva.
P/1 – E depois desses dez anos o senhor começou a plantar guaraná ou foi fazer outra coisa?
R – Não. Antes de eu sair do pau-rosa, eu comecei a plantar guaraná porque aqui, esse mesmo patrão que eu trabalhava e que era dono da usina, ele comprava toda a produção de guaraná daqui da região, daqui do município de Maués. E eu comecei a plantar guaraná. Eu comecei a plantar guaraná em 74.
P/1 – E quem que era essa pessoa, esse patrão?
R – Chamava Leonel Pereira Alves, dono da usina. O nome da usina: J. P. Alves.
P/1 – Ele comprava o guaraná de todo mundo aqui?
R – De todo mundo. O pau-rosa de todo mundo.
P/1 – E você sabe para quem ele vendia o guaraná?
R – Este guaraná saía todo encaixotado para o Mato Grosso em bastão.
P/1 – E com quem o senhor aprendeu as técnicas para plantar e beneficiar o guaraná?
R – O guaraná é muito fácil porque aqui, os antigos daqui de Maués, já plantavam guaraná. Os índios, esses moradores velhos, todos eles tomavam guaraná.
P/1 – Mas não teve ninguém que lhe explicou como fazer, como dar um melhor o guaraná?
R – A gente aprendeu com eles mesmo, com os vizinhos. Aprendeu a tirar da mata porque é o guaraná nativo. Tirava o filho da mata, arrancava e plantava.
P/1 – E porque que o senhor decidiu investir no guaraná, especificamente, e não em outra produção?
R – Não, eu não só investi no guaraná, como eu criava gado já na época também. Comecei a criar gado, plantava roça, gostei muito. Toda vida gostei de lavoura porque minha lavoura é de roça. E tudo quanto era feijão, milho. E também trabalhava outras coisas e não só o guaraná. O guaraná foi dando, foi dando. Naquela época o guaraná dava bem, não como agora que tem uma dificuldade por causa de um inseto que deu e que a gente chama aqui de lacerdinha. Ele dá uma doença na folha do guaraná e diminuiu muito a produção. Aí eu fui investindo mais em gado.
P/1 – E o senhor também chegou a trabalhar com garimpo?
R – Fui dono de um garimpo.
P/1 – E como foi essa história?
R – Nesse município nunca tinha acontecido de ter garimpeiros, de ter garimpagem. Mas a região de Itaituba já era conhecida, Tapajós. Aí como extraiu muito ouro, no Pará, aí também nas cabeceiras, veio uns garimpeiros de Santarém procurando quem os ajudasse a explorar. Todo mundo ficou com medo de financiar. Eu com um amigo meu, japonês, arranjamos para eles a mercadoria, rancho, motor para acharem o garimpo. Onde eles foram explorar acharam um garimpo com muito ouro que até hoje funciona. É o garimpo do Amana.
P/1 – Mas o senhor manteve essa atividade?
R – Eu trabalhei até o garimpo não ter muito problema. O garimpo, logo no começo que foi explorado, era bom de trabalhar, dava lucro. Mas depois ficou muita fofoca, muitas mortes, muita dificuldade e eu vendi tudo o que eu tinha lá e vim embora.
P/1 – Isso foi em que ano?
R – Eu vim de lá foi na faixa de 78 para 80.
P/1 – E tinha começado quando mesmo?
R – No garimpo, eu comecei a trabalhar em 72.
P/1 – Aí o senhor passou mais a ficar com a coisa do guaraná, do gado?
R – Guaraná e gado. Fui dono também de uma farmácia por 12 anos depois que saí do garimpo, aqui no Largo Marechal Deodoro mesmo. Depois acabei com a farmácia e, depois que eu entrei na política, fiquei na minha pecuária e na política. Abandonei a farmácia.
P/1 – Como o senhor conseguiu as terras para plantar guaraná e gado?
R – A terra não tinha dono não. A gente chegava lá, fazia o roçado e plantava. Não tinha dono, era do Estado. Até agora, para lá onde eu tenho guaranazal, as terras são do estado.
P/1 – E não existe briga para determinar de quem é a terra?
R – Por causa de terra não. Aqui ninguém briga ainda por causa de terra.
P/1 – Dá briga por conta de quê?
R – A terra lá é de quem quiser trabalhar.
P/1 – Mas aí existe alguma forma para legalizar, algum documento?
R – Se você quiser legalizar, trabalha normal. Se não quiser, trabalha sem legalizar.
P/1 – Quem legaliza faz o quê?
R – Quem legaliza paga só imposto do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária].
P/1 – E aí pode utilizar normalmente?
R – Pode utilizar. Quer dizer, agora tem mais uma norma da lei florestal. Você para fazer um roçado, se for de dois, três hectares, se for em capoeira, você faz sem comunicar o meio ambiente. Se não, você tem que ir no meio ambiente para poder fazer o seu trabalho. Agora tem regra de trabalho com o manejo.
P/1 – O senhor vende o guaraná em semente ou em pó?
R – Vendo em semente.
P/1 – O senhor não beneficia, não transforma em pó?
R – Não, beneficio só pra eu beber. Bebo guaraná há 30 anos.
P/1 – E por que o senhor só vende em semente?
R – Porque eu vendo logo, para diminuir o trabalho. Em bastão demora mais para vender. Pó também demora mais para vender. Eu vendo logo para AmBev [Companhia de Bebidas das Américas] e a gente se vê livre logo do guaraná. Porque o guaraná se você não vender logo tem que conservar num lugar bem seco para ele não mofar. Se tiver umidade, o guaraná mofa e estraga.
P/1 – E o senhor vende toda a sua produção pra Ambev?
R – Para Ambev.
P/1 – E quais que são os passos para se ter um guaraná de primeira qualidade?
R – Pelo menos o meu, eu não adubo nada. É da natureza. Não borrifo com inseticida, com coisa nenhuma. Meu guaraná é da natureza. Ele dá como Deus quiser e a natureza que conserva. Só faço a limpeza.
P/1 – Eu vou fazer algumas perguntas só para pegar alguns pontos mais específicos. Existe uma melhor época para plantar o guaraná?
R – Quando eu plantava de filho tirado da mata, o melhor tempo era janeiro. Janeiro, fevereiro quando está chovendo bem para ele não murchar e não morrer. Ele pega em fevereiro, março, abril. Quando é maio, já começa o verão, ele já está pegado, já não morre mais.
P/1 – Hoje o senhor já não faz mais assim?
R – Não, eu não planto mais. Só cultivo o guaraná velho, guaraná de 30 anos, 25 anos.
P/1 – O senhor não planta mais nenhum guaraná hoje?
R – Não.
P/1 – E quando o senhor plantava, existia um terreno certo para plantar o guaraná?
R – A gente fazia o roçado, queimava e plantava. O guaraná se dá mesmo na terra, em qualquer terra, aqui pra nós.
P/1 – E o senhor plantava por muda?
R – É, por filho. A gente chama de filho tirado da mata. Porque a muda já é numa sacola e esse a gente arrancava do mato. Só fazia fechar, chegava lá e ia plantando.
P/1 – Mas explica como é a técnica.
R – Arrancava o guaraná da mata nativa. Aí você faz o roçado, cava, mais ou menos, 40 centímetros por 30 de profundidade, planta e pronto. Ele ficava lá e com três anos já começa a dar fruto.
P/1 – Mas você arranca uma planta inteira?
R – É, inteira. Um filho deste tamanho, com 40 centímetros de altura, 30 centímetros de altura. Você arranca, pega ele com a mão e arranca. Aí chega lá e planta. É o mesmo que você arrancar qualquer árvore do viveiro, chegar lá e plantar. É assim que a gente faz com o guaraná. Agora não, já usa o guaraná clonado, já é outra técnica. O guaraná clonado vem do galho daquele guaraná que dá mais. Então, uma planta muito delicada. Se você forçar muito na sacola, você planta e ele morre porque não é enraizado. E aquele que a gente arranca da mata já vem com a raiz. Eu acho que ele, quando a gente arranca, já está com seis, oito anos de vida ou mais porque está embaixo da mata.
P/1 – Depois que o senhor tirou de lá e colocou em outro lugar, quanto tempo demora para ele dar fruto pela primeira vez?
R – Em três anos começa a dar. Em quatro, o guaranazal já está dando a carga normal.
P/1 – Tem um espaço certo pra deixar entre uma planta e outra?
R – É cinco por cinco.
P/1 – Esse é o padrão?
R – É.
P/1 – E o senhor não usa nenhum tipo de adubo?
R – Nada, nada.
P/1 – Nem adubo orgânico?
R – Nem orgânico.
P/1 – O senhor tem um motivo para não usar?
R – Eu não me dedico muito ao guaraná. Se você fizer o adubo orgânico, o próprio mato que você corta de facão, ele já apodrece lá e vai adubando. É isso só que eu uso.
P/1 – Em média, quanto tempo dura um guaranazeiro?
R – Trinta anos, 40 anos. Esse que eu plantei em 62, olha, pra cá tem um bocado de anos, está dando e eu colho de lá. Ainda tiro fruta deles.
P/1 – Isso vale tanto para o guaraná plantado desse jeito como o guaraná clonado?
R – Não, o clonado é mais delicado. Dizem que ele tem uma vida curta. Ele começa a dar com um ano e dois anos e dá bem, mas dos seis anos para lá ele vai enfraquecendo. E o clonado precisa ter adubo nem que seja o orgânico porque só dá bem adubado. Ele já nasce com adubação, tem uma química que o faz enraizar e se não continuar ele já começa a cair
P/1 – E qual o período do ano que se faz a colheita?
R – Ele começa no mês de setembro, outubro, novembro. Até novembro ele está dando porque não é uma árvore que flora toda de uma vez. Ela flora e madurecem umas e outras ficam. É tipo o café. Você chega no cacho de guaraná, às vezes você quebra ele todo, apanha toda a fruta, mas tem cacho que está verde, outros estão maduros. Aí vai demorando.
P/1 – E como o senhor sabe que o guaraná está no ponto?
R – Porque ele abre. Ele abre a frutazinha e aparece.
P/1 – Aparece o quê?
R – O caroço dela.
P/1 – O senhor pode descrever como é a planta, aquela coisa do olho?
R – O guaraná, quando ele está maduro, é uma fruta que é encapada. Ela abre como a mamona e a semente fica no meio. Quando começa a abrir a gente vai lá, põe no paneiro e traz para casa, para passar numa máquina e separar o caroço da casca e torrar.
P/1 – É uma máquina que faz essa separação?
R – Eu faço numa máquina de madeira, manual mesmo. Na Ambev é motorizada. E tem gente que não tem máquina, descasca no dedo. Outro pisa no pé.
P/1 – Como que é feita a colheita do guaraná?
R – Na colheita do guaraná, você pega um paneiro e sai apanhando os que estão maduros e os verdes vão ficando.
P/1 – Mas aqui funciona o sistema de mutirão?
R – Não. O dono, se tiver muito, paga gente. Se for pouco, ele colhe sozinho. Ele não é muito trabalhoso, o guaraná. Você colhe 300, 400 quilos de guaraná só em uma pessoa, duas pessoas. Colhe porque ele não abre só num dia. Ele é como o feijão, amadurece um pouco e fica o outro verde para amadurecer depois. Você vai apanhando devagar. Não é como o milho que amadurece de uma vez também.
P/1 – E quem trabalha nesse processo de colher o guaraná, transformar o guaraná? Geralmente sempre apontam homens, mas tem mulheres também participando, crianças? Como é que funciona?
R – Tem. A mulher, a família inteira participa da colheita. Uns apanham, outros lavam, outros ajudam a torrar, outro carrega a lenha e é assim.
P/1 – Mas tem funções específicas para cada um ou não?
R – Não, um ajuda o outro. Só o torrador que é específico. Não é todo mundo que sabe torrar, tem que ter uma pessoa própria.
P/1 – Por que, qual o segredo?
R – Porque não pode deixar queimar o guaraná. O guaraná tem que ser bem torrado, tem que escaldar com fogo meio alto. Depois que escalda, aí é lento até acabar de torrar. São quatro horas para torrar uma fornada de cinco latas de guaraná, para torrar bem torrado e não queimar.
P/1 – O senhor é torrador?
R – Sou eu que torro o meu.
P/1 – Mas explica para gente com detalhes o que o senhor faz para não dar errado.
R – Para não dar errado, o guaraná você colhe, tira do campo maduro. Você espalha, assim, no máximo uns 20 centímetros de altura porque se você deixar amontoado ele fermenta muito e cozinha o guaraná, fica um guaraná feio. Antes dele pretejar, você passa na máquina e mói para separar o caroço e torrar, porque senão ele não fica branquinho, bonito e gostoso.
P/1 – Mas fora isso, para ele não queimar, não tem mais nada que precisa ser feito?
R – Para não queimar, você deixa pouco fogo embaixo do forno. Fica torrando com o rodo todo o tempo, todo o tempo. Você não para de mexer pro caroço não parar.
P/1 – Durante as quatro horas?
R – Durante as quatro horas, você não para. Se você para, é um segundo. Não pode parar nem minuto.
P/1 – O senhor já trabalhou com bastão?
R – Não, eu nunca mandei fazer bastão.
P/1 – Nem sabe como é o processo?
R – Não sei muito bem, não. Mas eu tenho visto pessoas fazer: pila no pilão, outros tem pilação com maquinário.
P/1 – O senhor tem um pouco de guaraná em pó, não é isso?
R – Tenho, quando mói.
P/1 – Como o senhor faz para moer esse guaraná?
R – Lá em casa, uso eu e a minha família. Quatro da minha família que usam guaraná. É pouco. A gente mói meio quilo, coloca numa boa vasilha bem tampada, tira todo dia de manhã e bebe. Só bebo de manhã o guaraná, e só uma vez. Se eu não tomar guaraná, não está bacana, dói até a minha cabeça. Posso tomar o café que eu tomar, mas antes do café eu tenho que tomar o meu guaraná logo que eu me levanto.
P/1 – Mas como é o negócio para moer?
R – Eu mando moer e, quando não, eu mando fazer bastão. Aí eu ralo na língua de pirarucu. Eu sei que é gostoso mesmo porque você rala na hora e bebe. É mais gostoso do que você deixar numa vasilha porque vai perdendo algum cheiro, alguma coisa.
P/1 – No caso do bastão o senhor pede para alguém fazer isso?
R – Eu peço pra fazer, eu não sei fazer.
P/1 – O senhor tem uma pessoa específica?
R – Tenho.
P/1 – Quem?
R – Os meus vizinhos. Todos eles fazem para beber e eu mando eles fazerem. Pilar oito, dez quilos. Dá para tirar seis meses do ano, oito meses. Ainda dou para os vizinhos quando acaba o deles.
P/1 – Eu gostaria que o senhor contasse como é um dia seu no período da colheita do guaraná. A que horas que o senhor acorda, o que o senhor faz primeiro?
R – Eu sempre trabalho na época com cinco homens, seis homens. Quando é segunda-feira, começo a apanhar o guaraná, apanhar aquele que está aberto todinho, maduro como a gente chama. Começa, aí vai trazendo para a barraca. Quando é pela quinta, sexta-feira, termina de correr todo o campo. Aí só vai na segunda-feira de novo começar a colher aquilo que não colheu antes. Aí faz toda a colheita de novo até passar os dias, até acabar a colheita.
P/1 – E o senhor acha que existe alguma coisa de diferente que o senhor faça na plantação de guaraná?
R – Não. Tem várias pessoas que plantam diferente, levam mais a capricho. Planta e aquele mato que ele corta, que é adubo orgânico, ele chega para o toco do guaraná. É uma melhora para o guaraná, mas eu não tenho tempo de fazer isso que eu luto com muitas coisas. E a despesa é grande. Se você mandar, às vezes as pessoas não fazem como a gente manda. Eu só faço mandar limpar mesmo e é só uma limpeza por ano, roçado de facão mesmo.
P/1 – Em que época é essa limpeza?
R – A limpeza a gente começa a fazer em fevereiro, para terminar em abril. Depois de maio a gente não pode cortar o guaraná porque ele já começa a brotar aqueles ramos que vão florear. E se você limpar muito antes o guaraná ele cresce muito aí e perde a força porque ele só dá fruta naqueles galhos novos que brotam, aquele broto novo. E ele brota rápido. Se você cortar o guaraná hoje, com 30 dias ele já está com ramo grande, já está recuperando quase aquela poda.
P/1 – Mas o senhor não tem nenhum tipo de superstição, uma crença que se o senhor fizer desse jeito o guaraná vai crescer melhor?
R – Não, eu não tenho superstição não.
P/1 – Mas existem pessoas aqui que tem?
R – Existe.
P/1 – O senhor podia contar um pouco para gente?
R – Tem gente que quando o guaraná começa a florar, que é o mês de agosto, setembro ele não anda no meio do guaranazal. E diz que se ele olhar cai a flor, é olho mal, olho não sei. Mas eu não tenho essa buzão. Aqui chamam de buzão, a superstição.
P/1 – Tem outros tipo de buzão que o senhor conhece?
R – Não, aqui que eu conheça não.
P/1 – Desde que o senhor começou a plantar até hoje, o seu jeito de plantar se modificou nesse período todo ou não?
R – É que eu não planto mais. Mas se eu fosse plantar eu plantava do jeito que a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] pede para plantar.
P/1 – Que é como?
R – Ela pede para você cavar um buraco de 40 por 40, adubar com adubo orgânico, com estrume de gado, ou com pau podre, aquelas coisas todas. Assim o guaraná se dá melhor.
P/1 – Mas usando o guaraná de estaca ou o guaraná que o senhor trazia da floresta?
R – O guaraná de estaca. Mas se eu fosse plantar o guaraná de estaca, tinha que cuidar como eles mandam porque senão ele morre muito. Agora, para plantar o guaraná de semente ou o de muda da mata, não precisa tanto luxo porque ele se dá, ele é nativo daqui mesmo. O guaraná é filho de Maués mesmo. Ele se dá com a terra sem adubação, sem ser o de muda clonada.
P/1 – Mas se o senhor fosse começar hoje o senhor começaria desse jeito?
R – Ia pelo clonado.
P/1 – Tem um motivo de por quê?
R – Porque além dele dar mais rápido, com dois anos ele já começa a dar, o espaço dele é menor, você pode plantar até três por três. Eu plantava 300 pés e agora num hectare você planta 500 pés. Favorece muito e dá mais, porque ele é tratado. Porque esse guaraná clonado, ele é tirado daquela árvore que não falha, porque quando você planta do mato, se você planta mil árvores de guaraná, 600 dão e 400 não dão. Para cá e para ali não dá porque você não sabe qual é daquelas árvores que você plantou se ela é boa de fruto. E essa da AmBev, da Embrapa, eles só tiram muda daquele guaraná que dá todo ano e dá bem, então não falha. Então é por isso que se eu plantasse hoje eu ia plantar dessas mudas clonadas.
P/1 – Quem compra hoje o guaraná?
R – É a AmBev e o pessoal que pila aqui para vender em bastão para fora, para Mato Grosso, para São Paulo. Tudo por aí bebe guaraná. Para vender moído também. Tem muito estado que o pessoal já usa o guaraná, muita gente usa.
P/1 – Mas essa coisa de comprar para pilar é coisa daqui mesmo, gente que pila aqui mesmo?
R – Daqui mesmo.
P/1 – Quem que faz isso?
R – Rapaz, aqui tem o Otávio Magnani, tem o senhor Joãozinho Fonseca, tem o Expedito. São esses que pilam pra vender.
P/1 – Vendem para outros estados?
R – É.
P/1 – E por que que as pessoas vendem para eles o guaraná em semente e não pilam e vende por um preço maior?
R – Porque tem muita gente que manda pilar. Se você manda uma pessoa que não sabe, o guaraná estraga. Ele racha, fica um buraco no meio e aí mofa e não presta. Já com esses piladores não. Eles já têm a técnica deles, já pilam. É guaraná bom.
P/1 – Então, você identifica bastante o guaraná bom se ele não está rachado, é isso?
R – Identifica, a gente conhece. Você bate, ele é fofo. Você conhece, não fica roliço, fica meio chato, meio deformado.
P/1 – Esse é o bom ou é o ruim?
R – Deformado não é o bom. O bom fica bem direitinho, bem roliço. E a gente também usa muito para beber, pelo menos eu, o guaraná que o índio fabrica, porque o índio fabrica um guaraná muito especial, de primeira.
P/1 – É muito diferente do que se planta aqui?
R – Não, é o mesmo guaraná, mas ele colhe de forma diferente. Ele colhe o guaraná e descasca com a mão. Ele colhe o guaraná e não deixa amadurecer muito. Descasca com a mão e vai fazendo bem no capricho. O guaraná fica branquinho e não fica dia lá no canto. Quando ele chega do campo já descasca logo, torra e vai fazer o bastão.
P/1 – E como o senhor consegue esse guaraná?
R – Eles trazem para vender aqui.
P/1 – Os próprios indígenas?
R – É.
P/1 – Onde eles vendem?
R – Eles trazem no motor que eles viajam. A gente chega e encomenda para eles quatro, cinco quilos e eles trazem.
P/1 – Eles não têm um ponto fixo pra vender?
R – Não. Eles oferecem para o comércio e o comércio compra. A gente que conhece aqueles índios que trabalham bem já encomenda deles. Eles trazem direto para a casa da gente.
P/1 – Esses são todos Sateré-Mawé?
R – Sateré-Mawé. Já fabricam guaraná sabe lá, desde as primeiras décadas, eles são acostumados. Aquilo é de pai para filho. Eles trabalham mesmo, sabem trabalhar no guaraná, muito mais do que em farinha.
P/1 – A farinha não é boa?
R – Eles não capricham muito na farinha, deixam azedar. Nós aqui temos uma farinha melhor do que a deles.
P/1 – O senhor conhece da história de Maués? O senhor está aqui há quase 50 anos, o que que o senhor já ouviu sobre a história de Maués?
R – A história de Maués é essa que eu estou contando e os trabalhos que eu convivi. Mas, em Maués, o sistema de guaraná não mudou muito não. Até hoje é uma tradição do pessoal de Maués.
P/1 – A cidade mudou, cresceu a partir de quando principalmente?
R – A cidade cresceu muito na década de 1980 para cá.
P/1 – O senhor identifica por quê?
R – A população cresce muito, vai aumentando e o pessoal vindo para cidade e toda a maneira, a arrecadação do município vai aumentando, vai dando mais trabalho.
P/1 – Falam muito que na década de 80 o guaraná alcançou preços altos...
R – Alcançou.
P/1 – Você podia contar um pouco essa história?
R – O guaraná há 20 anos atrás deu um preço que, naquela época, chegou a 22 cruzeiros o quilo. Valia mais sei lá quantos hoje no real. Deu muito dinheiro. Naquele tempo dava também guaraná. O guaraná deu bem dinheiro aí a todos. Esses produtores de guaraná que tinham três, quatro hectares de guaraná, já compravam um motor, um barco por que guaraná deu dinheiro. Quando o guaraná caiu, eles desanimaram. Muitos não limparam mais e acabaram os guaranazeiros. Muito foi para o mato e foi morrendo. Porque o guaraná é uma planta nativa, mas se você deixar ele na capoeira, tem um cipó por nome de erva de passarinho que dá nele. Em qualquer árvore que essa erva de passarinho dá acaba, ela mata a árvore. É um cipó que ela gruda e fecha, abafa a árvore. A árvore morre e aí acabaram os guaranazeiros, não existe. Agora o pessoal está se levantando com esse guaraná clonado porque quem planta cuida bem.
P/1 – Essa planta que o senhor falou por último, essa erva, é um tipo de capoeira?
R – Não, é um tipo de cipó. É uma erva de passarinho como a gente chama. O passarinho come e é dessas mangueiras por aqui, dá na cidade e em qualquer lugar.
P/1 – Explica o que é a capoeira.
R – Capoeira é mata baixa. É o cerrado, um cerrado baixo. Porque aqui na Amazônia você fez um roçado, você capina, para você tirar a roça duas vezes por ano. Se você não der nenhuma limpeza, aí vira capoeira, a mata cresce, vai crescendo os matos. Com dez anos já está mata grande mesmo.
P/1 – E esse período que o senhor falou...
R – O guaraná caiu de preço. Aí as pessoas foram desanimando.
P/1 – Mas na década de 80 foi quando o guaraná teve o maior preço?
R – Foi. Depois o guaraná teve o maior preço e foi caindo. Ele veio se levantar na época agora já de 96, 97 por aí. Ele veio dar quatro reais o quilo, pois já chegou a dois reais o quilo. Não pagava nem a limpeza. Mas agora não, o guaraná melhorou, muita gente já conhece o guaraná. Quem acostuma a beber não larga não. Agora tem muita gente que não toma o guaraná porque não sabe temperar o suco do guaraná, às vezes bota demais. Para quem nunca tomou, se ele botar muito vai tremer, ele vai cair. Dá uma fraqueza e o cabra treme.
P/1 – Então explica para gente como é que faz direitinho.
R – Olha, pelo menos a gente, que já está acostumado, bota uma meia colher de sopa num copo de 200 mililitros de água, uma colher de açúcar e bebe. Mas quem não está acostumado tem que tomar menos um pouco.
P/1 – Tem que botar quanto?
R – Ele é forte. Metade de meia colher, ainda mais se ele for do pó. Se ele for ralado do bastão, não. Ele já é mais moderado. E outra coisa, se o guaraná não for do bom, a pessoa não vai gostar porque ele tem um gosto ruim. Tem que ser um guaraná de primeira para pessoa tomar. Porque antes o guaraná caiu de preço, ao meu ver, por causa de muita sabotagem que fizeram com o guaraná. Muitos vendiam o guaraná misturado com pó de serragem para fazer dinheiro, aquelas pilantragens. Aí o guaraná foi desanimando o pessoal. Mas agora não, os produtores de Maués, os fabricantes e quem mói o guaraná estão com selo e o guaraná é bom mesmo. Se o guaraná estiver estragado e você for tomar, você não toma não. Nem eu que sou acostumado não tomo, não presta, o gosto é ruim. É por isso que muita gente diz: “Ah, o guaraná não presta!” Porque ele foi tomar um guaraná que não presta.
P/1 – Deixa eu perguntar para o senhor: dizem que na década de 80, ou 90, houve uma grande praga também...
R - É, esse lacerdinha. Além do preço cair de 80 para cá, essa praga também desanimou muito o agricultor.
P/1 – Isso começou desde quando?
R – Eu não estou bem lembrado, mas foi nessa época de 80 pra cá.
P/1 – Teve um ano que baixou muito a coisa da produção aqui ou não?
R – Baixou muito a produção. Agora até que melhorou porque eu não borrifo o meu guaraná e melhoraram já as folhas, está bonito. Eu acho que a praga também vai se acabar, ela vem com o tempo e se vai com o tempo. Quando não se acaba, diminui. Porque você vê, hoje em dia, lá para o nordeste, para colher o feijão e o milho, tem que borrifar com inseticida. Naquele tempo que eu morava lá, não tinha nada disso. Você plantava o feijão, plantava o arroz, plantava jerimum, melancia não borrifava com nada e hoje em dia tem que borrifar. Até verdura nós comemos borrifada.
P/1 – O senhor não borrifa por quê?
R – Porque é um material químico. Para você borrifar tem que ser na época da colheita e eu acredito que aquele inseticida vai ficar na semente. É por isso que eu não borrifo. Nunca borrifei o meu guaraná.
P/1 – O senhor já ouvir falar de japoneses que vieram para Maués e tentaram plantar guaraná, principalmente na década de 20?
R – Quando eu cheguei aqui tinha uns japoneses que plantavam guaraná, faziam hortas e até agora tem uma família que é antiga aqui, mas eles não trabalham mais com guaraná. Os pais deles, os avós deles chegaram aqui e plantaram guaraná.
P/1 – Você sabe de quando que eles vieram pra cá?
R – Não sei.
P/1 – Como que o senhor acha que é a relação do pessoal aqui da cidade Maués com os índios Sateré-Mawé?
R – É uma relação muito boa. Nós aqui adoramos os índios, principalmente a classe Sateré-Mawé que são pessoas que não fazem mal para ninguém, pessoas humildes e que a gente gosta. Pelo menos eu gosto muito do índio, gosto muito dos Sateré-Mawé. Gosto até de conversar. Tem alguns deles que trabalham comigo na fazenda e eu gosto mesmo deles.
P/1 – O senhor acha que não tem preconceito?
R – Não, não tem preconceito. Aqui nunca ouvi falar preconceito com índio.
P/1 – O senhor acha que a cidade tem hábitos dos Sateré-Mawé?
R – Tem umas pessoas que tem. Mas o próprio Sateré-Mawé está mudando. Você vê o indígena já é professor de lá mesmo, tem pedagogo de lá mesmo. Eles vão mudando e as pessoas não vão acompanhando muito. Agora, quando eles vêm aqui, que o movimento deles é grande, eles falam é na gíria mesmo e eu não entendo a gíria deles. Conversam e eu não sei o que é que eles estão falando.
P/1 – Mas que hábitos o senhor acha que essas pessoas têm?
R – O hábito deles é porque são pessoas que gostam de estar juntos só eles mesmos, só eles mesmos.
P/1 – Na festa do guaraná, encenam a lenda do guaraná. O senhor podia contar para gente como é essa lenda?
R – Rapaz, quando eu cheguei aqui já tinha essa brincadeira da lenda do guaraná. Inclusive, eles vinham de lá, na época de festa nossa aqui, a padroeira é Nossa Senhora da Conceição, mas a gente festeja mais é a festa do Divino Espírito Santo, festa muito animada, de muito movimento. E eles iam brincar a dança da tucandeira aqui na praça para todo mundo ver. Eles traziam um tipiti cheio de tucandeira e metiam o braço. E a tucandeira ferrando, ferrando, ferrando. Às vezes, tinha daqueles, gente daqui mesmo da cidade, metido meio no álcool, que ia meter o braço no tipiti cheia da tucandeira. Eles saíam daqui aos gritos. Eles não brincavam bem. Iam tomando a bebida deles que chamam tarubá, que é feito da mandioca temperada com formiga, com saúva.
P/1 – E essa festa do Divino acontece quando?
R – É maio.
P/1 – E ainda hoje eles vem para cá e fazem o ritual?
R – Não, agora mudou. A lenda vem na época da festa da do guaraná.
P/1 – E como é essa lenda?
R – Essa lenda, dizem os antigos que o guaraná brotou de uma índia que morreu. Enterraram e brotou uma árvore de guaraná. Isso eu não sei se é conversa certa, sei que falam isso até hoje. Eu sei que o olho do índio é parecido com a semente do guaraná.
P/1 – E o quê que muda na cidade na época da colheita?
R – Dá muito movimento, dá mais dinheiro.
P/1 – Todo mundo fala isso, é perceptível.
R – É, dá mais dinheiro. Principalmente agora. O guaraná esse ano melhorou de preço, deu nove reais o quilo. Esse é um bom preço por uma semente. Eu acho que, no nosso país, uma semente para dar nove reais o quilo, não sei se tem alguma por aí, de grão, assim alimentício. Mas o guaraná de nove reais eu achei um preço bom. O preço anima, estão plantando bem agora. Agora, tem uma vantagem para nós aqui: Mato Grosso, a Bahia, plantaram o guaraná e deu muito, mas não tem a cafeína que o daqui tem. Eles vão fazer o bastão e não dá liga. Até a própria Ambev, para fazer a essência, ela compra de lá, mas tem que misturar com o daqui porque senão não presta. Tem que botar 50% do daqui. É uma vantagem que nós temos. Por isso eu até acredito que esse guaraná foi gerado de uma índia mesmo.
P/1 – O senhor acha então que a lenda tem um fundo de verdade?
R – Tem um fundamento com o Sateré-Mawé.
P/1 – Eu queria que o senhor contasse um pouco dessa outra atividade: o senhor está fazendo barcos agora? Quando o senhor começou a fazer isso?
R – Na época em que eu saí do garimpo, na época de 85, como eu sou uma pessoa aqui que já deu trabalho para muita gente, que sou muito amigo das pessoas, aí me meteram na política. Eu fui vice-prefeito aqui uma vez, perdemos a eleição com diferença pouca porque nós trabalhamos contra o governo. O governo tinha dinheiro e a gente não tinha. Depois, eu me candidatei a vereador e fui oito anos vereador, de 92 até 96 e de 96 até 2000. Agora, de 2000 eu não sou por causa da legenda. Você sabe que a política tem uma traição grande de todos os lados. Pelo menos a nossa legislação é muito traiçoeira porque você se mete, é candidato a vereador, como os deputados também, estadual e federal, e você forma um grupo. Aqui a primeira minha eleição de 92 eu tive 430 votos e fui eleito. Na outra, eu tive 550 e fui eleito. E essa agora de 2004 eu tive 669 e não fui porque a legenda não ajudou. Nós éramos 53 candidatos do nosso grupo, isso em três coligações, a um, a dois e a três. A minha que foi a três só fez um vereador. Porque você para eleger um vereador aqui, com 42 mil habitantes que nós temos, precisa de dois mil votos para cada vereador. Na minha coligação tinham 18 candidatos e tinha daqueles que com 20 votos, 50 votos, 100 votos. Teve um colega meu com 700 votos, 750 votos e foi. Porque precisa de dois mil votos para formar um vereador, mas se a sua coligação teve quatro mil votos você faz dois. As outras tiveram e os meus parceiros foram ruins de votos. Eu não entrei, mas eu tive mais votos que nas eleições passadas. Mas estou muito feliz por isso. Deus que não quis, ajudo o meu povo como eu posso. Eu sou uma pessoa que não trabalha só pra mim. Eu tenho a minha pecuária, eu tenho a minha fazendinha, eu tenho meu comércio. A minha esposa e os meus filhos tomam conta do meu mercadinho, a gente vende bem graças a Deus, a gente é amigo de todos. E eu sou da minha pecuária. Eu tinha dois barcos e vendi porque eles já estavam um pouco usados e eu queria fazer um novo. Se Deus quiser, daqui ao fim do mês eu já estou correndo nele porque já está nas obras finais, no camarote, essas coisas. É para eu carregar o meu gado embaixo e lá em cima o meu lazer com a minha família. Eu gosto de andar no interior, pescar, caçar. Pego o time de futebol e vou paras comunidades brincar. Gosto de festa, animar meus amigos no interior. E a gente viver a vida porque, de repente, a gente morre. Eu tenho uma filha que completou 18 anos agora e já está com um ano de faculdade, fazendo Matemática. Mas a vontade dela é fazer Direito. Ela foi para Manaus, fez um concurso numa universidade, na UNIP [Universidade Paulista], uma universidade de São Paulo e ela passou. Ela inteirou 18 anos agora e eu vou mandá-la para Manaus para fazer a faculdade. É pesada a mensalidade, de 720 reais, mas quando o filho da gente tem vontade de estudar, a gente põe para estudar, faz um sacrifício. Os outros trabalham. Tenho filho em Manaus que trabalha. Eu sou pai de 14 filhos, todos criados. A mais nova é essa que vai fazer Direito agora na faculdade, na Universidade de São Paulo que é instalada em Manaus. Todos eles trabalham, só um que faleceu num acidente que me chocou muito. Está com um ano, inteirou um ano dia primeiro de janeiro. Mas isso é da vida, isso é Deus que quer. Ele também fazia faculdade e trabalhava na AmBev. Ele era uma segunda pessoa da AmBev, mas aí teve um deslize, bateu com a moto num poste, deslocou o pescoço e faleceu. Foi uma perda que eu tive. Um filho que só estudava e trabalhava. Mas Deus quis. Não bebia, não fumava. Os outros bebem e fumam e foi aquele que Deus chamou. Mas isso é da vida. E vivo trabalhando na minha pecuária e me divirto aqui e acolá que eu também gosto de brincar porque a gente não pode viver triste. Nordestino não entristece com pouca coisa, gosta de brincar, gosta de samba. E eu estou com 64 anos, completei agora dia oito de janeiro.
P/1 – Deixa eu só perguntar pra gente não perder. O senhor saiu candidato para vereador sempre pelo mesmo partido ou não?
R – Não. Primeiro eu saí pelo PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro], duas vezes. E agora eu saí, eu mudei de partido para o PPB, que agora é só PP, Partido Progressista agora, antes era Partido Progressista Brasileiro. Mas a gente se coligou com vários partidos, com PFL [Partido da Frente Liberal], com PT [Partido dos Trabalhadores].
P/1 – E por que o senhor mudou de um partido para o outro?
R – Eu mudei porque os colegas mudaram. E mudar foi a causa de eu não me eleger porque se eu tivesse ficado no outro, na outra coligação, eu tinha ido até com 400 votos, 500 votos.
P/1 – O senhor falou que consome guaraná de manhã, logo de manhã, não é isso? Com um pouco de água e sem açúcar, não é isso?
R – Com açúcar. Ele sem açúcar é mais sadio, mas eu me acostumei com açúcar eu tomo com açúcar.
P/1 – E o senhor toma de outras formas também o guaraná ou é sempre assim?
R – Não, só com açúcar.
P/1 – Sempre de manhã?
R – De manhã. É um copo bem reforçado que eu tomo de manhã. Quando eu estou por aí viajando, eu chego na casa dos meus amigos e tomo em qualquer hora. Eu chego: “Quer tomar guaraná?” “Eu quero!” Às vezes eu tomo até quatro vezes no dia, mas quando eu estou em casa é só uma vez.
P/1 – E que benefícios o senhor acha que isso lhe trouxe?
R – Rapaz, eu não sei. Mas quando eu cheguei em Maués, quando eu entrei nesse interior, os moradores tomavam guaraná e eram sadios, morreram velhos, pescavam, trabalhavam, não sentiam cansaço. E eu me meti nessas matas e só de malária eu peguei mais de 20. Mas me tratei e graças a Deus estou bom. Já sofri muita malária, já trabalhei muito, tomo guaraná até hoje e não sinto cansaço. Estou com 64 anos, tomo guaraná há 30 anos todo dia. Se eu viajo para Manaus, eu levo o meu guaraná. Se eu viajo para o Ceará, eu levo o meu guaraná. Para onde eu for porque se eu não tomar não está bacana para mim. Se eu e a minha esposa não tomamos guaraná, a gente já sente uma dificuldade até para trabalhar.
P/1 – Mas sente o quê? Cansaço?
R – Não. Se você não tomou guaraná sente aquela falta no corpo, aquele desânimo, aquela coisa. Não sei o que, se acostuma. Às vezes quando eu me esqueço do guaraná eu vou na casa dos amigos arrumar para beber porque eu esqueci. Mas eu tenho que arrumar guaraná.
P/1 – E as pessoas daqui tomam guaraná para mais o quê?
R – Eles tomam porque se acostumam mesmo e gostam.
P/1 – Mas não existem coisas assim mais específicas: é bom tomar o guaraná porque cura tal doença, ou é bom pra namorar, ou enfim?
R – Rapaz, a gente toma o guaraná aqui porque é uma coisa que passa de família para família. Mas tem uns que dizem que ele é muito bom para saúde. E eu acredito que eu me dou muito bem. E tem muitos que toma com mirantã quando eles precisam de uma potência, de uma coisa. Porque o mirantã é uma coisa, é um pau que tem na mata. Ele é muito bom para o nervo, para o reumatismo. Eu sei que para o reumatismo é bom. Ele funciona porque eu já peguei um reumatismo de tanto estar trabalhando pelos matos, em pau-rosa, molhado dentro d’água. Eu tomei umas duas semanas. A gente rala um pouquinho do mirantã, mistura com guaraná e toma. Não dá gosto ruim.
P/1 – Mas as pessoas geralmente usam como afrodisíaco, é isso?
R – Tem muita gente que usa para reumatismo mesmo. Isso é remédio que quase toda a população sabe, o indígena sabe.
P/1 – Se o senhor fosse fazer como uma receita como seria?
R – O mesmo tanto que você toma no guaraná, você mistura. Você pega um pouquinho do pó, uma meia colher de chá e põe junto com o guaraná. Tempera e toma. Ralado, também é ralado.
P/1 – Tem um número de dias ou não?
R – Eu sei que eu tomei uma semana e o meu reumatismo sumiu. Aí pronto, acabou, não fiz mais.
P/1 – Se compra o mirantã?
R – Compra.
P/1 – Onde vende?
R – Ele tem muito na mata aqui. Agora precisa saber porque tem gente que tira o outro pau, vai moer e vende como mirantã. Eu só tomo se eu ver a raiz mesmo que eu conheço. Mas esse que vende em pó por aí eu não tomo não, porque toda a madeira moída parece uma com a outra. Aquela madeira branca eu vou saber se é mirantã mesmo?
P/1 – Aí o senhor mesmo que mói?
R – O guaraná tem um cheiro, a gente conhece. O mirantã não cheira nada, é igual outra madeira. Depois que é moído não tem cheiro. Aí você vai conhecer como? Agora, você comprando a raiz sabe que é o mirantã. Agora, tem os que vende o mirantã mesmo. Mas assim como falsificavam o guaraná antes, podem falsificar o mirantã, que é muito mais fácil.
P/1 – E tomar guaraná pode fazer mal?
R – Que eu veja só para quem não é acostumado. Se ele for tomar muito forte, ele treme, mas treme mesmo. Dá um abalo nos nervos.
P/1 – Você conheceu alguém que já chegou a passar mal assim?
R – Já, parceiro meu. Não passou mal não, só dá um “tremeliquezinho” e pronto. Fica assim, meio nervoso.
P/1 – Mas você podia como foi, por que ele teve isso?
R – Porque quem foi temperar para ele botou muito. Ele não sabia a quantia, botou uma colher cheia de guaraná, fez aquele suco bem grosso e tacou. Aí só deu ele para tremer.
P/1 –Eu queria saber se o senhor conhece alguma boa história, principalmente se relacionada ao guaraná, ou que o senhor ache interessante, que valeria a pena registrar.
R – Outra coisa: eu gosto muito de caçar a noite, pescarà noite. Aí eu levo oito ou dez sementes de guaraná no bolso. Eu mordo, assim, de hora em hora. Eu mordo uma semente de guaraná e aí o sono vai embora, quero ver dormir. Morde no dente, vai mascando devagar, vai comendo e vai engolindo aquilo. Umas cinco sementes de guaraná, carocinho de guaraná é suficiente para passar o sono.
P/1 – E o que o senhor caça?
R – Antes eu caçava, agora não caço mais, faz uns oito anos. Até agora quando eu estou na minha fazenda a gente caça uma paca, um tatu de noite para gente comer. E pescar, pescar.
P/1 – Não tem nenhuma história dessas de caça, de pescador?
R – Rapaz, eu vejo falar em muita história.
P/1 – Então conta uma para gente.
R – Não, pode ser mentirosa, podem dizer que era mentira. Mas eu já cacei muito também.
P/1 – Não quer contar então uma história?
R – Não, não quero contar das minhas caças.
P/1 – Então, por fim, eu queria que o senhor dissesse pra gente o que achou de contar essa história?
R – Bom, até me passou o sono, que a gente está trocando idéias aqui e falando das minhas passagens. Se eu fosse novo, eu ainda tinha vontade de voltar para o garimpo, para plantar guaraná, para isso. Mas agora é só na minha pecuária. Eu sou criador de gado também, tenho a minha fazendinha.
P/1 – Muito obrigado pela entrevista.
R – Está bom.
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