Quando nasci fui abandonado pelos meus pais naturais e adotado por uma família também muito pobre. Esses pais de criação eu sempre considerei meus verdadeiros pais, mas esse meu pai de criação logo virou alcoólatra e a minha mãe, a mulher dele, começou a se prostituir. Dela, não guardo rancor do tempo em que vivi com ela. Só me lembro das longas noites que ficava sozinho em casa, quando ela saía para trabalhar nos bares, em busca de clientes.
Quando eu tinha dez anos eles já estavam separados e eu passei a morar com meu pai em uma casa de barro na beira da praia. Foi por pouco tempo, mas foi um período feliz, que ficou em minha memória. A gente saía de madrugada, corria na areia da praia e era uma coisa bem família, de pai para filho. Foi uma parte da minha vida que me toca muito, que eu fico feliz de ter acontecido. A gente tinha uma casinha, era bem simples, não tinha energia elétrica, não tinha fogão, não tinha nada. A única coisa que a gente tinha era um rádio à pilha e mais nada, mas foi uma parte da minha infância que eu vivi e que me marcou. Só que depois, meu pai, para fugir de um pedido de pensão alimentícia, resolveu mudar de cidade e foi para a capital de outro estado da região central do Brasil, onde morava a família dele.
A minha expectativa era só de mudança de vida, conhecer outro lugar. Ter uma vida diferente com a minha avó, meu avô, com o meu pai. Eu pensei: “Eu vou chegar lá e vou estudar,” que até então eu não tinha estudado. “Vou conhecer outras pessoas, vai ser diferente.” Quando eu cheguei, foi tudo novo, tudo novo mesmo! Por exemplo, eu nunca tinha conhecido uma escada rolante. Na rodoviária eu vi aquele treco subindo, que o degrau levanta, um no outro assim... Eu quase levei uma queda e a minha tia me deu um beliscão: “Fica quieto, menino!” A rodoviária era enorme. As pessoas eram diferentes, a conversa era diferente, o jeito de se vestir era diferente. Eu...
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Quando nasci fui abandonado pelos meus pais naturais e adotado por uma família também muito pobre. Esses pais de criação eu sempre considerei meus verdadeiros pais, mas esse meu pai de criação logo virou alcoólatra e a minha mãe, a mulher dele, começou a se prostituir. Dela, não guardo rancor do tempo em que vivi com ela. Só me lembro das longas noites que ficava sozinho em casa, quando ela saía para trabalhar nos bares, em busca de clientes.
Quando eu tinha dez anos eles já estavam separados e eu passei a morar com meu pai em uma casa de barro na beira da praia. Foi por pouco tempo, mas foi um período feliz, que ficou em minha memória. A gente saía de madrugada, corria na areia da praia e era uma coisa bem família, de pai para filho. Foi uma parte da minha vida que me toca muito, que eu fico feliz de ter acontecido. A gente tinha uma casinha, era bem simples, não tinha energia elétrica, não tinha fogão, não tinha nada. A única coisa que a gente tinha era um rádio à pilha e mais nada, mas foi uma parte da minha infância que eu vivi e que me marcou. Só que depois, meu pai, para fugir de um pedido de pensão alimentícia, resolveu mudar de cidade e foi para a capital de outro estado da região central do Brasil, onde morava a família dele.
A minha expectativa era só de mudança de vida, conhecer outro lugar. Ter uma vida diferente com a minha avó, meu avô, com o meu pai. Eu pensei: “Eu vou chegar lá e vou estudar,” que até então eu não tinha estudado. “Vou conhecer outras pessoas, vai ser diferente.” Quando eu cheguei, foi tudo novo, tudo novo mesmo! Por exemplo, eu nunca tinha conhecido uma escada rolante. Na rodoviária eu vi aquele treco subindo, que o degrau levanta, um no outro assim... Eu quase levei uma queda e a minha tia me deu um beliscão: “Fica quieto, menino!” A rodoviária era enorme. As pessoas eram diferentes, a conversa era diferente, o jeito de se vestir era diferente. Eu fiquei bem contente com o local. Eu não fui morar na região central, mas sim num lugar bem afastado, onde não tinha asfalto, esgoto, colégio.
Logo que cheguei, passei a contribuir com o sustento da casa. Fui obrigado a trabalhar catando latas e papelão para vender. Quando entrei na escola não foi nada fácil aprender a ler e a escrever, porque só comecei a primeira série quando cheguei do Nordeste. As crianças eram todas pequenininhas, eu era o maior da série. Eles caçoavam de mim. Foi barra pesada.
As surras que eu levava do meu pai embriagado passaram a ser cada vez mais constantes. Eu fugia de casa quando meu pai me batia, porque eu apanhava sem motivo. Ele chegava bêbado, dizia coisas que um pai não deve falar para um filho e me batia, então eu fugia e passava dois, três meses na rua. Para me sustentar pedia esmola e as pessoas me ajudavam. Em casa eu sofria tanto que não acreditava que as coisas pudessem melhorar. Na rua me sentia mais seguro do que em casa.
Estudei até a terceira série. Como não aguentava mais os maus-tratos, as surras constantes do meu pai, da minha tia, dos meus avós, aos treze anos resolvi viver definitivamente nas ruas. Para sobreviver vendia meu corpo em troca de comida ou de uma cama para dormir.
Morei por um breve tempo na rodoviária da cidade e como apanhava dos meninos veteranos que viviam como eu nas ruas, passei a dormir embaixo das árvores do parque da cidade. Foi a minha casa por oito anos. No parque frequentava também uma escola pública que aceitava alunos que estavam em situação de rua. Quando comecei conheci algumas pessoas que me deram apoio. Eles fizeram por mim o que minha família não fez. Conversavam comigo, me ensinaram onde conseguir comida. Eram três pessoas. Um me ensinou a ler direito, a ter gosto de pegar um livro. Os outros dois me deram muito apoio moral. Viviam repetindo que eu ia sair dessa vida e que seria capaz de construir um futuro diferente.
Nessa época eu dormia atrás do cemitério, às vezes em cima do banheiro, porque as pessoas passavam e ninguém me via, mas quando chovia era bem complicado. Eu dormia na parada de ônibus ou dentro do banheiro do parque. Imagine você dormir num banheiro público! Por volta das sete da noite eles fechavam a porta com cadeado, mas tinha um buraco na parede e eu era bem magrinho, então passava para dentro e dormia. Ninguém podia saber, senão os seguranças do parque me expulsavam.
Comecei a me prostituir porque precisava de dinheiro para minha alimentação e para ter um lugar pra dormir. Às vezes eu ia com os caras e não era nem pelo dinheiro, era para ter um lugar seguro para dormir, um lugar onde não ia ter que dormir no chão, onde ia dormir numa cama. Um lugar que, quando eu chegasse, o cara ia me dar um almoço, uma janta e ligar a TV. Fiz programa até os meus dezessete anos, mas não me arrependo. Não gostava do que fazia, mas fazia para sobreviver.
A primeira vez foi quando eu era bem pequeno, uns nove anos. Um cara chegou e me convidou para jogar videogame na casa dele. Ele não me mostrou o videogame, o jogo dele era outro. Ele queria sexo mesmo. Foi horrível, nunca vou esquecer. Você fazer algo que não quer fazer... Fui enganado achando que alguém ia me dar uma coisa por caridade, para ser bonzinho.
Me pergunto como é que pode alguém fazer algo por você e exigir sexo em troca, dizer: “Só vou te ajudar se você transar comigo.” Alguém te violentar e fazer essas coisas com você. Eu acho que a pessoa, para te ajudar, tem que ser de coração e não para ter algo em troca, mas infelizmente tem muita gente que não pensa assim.
A primeira vez que me prostitui foi com um senhor de uns quarenta anos, na cidade onde fui morar com a família do meu pai. Ele me viu catando latinha na rua e me perguntou quanto eu ganhava. Eu disse que tirava treze reais por quilo, aí ele me ofereceu 110 reais pra sair com ele. Aceitei, estava precisando de dinheiro. Eu devia ter uns treze anos e, como sempre, foi difícil, mas aprendi que fazia parte da minha vida: ou eu fazia, ou no próximo dia ia acordar com fome e com a cara inchada de quem dorme no chão. Ele me levou para a casa dele e dormi lá.
Um dia eu tava na rua catando latinha, papelão, e aí eu vi um jornal com a foto do Cristo Redentor. “Que bonito!” Do nada veio aquela coisa: “Vai pro Rio de Janeiro, vai que o negócio lá é melhor, é diferente!” Eram três horas da tarde. Deixei num canto as latinhas, o papelão e, do mesmo jeito que eu estava, fui para o Rio de Janeiro.
Saí a pé em direção ao Rio de Janeiro. Depois de quinze dias de caminhada achei que não ia dar mais. Vi um caminhão parado no posto que estava indo para lá. Pensei: “Não vou pedir carona porque eu tenho certeza de que ele não vai me dar.” Eu entrei embaixo do caminhão e fiquei entre o eixo e as rodas. Sentei e fui ali, embaixo do eixo do caminhão. Quando eu cheguei lá que me dei conta de que, se eu caísse, ia morrer. Foi uma coisa muito doida, disse para mim mesmo que nunca mais ia fazer aquilo de novo.
No Rio de Janeiro conseguia comida que era servida por freiras em uma igreja. Depois que eu conheci o Cristo Redentor, acabei sendo acolhido na casa de uma senhora em Belford Roxo, mas quando descobri que ela era um travesti e que sua intenção não era me ajudar, eu fugi e acabei parando num abrigo, do qual fui mandado de volta para a minha cidade natal, no Nordeste.
Quando voltei para a casa de minha mãe eu cheguei a pensar que poderia ter um recomeço em minha vida, mas acabou sendo tudo de ruim. Ela estava morando num bairro muito violento e tinha se tornado cafetina. Poucos dias depois acabei sendo envolvido em uma briga no bar que a minha mãe administrava e isso atraiu a polícia. O marido de uma das prostitutas falou que, se eu não saísse de lá, ia me matar e ia matar minha mãe. Para não ter confusão e salvar minha mãe, eu fugi. Andei a pé dois mil e tantos quilômetros e voltei para a mesma capital onde vivia antes de ir para o Rio de Janeiro.
Logo passei a morar em um abrigo e voltei a frequentar aquela escola que atendia os meninos de rua no parque. Foi quando ouvi falar do ViraVida. Eu sabia que um dia ia ter que sair do abrigo, e aí? Eu ia voltar para a rua de novo? Eu vi no Vira Vida a oportunidade que apareceu e eu agarrei. A oportunidade veio até mim e eu não deixei escapar, segurei. Daí as coisas foram acontecendo.
Quando começou eu já conhecia muitos meninos de rua que entraram no projeto. Isso ajudou porque eram pessoas que passaram pelos mesmos problemas que eu passei, nós viramos uma família: “Eu te fortaleço e você me fortalece.” Essas pessoas me entenderam porque já tinham passado por isso. Se eu for contar tudo para uma pessoa que nunca passou por isso ela pode me olhar com um preconceito e essas pessoas, não. Elas me trataram bem e um foi dando força para o outro, foi uma nova família que me acolheu.
Foi um ano de formação, de estudo, batalhando. Foi uma alegria total a primeira vez que assinaram minha carteira. Eu nunca tinha trabalhado formalmente. Meu Deus, o primeiro trabalho e você consegue em uma empresa tão conhecida... Agora quero cursar Sociologia. Esse sonho de ser sociólogo veio da rua, onde conheci um sujeito que me ajudou muito. Ele era sociólogo formado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e acabou na rua por causa das drogas.
Eu sofri pra caramba mas não mudaria nada na minha vida. Acredito que tudo tem um porquê, um significado. Mesmo que a gente não entenda, deve ter uma razão naquele sofrimento. Uma força maior, que nos fez viver aquilo para o nosso crescimento. Eu cresci com tudo o que aconteceu comigo. Aprendi que, quando a gente cai, mesmo que sejam várias vezes, não pode ficar deprimido.
Muitas pessoas olham só para trás e pensam: “Não vou fazer isso ou aquilo porque já me dei mal. Não vou ajudar aquela pessoa porque quem eu ajudei me passou a perna.” Nada a ver. Se você caiu, beleza. Levanta de novo e vai, mesmo se for rastejando. Segue em frente que um dia vai ter a recompensa. Se caiu, levanta e segue; não deixe a peteca cair. Chuta a bola e é gol.
Nesta entrevista foram utilizados nomes fantasia para preservar a integridade da imagem dos entrevistados. A entrevista na íntegra bem como a identidade dos entrevistados tem veiculação restrita e qualquer uso deve respeitar a confidencialidade destas informações.
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