Projeto Belo Horizonte Surpreendente
Depoimento de Tatiana dos Santos Silva
Entrevistada por Lucas Torigoe
Belo Horizonte, 20/09/2019
PCSH_HV824 _ rev.
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Beatriz Cunha
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Qual é o seu nome completo, onde você nasceu e em que data?
R – Tatiana dos Santos Silva, dia 10 de fevereiro de 1986, em Belo Horizonte.
P/1 – Em Belo Horizonte mesmo?
R – Isso.
P/1 – Em que bairro e hospital, você sabe?
R – Eu nasci na Maternidade Otaviano Neves, que é uma Maternidade que fica na região hospitalar aqui em Belo Horizonte. Então, é uma região mais central.
P/1 – E seu pai e sua mãe contaram como foi esse nascimento? Como foi o dia? Você já ouviu essa história?
R – Eu já ouvi muito da minha mãe. A minha mãe, aliás, para qualquer pessoa que conhece, ela vai contar a história de como ela se sentiu, das emoções e tudo mais. Eu sou a segunda tentativa deles de ter um filho. Ela teve um aborto...
P/1 – Você estava contando que sua mãe conta direto essa história.
R – Conta, conta muito. Eu sou a segunda tentativa deles de ter um filho, ela sofreu um aborto antes e aí ficou grávida de mim. Ela conta muito ter sido um processo tranquilo toda a jornada. Ela trabalhou muito (trabalhava em três empregos). O processo de quando ela começou a sentir as dores da dilatação, ela queria que fosse parto natural, mas, realmente, foi um processo que não foi tão fácil. Ela ficou um tempão no hospital e não conseguiu ter a dilatação que queria. Ela desenvolveu uma relação muito próxima com o médico, que é o doutor Lucas, que me colocou neste mundo. Ele a aconselhou mesmo: "Poxa, já está na época, já está na data, está próximo, vamos fazer uma cesárea para garantir que não vai ter problema". E aí foi: às 21:59 h do dia 10 de fevereiro, numa segunda de Carnaval, Tatiana dos Santos Silva vem ao mundo (risos).
P/1 – Entendi. Qual é o nome da sua mãe?
R – Minha mãe se chama Maria Cacilda dos Santos. Meu pai é o Jair Francisco Filho. Eu sou a Tatiana dos Santos Silva também por um arranjo de nomes, porque quando eu nasci, pelo meu pai se chamar Jair Francisco Filho, eles não viram muito sentido. Como que pega um nome dele? Ia colocar o quê Filho, Francisco? O Silva vem da família do meu pai. Minha avó chamava Tereza Teixeira da Silva. Então, foi a forma que eles tiveram de vincular e acabou resultando no nome com os sobrenomes mais comuns do Brasil, porque se formos pesquisar Silva e Santos, são os nomes mais populares que a gente tem. Eu consegui ser a Tatiana dos Santos Silva (risos). Acho que não existe cidadão comum mais comum, com nome mais comum (risos).
P/1 – Ah, o Tatiana...
R – O Tatiana não é tão comum, não é? Minha mãe fala de ter visto em algum filme. Ela gostava muito de uma personagem folclórica da Iara. Se não me engano, era da Iara. Tatiana, acho que meu pai viu num filme e achou bacana. Minha mãe tinha muito de ver esses filmes meio princesa, mas princesa no sentido… Esses filmes antigos. Eu esqueço o nome, mas que, às vezes, passava na Rússia de reis, rainhas e tal. E aí, ela teve a referência de algum filme, se não me engano. Eu fui descobrir que Tatiana, na verdade, é um nome de origem russa, então… Uma das dúvidas que tive, crescendo, foi essa: como que saiu esse nome? Eu tive a oportunidade de morar fora, falava "Tatiana" e, muitas vezes, o pessoal escrevia e era diferente. Não achavam que eu era russa, mas: "Como assim, você tem esse nome?" "Também não sei".
P/1 – A família da sua mãe é de onde?
P/1 – Então, a história dos meus pais é bem interessante. A minha mãe, quando a gente vai conversando, é uma das pessoas que, para mim, é exemplo de uma pessoa de persistência e resiliência, vai ser ela para sempre, porque ela não conheceu o pai. Ela perdeu o pai. A minha avó, mãe dela, casou, virou mãe e viúva aos 15 anos de idade. Então, ela engravidou da minha mãe, perdeu o marido quando estava grávida dela, minha mãe nasceu…. Então, ela nunca conheceu o pai. Arrumou as histórias que chegaram para ela de que ele era filho bastardo de uma família de uma região no interior do estado. Ela é de uma cidadezinha que se chama Morada Nova de Minas, que é uma cidade que fica às margens do rio São Francisco, perto de Três Marias, onde hoje tem uma represa e tudo. Ela foi criada muito pela avó dela, minha bisavó, porque a mãe da minha mãe adoeceu, teve tuberculose e tinha que vir para Belo Horizonte se tratar, porque não tinha como fazer isso na cidade delas. E aí, ela acabou perdendo a mãe dela aos oito anos de idade, então ela foi, basicamente, criada pela avó. Mas muito novinha também veio para Belo Horizonte para trabalhar em casa de família, ficou sozinha e conseguiu fazer um curso superior aqui. Ela é formada em Letras e se aposentou como professora, então é uma mulher para a qual eu bato palmas.
R – E o seu pai, como é a história de vida dele?
P/1 – Meu pai é de uma família de muito irmãos, eles são de Belo Vale, que é uma cidade que fica a mais ou menos 60 quilômetros daqui de Belo Horizonte, às margens do rio Paraopeba. Meu pai é filho de um ferroviário, meu avô, que conheci mas tenho pouca lembrança porque quando ele morreu eu estava com cinco anos. Ele trabalhava nas linhas - na ferrovia de trem. Minha avó era de casa mesmo, até onde eu sei. É uma família que não tenho muito… Apesar de ter conhecido os meus avós por parte de pai e não de mãe, essa memória da história deles e de como é que foi, é uma coisa que não é tão compartilhada, de ser contada, como na situação da minha mãe. Do meu pai, são seis ou sete irmãos. Eu perco a conta, porque são muitos tios, é uma família muito grande lá de Belo Vale. Em contrapartida, minha mãe tem três irmãos, mas são irmãos só por parte de mãe. A família do meu pai foi a que eu tive mais contato. Meu pai não era o irmão mais velho, mas é um dos dois homens dessa família de sete filhos que veio para Belo Horizonte também quando ele era jovem e começou a trabalhar na polícia. Hoje, meu pai é cabo aposentado da polícia. Ele veio, viu a oportunidade. Na época, para você se juntar à polícia, era um processo meio de :"Venham!", não era como agora, com concurso. Ele foi e ficou lá desde então. Ele se aposentou ali. Então, é o perfil de um militar aposentado, que concluiu só o ensino médio. Minha mãe foi essa professora de Português e Literatura. Não sei como se conheceram, não tenho a menor ideia de como se deu esse match (risos).
R – Quando você nasceu, seus pais moravam onde? Você foi morar em algum lugar? Como é que foi isso?
P/1 – Quando eu nasci, meus pais moravam no Carlos Prates, um bairro antigo aqui de Belo Horizonte, que é próximo de onde a gente está gravando. Era uma casa que eles alugavam lá, que permitia uma certa facilidade de deslocamento, porque meu pai trabalhava numa unidade, um batalhão, não sei como chamam certinho… Quartel da polícia, que era mais ou menos próximo. Então, a gente foi morar lá. Eles alugaram esse espaço e ficava fácil, dava para o meu pai ir trabalhar a pé e tudo mais. A minha mãe fazia as jornadas, às vezes como professora mesmo. Então - isso ela conta muito - de ter me colocado no berçário muito cedo. Tanto ela quanto meu pai trabalhavam, então ficavam muito tempo fora. E aí, ia sempre alternando em escolas. Coincidentemente, essa casa em que estamos gravando hoje, também foi muito marcante na minha infância, porque foi um dos lugares em que minha mãe trabalhou. Aqui era uma escola para criança com deficiência. Eu lembro de muita parte, até de quando a gente ainda morava no Carlos Prates e minha mãe vinha trabalhar aqui. Aqui, ela trabalhou como secretária, na época, da escola, e depois tinha um outro emprego, onde ela era, de fato, professora de Português e Literatura. Então, a gente morava ali no Carlos Prates. Era uma rua… A rua Rio Espera, que era bem morrão. Eu lembro muito das aventuras de tentar brincar na rua e de ser sempre assim, bola descer, meu pai chegar do trabalho e a gente descer correndo para poder encontrar com ele no começo da rua. Bem bacana. Aos seis anos, a gente mudou para Contagem, que é uma cidade na região metropolitana, que foi por causa da minha mãe, que tinha conseguido passar nos concursos do estado para ser professora, foi assumir o posto numa escola lá em Contagem e foi todo mundo para lá.
R – Você se lembra, bem pequenininha, desse espaço aqui?
P/1 – Eu lembro. Lembro de vir aqui em quadrilha, em festinha, em eventos para encontrar com a minha mãe. Aqui eu acho que também tem muito a ver com o que eu faço hoje, que é ter enveredado pela área de Educação, de ensino assim, de trabalhar com o que eu faço hoje, porque acho que… A minha mãe, quando trabalhava aqui, por exemplo, uma das… Era um casal proprietário dessa casa. Tinha a figura da Walderez, que era responsável pela escola e especializada nisso: ensino de crianças com deficiência. Eu lembro muito de, com a minha mãe, elas me estimulando muito na questão da leitura, e aí tem uma história que é bem bacana, marcante para mim. Meio que o meu primeiro livro… Eu não tenho um livro publicado ainda, mas mais nova… Não lembro exatamente com quantos anos, mas mais ou menos oito ou nove anos de idade, eu já tinha aprendido a escrever e tudo, e lembro disso. Minha mãe conta muito também a história de que eu escrevia. Eu escrevi um livrinho com umas 10 ou 15 páginas e trouxe para cá. Ela apresentou para a Walderez ler, ela leu, achou ótimo e fez um recadinho para mim, para eu continuar escrevendo, explorar mais esse caminho dos livros e da escrita. Essa memória tenho muito marcante, de vê-la como alguém que me estimulava nesse caminho da leitura, do ensino, e de vir aqui, ver esse processo de ensino, que acontecia aqui. Eu achei muito simbólico que… Hoje estou à frente do Favela, que é uma organização que trabalha com Educação, mas com uma formação empreendedora para o público periférico. Foi muito bacana, porque aqui onde a gente aluga uma sala, é o primeiro lugar que temos para chamar de nosso espaço, de escritório… Foi o primeiro. Em cinco anos de história, tem um ano e pouquinho que a gente está aqui e foi o primeiro lugar que nós, realmente, viemos e falamos: "Vamos assumir um espaço, vamos consolidar nossa salinha". E coincidiu de ser aqui também, o que achei bem bacana. Minha mãe esteve aqui e viu as pinturas nas paredes. E ela ficava: "Nossa! Como mudou!". Foi bem bacana!
R – Você se lembra um pouco mais desse livro, do título? Como era...
P/1 – Eu não lembro do título, não lembro exatamente da história, mas escrever é uma coisa que acabou sendo muito comum na minha trajetória, acho que até por essa questão de ter muito orgulho dos meus pais e minha mãe ter, realmente, uma referência muito forte nisso. Eu acho que ela viu a importância da Educação na trajetória dela. De como conseguir estudar e se formar deu a ela acesso a certas coisas na vida, que se fôssemos olhar a trajetória dela… Ela conseguir ser a pessoa que é hoje, aposentada, ter o apartamento dela, nesse contexto de vida, abriu muitas portas. Isso me influenciou demais. Então eu era uma criança para quem sempre ela trazia referências, fosse em história em quadrinhos, livrinho - "vamos ler", "vamos na biblioteca"- concurso de redação... Então, ao longo da minha infância e adolescência, isso da minha escrita/leitura tinha muito… Ela era professora de Português e Literatura, então assim… Já ganhei concurso de redação, de escrever, e isso é outra coisa que ela conta muito, do primeiro concurso que fiz na escolinha, já em Contagem, e que eu tinha sido selecionada como a melhor redação, mas que a direção da escola não concordava muito porque, segundo a minha mãe, eles preferiam que um outro aluno ganhasse, que era parente da diretora. Eles acharam que eu tinha plagiado, copiado e que eu não tinha escrito aquilo. Fizeram uma experiência de nos colocar numa sala, para termos que escrever um texto de novo, do zero, sem ninguém acompanhando com supervisão. Eu fiz um texto que foi o selecionado como primeiro lugar também, e aí tem um trofeuzinho que está na casa da minha mãe até hoje (risos), do prêmio de redação que ganhei, que era o da rede das escolas em que eu estudava. Isso, da relação com a escrita e com ler, foi muito marcante. Eu comecei quando entrei na Faculdade. Esse momento é meio complicado. Eu comecei a fazer Direito, mas larguei o Direito. Não fez sentido para mim. Entrei na Comunicação, que foi onde me formei. Me formei em Comunicação Social, Jornalismo - com habilitação em Jornalismo, mas com formação complementar em Ciências Sociais. Na época, fez muito sentido nesse universo da escrita. Hoje, são duas coisas que vejo muito chaves em todos os acessos que eu tive e todas as coisas que eu construí, que era isso de gostar de escrever, sabe? De colocar as coisas no papel, de trabalhar com as palavras no texto. E o Inglês, que foi… Se tem uma coisa que viro e falo: "Nossa, isso foi um empurrão na minha vida, no que eu faço e sou hoje"... Eu me considero extremamente privilegiada de, aos 33 anos, trabalhar com uma coisa de que eu gosto muito, que faz muito sentido para mim e que eu não trocaria nada do núcleo com quem eu convivo, as pessoas com quem estudei e trabalho… Eu reconheço muito isso de ser muito feliz no que faço, com quem eu faço e como faço. Eu vejo isso sendo a questão, por exemplo, do Inglês, da preocupação da minha mãe ter com ensino, de me educar, de valorizar a minha educação, de me colocar para fazer Inglês. Ela era professora e conseguia ter acesso a bolsas. Então, às vezes, eu conseguia estudar tendo bolsa integral e tendo acesso ao ensino particular. Foi uma das coisas que mais me abriu portas. O meu primeiro emprego de carteira assinada foi por causa do Inglês, eu consegui estudar fora fazendo mestrado porque eu sabia Inglês, o primeiro emprego que eu tive dentro da minha área de formação -Comunicação - foi porque eu falava Inglês, porque precisava na assessoria alguém com aquela língua. Então, muitos acessos que eu tive, se for falar uma coisa que foi diferencial, foi ter tido esse acesso à aprendizagem da língua inglesa. Se eu for pensar como pensei, nunca ia passar pela minha cabeça, e não sei se a minha mãe tinha noção disso mas ela tinha isso de querer me dar todas as oportunidades de ensino que ela não teve. Mas que conseguiu enxergar a importância que é na transformação da vida de uma pessoa. Por isso que a Educação para todos é o lema da minha vida hoje (risos).
P/1 – Agora, me fala, o seu pai como é que era? Na sua casa, sua mãe saía para trabalhar e seu pai também?
R – Isso…
P/1 – Você tem irmãos, não é?
R – Não, eu sou filha única. Então, em termos de criação, as memórias que eu tenho é de ser muito uma criança e adolescente que meio que se virava sozinha, sabe? Eu acho que… Até muito da independência que eu tenho de fazer as coisas, da pró-atividade… Vem muito disso, de ser filha única. Eu tinha contato com familiares por parte do meu pai, mas por parte da minha mãe não tanto; então, não tinha muito essa noção de família muito grande, que se encontra todo domingo, que tem aquela proximidade com outros vínculos… Ambos os pais trabalhando fora o dia inteiro. Então, a gente se via mais à noite e tudo mais. Eu vejo também, de todas as formações que eu tive, também com essa estratégia de tempo mesmo. Minha mãe trabalhava em três lugares e meu pai trabalhava o dia inteiro. Às vezes, eu saía da escola, tinha o cursinho disso, aula daquilo: "Vamos colocá-la na natação para...”. Sempre muito cheia de atividades. Eu tenho muito disso, de ser muito eu comigo mesma. Acho que essa relação com Literatura e livros é marcante, porque é algo que… Você está lá, quadrinhos… Eu lembro que minha mãe conseguiu fazer a assinatura da turma da Mônica e eu ficava ansiosa esperando chegar o bloquinho com as quatro revistinhas da semana, porque era minha semana inteira garantida de leitura. Então, eu sempre lia muito, escrevia. Eu tive uma diversidade de acessos a essas experiências durante a infância, que foi bem bacana, de conseguir estudar música, começar ballet, fazer judô, natação… Sempre com a infância e adolescência muito ocupadas com atividades.
P/1 – Você foi morar em Contagem. Em que bairro você ficou e como é que era?
R – Eu fui morar em Contagem, onde se chama Santa Cruz Industrial. É um bairro que foi criado, basicamente, para abrigar funcionários de uma grande empresa que foi implantada em Contagem, há muitos anos. Se chamava Nova Belgo Mineira, que acho que nem tem esse nome mais. É uma empresa de ferragens, materiais em aço, inox, ferro… É um bairro que foi construído, então é padronizadinho assim, para abrigar os funcionários e tudo mais. A gente foi para lá na época, porque uma irmã da minha mãe tinha um apartamento ali. A gente foi morar lá, na época, com o apoio dela e ficou sendo a nossa casa, durante… Era um apartamento de três quartos nesse bairro. Era tipo um conjunto habitacional, com vários prédios iguais. A gente morou lá… Minha mãe ainda mora lá e eu saí de Contagem, não lembro exatamente quando, mas na época da Faculdade, quando eu comecei a trabalhar e tudo. Tive a oportunidade de morar fora também…
P/1 – Você morou de uns cinco a uns onze anos…
R – É, dos seis anos… Ao seis a gente se mudou para Contagem, fiz o ensino fundamental lá e do ensino médio para cá, apesar de morar em Contagem… Contagem tem muito essa fama de ser tipo uma cidade-dormitório, porque as pessoas moram em Contagem mas não vivem lá. Então, está mudando muito isso, está indo Universidade para lá, tem muita coisa acontecendo agora na cidade, mas, na nossa época, realmente, se você não trabalhava em uma das empresas (indústrias) que estavam ali, não fazia tanto sentido. Então, eu lembro que no ensino médio eu já começava a circular aqui por Belo Horizonte. Cheguei a estudar numa escola aqui durante um ano do ensino médio. Às vezes, os cursos e formações aos quais eu tive acesso eram aqui em Belo Horizonte. Então, eu diria também que grande parte da minha vida veio… Parte da minha infância e juventude foi em transporte público também (risos), fazendo essa circulação pela região metropolitana da cidade. Meus pais não dirigem, nunca tiraram carteira, nunca tiveram carro, mas eu… Comecei a estudar, a Faculdade - me formei na UFMG, que é na Pampulha. Então, eu saía de Contagem e passava pelo centro de Belo Horizonte para estudar lá na UFMG às sete da manhã. Toda lógica de emprego e estudo acabava funcionando aqui em Belo Horizonte. Em Contagem, eu ia para dormir. Minha mãe mora lá até hoje, meus pais são divorciados já há muitos anos.
P/1 – Entendi. Em que escola você começou a estudar lá em Contagem?
R – Eu estudei em Contagem, no Instituto Maria Montessori. Era uma escola particular, onde minha mãe tinha conseguido uma bolsa para mim. Muito eu lembro da época de quando fui para Contagem, sobre o fato de eu já ter sido alfabetizada, então, isso é uma coisa que eu lembro bem. Eu já tinha aprendido a ler e a escrever. Minha mãe tentou me matricular na escola pública que tinha perto de onde a gente morava, mas as crianças ainda seriam alfabetizadas, elas ainda iriam aprender a ler e escrever. Minha mãe ficou muito preocupada de eu perder o interesse motivacional porque eu teria que passar um ano inteiro aprendendo uma coisa que eu já sabia. Ela se virou, deu os "pulão" dela, como a gente fala (risos), e me matriculou no Montessori.
P/1 – Você foi para Montessori, então?!
R – Isso, era uma escola particular que tinha lá em Contagem. Ainda tem, na verdade. Grande parte desses sete ou oito anos de idade, até a sétima… Porque era a antiga sétima série, eu estudei lá, o que seria grande parte do ensino fundamental. Estudei lá até os 13 anos de idade e depois mudei de escola, porque eles implementaram uma regra que alunos bolsistas só poderiam estudar no período da tarde e era um horário que não encaixava no horário e na rotina da minha mãe. Eu teria que continuar estudando de manhã e aí foi uma época em que fiz a transição de escola só para oitava série. Na minha vida, eu também sou meio rodada de escola. Eu tive essa experiência de estudar lá e a oitava série eu fiz em outra escola, que era uma escola nova que tinha sido instalada em Contagem. Tinha uma turma pequenininha, de treze pessoas, porque era o primeiro ano da escola lá na cidade. Para o ensino médio, eu já fui fazer o primeiro ano numa outra escola aqui em Belo Horizonte, que era católica, de influência franciscana, mas foi muito cansativo. Eu tinha que sair cinco horas da manhã, de Contagem, para estar aqui sete horas, com todo o trajeto de transporte público. Na época, foi uma grande oportunidade, principalmente na interpretação muito da minha mãe, de entender que era uma das melhores escolas da cidade. Eu tinha conseguido estudar lá, não é? Porém, o impacto em mim, eu considero lá como… Eu vim estudar nessa escola. Na época, eu tinha tentado da oitava série para o primeiro ano do ensino médio… Eu lembro de muita pressão, porque dependendo da escola em que você fosse estudar no ensino médio, definiria, para o resto da sua vida, se você conseguiria passar no vestibular e tal. Eu lembro muito disso, de considerar, de tentar algumas vezes o Colégio Militar, já que meu pai era vinculado a ele, mas também tinha todo um processo seletivo. Tinha o CEFET, que são as escolas técnicas. E de começar já essa pressão de: "E aí, como é que você vai? Para onde você vai?". Para segurar o seu futuro. Eu lembro que para o CEFET, o curso que eu queria fazer eu não consegui passar, não fiquei entre os selecionados nas 40 vagas. Era uma formação técnica em Turismo e lazer. E aí, eu fiquei meio assim: "E aí, vou para qual escola? O que eu faço?". O Colégio Militar também era muito distante, quando a gente morava em Contagem. Eu não lembro exatamente como foram as conexões, mas eu acabei conseguindo essa vaga para estudar no Colégio Santo Antônio, que até hoje é uma das melhores escolas de Belo Horizonte, é um colégio de influência religiosa e que, tradicionalmente, tem as pessoas que vão para a UFMG, as melhores Universidades e tal. Então, para mim, foi muito também: "Nossa, vou estudar lá".
P/1 – Uma coisa que você queria… Você falou de Turismo e lazer mas depois disso você pensou: "Não quero ser".
R – Graças ao Universo que eu não entrei no CEFET, porque eu não tenho a menor ideia do que teria sido a minha vida se eu tivesse começado a fazer técnico de Turismo. Hoje, para mim, eu vejo que não faz sentido nenhum. E se eu lembro bem, eu fiz essa opção porque, vamos dizer, era a menos técnica de um instituto de federação tecnológica. Então, sabe… Mecânica, Engenharia de não sei o quê, e tal tal tal. E Turismo e lazer era o mais: "Ah, essa não é nenhuma, sabe… Engenharia ou coisa assim". Então, lembro muito de que... Eu acho que essa opção apareceu como algo: "Ah, já que é para estudar nisso, porque meio que assim... Vai me garantir um ensino de qualidade, vou nessa". Que, pelo menos, foi o que eu senti que faria mais sentido. Assim, eu não tinha despertado interesse para elétrica, mecânica, essas coisas. O Direito, isso foi muito interessante, porque eu fiz um ano no Santo Antônio, mas o segundo e o terceiro anos do ensino médio eu voltei para Contagem, para uma outra escola lá. O Santo Antônio, para mim, foi a chave de muita coisa, ele foi a chave de entender a diferença de classe, por exemplo. Porque Contagem por Contagem era todo mundo periférico, de uma certa forma. No Santo Antônio foi onde eu tive interação com crianças que o pai deixava de carro na porta da escola, que morava em condomínio fechado, tinha uma política de portas abertas na hora do recreio, e tipo assim, o pessoal tinha dinheiro para sair e comprar lanche nas lanchonetes da rua, na Savassi, que é um dos lugares mais caros de Belo Horizonte. Então, o Santo Antônio foi muito marcante por vários aspectos, assim, a qualidade do ensino é sensacional, mas também de ter essa interação com gente da minha idade mas que não tinha a mesma trajetória, não era do mesmo grupo social que o meu. Isso foi muito marcante, entendeu? Teve um momento de socialização com as meninas da minha sala que foi muito marcante para mim. Eu lembro que a gente estava tentando decidir… A gente queria ir ao cinema se divertir e eu lá tentando me incluir, e sugeri da gente ir ao cinema e ao Shopping Cidade, que é um shopping bem no Centro aqui de Belo Horizonte, que fazia muito sentido na minha lógica de ocupação da cidade, porque está no Centro, todo mundo passa por ali. E aí, uma das meninas virou e falou: "Ah, eu não posso ir lá, a minha mãe não vai me deixar ir porque é um shopping de pobre, tipo, ele é frequentado por pessoas pobres". O que é ser pobre, sabe? Então, foi o Santo Antônio… Para mim ele é muito marcante na minha vida como isso, que foi um lugar, um ambiente que me permitiu ter acesso a pessoas com quem eu jamais circularia na minha... Se fosse pensar na minha vida. Eu lembro que sugeri esse local, como fazia parte da minha realidade de lazer, de ocupação, de ______[00:38:24]. E ela falou assim: "Não, minha mãe não vai me deixar ir porque é um shopping de pobre". Isso foi muito impactante para mim porque, primeiro foi onde eu vi que certas pessoas não frequentavam certos lugares que eu frequentava porque era lugar de pobre, e isso do que é ser pobre, sabe? Lógico que você começa a ter essa percepção a partir do momento que… Eu pegava dois ônibus e um Metrô para poder chegar lá na escola, enquanto gente de condomínio fechado era deixado pelo pai no ar condicionado, na porta da escola. Então, essas coisas começavam… Essa perspectiva de diferentes lugares que as pessoas estão na vida, vamos dizer assim, em relação à renda… O Santo Antônio, eu vejo muito como um lugar que começou a trazer esses questionamentos, sabe? De várias coisas. De eu ficar sem graça se eu não tinha lanche e a merda do recreio era aberta, sabe? Você sentia aquela pressão social de: "Eu tenho que sair da escola e, sei lá, ir lá na pastelaria da esquina comprar a merenda". E tipo: "Agora, se eu vou tirar meu lanchinho daqui, como é que é o meu lanchinho em relação ao lanchinho das outras pessoas?" Então esse lugar, realmente, era um lugar em que eu não me sentia bem e eu fiquei um ano… Eu lembro que eu caí com tudo nos estudos, assim, eu tinha notas excelentes… E eu lembro de sair e do diretor da escola me pedir: "Não sai, continua, você tem um potencial ótimo". Mas não fazia sentido, não fazia sentido, não era um lugar que eu me sentisse conectada com as pessoas. Assim... Eu lembro de duas amizades, vamos dizer assim, que eu desenvolvi no ano em que estudei ali, que não tenho contato mais também, por essa diferença, não é? Sociais, de renda… Elas foram muito impactantes na socialização mesmo, sabe? Você ser a única criança que nunca foi à Disney ou que não tinha essa perspectiva de que quando você fizesse 15 anos você iria para a Disney, ou uma coisa assim… Começa a lhe gerar um certo constrangimento, e tal. E aí eu saí da escola, muito por não me sentir parte daquele lugar e também pelo cansaço e desgaste. Ele tinha uma rotina de agenda o dia inteiro, e as provas eram à noite. Então, no período de prova, eu lembro que acabava oito horas da noite e eu tinha que vir a pé lá da Savassi até aqui na região hospitalar para poder vir para Contagem… Então, foi muito desgastante, muito cansativo fisicamente, aí o segundo e terceiro anos do ensino médio eu voltei para Contagem, para uma escola mais perto da minha casa e foi onde eu fiz… E no terceiro ano, eu não tinha a menor ideia do que eu faria no ensino superior. A escola fez um grande teste vocacional com os alunos e saíram três opções para mim: Belas Artes, Direito e Comunicação Social. Belas Artes, eu pensei: "Não vou ter dinheiro" - ou eu pensei ou fui influenciada a pensar, provavelmente, que eu não teria dinheiro. Comunicação Social eu fiquei meio assim. Direito eu achei que seria uma carreira que… Acho que o potencial, não é? De ter uma mobilidade social ali… Vai sendo Direito: "Já que deu essas três aí, vou fazer Direito". Então, foi muito assim, não foi uma coisa tipo: "Quero fazer isso, quero fazer aquilo, e tal". Até porque se eu for olhar de desejos, de interesse, atividades artísticas foram áreas em que eu me envolvi durante a minha infância e adolescência, sabe? Eu fiz teatro, fiz música, tiveram uma importância muito grande, assim, na minha socialização, no meu interesse pelas coisas e acabaram sendo muito impactadas por essa… Também essa pressão de performar bem na escola, de ser uma boa aluna, de conseguir boas notas para chegar em algum lugar, vamos dizer assim. Então, eu lembro muito bem, até na época em que eu estava estudando, nos primeiros anos do ensino médio, de eu ter que sair do Coral de que eu fazia parte porque não estava dando a agenda de participar das atividades do Coral com estudar nessa rotina intensa. Então, talvez, a adolescente Tatiana teria enveredado por alguma carreira artística, alguma coisa assim, mas acabei tomando esse rumo de umas decisões muito racionais, não é? De tipo: O que fazer? Qual futuro?". E aí, fui parar… Isso, fui parar no Direito, fiz quase um ano de Direito, tive aula com Carmem Lúcia, de Direito Constitucional. Também estudei na PUC... E aí, eu passei para a PUC, que é uma universidade privada, e foi outro espaço também em que eu não me senti bem recebida, não fazia sentido para mim. Eu lembro muito do primeiro dia de aula, saca? Tipo, era uma turma diurna, de Direito. O professor fazendo a chamada, o professor era procurador, advogado, sei lá, uma pessoa grande. E também essa sensação de tipo: "Tatiana dos Santos Silva", sabe? Ele ia perguntando o nome de todo mundo na lista de presença: "Ah, você é filha do fulano de tal, do escritório de advocacia x? Ah, seu pai é o procurador y?", saca? Tipo: "Tatiana dos Santos Silva?" "Presente". Centenas de pessoas que pô... Estavam no primeiro dia de aula e já eram estagiárias no escritório do pai, sabe? E você vê gente indo de terno e gravata porque já trabalhava em algum lugar, já era do escritório de alguém que o pai era isso, ou que o tio era aquilo, que é filho de Juiz, de não sei quem… E aí, eu também começava a não sentir que eu pertencesse ali, que aquilo não só de pertencer, mas já de entender as lógicas de acesso. Que eu poderia ser a melhor aluna, mas nunca iria substituir o fato de que meu pai não é Juiz, ou que eu não tenho nenhum parente na área de Direito, nenhum parente advogado, que, às vezes, abriria a primeira porta para mim no escritório, ou alguma coisa. Então, também de entender que esses acessos seriam mais difíceis… E aí, esse um ano de Direito também foi muito transformador, porque eu já entrei e já comecei a me engajar em projetos sociais de extensão da própria Universidade. Assim... Fiz uma ação que era levar o Estatuto da Criança e do Adolescente para criar um fuso de escola pública, e também foi... Lá, eu tive um choque de realidades, com realidades que eu diria que estavam num grau de mobilidade social ainda, vamos dizer assim, mais abaixo que o meu, assim, de tipo, a gente ir levar informações, por exemplo, sobre criação do adolescente… E eu lembro que teve uma vez que um aluno da nossa turma chegou no encontro, no dia seguinte, e o pai tinha enfiado um cano de revólver no ânus dele porque ele foi virar e falar que tinha direitos, sabe? De tipo, de se divertir, de infância… E é uma coisa que meu pai nunca faria comigo. Meu pai, um policial militar, tinha arma e tudo, mas… A realidade, o cenário de que uma pessoa, um pai faria isso com uma criança, começou muito a também me questionar para quê a gente estava estudando Direito, sabe? Estou aqui fazendo oficina, falando com esses meninos que eles têm direitos e deveres, que eles podem ser alguém na cidadania, para quê? Para ele tomar porrada em casa? E aí também perdeu o sentido, assim… Eu fui, prestei o vestibular de novo. Então eu comecei a fazer cursinho preparatório para poder prestar o vestibular. Não tinha o Enem na época… E aí… Mas ainda assim não fiz 100% para outra área, prestei… Eu também tive para mim que queria estudar em uma Universidade Federal. Eu tomei birra de Universidade particular, eu tomei birra da PUC, eu tive… Até porque eu não consegui a bolsa integral na PUC, e eles não tinham… Eles avaliaram meu processo sem nem fazer a visita, que era uma etapa do processo, que era visitar minha casa, e eu tinha conhecido pessoas que estavam num grau de renda bem melhor do que o meu e que tinham conseguido bolsa. Eu achava aquilo injusto, tipo: "Se nem visitaram a minha casa, como vocês deram bolsa para pessoa que mora numa casa de dois andares e tem três carros? Eu não tenho carro, sabe? A minha família nem dirige". "Ah, mas então você pode criar uma queixa no sistema", sabe? Tipo, denunciar, fazer alguma coisa… E lembro muito bem de bater boca no Núcleo de Assistência Social da PUC e falar que trancaria a minha matrícula, que eu nunca mais queria voltar àquela Universidade, porque eu passaria em uma instituição federal, voltaria e esfregaria na cara dela que eu não precisava estudar ali, entendeu? (Risos). Tipo, nunca fiz isso (risos), mas assim... Eu achava absurda a Universidade cara e, às vezes, você chegava para ter aula e o professor foi para o Seminário x: "Poxa, eu saí seis horas da manhã, de casa", sabe? "Por que não avisaram isso antes? Gastei uma hora e meia de ônibus para chegar aqui para o cara ter ido a um Seminário e vocês não se deram ao trabalho de me avisar que não teria aula hoje? Eu estou pagando sei lá quantos funcionários para isso". Então, isso foi uma indignação muito grande, tipo assim: "Vou estudar numa instituição pública porque pelo menos assim todo esse desgaste de ter que bancar a universidade não se dará mais". Passei, mas ainda assim tentei Comunicação Social e Direito… E aí, passei em Direito, na Federal de Juiz de Fora, mas também passei em Comunicação Social, na UFMG. E aí, na hora de escolher acabei ficando em Belo Horizonte, do que mudando para Juiz de Fora. Juiz de Fora não, de Ouro Preto, desculpa… Do que mudando para Ouro Preto. Eu comecei a ver todo processo de mudar para Ouro Preto para poder estudar na Federal de lá, mas no dia em que eu ia fechar a República, saiu o resultado daqui e eu falei: "Vou ficar aqui em Belo Horizonte, faz sentido". E comecei a estudar Comunicação Social e tudo mais.
P/1 – UF, como é que foi?
R – A Universidade para mim foi muito… É um curso que eu vejo o papel essencial que teve para mim, tanto o aninho que eu fiz de Direito, quanto o Jornalismo e Ciências Sociais … Eu os vejo muito impactantes, assim, em termos de facilitadores de… São cursos que eu falaria que meio que todo mundo tem que fazer, sabe? Todo mundo tem que entender de legislação, saber como é que o sistema funciona. Eu acho que o curso de Direito ou, pelo menos, parte do introdutório dele, te dá uma noção de como é que é, como é que este país funciona, por exemplo. E a Comunicação vem muito de desenvolver essas habilidades de interpretação de texto, de escrita, de pensamento crítico. Assim... Foi também uma… Foram… Meu curso era um curso de... Poderia ser de quatro a cinco anos, e eu entrei assim, também… A UFMG, tenho muito carinho por ela, mas o curso que eu fiz em si, também era um… Eu tinha muito a mania de resumir a minha vida toda por esses acessos a oportunidades de ensino que eu vejo que foram muito proporcionadas pelo esforço da minha mãe, de correr atrás, de ter sido professora e conseguir acesso… Mas eu vejo também que toda a minha jornada, em vários espaços de ensino, era de sentir esse constrangimento de como...Se eu não devia estar ali. E na UFMG era muito disso, era uma turma de 50 pessoas, não se tinha Enem na época, e era o mesmo rolê. Você é a pessoa que mora lá em Contagem, que não ganhou o carro porque você entrou na Universidade Federal. A minha turma tinha hora que achava que era um episódio de Malhação, na época em que Malhação nem devia ser inclusiva, sabe? Vamos dizer assim. E tipo: "Ai, somos todos amigos para sempre", nos conhecemos aqui hoje, e tipo: "Gente, que hipocrisia, como assim?". E muito disso, então você não tem as mesmas histórias, entendeu? Não tem, você não faz intercâmbio no ensino médio, não fez uma "excur" na Nova Zelândia… Essas histórias de vida a gente não tinha para conversar, para compartilhar. Mas a Faculdade, para mim, foi uma experiência muito marcante, eu acho que muito disso, dessas experiências que eu tive de Educação… Eu acho que elas exponenciaram muito esse meu desejo de tentar ser sempre a melhor, sabe? De: "Vou tirar a melhor nota". De sempre me dedicar muito para ter uma performance alta, vamos dizer assim. Então, na Faculdade eu já entrei e aí, no segundo período, eu já estava querendo fazer estágio, procurando oportunidades, então comecei a navegar em várias áreas de dentro da Universidade, fiz estágio no Centro de Comunicação da UFMG, iniciação científica, de explorar todas as possibilidades que aquele espaço tinha para me oferecer.
P/1 – Você se mudou para cá, para Belo Horizonte?
R – Não, eu continuava morando em Contagem, e aí foi na época em que eu comecei assim: "Não, vou tentar tirar uma carteira, vamos começar a pensar". Aí, eu entendi o “trem” do brasileiro com o carro, não é? Porque o carro, normalmente, é a mobilidade que, às vezes, a gente não tem, não é? Então, lembro que na época eu ficava tipo: "Preciso ter alguma coisa para facilitar esse deslocamento, porque não dá, gente". Mas aí tirei a carteira e, obviamente, não tinha dinheiro para comprar carro, então só fiquei com a carteira parada, mas a Universidade… A UFMG, para mim, foi bem bacana, foi lá que eu tive a oportunidade de conhecer outro país também. Eles tinham um processo de intercâmbio entre Universidades, e aí eu me candidatei e já tinha o Inglês, desde mais nova e tal… E eu ficava muito nisso, tipo assim: "Ai, como é estranho, não é? Sei lá, ir para fora". Muito mais pelo desejo de tentar entender que experiência é essa de conhecer outro país. Eu fui e foi nisso que fiz minha formação complementar em Ciências Sociais. Essa experiência de conseguir ter ido a outros países é a outra coisa que… Cara, na Universidade... Dos meus 33 anos de vida, três anos eu morei na Holanda. Eu fiz um ano de intercâmbio quando eu estava na Universidade, que foi quando fiz minha formação complementar em Ciências Sociais. E o meu mestrado foi numa Universidade holandesa também que consegui uma bolsa para fazer um mestrado lá. Então, eu tive a experiência de morar lá por três anos. Um ano em Amsterdã e dois anos em Delft, que é uma cidade a uns 40 minutos de trem de lá. Por outras coisas na minha vida, que vamos chegar lá (risos) também, eu tive a oportunidade de percorrer muitos países, hoje aos meus 33 anos. Tudo começou nesse período universitário mesmo, de ir atrás desses acessos. Eu lembro que quando eu fui para os Estados Unidos, foi a primeira vez que eu falei com alguém que falava Inglês desde a nascença e eu lembro que perguntei para a pessoa no aeroporto: "Onde é o banheiro?". A pessoa me entendeu e eu entendi a resposta. Eu fiquei tipo: "Ela entendeu que eu perguntei onde era o banheiro e eu entendi onde era". Tipo, era o meu teste de falar Inglês com alguém que nasceu falando Inglês. Foi muito massa. Isso de morar fora é uma coisa que abre a sua cabeça para outro nível também. Eu lembro a primeira vez que vi alguém usando véu, uma pessoa muçulmana, e de entender o que era aquilo: "Como assim? A menina está saindo, indo para a escola daquele jeito". E começar a entender outras culturas, e tal. Então, eu acho que… Eu vejo muito como tudo isso foi desenvolvendo essa empatia de tentar entender como que é a vida do outro, como é o lugar do outro, como é a trajetória do outro. Muito por essas interações, seja por diferenças sociais, religiosas, e tudo mais.
P/1 – Você foi para a Holanda então, e estava no meio da graduação?
R – Sim, foi bem bacana. Eu não lembro exatamente quantos anos eu tinha, e durante a Universidade também eu fiz aqueles programas tipo: "Trabalhe e estude no exterior". Que foi quando fui para os Estados Unidos - foi até antes de eu ir para a Holanda - eu fiquei três meses nos Estados Unidos, num esquema em que eu trabalhava meio que para custear o estar lá durante os três meses e eu tinha umas duas ou três semanas de férias. E, para mim, foi muito isso de… Esse contato com outras culturas, mas é muito legal, tenho muitas memórias boas das coisas bacanas que vivenciei, de coisas que eu comi e tudo, mas acho que essas diferenças e isso do social, acabava sendo mais um despertar, sabe? Nos Estados Unidos, foi o único lugar em que eu fui ofendida na rua na minha vida, em 33 anos de vida. Eu não esqueço, eu andando, indo trabalhar com um amigo meu e aí passou um carro de jovens me chamando de "putana" e me mandando voltar para o México. Tipo, esse tipo de agressão gratuita eu nunca tinha visto, nunca tinha vivenciado e isso foi uma coisa que, na minha vida, só aconteceu lá. Então, essas experiências… Foi muito interessante para eu entender como esse mundo funciona, sabe? De pessoas que gostavam de mim já virem: "Vou conectar com fulano que ele casa com você, para você ficar aqui, não ter que voltar e tudo mais". Essas coisas muito loucas, que tipo: "Mas por que eu vou querer morar aqui e tal?". "Não, mas por que você vai querer voltar para lá? Aqui você vai trabalhar e ganhar em dólar". "Gente, mas eu vou ficar aqui lavando banheiro? Trabalhando na entrada do restaurante?" Pô, eu tinha acabado de entrar na Faculdade e não fazia sentido, mas foi muito interessante me entender também em outras culturas. Eu vi também que a minha cara é uma cara de vários lugares, porque as pessoas achavam que eu era mexicana, as pessoas achavam que eu era indiana e ninguém nunca achava que eu era brasileira. Então, isso também era muito curioso. Eu já tive proposta de casamento de dois indianos, que achavam que eu era indiana e não entendiam que não tinha indianos na minha família. De fazer pressão, de me parar no meio da rua, de me mostrar folha de pagamento e falar: "Eu consigo te sustentar, vou lá, conheço tua família". E eu: "Gente, será que é assim que esse povo, sei lá, se casa ou…". Então, esse episódio também foi muito interessante, de eu estar no elevador no restaurante - era um restaurante dentro de um cassino em que eu trabalhei, ficava tipo na recepção para sentar as pessoas -, e eu subindo no elevador, entrou uma menina e começou a falar comigo em algum dialeto. Eu falava: "Não estou entendendo, não estou entendendo". E ela ficou muito agitada, com muita raiva. Depois, saiu do elevador assim, com muita raiva e aí um indiano que trabalhava comigo foi comentar que ela achou que eu era da comunidade da qual eles fazem parte e estava com vergonha de falar com ela no elevador no dialeto deles, porque tinha outras pessoas. "Gente, eu sou brasileira". E lembro que eu tinha a plaquinha da "Tatiana, Brasil". Eu não entendia uma palavra do que ela estava falando. O morar fora, acima de tudo, são experiências que eu valorizo por essa troca, por conseguir ver como é que é isso de outras culturas, a alimentação, de como pessoas se comunicam, o que são coisas que fazem sentido ou não. Gente, isso abre a mente da gente. A Holanda, no que diz respeito à tolerância… Eu brincava, que você podia sair pintado de azul com bolinhas que as pessoas nem olhavam na sua cara. Aqui, se sua blusa está amassada, tipo… Lá, é uma outra relação entre as pessoas. Ao mesmo tempo que tinha isso, as pessoas são mais frias, você não se sente bem recebido. Eu morei três anos na Holanda e não tenho nenhum amigo holandês, entende? Eu tenho amigos de culturas diversas, porque eram todos estrangeiros naquele território. Eu falo muito também, me direciona para o caminho que você quer então (risos).
P/1 – Deixa eu perguntar: você terminou a graduação e já ligou ao mestrado?
R – Não, eu me formei, não consegui trabalhar na área de Comunicação em si e comecei a dar aula de Inglês, que foi, realmente, na época, muito sensacional, porque por dar aula de Inglês, mesmo que não tivesse a ver com o que eu tinha estudado, eu consegui uma renda que também, dentro do Jornalismo, eu não teria uma remuneração que… Para o momento de vida em que eu estava, foi muito bacana. Eu comecei a dar aula de Inglês. Eram uns horários meio malucos, às vezes eu saía de Contagem e dava aula numa escola aqui no centro de Belo Horizonte, na Zona Sul aqui de BH, na Savassi. Às vezes, eu dava aula na turma da manhã, de 07:30hr até as 09:00hr, e depois só à noite. Então, eu ficava circulando pela cidade, dormia sentada em algum lugar, mas aí eu consegui (com a ajuda da minha mãe) comprar um carro. Eu já tinha carteira, e lembro que a gente comprou um carro, ela entrou com uma parte boa e eu fui pagando a outra parte. Às vezes eu dormia, ficava no carro, porque não compensava voltar para casa e depois vir dar aula. Dar aula de Inglês foi parte da minha vida quase durante uns dois anos, depois de pós-formada, até que eu consegui uma colocação, que aí foi minha experiência com o poder público. Eu tinha uma amiga da Universidade que trabalhava no poder público de Minas, na Secretaria de Estado. Dentro da assessoria de comunicação, eles estavam sem uma pessoa e tinham alguns projetos que concentravam muito com o exterior, com as Nações Unidas e tudo mais. Precisavam muito de alguém que falasse e Inglês, e aí: "Pô, Tati, você é formada em Comunicação e dá aula de Inglês, faz todo sentido". Fui, fiz a entrevista e fui selecionada, porque o meu Inglês era o melhor entre as candidatas. Foi lá que eu comecei, de fato, a trabalhar nessa área. Tipo, eu fiz muito estágio, muita coisa, mas, profissionalmente, na Comunicação, foi dentro do poder público. Lá, eu comecei a trabalhar dentro desse governo de estado, também de algum lugar de conexões interessantes, porque… Exatamente por falar Inglês, eu ficava muito nessa ponte de conectar projetos daquela Secretaria de Estado com o exterior, participação em eventos e tudo mais. Daquela jornada ali resultou o que eu fui fazer com o meu mestrado. Eu sou então… Formada em Comunicação Social, formação complementar em Ciências Sociais e o meu mestrado foi em Recursos Hídricos, validado aqui na UFMG em Geografia (??). Então, o Brasil ______[01:06:35] em Geografia (??), esse título do meu mestrado é em “gerenciamento de recursos hídricos, com especialização na área de gestão de conflitos”. E com isso, não é? (Risos), dentro do governo do estado eu fazia muita assessoria para o… O governo do estado, na época, estava com uma iniciativa de tentar implementar um instituto de pesquisa focado só em água. Eu já tinha, na minha trajetória, vamos dizer assim, uma relação até muito simbólica com água, por vários motivos. Por ter dois pais nascidos e criados em beira de rio - Paraopeba, o rio São Francisco… Vim desse contexto ribeirinho, vamos dizer. Dentro da Faculdade, um dos estágios que eu fiz foi dentro do Projeto Manoelzão, que é um projeto de resgate do rio das Velhas, que é um dos principais rios de Belo Horizonte. E aí eu comecei a trabalhar dentro da Comunicação, fazendo algumas conexões para esse Centro que eles estavam tentando implementar e comecei a entender todo esse mundo, que era de gestão das águas. Eu lembro muito bem que tinha aberto uma vaga. Tinha cinco vagas de mestrado para fazer na Holanda, num instituto especializado somente de educação para as águas e eu lembro de ter feito a divulgação de tudo, mas sem entender que aquilo fazia sentido para mim. E aí, tipo, na última semana de inscrições, eu resolvi entrar no site da Universidade e dar uma olhada. Vi essa área de gestão e prevenção de conflitos, que, se você for olhar, tem tudo a ver com Comunicação e Ciências Sociais, que é como a gente coloca as pessoas para sentar, dialogar e negociar sobre a água e recursos hídricos, que é uma coisa… A prevenção de conflitos vem muito disso. Resolvi ir nessa. E aí, fiz o processo seletivo, passei e já entendia muito de vocabulário e expressões, pelo que eu trabalhava, não é? Lembro de que, na entrevista de seleção, eles ficavam assim: "Ah, mas você é da área de Comunicação, você não deve nem saber o que é outorga". E eu já sabia o que era, que era o direito de uso de água liberado pelo Estado e tal, porque eu já tinha pesquisado sobre isso, e foi aí que fui morar na Holanda de novo, para fazer o meu mestrado. De lá, eu fiz parte de um projeto do governo holandês e passei seis meses da minha vida em Moçambique, na África, também pesquisando sobre segurança hídrica. Hoje, eu tenho artigos publicados nessa área de água e Meio Ambiente, principalmente nessa área de governança, que traz muito disso. Quem tem acesso à água e saneamento, sabe? Isso é um problema para quem? Grande parte hoje, se for me perguntar pautas que eu levanto, é Educação e Meio Ambiente, sempre. É o que, para mim, faz mais sentido. Se você não cuida do seu planeta, que é a sua primeira casa, você não vai cuidar de nada. A água é uma coisa muito legal, porque é a chave de tudo. Seja porque seu corpo é feito de água, seja porque água está vinculada a diversas doenças, problemas de saúde pública e vários aspectos da vida. Então, cair nesse universo foi muito interessante para ver relações de poder numa coisa tão básica, para quem tem o privilégio de ter na torneira todo dia. Só que de não saber como é essa jornada toda para aquilo estar ali. Foi muito isso. Eu morei seis meses em Moçambique, estudando segurança hídrica para Maputo, a Capital de Moçambique, que aí foi outra experiência sensacional da minha vida. Fiz meu mestrado lá, também com uma performance muito bacana. Meus professores queriam que eu ficasse para o doutorado e tudo, mas eu falei: "Não, quero ver como vai ser isso no Brasil". Na época, o mestrado seria o caminho para essas cinco bolsas que havia… Na época, esse processo seletivo que eu fiz, o plano era que a gente voltasse qualificado para o Brasil, para dar vida a esse instituto que seria criado pelo governo do estado. Meio que começasse o corpo docente dessa Fundação. A gente voltou para o Brasil (as pessoas que foram fazer o mestrado), mas isso nunca aconteceu. Surgiram questões sobre corrupção e tudo mais. Hoje, essa Fundação não existe mais e cada um começou a procurar seu próprio caminho.
P/1 – Tinha quantos anos você?
R – Quando eu voltei do mestrado? Poxa, foi em 2014… Eu estou com… Ai, faz a conta, gente.
P/1 – 28 anos?
R – Devia ter uns 27 ou 28… É, porque nós estamos em 2019 e eu voltei em 2014, cinco anos. 27, 28 anos… Isso. Eu comecei a buscar outros caminhos, mas criar… O mestrado em si hoje é chave das duas grandes coisas que, provavelmente, foi o que fez você conhecer quem eu sou e eu estar aqui hoje, que são o Favela e a Water Youth Network, que são duas organizações da sociedade civil que eu tenho vinculadas com a minha trajetória, que representam essas faltas que tocam meu coração, que é pelo que acho que faz sentido lutar hoje, que é Educação e Meio Ambiente. Mas, especialmente, o acesso à água e ao saneamento. Dentro do mestrado, eu comecei a ter contato com essa organização, que é a Water Youth Network, que era um coletivo de estudantes, pesquisadores e empreendedores na área de água e saneamento, que já buscavam muito e levantavam muito essa pauta de não ter representatividade das juventudes nos processos de tomada de decisão sobre água e Meio Ambiente. Eu comecei a engajar em muitas atividades, entendendo a importância, porque você vai participar de alguma reunião no poder público, em algum Conselho ou em alguma organização, na minha trajetória, por exemplo, em várias mesas que eu sentei, eu era a única mulher na mesa e provavelmente a única mulher com menos de 30 anos. Então, são espaços que a gestão de água e saneamento, não no Brasil, mas no mundo, é muito branca, é muito masculina, é muito rica, muito privilegiada, e a água e o saneamento são problemas para quem, sabe? Então, eu comecei muito a me engajar na Water Youth Network e a gente trabalhava muito nisso, de como levantar essa questão sobre água e saneamento, como fazer essa pauta de discussão, porque as pessoas discutem tudo, mas ninguém quer discutir Meio Ambiente. Então, como fazer isso ser uma pauta que as pessoas interpretassem como relevante e que entendessem que elas precisavam participar? Porque se você não tem acesso ao que é mais básico, que é água e saneamento, com certeza todos os direitos que vêm em sequência estarão comprometidos, de alguma forma. A gente trabalhava muito isso de como levantar a pauta de água, principalmente dentro das juventudes. Participando, seja fazendo presença em eventos globais que discutiam a governança de água e tudo mais, e assegurando a representação dessas vozes, participando das discussões, levantando nossos pontos de vista, comunicando o que estava acontecendo nesses debates globais para quem não tinha a oportunidade, principalmente desses grandes eventos - nas Nações Unidas…
P/1 – Você estava falando sobre a sua conexão com a gestão do Meio Ambiente e de água. Agora, já que você adiantou, teve a cúpula das águas ano passado...
R – Isso, no ano passado o Brasil recebeu o Fórum Mundial das Águas, que é o maior evento do mundo para se discutir essa pauta de água e saneamento.
P/1 – Quando ele acontece?
R – Ele acontece a cada três anos e reúne representantes de todos os setores - a sociedade civil, o poder público, o setor privado - para discutir políticas públicas, projetos, iniciativas, pesquisas de água e saneamento. Eu fui muito feliz de fazer parte do processo, até como resultado do trabalho da organização na qual era vinculada, assim. a rede Jovens pela Água (Water Youth Network) surgiu muito até vinculada ao fato de que edições anteriores desse Fórum e de outros eventos sobre água, você não via jovens protestantes, você não via mulheres falando, pretas, periféricas, falando nesses espaços. E a própria… Como coletivo e organização, surgiu disso, sabe? De levantar essa discussão que tem que ter essa diversidade. Até como resultado dessa influência que a gente foi fazendo, o Conselho Mundial das Águas, que é a entidade que está por trás da organização do Fórum, criou um programa de representação de juventudes, dentro do próprio Conselho para assegurar que houvesse a presença dessas vozes. E aí, nessa primeira experiência deles com o programa, eu fui selecionada para compor a delegação de jovens. Começou pequenininho, mas já é o primeiro passo para ter um jovem representando a região na pegada de Continente. Então, eu fui como representante das Américas dentro do Conselho Mundial das Águas e, lá dentro, eu comecei a liderar um processo para assegurar quem tivesse mais participação dentro da jornada do Fórum, dos debates, gente contribuindo para o que acontecia ali. Disso, nasceu a iniciativa do que a gente chamou de Evento Satélites ao Fórum, que foi muito legal e eu tenho muito orgulho de ter liderado isso. A gente conseguiu mobilizar mais de 1.500 jovens do mundo, em mais de 20 edições, em 12 países diferentes, jovens que se reuniram em suas cidades para discutir água e saneamento e elencaram pautas que acharam interessantes, no âmbito de seus territórios, para que isso fosse pautado nas discussões globais e regionais que aconteceriam ali no Fórum Mundial das Águas. A gente conseguiu ter um Fórum de Jovens acontecendo dentro do Fórum Mundial, como parte da programação; a gente conseguiu assegurar a participação da juventude de vários lugares, assim. E foi sensacional, tipo dentro do... Vamos dizer, do círculo de pessoas com quem eu me conecto muito, dali nasceram coisas que a gente vê o reflexo disso até hoje, o impacto sistêmico disso, de tipo… Lembro de que, na época da gente conseguir assegurar a participação de jovens, a gente conseguiu que alguns jovens recebessem… É, a gente conseguiu um recurso financeiro para viabilizar a participação deles. E aí, a gente garantiu que tivessem jovens indígenas na Mesa, jovens de periferias participando dos processos e construções. Eu vejo isso como histórico no Fórum,. Eu nunca vi um Fórum tão diverso. Cheio de defeitos? Cheio de defeitos, gente, muita coisa. Tanto que na minha fala final - eu fiz uma fala na cerimônia de encerramento - fui sentando com cada grupo de jovens com os quais a gente tinha se conectado durante o processo para saber o que eles achavam importante falar - porque era um momento de grande visibilidade no encerramento… Cerimônia de encerramento do evento aqui no Brasil, e tal. A gente levantou que ainda tem um caminho muito grande para ser, de fato, inclusivo, desde aspectos de linguagem. Tipo, que só porque era no Brasil, não tinha tradução para o Espanhol, mas grande parte dos participantes que estavam aqui, eram vizinhos. Então, os jovens que não falavam Inglês nem Português, ficavam meio… Desde linguagem à representatividade de quem, realmente, tem problema no acesso à água e ao saneamento, que é a grande questão disso tudo. Então, fazer parte desse processo que estava por trás do Fórum Mundial das Águas me deu outros acessos também que eu nunca imaginaria na vida… De eu ir para Brasília cinco vezes no mesmo ano, sentar em discussões com a Agência Mundial de Água, sabe? Participar de um painel, junto com o governador do Distrito Federal, por exemplo. Várias viagens internacionais que eu fiz foi por causa disso, dentro da representatividade dessa coisa só que eu assumi. E ter essa experiência de, num programa piloto, a gente já conseguir levar a discussão para jovens de mais de 15 países diferentes, que… O Fórum em si não importa, sendo bem sincera. O evento em si é um evento que não importa a não ser para ser um gancho para se levantar essas discussões. O que importa mesmo é se a Micarla, que está lá em Terra Firme, que é uma das maiores favelas de Belém, ela anda no esgoto todo dia às cinco horas da tarde, quando chove. Porque a favela dela, que é a maior da cidade, não tem redes de esgoto até hoje e é normal todo mundo andar no esgoto às cinco horas da tarde. Então, é isso que importa. As pessoas, no âmbito local, entenderem como isso funciona, quais canais eu preciso acessar e mobilizar para que sejam feitas transformações. Isso é o que faz a diferença, poder… Da mesma forma que eu vejo que o Fórum e o Conselho, vamos dizer que me usa no sentido de assegurar que tem ali representatividade de jovem, porque eu também sei muito bem disso. Ter uma mulher periférica ali garante uma certa legitimidade quando se toca nessas discussões. Eu entender que também consegui fazer disso um gancho para trazer essa questão para públicos que antes não entendiam a dimensão das coisas que acontecem por trás daquilo dali. Isso foi essencial para entender como é a indústria de desenvolvimento no mundo. Isso, ter morado em Moçambique. Moçambique é um dos países mais pobres do mundo e tem sido… Há dez anos que tem atuação de agentes de desenvolvimento lá. Então, você ver, no país funcionários de entidades gringas de assistência, ganhando 10.000 dólares num lugar em que as pessoas, poxa, dormem… Vivem… Não vou nem usar de referência a linha da pobreza de menos de um dólar por dia, mas tipo, como é que é isso? Como é que teve mais gente indo para a pobreza do que, de fato, saindo da pobreza? Vamos dizer assim, no contexto de dez anos de desenvolvimento internacional, ali em Moçambique. Vendo isso, tinha muito a ver com a minha pesquisa de mestrado na época, de segurança hídrica para a Capital de Moçambique, que é disso, porque vem sempre a lógica colonialista, vem sempre a lógica do de fora: "Eu acho que essa é a solução do seu problema". Mas eu sentar com você que vivencia esse problema para tentar entender se essa é, de fato, a solução, não acontece. Então, eu lembro que quando eu ia fazer entrevistas, as pessoas ficavam muito assim: "Ah, mais um pesquisador que vem…". Mas ninguém nunca queria saber o que as pessoas estavam desembolando ali. Até um dos artigos que escrevi sobre isso acaba tocando muito nisso, em Moçambique, que tem uma coisa muito interessante, que são os pequenos operadores privados de água, que, pelo Estado não conseguir ter uma rede de oferta de água, as pessoas, como sempre, se viram. Quem tinha mais dinheiro, conseguia furar um poço ali, tirava a água e isso começou a virar negócio. É como se tivessem mais de 1.000 negócios de água espalhados pela cidade. Eu faço meu furo, estoco e vendo a água para você. Eu lembro que fiz um texto em que toda a lógica do Banco Mundial e da Agência de Desenvolvimento, é de que isso não pode acontecer. A oferta de água tem que ser centralizada e monopolizada ali na mão do poder público. De uma entidade, na verdade, terceirizada, privatizada. Tinha esses projetos apoiados por governos estrangeiros de expandir a rede de água, mas expandir a rede de água para esses territórios significa encerrar mais de 1.000 pequenos negócios que movimentam toda uma economia local ali, porque eu tenho um pequeno negócio de água, mas eu tenho quem vende, quem cobra, quem faz a manutenção… E aí? Como é que eu faço? O abalo que isso representa ali… A França, Estados Unidos, a Holanda interpretam da forma urbanizada e moderna de usar água e saneamento, por meio dessa redezinha, que você vai fazer… Bom, então essa experiência me fez ver que se você quer mudar alguma coisa, você tem que fazer, você tem que correr atrás, tem que ter essa pró-atividade mesmo de pregar aquilo. De uma certa lógica, eu acho que entendo hoje que é mais estratégico criar os espaços que você quer que existam do que, de fato, mudar coisas que já existem. Sendo bem sincera. É super válido a gente continuar o processo de tentar ter mais inclusão e representatividade em vários locais, mas também de tentar criar a forma que a gente quer que seja feita, vamos dizer. Eu vejo o Favela muito como isso. Quando eu voltei para o Brasil… O Favela é muito vinculado a mim e ao João, que é meu namorado, o idealizador da Favela, de fato. Mas dessa nossa experiência de ter percorrido vários territórios e ver muito disso de não se ter o protagonismo periférico no que são, vamos dizer assim, geração de soluções para o problema de desenvolvimento. Então, eu lembro de um evento de que participei, que tinha 1.000 jovens do mundo inteiro, que tinham sido selecionados por serem jovens talentos nos objetivos de desenvolvimento sustentáveis. Era um evento na Dinamarca. Duzentos jovens batendo cabeça para achar uma solução para o problema de água e saneamento no mundo, que é um objetivo em si do desenvolvimento. Eu lembro que na hora em que fui apresentar, eu perguntei: "Quem aqui vivencia algum problema de água e saneamento?" Ninguém. Não tinha ninguém que morasse numa favela ou numa região que nunca tivesse tido água na torneira. Como que a gente vai criar a solução se a gente não conhece nem a realidade? Então, trazer essa percepção de que não dá para ser essa lógica colonialista, tem que fazer junto, no mínimo, ou dar o protagonismo para quem vivencia o problema e trazer as ferramentas para que essas pessoas desenvolvam soluções. O Favela veio muito disso, a gente voltou, o João já estava ali de querer criar alguma iniciativa focado no empreendedorismo, por quê? Quando a gente olha para o empreender, a experiência… O João é uma pessoa - meu namorado -, que eu conheci na época em que eu estava trabalhando no poder público, porque ele também trabalhava lá. A gente se envolveu, começou a namorar e quando saiu a oportunidade de eu conseguir fazer um mestrado fora, ele foi comigo também, conseguiu uma oportunidade para estudar lá também, para poder fazer o ensino dele. Quando a gente voltou… Ele foi comigo para Moçambique também. Quando a gente voltou, ficou muito assim: "Vamos criar alguma coisa, vamos fazer alguma coisa". Eu estava com ideia de fazer algum tipo de iniciativa na área de águas especificamente, mas a gente foi observando muito essa questão do empreender, e dentro do poder público, a gente via muitas iniciativas de fortalecimento do que é chamado de "empreendedorismo de base tecnológica". Então, nessa lógica financeira que a gente vive hoje, muitas iniciativas que investiam muitos recursos para tentar tirar do papel novas empresas nessa lógica da startup, as novas empresas de base tech. E dentro dessas iniciativas, dessas políticas públicas principalmente - mas também privadas - que fortalecem esse ecossistema de empreendedorismo, tem muito essa lógica dos programas de aceleração, que são jornadas que abrem oportunidades para quem quer criar uma empresa, criar um negócio, ter acesso a recursos, conhecimentos e informações, focar nessa experiência de criar uma empresa. E a gente via que: “Poxa, não tem pobre ali”. Quem se forma na Faculdade, às vezes sai de lá com uma percepção de que criar uma empresa de base tecnológica no aplicativo tal tal tal… A gente começou muito de como a gente "deselitiza" isso e transforma numa jornada que desenvolve as potencialidades de quem empreende na correria, porque as pessoas precisam pagar os boletos, então, as pessoas vão empreender de qualquer forma, sabe? Isso daí vem... No começo do Favela a gente brincava muito que era… Tentava fortalecer o empreendedorismo de base favelada, que, em contrapartida ao empreendedorismo de base tecnológica, seria essa correria de quem está ali no dia a dia para botar o feijão na lata, pagar as contas, vendendo alguma coisa. Então, como fazer essa jornada mais preparado, com o mínimo de planejamento? Às vezes você está fazendo algo com recursos que você também não tem, e o que é mais estratégico? Na época da Copa, eu comprar vuvuzela ou eu começar a vender açaí? Como é que eu penso isso? E aí, nasceu o Favela. O Favela nasceu muito desse desejo de, por meio da Educação, por meio do que a gente chama de letramento empreendedor, compartilhar informações e ferramentas para quem já empreende e para empoderar quem faz isso a fazer isso com mais dignidade, com mais preparo, pensando a médio e longo prazo. A gente não trabalha com a perspectiva de plano de negócio, a gente fala que são planos de vidas. Como é que a gente pensa isso? Daí, vem muito a influência da minha trajetória nessa área ambiental, que é, tipo, pensar o impacto do que eu faço não só para o meu bolso, mas para a minha vida, para o meu núcleo familiar, para a comunidade em que eu moro, para a cidade em que eu vivo. Como é que o que você faz, faz o mundo melhor?
P/1 – Começou em que ano?
R – O Favela começou em 2014, que foi o ano em que voltei também do mestrado. Eu lembro que a gente voltou em março e a primeira reunião oficial de: "Vamos falar do Favela" foi em agosto de 2014. 31 de agosto é a data que a gente adota como início mesmo e aí, celebramos cinco anos neste ano de 2019. Começou muito nessa perspectiva mais coletiva, da gente se conectar com pessoas que tinham sua trajetória vinculada à periferia. Já nasceu com essa experiência de como a gente trabalha essa lógica dos programas de aceleração de negócios na periferia.
P/1 – Pensando na periferia de Belo Horizonte?
R – Isso. A gente começou no Morro do Papagaio, que é uma das maiores favelas aqui de Belo Horizonte e fica na região centro-sul, na saída para o Rio de Janeiro ali. Na época… Nós somos 12 fundadores do Favela. Na época, havia várias questões que nos levaram ao Morro do Papagaio, mas também foi um espaço que um dos nossos fundadores era de lá e é uma liderança comunitária na região. A gente conseguiu ter um espaço que a gente poderia começar a oferecer nossas atividades. No nosso primeiro encontro, a gente começou a desenhar como seria isso. Então, na verdade, o que nasceu primeiro foi o programa de aceleração em si para o Favela nascer como uma organização, vamos dizer. Então, começou mesmo com o intuito de ser um projeto social, que a gente tocaria. E aí, desenhamos o que seria a nossa primeira jornada de formação empreendedora e abrimos chamada lá no Morro do Papagaio. Para essa nossa primeira experiência, falamos: "Vamos fazer uma turma de 15 pessoas, 15 empreendedores daqui". É o que faria sentido também no espaço lá e a gente recebeu quase 60 inscrições. A gente: "Nossa, faz muito sentido mesmo" (risos).
P/1 – Como é que vocês fizeram, tinham uma base no morro e saíram jogando para as pessoas na rua?
R – Foi, a gente que começou a desenhar o que seria o programa da época do começo do Favela. A gente tinha pessoas de várias áreas de conhecimento também, sabe? Eu explorando essa área ambiental, mas também da Comunicação; o João, na área de gestão de negócios; tinha gente de Direito; gente de Administração… Então, a gente conseguiu ter uma turma com áreas de conhecimento diversas para desenhar…
P/1 – Você quer continuar falando?
R – Do...
P/1 – Como é que vocês fizeram a divulgação...
R – Foi. A gente desenhou o nosso primeiro programa e começou a planejar: "Vamos então fazer a mobilização, divulgar essa oportunidade". Conseguimos imprimir alguns folhetinhos, fizemos alguns cartazes para espalhar lá no Morro do Papagaio e dali já começou a definir toda a nossa jornada nesse sentido de pensar uma linguagem, inclusive, que faça sentido para todo mundo, sobre o planejamento de gestão de negócios também, sobre o que é empreender. Eu lembro da gente conversar com as pessoas e a gente, às vezes, esse chegar e: "Ah, você é empreendedor?" A pessoa olhava para a nossa cara, tipo… "Você quer abrir um negócio?". "Ah, eu já tenho o meu salão há dez anos". Ou, sei lá: "Tenho uma mercearia". "Pô, você é empreendedor e tal, vem fazer o curso com a gente". Então, da própria palavra ser um termo de estranhamento com quem empreende a vida toda, porque a lógica muito das pessoas é: "Ah, empresário?! Empresário é o dono de uma rede enorme". Não se vê nesse lugar de dono do próprio negócio e de pensar muito sobre isso. A gente circulava pelo Morro do Papagaio e fez um financiamento coletivo, que foi.. A gente fez antes de começar a formação. A gente estava: "Beleza, a gente tem conhecimento". Era um grupo de pessoas que todos tinham acesso ao ensino superior e pensávamos: "Vamos compartilhar isso, não é?"... Esse é o João, gente, fazendo sua participação (risos), marcando presença… Aí, todas as pessoas tinham acesso ao ensino superior e tinha muito disso de compartilhar o que aprendemos e tal. E fizemos financiamento coletivo: "Pô, a gente tem acesso, tem espaço, tem conhecimento, mas não tem grana. E no fim das contas, também se precisa de dinheiro para empreender". A meta era dar um empurrãozinho financeiro de R$3.000,00 para cinco pessoas. Então, a gente queria levantar R$15.000,00 para ser, tipo, uma premiação no final para empreendedores que participassem e se destacassem ao longo da jornada. A gente conseguiu bater a nossa meta e ainda arrecadar mais do que isso. Isso acabou atraindo outras pessoas para entrar como parceiros com a gente. Nisso, a gente rodou o nosso primeiro programa, Pips, que era previsto para ser seis meses e ficou oito. Ao longo da jornada, incluindo coisas que a gente achava que fazia sentido, de tipo: "Ah, vamos falar de marketing digital", por exemplo. Dar o exemplo de como você usa redes sociais para garantir a presença virtual e digital do seu negócio. Às vezes, a gente tinha que explicar o que é o e-mail, para que serve o e-mail. Porque aí, nós vamos criar uma conta de e-mail, para depois pensar em criar o perfil numa rede social. Então, era uma jornada em que a gente ia incluindo coisas: "Pô, vamos criar uma rede social, mas não adianta a gente criar a página da empresa… Pelo menos o Português instrumental para fazer um anúncio e estar bacana". Teve aula de Português instrumental, de terminhos em Inglês, portfólio, breathing, não sei o quê, essas coisas que estão muito no linguajar de negócios, publicidade, marketing e tal. E sobre empreender em si, sobre falar de modelos de negócio, sobre gestão… Desde então, por exemplo, todos os programas do Favela, a gente toca nos ODSs (Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis). Desde sempre, a gente traz essa abordagem de: "A gente quer empreender, porque faz sentido geração de renda, porque faz sentido empoderamento econômico do empreendedor periférico, mas também porque a gente quer transformar isso daqui num lugar melhor. O mundo em que a gente vive, num lugar melhor". Então, como é que o meu negócio impacta nesse sistema? Eu estou diminuindo desigualdades? Estou contribuindo para acessar saneamento de alguma forma? Eu estou fazendo uma agricultura mais sustentável - vamos dizer assim? Então, como é que é isso? A gente cruza muito o uso de desenvolvimento sustentável como um panorama mesmo de grandes problemas do mundo para pensar como é que o que a gente faz se conecta com algum desses, de impacto, que gera isso. E faz muito sentido. Então, de 2014 para cá, nesses cinco anos, a gente tem mais de 20 formações realizadas desde os nossos… A gente chama esses programas de integração, que são jornadas de seis meses. Há formações mais customizadas, mais intensivas ou curtas assim, de um mês ou um fim de semana. Já tivemos formações revisadas em mais de 25 municípios de Minas Gerais. Só em Belo Horizonte foram várias favelas. A gente começou no Morro do Papagaio, fizemos três edições lá, depois fomos para o Aglomerado da Serra, fizemos uma ação já do outro lado da cidade, Coqueiral, Contagem… Então a gente já percorreu vários municípios e favelas daqui com as nossas ações e diversificamos, também, como são essas jornadas. Hoje, a gente tem o Corre Criativo, que é um programa para a juventude periférica que está empreendendo, quem tem de 18 a 35 anos, que geralmente está nesse momento de começar alguma coisa do zero, ou, no máximo, tem uma breve experiência com aquilo ali. Como é que a gente apoia essa jornada desse jovem empreendedor? O Corre acontece no centro, com jovens de favelas e de vários municípios da região metropolitana. O Pips acabou ficando para a galera mais adulta, que geralmente já está à frente de alguma coisa, já vem de alguma coisinha. Então, como é que a gente melhora essa gestão? Teve a Favela Resiliente, que trazia uma pegada do impacto ambiental mais óbvio, vamos dizer assim , de pensar o empreender a partir do aproveitamento de resíduos, por exemplo. Então, a gente foi desenvolvendo experiências diversas e a gente tem nossa versão periférica do _______ [01:45:00], que é o Fala Favela. Agora, tudo é: "Fala alguma coisa", mas o nosso já tem cinco anos (risos). O Fala Favela, que já veio nessa lógica de: “Que histórias as pessoas têm para contar?” Então, é uma noite com quatro empreendedores periféricos que compartilham suas jornadas, seus desafios, como que é o corre deles assim e como eles podem inspirar, motivar, mas também aprender com outras pessoas. Então, nesses cinco anos a gente… Hoje estamos aí com uma comunidade de mais de 250 empreendedores periféricos que participaram dos nossos programas. São quase 200 iniciativas movimentadas e a gente trabalha sempre com a perspectiva de empreendimento no que diz respeito a poder ser um negócio com ou sem fins lucrativos, ou simplesmente um projeto que você quer planejar, quer começar e não tem a menor ideia de como fazer isso. Então, a gente acaba tendo um perfil de iniciativas que foram movimentadas pela gente, das mais diversas. Desde uma jovem que produz hidropônicos, lá na Vila Bispo de Maura, que é dentro de uma ocupação aqui de BH a jovens do TST que trabalham com Ecologia; a pessoas que vendem bolo no pote; a quem faz lavagem ecológica de automóveis; a um ou outro que quer criar um aplicativo, mas que, realmente, exige um investimento que a gente ainda não consegue trabalhar. Então, geralmente, as iniciativas de base tecnológica são as que não são tão fáceis de viabilizar dentro da jornada que a gente consegue oferecer até agora, mas a gente acabou desenhando experiências, então, que trazem conhecimentos e informações que a gente entende que são úteis para entrar nisso de empreender. De como é que eu planejo isso; como eu penso no impacto disso; como é que eu me organizo para isso; onde é que é estratégico aplicar; de que recursos eu preciso; como eu viabilizo as parcerias e trocas não só de dinheiro; e estamos aí com cinco aninhos de história, e é muito lindo. Essa semana, por exemplo, na quarta-feira, eu dei palestra num curso que é sobre Belo Horizonte, uma iniciativa de um grupo cultural aqui de BH que deu um curso que era sobre a cidade e, na aula sobre empreendedorismo, eu fui falar. Eles me convidaram para falar do Favela e tal e eu fui ver que eu ia falar junto com o pessoal lá da Favelinha e com a Transvest, que são duas iniciativas de empreendimento social aqui de BH, e, tipo assim, eu fiquei muito feliz porque falei: "Poxa, a gente tem um pezinho nas duas". A Transvest trabalha com educação para pessoas trans e travesti, preparação para tirar o ensino médio, para fazer o ENEM também, e tudo mais. Tinham acabado de passar por uma formação com a gente - em julho e agosto – para a gente tentar desenhar o que seria uma marca, uma frente de geração de renda para as participantes do Transvest, para que… Às vezes, a jornada de estudar acaba sendo impactada por isso, tem que ter transporte, tem que comer… Como é que a gente pensa alternativas para isso? E ao lado da Favelinha, que é um centro cultural no Aglomerado da Serra, a gente tinha participado em março, ajudando a criar o modelo de negócio do Remexe, que é uma iniciativa deles que trabalha com reaproveitamento de resíduos para criar uma marca mesmo e está lindo. Hoje são mais de dez costureiras envolvidas ali, criando peças maravilhosas, fazendo desfile, e tal. Foi muito legal saber que a gente está conectado com aquilo, de alguma forma, e vendo, acima de tudo... Na quarta, por exemplo, a Michele, que é da Transvest, vendo ela falar, eu ficava tipo: "Que maravilhoso". Eu acho que o mais sensacional é entender essa lógica de, por exemplo, a própria questão da diversidade é uma pauta muito usada por públicos que entendem o potencial econômico daquilo ali, sabe? "Ah, isso vai fortalecer o meu marketing". Ou: "Se eu falar disso, vou vender mais". Ou entender que tem clientes que se conectam com aquilo, mas quem, de fato, representa aquilo ali não figura como potencial daquilo. Então, é entender isso também. Eu acho isso sensacional, como um dos impactos que a gente faz, delas entenderem: "Eu sou mulher trans/travesti". E ela faz, por exemplo, calcinha, lingerie, coisas para esse público, e entender que tem gente que vai comprar dela por causa disso também. Então, ela também merece ganhar dinheiro com isso e não uma galera elitizada que entendeu que isso está na "moda", vamos dizer assim e... "Vamos ganhar dinheiro com isso", sabe? Começar a ser protagonistas dessas iniciativas também. Hoje, a gente vê esse impacto, a gente fala desse impacto sistêmico em coisas diversas. A gente esteve no Morro do Papagaio e o Júlio, que mora lá, falando que ele observou que na rua principal lá do morro - é uma rua em que passa um micro-ônibus...
P/1 – Qual a rua?
R – Morro do Papagaio?
P/1 – A rua.
P/1 – Ah, rua São Tomás Aquino. Tipo, a principal rua do Morro do Papagaio, é onde passa o micro-ônibus e tal. Ele falou: "Ah, eu vi que vários negócios aqui mexeram na fachada, começaram a dar uma melhorada no empreendimento, percebendo empreendedores que tinham passado pelos nossos programas, que estavam tendo esse cuidado". Por exemplo, lá a Gilmara, que participou do nosso piloto e que recebeu um empurrãozinho de R$3.000,00, reformou o espaço dela, abriu o primeiro Spa de Noiva dentro do Morro do Papagaio, conectando até muito com o público evangélico que era da igreja da qual ela fazia parte. Hoje, ela está já na segunda unidade do salão dela. Virou um empreendimento familiar, que hoje emprega ela, as duas filhas e o filho, que agora está com a barbearia no andar de cima do salão dela. A outra unidade… Já com toda pegada das redes sociais, bacana, o Instagram dela está super bonito. A filha dela entrou, assumindo aquilo ali. Aí, foi muito engraçado, o Júlio - que é um dos nossos fundadores e mora lá - falando isso: "Eu vi que a galera começou a mexer, vendo que a Gilmara já estava com o salão, com fachada e tal". A gente vai vendo essas histórias. Kleber, do Pindorama, que fez o programa com a gente e trabalha com terrários e quadros vivos. Ele tem uma história bacana, que tem um filho que teve muito problema com drogas, por exemplo, saiu de um processo de reabilitação e começou a empreender com ele. Hoje, o filho dele faz essa frente de marketing digital, de divulgação. O Kleber é um senhor já, de mais de 60 anos, e ele fica mais no lado produtivo das coisas, com os terrários e tudo. Você saber que está por trás dessas histórias, é muito legal. Então, a gente vem muito nisso, trazendo as informações e as ferramentas que a gente vê que podem facilitar essa jornada de empreender, de: "Bora botar no papel primeiro algumas coisas, ver se é isso mesmo, se faz sentido". E aí, como é que a gente monitora isso? Onde a gente quer chegar com isso? Estamos aí, há cinco aninhos fazendo isso. Hoje é, realmente, a minha atividade principal estar no Favela. A gente é meio que multi uso lá: dá aula, escreve projeto, faz atividades de gestão… Estamos hoje aqui, há um aninho no nosso escritório. Agora, com a perspectiva de conseguir colocar uma segunda sala para usar de multi uso para a sala de aula, essas coisas assim. Com essa perspectiva de se consolidar, de crescer… Começamos este ano a fazer atividades em outras cidades do estado e vendo que o que fazemos, faz sentido com o contexto urbano, mas faz sentido também no contexto rural, que o perfil é muito parecido. A gente teve a oportunidade, por exemplo, agora, de fazer uma jornada de formação de dez organizações no interior do estado: sindicato de produtores rurais, gente que está produzindo leite, iogurte… E a gente: "Nossa, será que vai fazer sentido?". Quando você vai ver, é o perfil mesmo do empreendedor. Gente que tem acesso sem ter tido educação de qualidade, não contar com uma estrutura bacana, às vezes, disponível, e aí faz todo sentido. Então, está sendo bem legal e hoje a gente está nesse desafio de conseguir… De como crescer mesmo, de forma sustentável e estratégica, para levar o que a gente faz, como a gente faz, para outros locais e ampliar essa transformação periférica (risos).
P/1 – Obrigada, viu?
Recolher