Projeto Kinross Paracatu
Depoimento de Ana Maria Oliveira Souza
Entrevistado por Carolina Margiotte e Fernanda Prado
Paracatu, 19/06/2017
Realização Museu da Pessoa
KRP_HV27_ Ana Maria Oliveira Souza
Transcrito por Melissa Lourenço Machado
P/1 – Bom Dona Ana, primeiro a gente queria agradecer a disponibilidade de abrir as portas da sua casa para receber a gente e para começar essa conversa eu queria que a senhora dissesse seu nome completo, o local e data de nascimento.
R – Ana Maria Oliveira Souza, eu nasci em Dom Pedro, no Maranhão, no dia 16 de janeiro de 1953 às cinco e meia da manhã.
P/1 – Eu queria que você contasse um pouco sobre seus pais, o nome deles, o que eles faziam...
R – Dom Pedro é uma cidade muito pequena ainda e, como Paracatu (MG) e muitas outras as cidades do mundo, as pessoas são bairristas e muito tradicionais. Dom Pedro não era diferente. Meu pai era caminhoneiro, cearense e viúvo. Quando ele chegou na cidade, conheceu a minha mãe que tinha 18 anos e eles começaram a namorar em seguida e a minha mãe foi deserdada porque não podia casar com um forasteiro (risos) mas eles viveram 32 anos de casados. Primeiro, nós morávamos num sitio, eu nasci no sitio, muito bonito, muito grande, onde se plantava de tudo, os meus antepassados só iam na cidade para buscar sal, tudo era produzido na terra. Mas quando eu tinha quatro anos nós mudamos para uma cidade vizinha que chamava Independência, no Maranhão, também dizem que é Estrada Real, e lá nós tínhamos uma casa tão grande que tinha um riacho no quintal, onde meu pai pegava peixe e é uma tradição no Nordeste de muitas famílias ter um poço de peixe no quintal, eu nunca vi isso, cava-se um poço de cinco ou seis metros de fundura e a água é mantida, trocada ou vinda de um rego para ela se trocar, para ela se refrescar, e os peixes são ali. Quando a gente queria um peixe, ia lá pescar, matar e comer o peixe fresco. Meu papagaio morreu afogado nesse poço (risos) aí eu fiz o enterro e fiz uma confusão. Meu pai era caminhoneiro e um grande negociante, um homem muito inteligente que não aprendeu a ler até conhecer a minha mãe, que não ia casar com um analfabeto que ela era professora. Ela era professora primária, formada com 16 anos nas escolas antigas e ela não conseguiu trabalhar com o Estado porque ela achava que a educação tinha que ser individualizada e no Estado a gente é comportamentalizado em caixinhas. Tem mais educação para o menino que é mais lento e não tem educação para o que é superdotado. Por discussões assim que a minha mãe rompeu com o Estado e não foi trabalhar (risos). Aí ela foi trabalhar como professora de costura, ela dava aula de reforço para as crianças, muito boa com matemática. Quando eu tinha quatro anos, eu adoeci, eu peguei Tifo, febre tifoide, e foi uma doença muito longa com recuperação muito lenta e foi daí que foi reforçado a ideia de que comida é remédio, e eu fui tradada por um enfermeiro, que também não conseguiu trabalhar com o Estado porque ele era raizeiro, uma pessoa entendia muito de alquimia alimentar e cuidando de mim. Muita gente que teve febre tifoide morreu, e nessa época a mamãe, o papai era sempre muito presente e uma das recomendações era que tudo que fosse feito para mim fosse com agua filtrada e eu só podia tomar água de coco. Então o papai comprava carradas de coco e ponha na parte, na casa do poço de peixe, e eu só tomava agua de coco e a minha alimentação não podia ser requentada, tinha que ser toda fresca e toda natural e isso a gente tenta fazer até hoje. Então, os meninos aqui de casa eles tomam xarope de gengibre, açafrão com pimenta, bala de tamarindo com pimenta, que é bom para a saúde. E depois com a Corrida do Ouro, lá Serra Pelada que é bem antes do que aparece na história, o meu avô mudou de Dom Pedro para Imperatriz, para poder prestar serviço, ele era marceneiro. Aí voltando para o meu pai, meu pai estava sempre viajando e a mamãe que cuidava da gente porque ele estava na estrada direto e ele viajava muito para muitos lugares bons, inclusive o grande mercado de São Paulo. Então acho engraçado porque hoje as coisas que estão na moda, a gente conhece desde pequena, porque o papai passava no mercado e levava tudo: nêsperas, ameixa não sei de onde, tâmaras. Eu conheço tâmaras desde que eu era criança porque ele levava para a gente. Então, nunca teve isso de barreira de não pode, de poder, todas as frutas do Norte e eu viajava muito de caminhão com meu pai e eu levava todas as minhas roupas, uma sacola de sapatos e uma de pão (risos) porque eu amo pão, aliás tem pão aí viu! E ele brigava: “Não vou levar isso não, vou deixar! ” e levava. E a gente cresceu assim, sempre com muito estudo, porque papai não estudou muito e mamãe só terminou o estudo para ser professora e então sempre o que ele dava para a gente era livro, natal, aniversário, vocês viram ali na mesa, muitos livros, e era para estudar. Nossa obrigação era tirar uma nota boa na escola, mais nada. Tinha que ter obrigação em casa porque mãe, é mãe, né. Então tinha quem lavasse, quem passasse, quem cozinhasse, o que você gostava mais você acabava fazendo em casa. Bom, eu gostava de tudo e acabava trabalhando muito, né, mas eu gostava muito era de cozinha, então a minha irmã cuidava da casa, a outra irmã cuidava das roupas e eu cuidava da cozinha, que eu faço até hoje, né. De comprar, administrar, gerenciar e cozinhar e a gente vai crescendo. Com quantos anos eu tinha? Nós mudamos de novo para uma outra casa própria, sempre muito grande com quintal. A gente chega numa casa, nordestino é assim, e planta mamona para dar sombra e mandioca porque com cinco meses você tem mandioca, aí planta todas as outras coisas em volta. Eu gostaria de não ter que comprar nada na venda e eu acho um absurdo alguém ter que comprar cebolinha e salsa, porque você cresce cebolinha e salsa em caneca (risos) dependurada na janela. E a gente assim muito de agricultura, de plantar de cozinhar e de comer. Na época em que eu nasci, as pessoas espancavam as crianças, mas a minha mãe fez meu pai assinar um Termo de Compromisso que nós não seríamos criados com espancamento. Então não tinha esse negócio de beliscão, tem gente que faz assim na cabeça do filho, que faz um galo, ou puxa a orelha que sai sangue, Aí! Ainda tem gente que faz isso, mas em casa não tinha isso, não tem até hoje, tanto é que quando alguém da minha família fica muito esquentadinho e dá um coro na criança eu levo ele no Conselho Tutelar no outro dia (risos) mas na hora!
P/1 – Ana, você não falou para a gente o nome dos seus pais.
R – Meu chamava-se Fernando, ele era cearense, de um lugar perto de Lagoa do Mato, Quixeramobim, tudo aqui lá e eles também são agricultores, uma família de dez filhos, tem comerciante, não era comum as pessoas irem para a Faculdade, mas tem, os netos já tem muito engenheiro, médico não tem, normalmente engenharia, administração, contabilidade porquê da parte da minha mãe, que chamava Dalva, ele era maranhense. Eu conheço mais a parte da minha mãe, porque nós não éramos muito ligados aos meus avós paternos, e na parte dos Oliveira, dos Alves Oliveira do Maranhão, as meninas todas tinham que ser professoras, fazer um curso completo de trabalhos manuais, normalmente com pessoas que estudaram na Europa, porque era de bom tom e os rapazes todos estudaram marcenaria e serem contadores, porque são profissões garantidas. Então isso de artesanato, vem da família. Meu avô tinha aprendizes, que ficavam anos com ele apara aprender, mas aprender mesmo.
P/1 – Então fala para a gente o nome dos seus avós.
R – Meu avô chamava-se Gonçalo e ele conhecia Baden-Powell, não pessoalmente, ele ensinava para todos nós de marinharia para todas as crianças da redondeza, nós tínhamos, o que eu descobri depois, o bastão de escoteiro, porque quem mora na roça tem que ter certos cuidados, então, o bastão de escoteiro é uma vara feita de uma madeira especial ou de um bambu, se você não tem a madeira, uma vara que não enverga, que é maior que você e você usa para espantar as cobras quando você vai no mato ou também você usa para subir, para amarrar, para passar de um lugar para o outro, você não vê isso hoje. Os meninos dentro do meu quintal, hoje eles só entram para derrubas ar mangas e fazer bagunça, jogar pedra no telhado. Meu avô era uma espécie de escoteiro, um certo escoteiro da vizinhança e ele era uma pessoa tão respeitada que... A cidade em que eu nasci não tinha cadeia, quando alguém vazia uma coisa muito errada era meu avô que ia lá resolver, uma espécie de juiz. A minha avó eu não conheci, que ela morreu quando mamãe nasceu, aí meu avô casou de novo, mas sempre morando em casas muito grandes com parreiras na frente. Todas as frutas que você imaginar meu avô plantava, inclusive coisas que não davam no Nordeste, ele dava um jeito de plantar e ele tinha uma roça, que a gente fala, o pessoal hoje fala fazenda. Era roça mesmo, de onde tirava tudo e nos finais de semana e na época que a planta estava crescendo ele trabalhava como marceneiro, por isso que aqui em casa tudo é feito, a gente chama o marceneiro, essa aqui foi embora para Brasília, e faz tudo o que a gente precisa. Os baús, as cadeiras, as mesas, os ajustes, as prateleiras, tudo.
P/1 – E conta como é que era a convivência ele e com a esposa dele...
R – Ah era ótimo. A minha a vó madrasta era bugra, era índia, a mãe dela foi pegada no laço, porque lá no Maranhão ainda tem uma parte, geograficamente perto do Pico do Papagaio, porque tem uns índios que não se submetem, escreveu não leu eles escalpelam alguém, só que não dá na notícia (risos) porque eles não querem ser submetidos a cultura do branco. A minha avó madrasta se chamava Lurdes, a mãe dela foi pega no laço, ela era bem índia e ela cozinhava muito bem e eu aprendi uma coisa muito importante com ela: todo dia de manhã, ela saía com um pratinho coberto com um paninho bordado e levava para algum lugar (choro) e eu ficava curiosa, eu era um toquinho, hoje eu estou muito chorona, e aí um dia eu perguntei a ela, e de tarde ela voltava com o pratinho vazio e o paninho dobrado dentro, um prato fundo de esmalte e eu sempre achei que perguntar não ofende, você pode fazer a pergunta que você quiser para uma pessoa, não é ofensa, ela responde ou não. E naquele tempo as crianças não falavam, eu aprendi a falar cedo, eu andei com sete meses, eu ia ficar calada? Um dia eu falei: “Vovó preciso fazer uma pergunta” e ela “Venha, Ana Maria, essa menina é danada! ” “O que a senhora leva naquele prato e aonde a senhora vai, que a senhora volta com aquele prato vazio? ” Gente! Todo dia da vida da minha avó ela vendia um prato de Quitanda no Mercado Central que era em frente a nossa casa. Passou-se. Quarenta e tantos anos depois, ela conseguiu largar o meu avô, que era um homem muito ruim... Meu avô era assim, gente! Menino fazia coisa errada e ele só no anotando na cabeça, no dia em que todos faziam uma coisa errada, ele juntava todos e dava uma surra em todos, juntos de uma vez para um não rir do outro. Uma vez eu vi um espetáculo daquele e falei: “Se alguém um dia fizer isso comigo eu fujo de casa! ”. Quarenta e tantos anos depois, quando eles separaram, sabe o que ela fez com o dinheiro desse pratinho de quitanda? Ela comprou o lote do lado da casa dele chamou o engenheiro e falou: “Agora eu vou fazer a casa que você nunca me deu! ” Fez a casa que ela queria, aí eu pensei: “É de grão em grão que galinha enche o bico, né? ” Por isso que eu vendo quitanda também, porque todo mundo come, comida boa todo mundo quer. Meu avô era muito rígido, muito disciplinado e isso, bom, tem esse negócio de bater e tudo, mas ele era uma pessoa muito técnica também, eu aprendi a ser técnica quando, ele fava assim: “Dinheiro não fala e se você não gerenciar você fica pobre! ” Então, o dinheiro dele era para tudo o que precisa e quem queria uma coisa diferente que fosse trabalhar e comprar. E agora educando um menino de 17 anos, ele já está nessa linha.
P/1 – E quais comidas você lembra que ela....
R - Olha, eu lembro de uns canteiros de tempero pendurados na janela, que as ervas todas tinham que ser frescas. Eu não lembro de que caldos, caldos de venda até hoje, não tem o mesmo gosto, e o Caio também é assim, meu sobrinho de 17 anos. Se não tiver noz moscada no molho branco, ele sabe. Outro dia nós ganhamos o feijão tropeiro, ele falou: “Isso aqui foi feito com aquela comida horrível feita no mercado, aquele tempero pronto, eu posso dizer até a marca! ” (risos) Bom gente, as comidas eram simples, arroz, feijão, todas as batatas do mundo, mandioca, muita farofa, muita fruta, menino tem que se alimentar de fruta! Na casa do meu avô, quando você entrava, igual àquela casa em frente à casa de Graça, que era Ação Social e agora mudou, tinha uma parreira do lado esquerdo muito grande com uvas rosadas de um lado e roxas de outro, acho que era concorde, naquela parte da frente tinham as frutas das crianças, goiaba, se fosse hoje, gabiroba essas coisas, fruta de criança. Os quintais iam se dividindo, as árvores do pomar maior outro pomar com abacate, tamarindo, as árvores grandes e lá no fundo tinham os porcos, por causa da higiene, então menino não passava do terceiro quintal para não pegar doença. Eu nunca tive um bicho de pé, porque lugar de bicho é lá fora e aqui tem que estar limpo. Então as comidas eram muito nutritivas, tinha muito bolo, muito pão. Eu fico com vergonha de você chegar aqui, e não ter nada aqui em casa, mas tem pão, porque uma mulher tem que saber fazer pão, desculpa, eu não estou falando que você tem que saber fazer pão, faz parte da vida: plantar, colher, cozinhar e comer. Então, a comida sempre muito farta, muito assado, muito guisado, muito cozidão. Matava-se porco, vaca não, porque não tinha, muita galinha, minha família nunca foi de comer pombo, pessoal: “Aí comi não sei o que”. Não. Pombo, cobra, essas coisas assim não, comida boa e sempre muito farta e muita disciplina. E menino tinha que comer fruta. Com quatro anos, meu avô fazia uma faca, uma faquinha, chamava a criança e ensinava a descascar as frutas e falava: “Se você pegar fruta verde, você vai ficar de castigo! Porque fruta é para comer não é para derrubar do pé! ” E com os hospedes ele era muito rígido, tinha a ala da casa que era só das mulheres, os quartos e área das mulheres homem não entrava. Homem não andava sem camisa nas propriedades do meu avô que era falta de respeito. E nem olhava as mulheres, quem dirá encostar a mão (risos). Isso é o que ele fazia porque nunca aconteceu, porque assim quando a ameaça é bem-feita a pessoa acredita, né. A convivência com vovô era assim, nós morávamos em outra cidade, mas nós íamos muito a casa dele por causa das minhas tias, né, eu tenho alguns primos e primas que estudaram medicina, eu perdi o contato com esse pessoal quando eu viajei. Em 1988, aí eu perdi contato com muita gente porque você escreve, telefona, manda e-mail e a pessoa não responde. Eu tenho parentes que moram no Ceará. Eu convivi muito foi com a parte da minha mãe, do meu pai eu não conheço muito, só conheço alguns. Muitos dos meus tios e alguns dos meus primos.
P/1 – E a gente não falou dos irmãos da senhora, né?
R – Quando meu pai casou, ele tinha dois filhos. Um filho ilegítimo e uma filha legitima. Mamãe criou essa menina até quatro meses antes de casar, até que ela casou e saiu de casa e o outro veio depois para a nossa convivência, a gente conviveu bem, e a mamãe teve seis filhos: um que morreu com um ano e dez meses, eu, meu irmão Fernando que hoje mora nos Estados Unidos, ele já nasceu dentro da nuvem, essa coisa de nuvem que o pessoal falou: “Ah armazene seus dados na nuvem! ” Isso aqui para nós é coisa antiga, nossos professores de física eram tudo louco, falavam de tudo o que está acontecendo hoje eles já falavam a 40 anos atrás. Aí meu irmão já nasceu falando de cibernética, e isso e aquilo e aquilo outro e ele ganhou bolsa para ir para o Japão, ganhou bolsa para ir para os Estados Unidos, foi para os Estados Unidos. Hoje ele é aposentado, nem sei como é que chama. Nanotecnologia, é isso que ele faz! O outro que é esse que morreu agora sempre [estava] também no computador, dentro da nuvem, o cérebro dessas pessoas é diferente do nosso, não tenho dúvida e Raimunda fez antes de terminar o colegial. Ela casou com o Libanês e ela é profissional de estética, massagem e ela era bailarina clássica o que o marido imediatamente proibiu. Todos nós, estudamos línguas com bolsa de estudos, inglês, francês, italiano e espanhol, ela já era quase formada em inglês e francês, parou tudo e foi criar filho, hoje ela tem três filhos, já tem netos. E a minha irmã caçula, essa que está aqui, fez meio curso superior de Belas Artes, ela também já nasceu artista, com seis anos ela fez um alto relevo em um pedaço de madeira usando uma faca e um martelo (risos). Era uma cena de praia com um coqueiro, golfinho, mar e tudo, na madeira. Mamãe sempre punha a gente para fazer curso de arte, esse eu não fiz, porque eu estava fazendo dança e esporte, na biblioteca, porque era de graça. Os meninos faziam pintura, escultura, desenho. Esses desenhos tinham na escola, não é que a escola piorou, se não tem demanda não tem oferta, então nas aulas de desenho eram muito, tinha o desenho artístico e o desenho geométrico, isso faz com que as pessoas desenvolvam talentos que ela já tem. Então a Célia, não tem nada que ela não faça, não tem nada que ela não transforme, e ela também pinta. Quando ela estava grávida do filho, que ela só tem um filho, ela teve um problema com betume e as tintas e ela teve que dar uma parada boa, então o resto das tintas que tínhamos a gente jogou tudo fora e ela trabalhou muito tempo no Sesc [Serviço Social do Comércio] de Cuiabá como gerente de projetos, dando aula de artes para crianças de quatro a 18 anos. Deixa eu ver quem falta: Fernando, eu, Raimundo, Paula, está faltando alguém? (risos). Não. E a gente em casa sempre com muito estudo, muita pesquisa, os meninos todos aprenderam a lavar, passar e cozinhar bem e ter um desenvolvimento para ser independente. Eu admiro hoje o trabalho em rede, mas tem que ter a alma muito completa para trabalhar em uma rede porque ainda tem muita ambição e muita falta de conhecimento. Então em casa a gente sempre gostou muito de estudar, de pesquisar, de trocar informação e de passar informação, porque como diz a minha amiga Dona Luisinha, que eu não sei se vocês já conheceram, vocês têm que conhecer: “Pode vir aqui em casa copiar tudo as minhas receitas, agora com essa tecnologia, é filmar tudo porque eu não vou levar essas coisas e pôr no caixão, não vou fazer, não tem cozinha no cemitério. ” (risos). Então eu sinto que conhecimento é para passar e dividir, se não, não tem graça.
P/1 – E Ana, falando ainda da sua infância com os seus irmãos, me conta um pouco como era a rotina em casa? Como é que era viver com tanto irmão? Como ajudava em casa?
R – Com muita disciplina, muito brinquedo, o papai viajando, né. Eu tinha boneca que andava, que falava, meu irmão tinha uns velocípedes, uns triciclos de criança mais modernos, eu sempre tive muita boneca e vendo a mamãe costurar e era uma tradição na nossa família, os meninos tinham que fazer marcenaria, aprender coisa de escoteiro que hoje é escoteiro cozinhar no buraco, subir na corda, descer da árvore, essas coisas de sobrevivência mesmo, quase de exército, mas não era forçado, isso era parte da vida. Ninguém precisa falar para você: “Ah acabou o gás! ”, hoje vemos trazer para o tempo moderno: “Ah acabou o gás! Que desespero! Eu vou na minha vizinha pegar uma panela...”. Não. Faz um buraco no chão, põe carvão, quebra essa cadeira, dá um jeito, pega um litro de álcool põe numa latinha de atum, põe quatro copos... “ Aí, não tem! ” A vida moderna é um aparato tão grande que as pessoas não sobrevivem mais. Então, eu já nasci escoteira, a família inteira, porque era muita brincadeira, muito divertimento, muita comida, muita bala, A mamãe fazia uma bala de caramelo incomparável e mamãe cozinhava em fogareiro de carvão, que a gente não vê mais, tem que desenhar, é uma coisa simples pequena que você põe em cima de qualquer bancada e você cozinha ali, você põe um excesso de carvão, faz a comida certa e pronto, não tem sofrimento. Quando nós chegamos em Goiás, foi um choque de cultura, não é que minha família era europeia, é que é diferente, você chega em certos lugares que as pessoas se dizem pobres, a mulher está cozinhando para uma trempa no chão! Meu Deus! O movimento de abaixar e levantar acaba com essa mulher em dez anos, com dez anos de casada, a mulher parece que tem cem. Não! Lenta isso! Sabe como a gente faz lá no Maranhão? Do lado de onde eu nasci, todo mundo cria galinha, não tem mercado, não tem Bretas, aqui eu vejo quando vou trabalhar em alguma ação social, todo mundo com uma cesta básica, aquele povo lá não tem um pé de cebola no quintal porque a galinha come, não tem um pé de maracujá porque o cachorro mija no chão: “Menina! Põe uma cerca em volta desse troço, desse maracujá, levanta esse canteiro! ” Aí a pessoa fica parada, morrendo de fome, usa a inteligência. Então, lá o pessoal levanta o canteiro, primeiro por causa da coluna da mulher e, segundo, porque se você deixar a sua planta no chão a galinha vai comer, ou você vai falar para a galinha: “Não come, não. ” Algumas coisas dessa me deixam nervosa. Olha, era muita brincadeira, quando papai chegava de viagem, era uma festa porque ele achava as coisas mais incríveis para levar para casa. Está pensando que eu compro achocolatado? Não. É chocolate, puro cacau, para fazer bolo, biscoito, muitas coisas. Está pensando que o Caio come comida malfeita? Não. Porque a vida inteira ele comeu bem então ele está aprendendo a cozinhar bem, tanto é que no acampamento de escoteiro ele é chefe de cozinha. Ele fica: “Põe duas colheres de sopa de água no arroz e tal”. Então a minha infância foi muito rica, no período da doença foi muito difícil, mas mamãe sempre teve muitos amigos e a minha dieta foi seguida à risca, à risca! Tanto é que eu nunca tive problema de saúde, quando eu saí de casa para estudar e trabalhar eu continuei seguindo eu comia em restaurante vegetariano, macrobiótico. Quando a gente cozinha, a gente cozinha direito, porque se não comer fica doente e é muito mais caro comprar remédio do que comprar comida.
P/1 – E fala em pouco dessas brincadeiras?
R – As brincadeiras que não existem mais, de pular corda, de brincar de pedrinha, de jogar pedrinha, de fazer aquelas, pega vareta? A gente fazia com bambu, existem plantas que são retinhas então você pode cortar e fazer as coisas, fazer boneca de sabugo, fazer carruagem de sabugo. Você vai ajustando o sabugo de milho e fica lindo. Construir coisas, construir barreiras, construir barragens, meu irmão fazia barragens para os caminhõezinhos dele quando o Tiago ia fazer xixi (risos) como a água do rego, e era tudo tranquilo, tudo simples, convivência com primo, com vizinho e eu sempre curiando mamãe costurar. Aí as nossas tias, tinha um rodizio, uma ensinava crochê; outra, tricô, a outra ensinava bainha aberta, a outra ensinava bordado cheio, a outra ensinava não sei o que, e eu gostava muito de aprender essas coisas. Com quatro anos, tinha muitas amigas. Não fomos criados para dentro sem sair na rua, quando eu vejo menino na rua, solto na vida e tal eu digo: “Quem te criou, menino! ”. Quando a gente encontrava com as amigas era para fazer chazinho da tarde, eu faço chá para as meninas que eu conheço até hoje, não precisa ser amiga, a gente se reúne e faz a história do chá, quem plantou chá primeiro no Brasil não sei o que para as meninas terem mais conhecimento na vida: “Ah eu vou lá na venda comprar uma caixa de chá! ” “Não menina, vá plantar o chá e fazer! ”. Quando a gente fazia essas reuniões, eu sempre levava as minhas bonecas, é lógico! E as meninas amavam os vestidos que eu já fazia bem e tem sempre um metidinho na vida, que fala que é melhor que você por algum motivo e falei: “Eu pego você na roda! ” E eu já conhecia a minha avó, aí um dia uma menina me falou assim: “Você é muito pobre! ”, ela morava numa casa muito.... Meu pai tinha dois caminhões, morava em casa própria, como eu era pobre? Aí ela começou a fazer graça comigo, queria os vestidos de boneca, né? E eu dava para as mais simpáticas, aí ela começou: “Ah mais você não sei o que” falei: “Pobre, né? ” “Está vendo esse vestido aqui, é cinco e não sei o que”, o dinheiro, “Quer o vestido? ” Eu falei, “Quero! ”, “Então se você não pagar, eu não te dou, porque rica sou eu que sei fazer o vestido! Pobre é você que quer o vestido da boneca! ” Aí pronto, comecei a vender vestido de boneca (risos) desde os sete anos. Nunca mais parei de ganhar dinheiro, costurado a mão porque mamãe não deixava mexer com máquina até certo ponto e aí depois o papai falou: “Deixa, porque ela vai fazer de qualquer jeito. ” Eu costurava um pouco a máquina e um pouco a mão, mas os vestidos pequenos eu gosto de costurar a mão porque fica melhor. E a mamãe fazia aqueles acabamentos invisíveis, todos lindos, e a gente aprende. Então, eu comecei a vender vestido de boneca. Eu adoeci com quatro anos, eu não tinha cinco anos, nunca mais parei de ganhar dinheiro, botava na poupança, dava para os meus irmãos. Menino gosta de pegar o dinheiro das irmãs, né. Olha até hoje meu irmão que mora nos Estados Unidos, quando eu estou lá passeando com ele ou morando com ele, ele ainda pegava o meu dinheiro (risos). E foi assim.
P/1 – E você tem a lembrança de quando vocês se reuniam para costurar com as tias, onde era?
R – Na casa, sempre... Essa casa aqui é boa porque ela lembra um pouco as casas grandes, eu sou acostumada com casas grandes, eu preciso de uma casa só para mim, as casas têm varandas abertas que não tem tela nem nada, talvez agora tenho por causa de mosquito, mas as janelas das casas da minha família todas tinham na janela, eles punham véu, tule de fazer véu, de nylon, pregado com qualquer coisa, porque lugar de bicho é lá fora, você não quer morcego entrando na sua casa. Essas gretas me incomodam muito, greta de casa tem que ser tampada, entra morcego, entra passarinho, entra cobra. As casas da minha família eram feitas, os homens faziam as casas ou mandavam fazer. Então essas casas todas tinham varanda. Tinha uma parte que as mulheres se reuniam, parece essas casas romanas, na casa de meu avô era assim, para ninguém perturbar, para fazer as comidas, crescer os pães, ensinar as outras, porque os mais velhos ensinam os mais novos, e ficar tranquilas, então nessa parte tinham os teares, as rodas de fiar algodão e os baús de artesanato, cada um com seu baú e sua cesta, eu tenho umas dez cestas lá dentro, porque a gente não usa agora? Porque a casa é pequena, você está vendo isso aqui, né, a aranha está do seu lado, e a vida vai mudando... Então, essas reuniões eram feitas periodicamente nas casas das tias, das tias avós, das amigas. Era quase como eu li em um livro uma vez da história de Marie Curie, que a educação ela fez assim, você é bom de Geografia, você ensina Geografia para toda aquela comunidade, porque Universidade é coisa nova, então era assim na minha família cada um ensinava aquele talento para os outros e ia passando e agora quem não se adapta vai achar seu caminho. Tem muita gente que não se adapta as regras da família, as diretrizes da família e eu acho que é aí que a sociedade se perde, porque: “Ah eu não vou viver debaixo...” como é que é que eles falam? Embaixo do relho de não sei quem, eu não vou seguir as ordens de não sei quem porque o mundo mudou, será? Será que mudou tanto assim? Tinha muita disciplina, mas essas ocasiões sociais eram muito boas e é aí que a gente aprendia muita coisa. E eu aprendi também que eu sou meio rebelde (risos) eu só aprendi o trabalho manual que eu queria, lógico! Eu não sou obrigada a fazer todas as coisas e eu aprendi a costurar muito cedo e eu costurava só para mim, eu sei costurar para mim e para boneca, eu talvez faça alguma coisa para você, um vestido para você mas é diferente, o corpo é diferente e eu gosto muito de acabamento e acabamento dá trabalho. Aqui em casa, por causa disso, o que a gente faz, a gente faz bem feito. O acabamento dos vestidos, das toalhas tem que ser bonito, tem que ser bem feito se não qual é que é? E nós temos problemas com as lojas de dez reais viu, você compra uma blusa deixa 350 igual lá trás e fica tudo uniformizada (risos).
P/1 – E porque as suas tias e a sua mãe costuravam? O que elas costuravam?
R – Olha elas aprendiam com professoras que, todo o tempo do mundo as pessoas viajam. E tinha lá em Dom Pedro uma família que ia para Europa estudar Medicina em Coimbra, algumas moças iam estudar moda em Paris, tanto é que o método de costura de mamãe chama Jean Patou e é toda baseada em cálculos matemáticos com a anatomia do seu corpo, tiram suas medidas básicas, fazem o cálculo e tiram um molde só para você. Então isso passava, não era uma obrigação. Eu estou quase fugindo da pergunta.
P/1 – O que sua mãe costurava ou as tias?
R – A mamãe não só costurava, ela costurava tudo! Desde um terno masculino igualzinho ao alfaiate ao vestido de noiva com os acabamentos invisíveis bordados com pérolas e lantejoulas. Eu ainda tenho vestidos bordados, um vestido que ela bordou, porque tem uns modelos de vestido que são clássicos. Tenho um vestido que você faz a renda ou compra, põe a renda todinha até aqui, só renda, aí abre e a nesga é de nervura e os nossos eram bordados no meio, tanto de nervura, tanto de bordado. Esse é o modelo clássico. Ela fazia os modelos clássicos que hoje a gente não vê e fazia customização, que é roupa sobre medida e bordava muito, bordava de tudo, tudo o que você imaginar. E ela também fazia flores de tecido, de papel, de cera, ela não gostava de mexer com vela, mas a parte de tecido e muito algodão e linho. Mamãe não trabalhava com fibra sintética. Quem costura, costura muito, ela fazia camisas para o alfaiate porque ela aprendeu muito bem e ela gostava muito. Desde pequena, ela costurava roupa de boneca, então ela era o que a gente chamava antigamente de uma modista, e como o método era muito preciso, você podia ver aqui com toda a sua família tirar todas as medidas e daqui dois ou três meses sei lá quando você poderia vir e a costura estava pronta, não dava defeito, se você não engordasse ou emagrecesse como eu estou fazendo agora, só engordando (risos).
P/1 – E Dona Ana a sua mãe também era professora, né?
R - Ela era professora primária.
P/1 – Como é que era ter uma mãe professora em casa?
R – Olha foi só no começo, porque ela se desentendeu com o Estado muito cedo (risos). Nós ficávamos com uma tia, nós ficávamos com uma tia e eu não me lembro muito dela dando aula porque eu devia ser muito pequena quando ela parou ela não ficou nem quatro anos trabalhando com o Estado. Quando eu nasci, ela tinha se formado há cinco anos, eu nasci mamãe tinha 21 anos, ela formou com 16. Eu não lembro dela saindo e chegando porque isso não combinava com a mamãe, isso não combina conosco. As nossas crianças nunca foram deixadas com babá porque a gente não acredita em babá. Não é desconfiança, é um jeito de ser. Quando eu fui para os Estados Unidos, ficar com o meu irmão, porque a mulher dele morreu, e ele tem três filhos e ele disse que iria conseguir então eu fui para ajudar a encontrar alguém ou dar uma orientação e acabei ficando porque a gente acha que quem tem que educar os filhos são os pais.
P/1 – Mas e a sua alfabetização, como é que foi?
R – Muitos livros pela casa, a mamãe sempre no quadro negro mostrando aquelas coisas para as alunas, aqueles textos não sei do que, não sei das quantas, medida e eu muito curiosa. Ontem, nós vimos na internet um bebê de uns seis meses lendo em inglês, mas uma coisa linda, linda do jeito dele, ele pegava o livro e falava, falava, falava porque a mãe dele devia ler para ele quando estava grávida e tal. E a gente sempre tinha espalhado pela casa, tabuada, livrinho de “ABCD” e aqueles livros de desenho, não sei donde o meu pai levava aquilo e eu muito curiosa e mamãe começou a me ensinar juntar as letras e quando eles viram eu estava lendo. Com quatro anos, eu estava fazendo redação ó (barulho de estalo de dedos) mandava cartas para a minha madrinha que morava longe. Eu escrevo cartas até hoje, aí eu mandava cartas para a minha madrinha e ela: “ O que você está fazendo com essa menina? ” Falava: “Nada” e com oito anos eu tinha assinatura de jornal, na cidade que tinha jornal porque tem cidade que não tem jornal diário e um livro depois do outro e aí não parou não, e aí não parou não.
P/1 – E a entrada na escola?
R – Quando eu entrei na escola, eu já era alfabetizada, já sabia muito de matemática e a gente vai sempre na frente dos outros, o que hoje não acontece, hoje está muito complicado.
P/1 – Mas conta um pouco sobre essa Escola.
R – Era uma Escola antiga, com muitos graus, primeiro, segundo, terceiro e quarto ano na mesma sala. A gente tinha que levar a carteira e ainda tinha palmatória, mas meu pai foi na escola e falou: “Meus filhos não vão ser palmatoriados porque senão eu venho aqui, eles têm educação, você não precisa educar meu filho, você só vai ensinar as letras para eles. ” (risos). Acontece que a gente já sabia ler que a mamãe já tinha ensinado. Todos os meus irmãos e meus sobrinhos que a gente tem perto, eles vão para a escola alfabetizados, não só alfabetizados de saber ler porque o conceito de ler hoje está bem deturpado, ler, você lê escreve e conta o que você leu até a pessoa entender, isso que é ler. O que adianta eu ler um livro e não fazer o resumo e a mamãe era muito exigente, quando você lia ela perguntava, ela discutia, ela conversava, para você ler direito, para você entender direito. Então, o que eu vejo algumas deficiências é que a pessoa ela aprender de qualquer jeito, ela faz de qualquer jeito e de qualquer jeito não funciona, não funciona. Você lê por exemplo uma coisa que eu vejo muita diferença, que eu já morei fora, o Estatuto da Criança e do Adolescente, só tem direito e não tem dever. Para você ter direito, você tem que ter dever.
P/1 – Mas Ana, ainda nessa escola, como é que ela chamava?
R – Olha eu não lembro o nome da escola, mas tinha além do que eles chamavam de letras e aritmética no começo tinha aula de culinária e tinha trabalhos manuais. Deixa eu ver se eu lembro em português? Eu não lembro como chama em português, mas era, não era só academia de conhecimentos literários, tinha a academia de conhecimentos outros, cozinhar, lavar, passar. Passar não é pegar um pano e passar um ferro, passar um terno de seda, passar uma camisa de seda, um pano de cambraia, blocar uma coisa, você sabe o que é blocar? Eu tenho um pano de bandeja de organdi suíço bordado, aí eu lavo, eu não ponho ele na mesa e passo, eu ponho ele entre dois vidros, estica, tiro toda a água e você põe um peso em cima, aí se precisar você passar, pelo avesso e com um pano em cima para não dar briga. Essa calça aqui está ridícula, eu estou passando ferro em cima, ela tinha que ser passada com um paninho levinho, porque tudo tem uma técnica, então era muito gostoso. Eu não lembro mesmo o nome da escola, não sei se tenho ainda esse diploma, porque teve um incêndio na casa da minha mãe em 1987 que queimou muita preciosidade, inclusive os livros de orações que vieram de Portugal, que eram da família e pode ser que algumas das minhas coisas tenham sido queimadas, mas era uma escola muito pequena lá em Independência, só com crianças porque antigamente com nove anos você terminava a quinta série, com 13 anos, no máximo 14, você terminava o ginásio e, com 16, no máximo 17, todo mundo já tinha terminado o colegial e estava na faculdade. E essa escola foi muito principiante. Neste tempo nós mudamos para Goiás, meu pai cismou que queria ir para Brasília, porque ele trabalhou na construção de Brasília, aí mamãe largou tudo. Em Independência, nessa casa grande, claro, santo de casa não faz milagre, ele nunca fez uma mobília para nós, aí mamãe chamou outro marceneiro mandou fazer toda a mobília da casa. Em São Luís do Maranhão tem, ainda deve ter uma fábrica de vidros, taças, cristais e coisas de vidro. Mamãe desenhou, que ela desenhava, a Célia puxou para ela e ela mandou fazer todo o nosso, chama glass wear, chique em inglês, taças para vinho, licor, conhaque não sei o que. Uma curiosidade a respeito da minha família, quando as meninas, que casavam meninas, ficavam grávidas, as mulheres todas se reuniam, ouçam rapazes, todas se reuniam, faziam, já tinha feito, um cercado para produzir os capões, mulher parida não come nem galo e nem galinha, tem que comer capão. Os hormônios dos galos e das galinhas fazem mal as pessoas, tem muita gente doente hoje por causa de hormônio de galo, capa todos os pintinhos lá, segunda pena, põe naquele cercado para engordar, veja bem nove meses engordando uma galinha. Essas mesmas mulheres se reuniam para fazer os licores, que é o mijo do nenê quando nascer. Quando o nenê nasce todos os cueiros são defumados com alfazema, você lava toda o enxoval do nenê, defuma com alfazema, aí pasmem! Reúnem -se os amigos, as mulheres vão tomar chá e o homem vai tomar o licor que a mulher fez (risos) está errado! Eu fiz o licor, ele bebe e eu vou tomar chá, eu quero licor também, eu falava para minha mãe. Gente! Seis, sete anos, dez anos eu falava isso para a mãe: “No meu tempo, eu vou tomar o licor ele que beba o chá! ”, minha mãe falava, minha avó Tereza falava: “Essa menina vai dar muito trabalho! ” Mas não é, eu fiz o licor e eu bebo chá? Mulher tinha que tomar chá. Aí eu aprendi a fazer licor também com a minha avó, licor das frutas que a gente tinha no quintal, folhas de figo, hortelã. Aí depois da faculdade que eu fui estudar mais sobre bebida aí eu aprendi que faz licor até de folha de louro, folha seca.
P/1 – Antes da faculdade ainda, vamos falar dessa ida para Goiás, como é que foi essa decisão na família?
R – Olha minha mãe não queria ir muito não, mas meu pai era muito insistente, muito galante, muito bonito, devia ser muito dengoso. Nós estávamos terminando de construir a casa dos sonhos da minha mãe e ele era muito aventureiro, ele ia para o garimpo, se fosse agora, se ele estivesse vivo ele ia lá para aquele garimpo de ametista na Bahia, que estourou agora, estourou um garimpo lá está a maior febre. Quando estava no meio da construção dessa casa, ele tinha dois caminhões dele, nós não tínhamos carro, a gente passeava de caminhão, saía de férias, fim de semana ele pegava, nós tínhamos, chama cama de campanha, uma cama que dobra, ele punha as camas de campanha em cima do caminhão, botava a gente na boleia e eia caçar um lugar para passar o fim de semana acampado que nem escoteiro. Tinha um fogãozinho, ou então uma trempe no chão, porque um dia não mata ninguém, ou então um fogareirinho aí nós íamos para a aventura, tinha que ter rio, em qualquer lugar do mundo. Então meu pai, o que você perguntou mesmo?
P/1 – Eu perguntei da ida para Goiás mas pode falar um pouco de alguma viagem que marcou também...
R – Aí nós estávamos no meio da construção dessa casa que a mamãe desenhou e meu pai foi para o garimpo, garimpo de diamante, e garimpou pedras de diamante, aí entrou um ladrão lá em casa e roubou as pedras. Ele viajava tanto gente! Ele foi preso com os índios, tem a vasilha aqui que eu faço torta da última aventura dele, deve ter sido na década, já em 1980; eu já morava em São Paulo, ele foi para um lugar em uma aventura louca que eu nem sei o que que era e eles foram todos presos lá em uma aldeia. Eu acho que veio polícia federal e todo mundo para manter a segurança, aí a comida é entregue numa espécie de uma bacia, você recebe uma ração para um dia inteiro, eu tenho uma ração dessas aí com um número escrito, uma vasilha, uma vasilha de torta, que eu faço torta hoje com um número embaixo, uma coisa de louco. Meu pai viajava tanto que ele sabia, ele tinha ido naquele lugar que a pouco tempo os arqueólogos descobriram lá na Amazônia, são os platôs, que tem boca de vulcão cheio d’água, a floresta foi lá e cobriu, meu pai já tinha ido neste lugar. Se ele estivesse vivo, ele tinha muita história para contar viu! Aí roubaram os diamantes de dentro da nossa casa e ele ficou muito contrariado e foi assim que ele convenceu a minha mãe de vir para Goiás. Gente, largamos essa casa inteira, uma casa linda, com poço de peixe, com riacho no fundo, não vou falar nem de horta e nem de pomar porque vocês conseguem imaginar. Nós víamos para Goiás de avião de Miracema do Norte, de São Luís para Miracema com a máquina de costura de mamãe desmontada numa caixa porque ela não vivia sem ninguém aqui em casa vive sem uma máquina de costura, eu tenho duas e minha irmã tem duas e as malas e os filhos. Minha irmã Eugenia, eu, o Fernando e a Raimunda que hoje mora em Itumbiara de Goiás, tudo mamãe deixou para trás a gente é apegado com coisas mas na hora de desapegar, desapega. Aí nós ficamos três meses, isso foi uma aventura linda, a Belém-Brasília quando ela foi construída. Posso falar tudo, né? Já tinha corrupção, então tinha os pontos de construção daquela tubulação que passa para controle pluvial. Então tinha, Paraíso do Norte a uns 12 quilômetros dentro, vamos dizer assim, na mata, tinha uma fábrica que fazia... [Pausa] Meu pai decidiu, meus pais decidiram ir para Brasília, meu pai queria ir para Brasília, porque ele não era íntimo do pessoal, Juscelino, Bernardo Saião, e todos aqueles arquitetos, mas ele tinha um nível de conhecimento então meu pai na divisão de lucros entre todo mundo que trabalhou na construção de Brasília, os candangos, como eles chamam, meu pai tinha um lote muito grande e ele queria ir para Brasília, mas o lote não tinha casa, aí nós ficamos três meses nesta fábrica de manilhas e eles faziam umas tubulações, umas manilhas gigantes para controlar a chuva lá na estrada e era um lugar pitoresco eu não sei se existe, chama Paraíso do Norte, lá tem riacho de agua morna que junta com agua fria e a agua fica temperada, deve ser alguma coisa vulcânica e nesses riachos tem camarão e caranguejo. São animais da água, estamos falando de Goiás, muito longe, e todas as plantas que a gente planta na cidade lá é nativa, era nativa na época, tem, a gente chama de berries são as frutinhas do mato, tem tanta fruta lá que eu não vi depois, mamão de todos os tamanhos de todas as cores e também formigas, macacos, gambás, não vi onças, mas cobras, todos os tipos de cobras, lagarta, eu nunca vi tanta lagarta na minha vida. Nós morávamos em uma das casas que eram dos obreiros, do pessoal da obra, que chama casa de pau a pique, minha mãe cobria essa casa por dentro toda com lençol para não entrar vento, tampou essas gretas todas com saco de areia e chegou no lugar, cadê a banheira de banhar a menina? Minha mãe colocou travesseiros em volta que ela tinha feito com penas, penas não, com plainas que caíram das árvores, fez um travesseiro redondo, colocava um plástico para fazer a banheiro de dar banho na menina, queria dar banho na menina, o bebê segurado assim no poço. Então era incrível, uma casa bem peculiar, com um cômodo na frente e outro no fundo que hospedava até 30 homens em beliches, beliches, gente! Madeira, pense numa coisa rústica era mais rústica. A minha mãe linda, neta de portugueses, finíssima, primeiro eu acho que ela pensou: “Meu Deus, o que eu vou fazer agora? ” Depois ela fez amizade com todas as pessoas de perto e lógico tinha muito fazendeiro, muita gente e ela fiou muito durante esse tempo, minha irmã era pequenininha, mas todo mundo se ajudando, numa casa tão pequena não tem como você não ficar perto e foi nessa época que ela fez muitas peças de labirinto e ela ensinou algumas moças e eu me lembro dela fazendo, o meu pai trazia madeira porque tem que ser uma madeira certinha e os preguinhos para ela fazer os trançados do labirinto. É lindo. Eu vou ter que ver aquilo de novo, não sei se eu vou conseguir fazer, mas eu vou ter que ver de novo porque agora eu estou precisando fazer contato com umas grandes escolas de bordado que hoje esses saberes, Fernanda, estão sendo mantidos, você é pesquisadora, eu não preciso te falar, em grandes Associações ou Museus. Tem um em Londres que chama Royal College em inglês que eles só tratam de coisas finas, antigas, que estão morrendo. Então, eu vou fazer contato. Nessa época da fábrica de manilha, mas em três meses a minha mãe plantou milho, quebrou o milho, plantou ervilha, ervilha torta, fez uma hora de tempero e plantou muitos vegetais e legumes. Quando gente foi embora, deixou tudo, mas ficou. E ela durante muito tempo manteve contato com essas pessoas, mas eu perdi, porque num incêndio muita informação vai embora. E a gente mudou uma época de um jeito muito estranho porque meu avô estava doente e a mamãe deixou tudo para trás e as pessoas as vezes são curiosas, e elas mexeram muito no que não podia e sumiram muito com o que não podia (risos). Então não tem muito registro dessa data.
P/1 – E lá em Goiás como é que era, foi para a escola?
R – Não, eu tinha seis anos, seis para sete anos aí nós ficamos três meses nessa fábrica de manilhas em Paraíso e perdemos o dia de escola, que estava no meio do mato e mamãe não dirigia. Aí nós viemos direto para Anápolis (GO), de lá, porque o papai queria ir para Brasília e aí a mamãe disse que não ia porque não tinha casa no terreno e aí queria ir para Goiânia. Quando nós chegamos em Anápolis na época da matrícula, mamãe matriculou e pôs todo mundo na escola: eu, meu irmão e minha irmã mais velha, porque quando ele chegou e disse: “Vamos para Brasília” aí mamãe falou: “Não vamos!” Aí nós ficamos lá 18 anos por causa da escola aí mamãe já fez freguesia aí ficou tudo bem mas a gente morava de aluguel durante muito tempo e depois ele comprou a casa. Mas a vida era assim, meu pai longe trabalhando porque ele não queria ficar perto, ele nasceu para ficar longe. Uma época nós montamos uma vendinha, uma frutaria, linda, tipo um mercado de pequeno produtor, nós comprávamos as coisas só de pessoas que a gente conhecia, coisa boa de qualidade e tudo, em três meses ele largou tudo e foi embora aí nós fechamos o mercado porque ele nasceu para ser viajante. Era sempre assim, todo mundo na escola, todo mundo na escola de línguas, na biblioteca fazendo curso de desenho, pintura, na biblioteca lendo. Tem gente que vive deprimido e com problema, eu não fico não, vou pra aula, pra eu ir para a biblioteca de novo, passou os três meses enfiada lá. Porque lá você não tem o que fazer, você conhece pessoas, você vê tudo, todos os best sellers que foram lançados e você não fica martelando. Ora eu vou chorar três vezes por dia, hoje eu precisava chorar, mas eu vou chorar três vezes por dia porque meu irmão morreu, a vida vai segue. Aí a vida entrou no eixo de novo e aí nasceram dois irmãos em Goiás que são a Célia e o Paulo, mamãe só queria ter dois filhos, mas acho que não sabia muito de prevenção e meu pai era muito, muito, homem das antigas, que quando ela teve a Célia foi um parto muito difícil aí quando o Paulo nasceu aí ela já tinha decidido que ia fazer cirurgia para tirar as trompas e aí aconteceu uma coisa muito engraça. O meu pai, quando a Célia nasceu, mamãe teve que ir para o Hospital, porque os meninos nasciam em casa antigamente, tinha parteira tal, tal, mas o da Célia já foi para o Hospital, que quando o Paulo nasceu ela já planejou ir para o Hospital e fazer a ligação, ligadura, sei lá. E aconteceu um episódio que o parto demorou um pouquinho e o médico foi para casa tomar banho e o papai foi atrás dele, buscar ele pelo colarinho (risos) senão o menino passava da hora de nascer, então o Paulo nasceu um pouquinho depois da hora e ele era muito grande e não nascia, teve que fazer Cesária e mamãe aproveitou e ligou, que é esse que morreu agora. Também já nasceu falando, já nasceu lendo, já nasceu tudo. Esse menino era tão industrioso, tão talentoso, tão inteligente, ele era uma pessoa de mente privilegiada, da simplicidade e ele falava igual a Baden-Powell: “Se tem um problema grande, você divide em pedacinhos e vai resolvendo um problema de cada vez”. O Caio é assim, o Caio conserta o cabo da faca, o Caio faz um mixer com a ponta de caneta na outra ponta com as pilhas segurando o fio assim com a mão. Nós não fizemos buraco no chão aqui ainda, mas toda vez que a gente muda para uma casa que tem quintal, ele faz um buraco no chão para a gente cozinhar e a gente passa três dias cozinhando no buraco. Gente, dá para fazer tudo no fogo de buraco, você faz o buraco, põe a lenha ou carvão, aí você vai pondo as panelas, aí a gente estraga todas as grades de fogão porque a gente põe a grade do fogão, se não tiver outra, e vai tudo: bolo, biscoito, pão crescido, tudo você faz numa chapa num buraco de chão. Aí aquela história, as meninas casavam cedo, começava a fazer o enxoval no dia em que fazia o primeiro ponto de bordado, eu tenho até hoje a lista de enxoval, vocês vão ficar horrorizadas, só pano de prato eram 60, a lista de enxoval é uma coisa linda para as moças casadouras e não para mim. Aí toca bordar e bordado, era lindo, era cambraia, pele de ovo que chamava, meu pai acampava peças de vinte metros para fazer camisa, camisola, coisa para casa tudo era de peça que a gente morava no interior e ele viaja muito, comprava todas essas coisas em São Paulo. Aí eu pensei: “Isso não vai prestar” e tinha minha tia em São Paulo mandava aquelas coisas, tem um tecido, tinha, imagine, eu tenho 64 anos, naquele tempo já tinha um tecido que você punha na mesa a toalha, essas coisas lindas aqui, isso aqui era tudo com paninho branquinho de renda com babadinho lindo demais, na hora de lavar toma um tempo, engomar e passar. Minha tia veio de São Paulo com aquele, devia ter umas 50 peças, cozinha. Aí eu falei está na hora, chamei todo mundo e falei: “Vamos fazer uma reunião de família aqui, pode pegar esse enxoval todinho vender, dar fazer o que for porque eu não vou casar! ” E minha tia falou: “Minha filha você está maluca, você já tem 14 anos” 14 anos? É 14 anos, eu falei: “É o seguinte, eu estou falando com vocês desde pequena”.... Quando eu tinha dez anos, voltando um pouquinho, lá nos capões das mulheres paridas, a menina tinha que aprender, olha só a cena, você pega uma galinha, olha nos olhos da galinha para ver se tem doença, você sabe né? O médico antigo pega você e olha no seu olho para ver se você está doente sério, aí examina a sua língua, então você ia examinar a língua e os olhos para ver se estava doente, passou no teste, aí você vai matar a galinha, pôr na água quente, tirar as penas, sapecar no fogo e fazer tudo aquilo lá do esquartejamento, aí eu falava para as minhas tias: “No meu tempo, vai ter um lugar que eu vou comprar essa galinha limpa e partida, só para cozinhar” (risos) as mulheres falavam assim: “Essa menina tem um defeito” (risos) falo: “Não tem defeito nenhum”. Aí chegou, onde que eu estava mesmo...
P/1 – Estava contando o enxoval que daí você decidiu não casar...
R – Aí eu falei não, pode fazer uma reunião aqui, pode vender tudo isso. Meu tio morava comigo, ele hoje é segundo suplente do Lobão aquele Lobão lá que foi ministro de não sei o que, brincava com a minha mãe lá no Maranhão, aí meu tio olhou e falou: “Vamos internar essa menina! ” Aí falei: “Calado. Não vou.…” O arrependimento que eu tenho é que essas peças brancas bordadas a mão perdi tudo. Falei: “Pode dar tudo isso aí, que eu não vou querer ter enxoval não. Eu vou morar sozinha, eu vou estudar, eu vou trabalhar, eu vou viajar” Aí um gritou de lá: “É e vai também envergonhar a sua família” e aí falei: “Não seja por isso, não vou envergonhar você nunca, você nem é da minha família, você só é meu tio” (risos) e eu já avisei porque, gente, aquele baú de coisa ali não é nada, dois baús daqueles de coisas que essa menina passava a vida inteira bordando, porque tinha que casar cedo e falei: “Tem não” Até hoje, eu vivo as consequências dessa decisão porque qualquer coisa que acontece, a pessoa tem esse: “Ah coitadinha se tivesse casado” aí falei: “E você está casado e está pior que eu”, filho desobediente, neto desobediente, não te respeita, você não tem nem um seguro de saúde, não vai aposentar.
P/1 – Mas então que caminho você seguiu?
R – Eu sempre fiz muito esporte, nós sempre fizemos muito esporte, gente. Nós somos de levantar cedo aqui ainda com um bom tênis e ir lá no trevo de Unaí (MG) caminhar de manhã, se cansar volta de ônibus. Eu estou com obesidade mórbida, de acordo com minha família, eu sou acostumada a pesar 47, 48, 55 quilos no máximo, todas as minhas roupas atuais estão guardadas porque eu não vou comprar outras, não vou emagrecer até esse ponto, mas eu estou terrivelmente gorda. Então, a gente é de fazer exercício. Aí terminei o ginásio, ciências e humanas, exatas e humanas, falei: “Mas isso aí não serve”, então eu fiz os dois, estudava científico de manhã e normal à noite, e a gente sempre foi muito envolvido com igreja, depois com Inter Act as meninas nesta época antes de eu decidir uma profissão nós éramos muito, pela mamãe trabalhar bem só com pessoas muito boas, minha mãe nunca levou um calote de costura nem de bordado, porque ela bordava e costurava para pessoas legais, pessoas sérias e o que eles chamam, pessoas importantes então ela sempre ganhou muito bem, nós sempre tivemos um quintal pleno de frutas e legumes e verduras. E aí eu fiz dois cursos colegiais, fiz um de manhã e uma a noite e nós sempre fomos muito envolvidos com trabalhos sociais. Minha mãe sempre trabalhou em albergues, costurou para programas de criança, criança pobre, adolescente mãe e nós atrás. Nós tentamos trabalhar com a prefeitura, aí nós levamos um calote financeiro, as duas trabalhando e eles queria pagar um salário, aí nós batemos o martelo e falou não são dois salários porque não tem condição. Nós sempre trabalhamos muito em projeto social, mamãe e eu, aí quando eu terminei o ginásio, eu fui fazer os dois cursos, eu já fui professora de catequese, já fui líder de jovens, hoje, eles compartamentalizam muito as coisas, tem um monte de nomes e aí os meninos ficam naquelas caixinhas. Nós com 12, 13 anos íamos com mamãe fazer serviço comunitário que hoje a polícia não deixa, o Conselho [Tutelar] que está lá não deixa se você se embrenhar no mato para ver uma família que está embaixo de uma ponte: “Tem que ir registrar ali, não sei o que”, é muita burocracia. Então nós trabalhamos, eu dei aula de alfabetização no albergue para adultos, muito simples e muito direto e muito rápido porque tem sempre dinheiro, investimento social no Brasil de Igrejas, de Associações, da ONU [Organização das Nações Unidas], da Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura], esse Habitat for Humanity não chegou, se não essa confusão dessas casas de “Minha casa, minha vida” já teria acabado. Então tem uns projetos que vem do Recife (PE) através de igrejas presbiterianas e luteranas que trabalham em interior e em Anápolis tinha um albergue desse que pegava as pessoas desde o nascimento, a mulher com aquele filho e acompanhavam durante muitos anos, mas acompanhar, não é dando tudo o que eles precisam. Tinha um programa de semente que eu ia lá, muito pobre com esse quintal, aí vinha um engenheiro ajeitava o quintal para mim, aí eu plantava, colhia, vendia, aí eu pagava a semente, aí eu não ia passar fome. Então nesse ponto a ação social era diferente. Todas essas coisas eu fiz antes de terminar o colegial, eu terminei o colegial e prestei vestibular na UnB [Universidade de Brasília], porque eu queria fazer Física Nuclear, até eu descobrir o que era Física Nuclear, falei: “Isso aí não é para mim, eu vou fazer outra coisa do meu cérebro” (risos) Eu sempre gostei muito de Matemática, de Física, nunca fui boa em Química porque eu quero ver a reação acontecer na minha frente, aí pega dois átomos de oxigênio, quero ver, eu quero ver ali, e o laboratório da escola já não era muito bom, então Química para mim até hoje é grego, tento estudar mas nem tanto. Aí eu prestei vestibular na UnB e não passei aí eu pensei: “E agora? ”, né, eu tinha uma tia que morava, que mora, em São Paulo e eu ia passear na casa dela de vez em quando, passar o Natal e conhecer os lugares que meu pai ia, os lugares que meu pai comprava, o Mercadão de São Paulo, todas aquelas lojas, becos na 25 de março que tem melado de romã, suco de romã, não sei o que, aquelas comidas diferentes, aqueles doces diferentes e eu sempre ia, aí a minha tia falava: “E agora minha filha o que você vai fazer?”. Aí não passei no vestibular, em Anápolis só tinha Administração, Odontologia e Pedagogia coisas assim, aí falei: “Não, e agora? ”. Aí eu fui, meu irmão estava, tinha ganhado outra bolsa, já tinha casado, já tinha um filhinho e ele, o caminho dele era ir para os Estados Unidos, porque a esposa dele era americana, era estudante de intercâmbio, porque nós éramos do Inter Act, o clube de jovens do Rotary, aí eu pensei, pensei, aí eu fui passear em São Paulo com a minha tia, passar a pascoa de 1988, mas eu fiz umas entrevistas de trabalho, para trabalho, tentei muito com artesanato, costurei muito, eu tenho uma máquina muito boa e eu costurei muita coisa bonita, bordei muita camiseta, bordava 30 camisetas, 20 camisetas por mês e vendia, minha prima trabalhava na Kodak e vendia na Kodak, e eu fiz muitos bordados finos nessa época, de desmanchar um vestido inteirinho, bordar e fazer e este tipo de trabalho ele é muito, o que a gente chama hoje, de assinatura, vai de boca em boca e a pessoa vem e pede aquilo, mas isso não te sustenta para a vida. A renda não me sustenta para a vida, e aí eu de uma entrevista para outra a minha prima trabalhava, a amiga da minha prima trabalhava na CESP [Companhia Energética de São Paulo] e eles estavam contratando para o setor de microfilmagem, aí eu fui e fiz todos os testes e passei. Gente quando eu recebi o meu primeiro salário era tanto dinheiro que eu não sabia o que fazer com ele quase cinco salários mínimos na época para uma menina, deixei todo o dinheiro no banco e terminou tudo na casa do meu irmão, da minha mãe, minha mãe morava em Anápolis em Goiás. Aí eu fui para a casa da minha mãe, eu estava morando com a minha tia, aí vem aquela história do dinheiro. Meu avô falava que o dinheiro tem a cruz do cão, eu não acho. Eles viram tanto dinheiro que eu ia ganhar, aí minha tia falou que dava para comprar um carro, pagar a prestação com o dinheiro porque ela vai pagar mesada para morar aqui, mal sabia ela que eu já tinha um apartamento em vista (risos) para eu mudar, mas eu ia conversar, conversei com meus tios direitinho falei que eu queria a chave da casa, “Não! Não vou dar a chave da casa! ”, meu tio era do exército ele foi na Segunda Guerra, era capitão e participou do rescaldo cultural da Segunda Guerra, ele foi inclusive nos porões do Vaticano e ele disse que lá tem tesouros que dá para sustentar a Terra durante séculos, se vender todo aquele ouro, aquele diamante, aquelas coisas. Antes de eu receber meu primeiro salário começou a polêmica, meu pai tinha me dado um dinheiro, todo esse dinheiro dos bordados, das coisas eu abri uma poupança e punha no banco e meu tio não sabia, quando ele descobriu ficou tão bravo, me xingou de tudo quanto era nome e eu falei: “Ah é Bebé! ” Sai para trabalhar um dia, voltei com um caminhão de mudança, peguei minhas coisas e fui embora (risos), ué não tinha acordo, não teve acordo. Aí eu aluguei um quarto, sozinha, em um pensionato, o dobro das outras meninas, uai, eu estava ganhando bem. Minha tia morava no Brooklin em São Paulo, na esquina com o Morumbi, chama Rua Princesa Isabel. Aí eu aluguei um quarto de pensionato só para moças na Rua Bela Cintra, pertinho do trabalho. Aí começou uma pesquisa daqui, pesquisa dali, porque nós sempre moramos em casa grande todo mundo junto e eu estou naquela cidade enorme, aquele barulho aquele monte de gente estranha. Aí com seis meses apareceu um apartamento em um predinho lá perto aí eu juntei com mais três amigas e nós mudamos quatro em um apartamento de um quarto, três no quarto e uma na sala. Com um ano saiu uma, com dois anos saio a outra, com três anos eu estava sozinha, aí ficou bom, mamãe ia sempre, mesmo com as meninas, mamãe ia sempre, fazer compras e costurar para mim e para os outros. Aí eu fui trabalhar no Departamento de Microfilmagem, como eu já falava inglês, todos os documentos da Light, da Chesf [Companhia Hidroelétrica São Francisco], todas essas empresas de energia elétrica, que antes era só energia elétrica, e eles cometeram uns enganos, falta de controle de qualidade e tinha uma documentação que tinha ficado muito errada, muito misturada, e era toda em inglês da Light e aí foi feito um, uma espécie de uma pesquisa, que tinha que cortar. Vocês já viram microfilme? É uma coisinha assim é um retângulo deste tamanho com alguns sulcos e os microfilmes, já viram, você já algum filme de máquina de fotografia? Só que é estreito ele tem acho que é 11 milímetros de largura, então são aquelas fitas enormes que cabem em uma caixa deste tamanho, que cabe de mil e 400 a três mil documentos dependendo do tamanho. Isso é precursor do pen point e eles eram colocados em umas jaquetas e guardados para o usuário consultar, para ficar mais rápido, que nem meu quarto: se eu colocar tudo aquilo ali, vai dar uns dez filmes, a bagunça que está. Aí eu fui trabalhar neste setor e veio uma documentação muito complicada já com uns dois, três anos de trabalho que eles deram para eu fazer, eu trabalhei quase dez meses para este trabalho, para reclassificar toda a documentação, cortar, tirar o que precisava limpar, levar para um laboratório especial, sempre vinha essas coisas de laboratório, as máquinas todas importadas. Nós tínhamos um chefe muito chato, eu não sei hoje, mas eu vi mito caso de assédio no trabalho porque alguns chefes acham que pode tudo e quando eu cheguei já dei murro na mesa porque a nossa supervisora vinha ver, eu sempre trabalhei de saia, e mamãe, eu nunca gostei de saia curta, minhas saias são compridas, saia de trabalho oito centímetros abaixo do joelho, e eu sou do tempo que a gente usava anágua e combinação porque a roupa fica mais bonita, e ela ia ver se a gente estava de anágua, se estava disso e daquilo, e no que eu entro para trabalhar uma menina estava sendo dispensada por causa de assédio e todo mundo sabia quem assediava mas ninguém falava nada por medo de perder o emprego. Um dia, ela falou comigo e eu disse o seguinte: “Se o Seu Fulano algum dia fazer alguma coisa engraçada eu não vou fazer igual a menina que saiu não. Eu vou fazer o maior escândalo e vou levar ele no Departamento de Recursos Humanos, Departamento de Psicologia”. As grandes empresas têm um Departamento de Psicologia que acompanham isso aqui, e eles acharam que eu estava brincando e eu lutava capoeira e um colega um dia fez uma coisa, falou uma coisa muito engraçada, eles sempre faziam piadas de mau gosto com as meninas, como tem gente que faz até hoje e isso realmente foi um marco na minha vida. Tinha um garoto que fazia bodybuilder essas coisas de ficar e ele era muito engraçadinho e ele costumava passar a mão nas meninas e eu trabalhava, já entrei numa posição quase de confiança, por causa da escolaridade e do inglês, então eu preparava documentação ou conferia documentação que ia ser microfilmada e isso é um trabalho que requer muita atenção, muito cuidado e eu tinha uma mesa muito grande e eu exigi uma cadeira especial por causa da minha coluna se eles não trouxessem a cadeira eu ia comprar com o meu dinheiro, eu não sento em qualquer cadeira, ninguém pode sentar em qualquer cadeira e ficar o dia inteiro. E esse menino, um dia, eu mudei do pensionato para o apartamento e a gente tinha dois dias de mudança e ele resolveu que ele ia fazer uma graça comigo. Aí ele, na hora do almoço, ele disse que eles iam fazer uma festa na minha casa aí eu falei: “Mas eu não te convidei” ele falou: “Nós vamos fazer uma festinha na sua casa, vai uns amigos meu, você mora com três meninas, né? ” Eu falei: “É”, “Então marque que nós vamos fazer uma festinha” falei: “Vai! Você leva a sua mãe, a sua namorada e as suas irmãs e a gente faz uma festa completa, pode marcar”. Aí o pessoal todo ficou: “Como que ela é tão atrevida”. Não, o direito de alguém termina quando começa o do outro e não é porque hoje assédio, não, isso sempre existiu e nas empresas era uma coisa, era notório e passava batido. Aí as coisas se acalmaram, mas nunca mais alguém fez uma brincadeira dessa comigo não, porque além de tudo eu era muito mais magra, muito mais jovem e além de tudo eu frequentava uma academia de capoeira e frequentava o Balé. Eu tive que largar a capoeira porque o balé encaixa e a capoeira desencaixa e eu tive que escolher eu falei: “Pronto! Agora fiquei fraca, não posso mais bater em ninguém” (risos) não mas é brincadeira. Aí eu mudei para São Paulo, mudei para o apartamento e eu já fazia dança desde que eu nasci, eu pegava pé aqui, eu fazia tudo e eu tenho pé forte para pular mas não tenho o pé forte para algumas coisas. Aí eu escolhi o balé e continuei trabalhando na CESP durante oito anos e meio mas por causa, não só de assédio sexual, assédio moral o lugar que as pessoas colocam as mulheres. Eu fiz vestibular escondido, aí eu prestei três vestibulares, aí eu pesquisei o que eu ia fazer, não podia ficar naquele emprego a vida inteira, naquela situação a vida inteira, muitos problemas de comportamento. O maior problema do mundo não é a pobreza, não é a falta disso ou daquilo, é o comportamento. Eu sou fã e acredito em inteligência emocional, você vê uma pessoa de Q.I. [Quociente de inteligência] altíssimo e arrebenta com a vida e vê um que luta, luta, que é médio, mediano, é 95 não sei o que. Conheço gente que tem 140 e tanto de Q.I., meu irmão tinha um Q.I. altíssimo, o cara vai e faz isso. Minha cunhada, minha cunhada tinha 149 de Q.I. tanto que ela fez, que não fez.
P/1 – E aí o vestibular?
R – Eu trabalhava de dia e dançava de noite no Balé Stagium, era uma das aulas mais adiantadas que não entrava para o corpo de baile porque dança não paga a vida, dança não paga. Você entra para uma Companhia ganhando uma miséria, ninguém vive, ninguém vive só de amor e ninguém vive só de arte. Aí eu machuquei o pé, tinha que fazer uma cirurgia experimental, eu não aceitei e não podia mais fazer aula. Os meus dedos começaram a abrir em consequência do Tifo, de doença de não sei o que, porque sempre tem o efeito colateral de alguma coisa, minha saúde é perfeita, mas aconteceu isso, é perfeita, mais aconteceu isso, que muda a vida. Aí eu pesquisei muito, muito, muito, o meu irmão já morava lá, eu já tinha ido passear, aí eu pensei, tenho que fazer uma faculdade aí eu estava entre Ciência da Computação, porque eu penso em futuro e que ia dar grana e eu gosto muito de mandar, só que eu mando bem, viu! Eu mando bem. Aí eu pensei, aí eu fui ver profissões emergentes, turismo, na área de serviços, cuidar de idosos porque o mundo está envelhecendo, e aí pensei dentro disso tudo um lugar que a mulher tem poder, sem discriminação, porque uma coisa é você ter que matar um leão por dia outra coisa é você ter que matar um leão e um inimigo, um leão e um inimigo, você não dá conta, chega no fim do dia você está exausta. Aí eu pensei, eu tinha um amigo muito antenado, ele fazia Belas Artes era um menino maravilhoso. Aí nós pesquisamos e ele falou: “Ana, acho que tem uma coisa aqui que você vai gostar. Tem uma faculdade de hotelaria, aqui em São Paulo” nessa época tinham duas faculdades de hotelaria, uma no Rio Grande do Sul, esqueci a cidade, que o gerente, o diretor, a pessoa que fundou está lá até hoje. Hoje tem uma escola que tem enologia, tem muitas matérias afins dentro da área de serviço de gastronomia também. E aí o pessoal judeu, que é muito inteligente, eles montaram uma escola de hotelaria para atender o mercado interno porque a importação de funcionário é muito cara, então eles desenharam uma escola, escolheram o lugar, registraram no MEC [Ministério da Educação] e aí puseram propaganda. Era uma escola super fechada, super pequena, dentro da sociedade hebraica lá de São Paulo e aí eu fiz vestibular, eu sou a quinta turma. Começava a turma com 40, 90 e terminava com 20. A minha terminou com 17, começou com 47 e terminou com 17. E aí mais coisa para aprender, eu aprendi um pouco de cultura judaica porque dentro do curso tem história e cultura do povo judeu que é fascinante é deslumbrante. Eu já tinha contato com a história americana, a comida, as conservas, o jeito de plantar da minha cunhada que é bom, melhor que o nosso. Aí entrei para aquele mundo da comunidade judaica que é muito fechado mas se você é esforçado ninguém se fecha para você então eu era do Clube dos Dez, eu era do Diretório Acadêmico e eu fui convidada por todos os meus professores para trabalhar com eles. Só que na CESP eu ganhava muito, eu fiz teste de seleção para aeromoça e passei só que eu não fui porque eu não podia ganhar menos. Eles me convidaram para os hotéis e eu não podia ir porque eu ganhava muito. Eu me formei trabalhando na CESP e quando eu, na última semana de escola eu fui convidada para trabalhar no Ceasar Park, não, eu ainda estava na faculdade, aí eu já comecei a pesquisar os Hotéis que eu ia trabalhar e eu decidi que eu ia trabalhar nos Leadings, chama Leadings Hostels of the World, naquela época tinham só 122 hotéis no mundo. As pessoas muito ricas em 1920 mais ou menos se reuniram para fazer hotéis de alto nível, altíssimo nível, torneira de ouro, banheira de mármore de Carrara, vasos Ming nas suítes imperiais, coisa de louco, mordomo! Falei: “É nesses que eu vou trabalhar! ” Já tinha estudado inglês, já tinha estudado francês, aí esse meu amigo que me indicou para a faculdade já me arrumou uma professora particular de línguas, que era uma francesa, ela é prima daquele revolucionário de 32 de São Paulo, Fournier, não sei o que Fournier, o nome dela é Renée Fournier. Aí eu estudava nessa faculdade judaica que não tem aula na sexta feira, mas tem atividades domingo, por causa do Shabat não tem aula de sexta feira. Então eu ia para a casa de Dona Renée na quinta feira de noite, voltava para trabalhar na sexta, voltava para a casa dela e ficava lá até a segunda feira estudando inglês, francês, italiano, ouvindo alemão, estudando esperanto e espanhol. Em junho, abriu uma vaga para o Ceasar Park no jornal na governança, aí eu fui, até eu conseguir que a faculdade me liberasse para fazer só as provas a vaga teria sido preenchida, falei “Eee”, como diz a menina da novela: “Lasquei-me! ”. Aí continuei procurando, fiz estágio no Sheraton no Rio [de Janeiro], no Hilton em alguns hotéis, chama visita técnica hoje, antes era estágio, eu ficava um fim de semana, uma semana ou um dia ou algumas horas. E aí eu ia para o Rio eu tinha uma amiga de infância que morava lá, eles marcavam as entrevistas e passavam para ela eu não tinha computador nem nada e aí ia para o Rio, malhar naquela terra daquelas areias até chegar no hotel com salto comercial. Minhas roupas comerciais estão tudo guardadas. É linho, é seda, sapato desenhado, porque pé de bailarina é tudo estragado. Eu uso sapato feito no sapateiro, no ortopedista para eu trabalhar se não meu pé não aguenta. Vai eu com aquela roupa desenhada, naquele calor do Rio, vestida de terninho com gola aqui para as entrevistas. Aí quando eu me formei eu pedi a conta, aí o chefe não liberava porque tinha que arranjar alguém igual a mim para ficar no lugar, e eu estava preparando o pessoal para eu sair desde que eu entrei na faculdade. Quando eu decidi fazer Hotelaria, que era Hotelaria, Turismo e Educação Física, aí eu escolhi Hotelaria que era mais fácil de chegar, Educação Física era em Guarulhos, Turismo era um lugar meio boca de noite e lá eu podia ir de ônibus e logo eu fiz amizade com um colega que me levava e me trazia de carro. Aí eu queria ser transferida para o setor de Fundação, as grandes empresas tem uma Fundação que cuida do bem estar do funcionário e a CESP só perde para o Banco do Brasil e para o Bradesco, eles tem um dos melhores planos médicos e tudo, não sei hoje, mas até muito tempo se você tivesse um problema de saúde que não podia ser tratado no Brasil eles te mandavam para fora para cuidar da saída e tinha um setor de hotelaria, quando constrói uma hidroelétrica, todas as dependências que ficam são usadas depois para os funcionários usufruírem de um lugar bom para ficar, então eles transformam as colônias em hotéis, pousadas, mantem o restaurante mantem um serviço mais simples de hotelaria e eu queria ser transferida para este setor. Mas o meu chefe que, além de ser um assediador era um nó cego, não soltou a minha transferência eu falei: “Então, eu saio”, e é que no dia 31 de dezembro na festa de confraternização dos funcionários eu bati a minha carta de demissão e entreguei para ele, ele não soltou, não liberou a minha saída e isso eu já estava trabalhando no Ceasar Park, fichada com número e uniforme, porque teve um feriado grande e aí eu já tinha conversado, feito todas as entrevistas com a governanta portuguesa. Mas pense numa funcionaria boa! A mãe dela também era portuguesa veio como governanta executiva para o Maksoud quando foi construído e aí ele segurou, não liberava de jeito nenhum, aí eu entrei com recurso dentro da empresa, Recursos Humanos e aí complica as coisas são melhores quando são resolvidas elegantemente, mas tem hora que não dá para ser elegante. Aí eu entrei com recurso, ele não soltava, aí o chefe: “Vamos, vem falar comigo” e eu falei: “Olha eu não vou abandonar o emprego, mas eu vou sair. Eu estou avisando a vocês desde que eu pedi transferência que eu vou sair”. Fui na nova chefia e falei: “Olha não liberou”, “Mas que coisa é essa! Vamos tentar” “Eu vou entrar com um processo porque ele vai ter que me liberar”. Aí ele me liberou 16 dias depois, aí cancelou toda a minha admissão, aí eu mudei para o Ceasar Park que é um dos hotéis Leadings, pertence ao grupo Haoki, da senhora Tieko Haoki, eu resolvi falar dela, uma profissional de hotelaria eximia. E ela, a gente combina, nós não somos amigas, administração deles combina comigo porque é simples, ninguém é melhor do que o outro se ele fizer o trabalho dele direito. Aí eu fui trabalhar lá na governança executiva, um hotel grande e bom, ele tem pelo menos seis pessoas na governança por que ele trabalha 24 horas por dia e tem as pessoas certas. Eu sempre gostei muito de organização, de coisas mantidas em cheque, quando você mantem as coisas em cheque você vai bem e as falências da vida das pessoas é falta de gerência e o método que eles usam é o método que a Campo usa. Voltando um pouquinho na história, quando acabou a Segunda Guerra Mundial como é que estava o Japão? Destruído, né. Foram alguns matemáticos e fisicistas nucleares, pessoas que entendem muito de indexação e incentivo de resultado. Foi um grupo de pessoas dos Estados Unidos para o Japão e levantou o Japão fez o rescaldo, fez todo o levantamento e traçou diretrizes e bases para a reconstrução do país, chama -se CCQ [Círculos de Controle de Qualidade], seria um círculo de qualidade. Só que os Estados Unidos por seu um capitalismo diferente nunca aceitaram esse tipo de gerência, ele não morreu no anonimato, chama William Damian, mas nós estamos vendo o Japão, a Campo aqui, é uma das poucas empresas de Minas [Gerais] que usa esse processo e essa japonesa, nascida no Japão, aplica isso nas empresas. Ela começou com um hotel, tem um hotel fazenda aqui em Minas que também é deles, aí mudou para dois hotéis, comprou alguns hotéis inclusive um em Nova Iorque, comprou alguns castelos na Europa que foram transformados em grandes hotéis e a gerencia simples. Você tem que ser responsável por aquilo que foi delegado a você se eu tiver que cobrar você de uma obrigação que eu te dei dentro do meu trabalho eu não preciso de você, isso é muito duro, mas é verdade. E aí eu mudei, ele acabou me liberando, onde que eu estava?
P/1 – Então só para falar está muito legal, mas a gente precisa chegar em Paracatu em alguma hora (risos). Aí se você puder dar uma resumida nessas passagens do trabalho...
R – Aí eu fui para o hotel para governança. Brasília, Tancredo Neves tinha morrido, nosso amiguinho lá do Maranhão que comia buchada de bode lá na casa da minha avó, José Sarney estava no governo, o Palácio do Jaburu estava vazio e todas as personalidades que vinham para o Brasil eram recebidos já pelo hotel que eu trabalhava porque o catering era perfeito, por causa da senhora Haoki, por causa do Japão, por causa do método. Então nós recebíamos essas personalidades no Palácio do Jaburu, vejam o Itamaraty não tinha uma governança, agora deve ter. Nós íamos com uma equipe nossa chefe era Ana Oliveira. Nós íamos para o Jaburu para fazer esse trabalho e aí quando minha cunhada morreu, a mulher do meu irmão, eles têm três filhos superdotados, eu tinha ganhado uma bolsa de estudos para fazer a pós-graduação na Áustria, em Estrasburgo em uma das melhores escolas de Turismo e Hotelaria da época. Aí eu fui para os Estados Unidos para dar uma forcinha para o meu irmão e isso mamãe estava fazendo enxoval, a lista de tudo o que precisava prontinho, eu pronta, tinha estudado línguas tal e tal. Então trabalhar na governança era muito bom, eu tenho um trabalho de escritório. Aí eu fui para os Estados Unidos e fiquei lá 11 anos 7 meses e 21 dias, perdi a bolsa. Não fui para a Cornell. Meu plano agora é terminar meu curso de tradução juramentada porque eu gosto de ganhar muito dinheiro. Não é que eu gosto, a gente precisa, né. Fazer o melhor possível para ganhar o máximo possível.
P/1 – Então como que chegou Paracatu? Você ficou 11 anos nos Estados Unidos com o seu irmão...
R – Quando eu estava lá, a minha irmã do primeiro casamento do meu pai, morava em Cuiabá (MT), aí a minha irmã ia passear, nós íamos passear e aí uma época quando eu ainda estava em São Paulo, nós fizemos uma grande quantidade de artesanato para minha irmã levar para vender em Cuiabá. Aí a minha mãe e a minha irmã foram para ver o negócio e o negócio era muito bom. A Célia foi fazer algumas aulas no Sesc e já ficou dando aula, ela já nasceu artista e realmente é muito boa, ela foi trabalhar com gesso, todas as coisas de arte com mamãe indo para Cuiabá. Quando eu fui para os Estados Unidos, ela estava em Cuiabá e, quando eu voltei, ela já tinha morado nos Estados Unidos e quando eu voltei ela estava morando aqui porque o meu irmão que era o gênio indomável tinha todos os programas de computação da cidade ele era supervisor, Rádio Boa Vista, Cartório, tudo, ele era o programador sênior das coisas da cidade e ele tinha uma doença degenerativa e dois filhos, essa que é completamente desparafusada e o filho que hoje toca o projeto que ele começou e a mamãe veio para cuidar da saúde dele. A Célia estava em Cuiabá trabalhando e daí nasceu Lucas e não sei o que. Célia veio para ficar com mamãe que era mais prático, você não pode ter muitas casas e eu nos Estados Unidos então quando eu vim passear, vim passar o mês, com roupa e tudo de um mês, minhas coisas estão lá tudo de volta na casa do Norte, aí eu vim fiquei em Brasília um pouco vim para cá, porque meu irmão mora em Brasília também, morava aqui e morava no carro porque ele dava assistência para muitas cidades e trabalhava muito em Goiânia e em Brasília, ele trabalhou na Incol, na Brasil Telecom e eu vim passar um mês em Paracatu minha filha, nem bebia água, estou aqui até hoje, não sei, eu gosto daqui.
P/1 – E aqui aonde a sua família estava?
R – A minha mãe morava em uma casa de beco, que aqui tem muitos becos, na [rua] Rubens Bittencourt, uma casa linda com muitos pés de jabuticaba que ela fazia tantas geleias e doces importantes e bons que as pessoas das faculdades de nutrição iam pegar amostras com ela e ela catalogava tudo bonitinho. E ela fazia um monte de coisas tudo, continuou bordando, minha irmã e minha mãe tiveram banca de artesanato na Feira. Ajudaram a fundar uma Associação que depois eu continuei e depois estava muito ruim porque tinha muita coisa esquisita começaram a vender coisa de indústria, coisa malfeita, coisa colada e não estava servindo aos meus propósitos. Com algumas amigas, velhas como eu, fundamos outra Associação, fundamos a Associação dos Artesãos da Amoreiras, aí nós fundamos outra Associação e aí a dois anos atrás alguém da Associação, nossa amiga, entrou com um projeto na Prefeitura que está sendo um desastre, mas isso é outra história. E aqui eu entrei para a cultura, fui ver o pessoal de artesanato, tentei trazer para a Academia de Letras um grupo de francofone, que são um pessoal que falam francês só por divertimento e prazer. Gente! Aqui se você não é daqui... A gente costuma dizer que santo de casa não faz milagre, de fora também não faz aqui não. A Academia de Letras me botou para a frente cinco anos aí eu larguei, eu tentei fazer um grupo avançado de conversação de inglês, começando com os professores, os donos de escolas e as pessoas que falam que a gente não sabe o que eles falam e depois estendendo para grupos para o Sesc, para guarda mirim, para o menor aprendiz, para a Associação de bairro, para os alunos de escola serem estagiários fazendo esse trabalho, também não deu certo. Aí um dia eu falei: “O quê? Tem que ter outro caminho, a vida não para porque uma coisa não deu certo”. Aí eu comecei a dar aula porque era o melhor que eu podia fazer e hotelaria aqui é extremamente familiar e eu agradeço os gerentes que falaram para mim que direitinho: “Nós não precisamos do seu serviço. Nós não queremos os seus serviços” porque os outros, você vai faz uma entrevista, leva aquele currículo de não sei tantas folhas, currículo para mim, se eu fosse o gerente não quer dizer quase nada porque papel aceita tudo. Eu já fiz um currículo de 72 páginas para nada então eu falei: “Vou me virar do jeito que dá”. A minha irmã que é uma artista nata, é garçonete, é metre, é organizadora, agora nós estamos com um pequenino, mini buffet, que as vezes só faz uma festa por mês (risos) mas é melhor que nada e aí para sobreviver, porque você tem que sobreviver eu faço pouco artesanato de boneca isso e aquilo e dou aulas particulares de inglês funcional. Já tentei que as escolas todas tivessem grupo de tradução simultânea, um grupo de inglês funcional, desenhar o inglês só para você. Não, não faz parte da grade curricular então agora eu comecei a fazer isso por mim mesmo, registrei a minha firma no Sebrae [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas] bonitinho, conheci tudo bonitinho e agora eu tô fazendo isso.
P/1 – E Ana falando ainda um pouquinho nessa sua chegada aqui, conta as primeiras impressões não só da cidadã como dessa parte artesanal...
R – Olha na cidade foi um trauma. Eu sempre vivi em lugares muito limpos, muito bonitos, muito higienizados, desculpe o tanto. Então eu vim de uma cidade que quando a neve desce e vai embora, derrete, deixa poeira e deixa sujeira, tem um aspirador para aspirar a rua da cidade. Eu chego em uma cidade aqui que o lixo está em todo o canto da cidade, agora que esse setor histórico melhorou um pouquinho. Vocês podem cortar isso se vocês quiserem, na rua mais chique da cidade onde moram os professores, os advogados, os promotores os não sei o que, o lixo é colocado na sacolinha do mercado amarrado assim ó. Isso para mim é falta de civilidade. Então, chegar em Paracatu foi um choque. Passou o choque fiz amizade com todo mundo da feira, com os artesãos, com os feirantes, fui para as igrejas, fui para as escolas de línguas, todas as escolas da cidade eu levei currículo. Eu não sou a melhor pessoa do mundo mas eu falo inglês bem, eu posso lecionar, eu posso, tinha que fazer o CAT que eu ia ficar como substituta da professora substituta, ganhando uma miséria eu falei: “Muito Obrigado, eu ganho mais vendendo doce”, “Eu ganho mais vendendo quitanda”, eu não me supervalorizo, se eu tiver que quebrar quatro pedras ou quebrar uma ganhando o mesmo dinheiro eu vou quebrar uma. Aí eu entrei para o mundo da cultura e das artes, Casa de Cultura, Museu todos os lugares. Enquanto eu trabalhei de voluntária estava lindo. No dia em que eu chamei para a real: “Eu preciso ter um emprego porque eu preciso ganhar dinheiro” todo mundo virou as cotas, a começar pela Secretaria de Cultura. Esse trabalho do IAB [Instituto de Arqueologia Brasileira], quando terminou, eu terminei porque eu ia terminar, porque eu amo é a coisa que eu gosto, eu estava ganhando bem como professora, mas esse trabalho aí depois de um ano não tinha nenhum valor para a cidade, algumas vezes a gente vai para as reuniões eles nem comentam. Então eu não me sinto mal aqui, mas eu sinto também que aqui não é o meu lugar.
P/1 – Mas a gente sabe que a cidade tem muitas...
R – Não, não. Eu abracei a cidade, eu amo esse lugar, eu estou falando de comportamento. A cidade é linda, eu ainda peguei aqui três chafarizes com água que já foram tapados, eu ainda peguei aqui as minas que correm no fundo do quintal que eles estão cimentando. Eles fizeram uma casa do lado, em frente ao Museu um pouquinho para cá uma casa que tem uma janela falsa, no muro da Casa de Cultura, não tem uma casa? Descendo o beco assim que vai lá no Santana, aquela casa foi construída recentemente em cima de uma mina. Eu estou vendo a cidade ser modernizada, eu estou vendo todo esse movimento de cultura, já tem o grupo de bordadeiras, que eu saí porque eu não vou fazer um bordado de 200 horas para vender por 20 reais, mas elas estão indo para muitas cidades fazer intercâmbio, as bordadeiras da Dummont vieram aqui fazer curso e eu já fiz muitas ações, aí eu entrei para o grupo de escoteiros por causa do meu sobrinho e também porque eu gosto, mas eu amo essa cidade. Adoraria estar com vocês fazendo esse trabalho, porque eu gosto. Eu conheci, das pessoas que eu pesquisei já morreram umas dez, a da empadinha, a da queijadinha, vocês tinham falado de Dona Marlene Cardoso, ela faz queijadinha. A mestra dela que aprendeu com as mestras do século retrasado também já morreu, foi a queijadinha, o pão de queijo, o bolo de domingo, mané pelado, galope, aí nós pesquisamos cajuzinho, todos os bolos, aqueles bolos que tem no livrinho, eu vou pedir para Dona Coraci que ela é amiga pessoal da minha irmã e do Zezé para arrumar um livro desse para você. Eu amo esse lugar, a única coisa que falta para mim é uma casa para eu não gastar tanto com aluguel mas eu amo esse lugar, a cultura é divina, o que eu sinto falta é de ver o pessoal do patrimônio, o que retém o conhecimento, eles são quase abandonados. Vocês já pesquisaram as danças da região, a Caretada, a tapoiada essas coisas? O mestre da caretada é pai de um amigo meu que ele é um grande cozinheiro e ele é queijeiro ele trabalhou vinte e tantos anos na Coopervap [Coopervap Cooperativa Agropecuária Vale do Paracatu], ele morreu à míngua. Ok, você não pode chegar aqui hoje e resolver todos os meus problemas, mas dentro do que é possível, esse patrimônio, na minha opinião deveria render frutos não só para a cidade, mas para as pessoas que detém o conhecimento. As cozinheiras, as quitandeiras, os bisnetos das quitandeiras, às vezes não conhecem a avó. A Dona Cristina do São Domingos, vocês já conversaram com ela? A neta dela não sabia que a avó fazia chapéu eu falei: “Meu amor, você tem vergonha da sua avó?”, “Não tia não é isso”, não sei se é porque na minha família a gente vai passando... Eu chamo os meninos, os rapazes e eu falo: “Menino você não tem que aprender a cozinhar, fazer arroz, feijão, bife acebolado essas coisas assim” Não é porque, é porque tem dia na vida que você só tem você, então, você tem que ser primeiramente um sobrevivente, um dono de você e isso eu sinto falta, não sei, não estou querendo a culpa. Porque aqui já devia ter, gente, um Festival de Cultura de verdade, para eu botar uma banca no Festival que teve agora, não sei, vocês estavam aqui durante o festival de Cultura, Culinária, Arte e violão, música? Eu tenho que pagar 450 reais para ter uma banca e eu me recuso.
P/1 – E Ana a gente chegou até a senhora porque a gente soube da história das bonecas.
R – As bonecas de Orobó. Está no meu coração, eu tenho um poema que está na Academia de Letras eu tirei de lá, eu tenho conhecimento de duas pessoas que tem boneca, uma eu já vi, a outra nós temos que ir atrás, porque eu tenho anotado em uma agenda antiga, mas a minha amiga é amiga dela. Essas bonecas é o que mais me encantou na cidade porque eu saia na casa das pessoas velhas, como eu fazia quando eu era criança, eu á nasci velha, para conhecer a pessoa e aprender alguma coisa e como a gente conviveu bem com os nossos velhos eu não tenho rejeição a velho. Eu passava na rua e quando tinha uma velhinha na janela eu perguntava se ela sabia de alguma coisa, o que ela sabia da boneca de Orobó que eu tive conhecimento na Casa de Cultura, mas a pessoa já foi falando assim: “Eram umas bonecas horrorosas” depende do referencial.
P/1 – Como que são essas bonecas?
R – A que eu sei aonde está, não conta que eu contei, você tem que convencer ela a te mostrar é Dona Luizinha. Dona Luizinha tem uma boneca de Orobó, que a Dona Zenaide deu para ela, mas ela não deixa a boneca nem ser fotografada porque ela tem medo do patrimônio tomar. E essa outra moça ela tem cinco bonecas, um casal de noivos e mais três. Essa Orobó, o nome dela não era Orobó, aliás Orobó é uma cidade lá no Nordeste, ela ganhava restos de tecidos, porque ela fazia sabão e pegava uma areia que tinha, esses córregos aqui pareciam o Rio Tocantins da minha infância, a areia branca que o pessoal pegava na praia, chama prainha esse lugar aqui. Então ela pegava essa areia apara ariar a panela, fazia sabão e ela levava para as pessoas por uns trocadinhos e as mulheres davam, as costureiras, aqui tem muita costureira boa, tem gente que vem de fora e traz tecido para as mulheres fazerem... Gente, eu esqueci o nome, elas moram quase em frente da casa de Dona Lacy, elas fazem camisas e as meninas mandam bordar o símbolo do Duda Lina de tão boas costureiras. Orobó, fazia essas bonecas e intuitivamente e dava para as pessoas que ela gostava agora se ela não gostasse da pessoa ela não dava e nem vendia. E as meninas jogavam a boneca na privada porque queria bonecas de papel marche ou de louça, muitas destas bonecas se perderam por isso as que tem estão escondidas.
P/1 – E daí vocês começaram a fazer essas bonecas?
R – A de Dona Luizinha nós tiramos o molde e fizemos um busto que está comigo porque no trabalho de patrimônio que nós fizemos, o Programa Sebrae de artesanato e mais três seguidos. O investimento em artesanato tem sido muito grande aqui em Paracatu, mas o resultado é muito pobre porque o artesanato acaba não tendo valor e a pessoa que faz não pode ficar a vida inteira tentando. Eu faço artesanato por hobbie. Eu quero a pesquisa as bonecas de Orobó porque eu amo a boneca, eu brinquei com boneca de sabugo, boneca cheia de palha de arroz, boneca cheia de algodão, o meu travesseiro é algodão de primeira cardagem, você pega o algodão e tira só a semente e a sujeira, era assim que a minha mãe enxia as bonecas, só que esse algodão é difícil para lavar. Hoje encher com coisa moderna é melhor. Eu amo boneca. Eu brinquei de boneca a vida inteira, eu tenho boneca até hoje, e eu sinto como pessoa humana, do mundo, que isso é importante para a cidade mas as pessoas viram para mim, Fernanda, e falam assim: “Mas porque que você está se importando com isso se nem daqui você é”. Gente, eu sou daqui, só não nasci aqui.
P/1 – E descreve então para a agente essa boneca, como é que ela é?
R – Elas são de pano de qualquer cor, a de Dona Luizinha é preta. Eu copiei o busto, é a Celia que fez, ela é toda costurada a mão por dentro, gente é uma costura de mão que é tão bem-feita quanto a costura de máquina, tem uma técnica para você fazer os pontos, fica muito melhor. Você acha que os vestidos da Maria Antonieta eram feitos na máquina? Não, eles eram feitos a mão. Costuradinho ponto por ponto. Então elas eram feitas à mão por dentro, as vezes ela punha na mão uma camurça fininha para parecer luva e no pé, pela descrição que as mulheres me deram, essa dela é simples, o pezinho assim a mão comprida, essa de Dona Luizinha parece aquela mulata de Portinari, não tem diferença, aquela negra que tem só busto, eu ganhei uma cópia daqui estava no meu apartamento em São Paulo. As bonecas não são feias, e o cabelo só um pouquinho de lã, brinquinho de canutilho, outras não tinham brincos, são lindíssimas na minha opinião. E isso é importante para a cidade, porque ela já morreu acho que na década de 1960... Gente, eu não estou amarga, mas eu acho que informação você não guarda, aí a pessoa fala assim para mim: “Ah mais isso não é da sua alçada”. É da minha alçada, não é daquele espirito: “Ah você é daqui e não fez” “Ele não fez porque tinha outras prioridades”. Para terminar essa pesquisa, tem que encontrar Oliveira Melo, Dona Luizinha já me deu os dados estão escritos aqui, procurar a família que cuidou de Orobó quando ela estava mais velha até ela morrer, ela está enterrada em Patos de Minas (MG), fazer todo esse backup e registrar.
P/1 – E indo para um outro lado seu, de quituteira, o que que significa para você ser quituteira? Trazer essas lembranças de família, de lembrar da sua avó, mas fazer isso aqui em Paracatu.
R – Ah, eu faço e ofereço para os meus amigos, eu tenho umas forminhas número 00 que não dá nem para encher a boca desses meninos (risos) porque o cara tem que por quatro na boca, cinco. Eu faço das degustações pequenininhas e levo para a Casa de Cultura, para o Museu, para a Biblioteca. Da minha avó eu trouxe biscoitos de gengibre, aí eu descobri na pesquisa de culinária que eu faço desde que eu nasci, eu comecei a cozinhar de verdade com nove anos, por causa de um surto de gripe que teve, não sei se no Mundo, e todo mundo da minha família ficou acamado, menos eu. Eu ia na cama da mamãe e ela me falava cada pedacinho de cebola, cada porção de comida para eu fazer para a família, porque nós não tínhamos empregados e éramos recém-chegados em Anápolis. E aí eu comecei, gosto de ler e gosto de pesquisar, comecei a pesquisar e guardar, gosto muito de coisa escrita, eu já tenho computador que eu sou péssima, mas eu gosto do livro ali, eu gosto do papel ali. Aí comecei a pesquisar e descobri que comida é igual em quase todo o lugar, o bolo de milho de Dona César também é feito em Angola, quase igual, é feito um quase igual em Cuiabá, é feito um bolo de arroz quase igual nos Estados Unidos, na roça, tem uma comida deles que chama succotash que é milho verde da espiga tirado sem cortar, ervilha verde, fava verde eles fazem com leite e açúcar e um pouquinho de sal para os meninos mastigarem todos aqueles legumes e beberam o leite. Feijão nos Estados Unidos é feito igualzinho nosso só que é com açúcar, bacon, gordura, tudo, açúcar. E eu fui cruzando os dados das coisas que se come, dos remédios, da alquimia, um pé e voltava lá no Egito o mel que ficou 3.000 anos e não estragou, porque que não estragou, aí vou fazendo o cruzamento. Aí eu lembro da minha avó com aquele pratinho de comida, você não precisa ganhar um milhão de reais você precisa gerenciar dez reais, você precisa gerenciar dez reais. Se eu contar para vocês a nossa receita vocês vão falar que sou louca, tem que dar, como que dá? Fazendo tudo o que você sabe, se eu tivesse dez pés de mandioca aqui nesse quintal eu tinha um mané pelado na mesa para vocês. Porque eu não tenho que comprar na feira, então isso de quitanda, comida é uma coisa que a pessoa precisa tanto quanto o oxigênio, e comida boa é o que todo mundo quer. Aí chega nos Estados Unidos e eu ganhei muito dinheiro fazendo jantares e na nossa família ninguém tem vergonha de trabalhar: “Aí não vou fazer isso porque tenho vergonha”, se a minha saúde estivesse perfeita eu estaria ganhando dinheiro fazendo faxina, só que a faxina américa. A quitanda, sempre fizemos muitas coisas, muitos doces, pessoas que querem você dá, dá, ai não quero mais dado, quero comprado. Você faz um preço justo ou a pessoa paga o que quer. Aqui eu não podia fazer muito isso, aqui eu ainda faço quando eu acho uma receita diferente de bolo de figo, pudim de figo, quem come pudim de figo? Muita gente que eu conheço não come, aí eu levo na Câmara [dos Vereadores], eu morava lá perto então tudo que eu faço diferente e gostoso eu levo para alguém degustar, não que ele seja um comprador em potencial mas para ele saber que jiló não é o veneno do mundo, você faz jiló com gergelim, com miolo de pão, Claude (inaudível) é apaixonado por jiló, quase ninguém come jiló. Minha mãe fazia uma torta de jiló magnífica, quatro pessoas para descascar, descasca o jiló corta em tirinhas fininhas, quadradinhos desse tamanhozinho, rápido para não oxidar, ela misturava todos os temperos do mundo e dava uma refogadinha, punha numa forma com um ovo em neve bem batido até sair o cheio com um pouquinho de farinha de mandioca peneirada, no maranhão a gente faz torta assim. O Caio, não tem nada que o Caio não coma, mexidinho de sardinha com ovo. Chegando aqui também para sobreviver as bonecas da Célia que são lindas, que ela vendia em Cuiabá. Mamãe morreu em 2003, ela ficou seis meses em Cuiabá, as bonecas dela eram vendidas a 120 reais, porque são bonitas, são todas de algodão, muito caprichadas e bordado, a Casa de Cultura pôs o preço de 15 reais, nós tiramos tudo e fomos vender na rua, a quitanda...
P/1 – Era isso que eu queria que a senhora contasse um pouquinho, que quando a gente veio da outra vez vocês mostraram um monte de trabalhos lindos que vocês fazem. Conta um pouquinho como é esse processo de produção hoje, quem são os clientes, quais são os pedidos, o que vocês fazem...
R – Deixa eu só encerrar a quitanda, aí o Caio crescendo, o Caio é filho da minha sobrinha, essa sobrinha, e ele é criado sem pai ela nunca falou quem é o pai e a gente precisa de dinheiro para manter a criança e ele gosta muito de cozinhar, então nós fomos para a cozinha fazer experimentos, Ana Maria Braga e não sei o que, revistas, tenho muitas revistas de culinária. Nós não comemos salsicha aqui em casa, não coma salsicha por favor, aí apareceram uns enroladinhos com salsicha e aí a gente faz e tabula o preço, o Lucas era pequeno e um dia falou: “Ah titia não sei mas devia fazer essas coisas da faculdade” aí comecei a fazer o muffin eu vendia na época por um e cinquenta, gente eu vendia tanto, porque é uma delícia e as gotas de chocolate são originais, chocolate para assar é de uma indústria brasileira que está fazendo um dos melhores chocolates do mundo a gente nem sabe, aí o pessoal: “Eu quero salgado”, aí eu vendia no Circuito Cultural onde eu leva as degustações por educação e porque eu gosto de dividir as coisas. Aí as pessoas queriam uma coisa salgada, aí eu falei: “Salgado? ” Ai o Caio, é iluminado o meu Caio: “Titia Ana porque é que você não faz aquela coisa” e nos Estados Unidos ele falam que homem de verdade não come quiche porque é fresco demais a comida, aí ele falou: “Porque você não faz aquela coisa que o titio Fernando falou que é fresco? ” Aí comecei a fazer quiche. Gente, por causa disso eu registrei uma empresa porque tem a saúde, a segurança. E foi assim, aí eu comecei a vender as quitandas aqui no Circuito Cultural e aí está aí. Tudo pronto de novo para começar o artesanato.
P/1 – E aí é quiche, é isso?
R – Olha, a quiche é o seguinte, todo mundo chama de Lorena, não é Lorena, vamos para França, tem a região do Rio Lor e do Rio Rhône, produz muito queijo, cria-se muito porco e tem muita galinha porque na França não tem esse negócio de comida industrializada ainda. Na região do Lor e do Rhône, eles copiaram uma comida que é alemã que chama Kuchen que virou Quiche Lor rhône que é a região dos dois rios e o pessoal chama que Quiche Lorena porque é mais fácil (risos) é mais fácil falar Lorena e é muito simples. Aí eu mudei a casca, eu mudei a crosta para ficar diferente e para ficar difícil de fazer, porque daí ninguém copia (risos) eu ensino a pessoa, ela não acerta, aí não copia (risos). Os ingredientes são fresquíssimos e não tem sobra.
P/1 – E aí o que a gente falou lá fora um pouquinho é do que tem quando você cozinha, né, o que diferencia a sua comida ou esse seu jeito de fazer?
R – Olha, eu gosto e pensar em quem vai comer. Hoje, eu não vou cozinhar porque eu estou muito triste, então hoje a comida não saí, não saí (choro). E tem que cozinhar com coisas simples e sem muito salamaléico. Eu acompanho o Prazeres da Mesa, eu já assinei, acompanho na internet, outro dia eles fizeram um sagu de cachaça com calda de jabuticaba, quem precisa de um sagu de cachaça, me fala, pudim de tapioca, não, você faz um mingau ou faz um pão de queijo, aquela meleca toda. Eu fiz um sagu de vinho aí para os moleques e falei: “Pode comer”, com vinho, vou fazer sagu com suco de uva? Não é mais criança, né, o cara já fez 18 anos então pode. Como é que a gente produz, nós começamos aqui com artesanato e culinária, no Circuito Cultural, na Casa do Artesão, as duas Casas do Artesão eu estava junto quando abriu. Naquela lá eu dava plantão quase direto e dava plantão aos finais de semana, aí eu encomendava as quitandas das quitandeiras de verdade, ia buscar, muitas vezes pagava com o meu dinheiro e eu só vendia para turista, que nem meu avô dizia: “Você é daqui, você vai na Dona César e compra bolo de domingo, não venha comprar bolo de domingo na Casa do Artesão domingo porque você é de Paracatu!” E o artesanato nosso, mamãe já vendia na feira muito, quando ela morou aqui, a Célia, e a nossa produção é razoavelmente grande, mas aqui não vende muito, porque as pessoas são artesãs e porque o nosso produto acaba saindo mais caro. Os vestidos das bonecas são todos de algodão, são todos feitos na mão, o enchimento é todo antialérgico, só falta para a minha irmã, registrar as bonecas dela no INMETRO [Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial], porque não tem nada que a criança vá, se ela engolir o nariz da boneca, o nariz é de pano, não tem olho de vidro, não tem nada assim e é toda terminada a mão. Não é um artesanato que você vai vender na feira. Quando nós mandamos as nossas coisas para a Rodada de Negócios, vende lá, vende pelo catálogo e pela internet, mas normalmente não vende, não é um artesanato popular, não era o bordado da mamãe e nem é o nosso artesanato e renda, quem é que quer renda hoje, me fala? Aqui eu fiz uma gola para uma garota que a avó encomendou eu não conheço nem a menina, fiz uma renda para pregar em uma gola, fiz uma encomenda para uma professora de escola e fiz algumas peças separadas porque as encomendas grandes a pessoa faz eu combino tudo bonitinho na hora de buscar não tem dinheiro e falei: “Sinto muito, então você não leva”. Isso é negócio, aprendi com o meu avô amizade é uma coisa e negócio é outra. Eu não vou fazer essa renda tão bonita, tão custosa. As fábricas não fazem mais a linha número dez, tá tirando a numero vinte e tirou 80% das cores. A minha linha vem de cidades onde ainda tem resto ou vem do estrangeiro. Eu trouxe algumas sempre que eu preciso a minha sobrinha manda para mim, um novelo, dois novelos, então não faço trabalhos grandes eu faço trabalhos pequenos a maioria eu faço cruzes, umas cruzes lindas que a Dona Luizinha compra de vez em quando, quando vem as freiras do [colégio] Dom Elizeu [Van de Weijer] e a gente emerge, emerge nas coisas com tudo. Quando vem alguém muito importante da Igreja que a Dona Luizinha sabe, eu vou com os meus quenzans, com a minha tesoura de ikebana que eu não emprestava nem para a minha mãe, eu faço as flores, vou para casa se eu não sou convidada para o evento, eu vou buscar os quenzans, porque você deixa os quenzans e somem, você deixa a tesoura e some. Isso é falta de civilidade. A nossa produção é muito limitada, a gente se arranja do jeito que dá, não tendo a parte material de guardar a gente se vira do jeito que dá mas faz, faz mesmo, a Célia precisa de um estúdio só para ela e eu preciso de um estúdio só para mim. Mas enquanto isso não acontece é nas caixas, para não entrar poeira e para não sujar.
P/2 – E tem alguma encomenda ou algum produto que você fez que foi marcante?
R – Olha eu fiz umas bonecas muito lindas que foram para São Paulo aquelas do cabelo cor de rosa, porque os vestidos, Fernanda, a gente faz parecidos com os que nós tínhamos que a mamãe fazia ou então os vestido bem tradicionais e a mamãe tem uma colação de bonecas que hoje é da série Bonequinhas de todos os países, só que elas são feitas na escala industrial tudo coladinha e não tem nem jeito da gente querer tirar e por outro então é por isso que eu faço as bonecas de pano, faz do tamanho que a gente quer e daí eu faço os vestidos. Todos a mão com um frivolité desenhado para cada uma eu preciso achar acabamento galvanizado para não enferrujar os colchetes e tudo caseadinho a mão, não compro nada na venda, a não ser o tecido, né. A maioria mesmo vai de presente, alguém que nasce uma garota monta uma prateleira e a Célia faz para pôr nos nichos, ela está fazendo um palhaço com uns fuxicos de mais de dez centímetros para o meu sobrinho que mora em Goiânia, vai ficar lindo, aqueles palhacinhos. Ela faz o rosto, borda o rosto todinho prega os cabelos tudo a mão com linha e ela desenvolveu umas técnicas que eu tenho que aprender porque um dia a gente vai se separar, né. E se eu quiser eu vou ter que fazer.
P/1 – E quais são essas técnicas que vocês usam?
R – Olha o acabamento todo a mão, o acabamento das barras invisíveis, as linhas todas de algodão, os tecidos todos de algodão, e costura na máquina só o que precisa porque para costurar na mão é muito tempo, porque as bonecas de Orobó eram todas feitas à mão e agora ela por causa do Caio, porque ele é muito, ele muito, muito pronto, muito preparado, está dando trabalho na escola porque já chegou na escola muito adiantado, não é submisso e falava para a professora: “Isso eu não vou fazer que eu já sei” com quatro anos. Então, ele se arrastou durante os anos escolares agora ele vai fazer Sisec para entrar na faculdade e ele é muito alegre, muito participativo, gosta muito de dançar, toda vida a gente dançou quadrilha e essas coisas na escola e a Célia fez aquela que eu te mostrei e dali foi um novo impulso porque todas as pessoas que conhecem a gente quando tem uma visita especial eles vêm ver se tem, se não tem a gente faz e eles compram pelo preço justo. Aquelas bonecas pequenas, eu já estou vendendo a oitenta reais, bonecas de três centímetros, a pessoa que não conhece é aquilo que a minha avó já falava: “Você tem que conhecer, gostar e querer” eu não posso jamais vender uma boneca que a Célia passa o dia inteiro para fazer os cabelos, ela põe em uma prancheta os fios de linha cem da Singer que não fabrica mais e trança cada fio de cabelo. Eu já marquei no relógio ele ficou sete e tantas horas para fazer a cabeça de uma boneca, rastafarizinho assim coisa mais linda com o nozinho na ponta, ela vira tudo com a agulha de crochê, veste as bonecas com pinça, pinça de sobrancelha, dez reais, gente! Nós não somos popular! (risos) Nós não somos populares! Não pode ser popular, então a gente vende para dono de vitrine, alguma coisa só em ocasiões especiais.
P/1 – E não só com as bonecas quais são as outras técnicas que vocês trabalham para a costura, para fazer a cruz...
R – Olha, tudo que era acabamento fino a mamãe sabia, e ela ensinou para a gente e a agora com a internet, meu bem, quando você não sabe, você pesquisa. Eu quero catalogar se não ao vivo, tocando, na mídia todas as rendas que eu já ouvi falar no mundo. Tem renda, tem desenvolvimento de tecer que a gente só acredita vendo. Aquela rendas Nhanduti que são feitas naqueles quadradinhos e tem umas outras da Croácia que eu tomei conhecimento a pouco tempo, quando eu morei nos Estados Unidos, as pessoas que vão para as guerras nos lugares ou para a paz eles trazem muita informação e tem um senhor perto de Flint aquela cidade que teve problema com a água que ele fez contato com as moças da Iugoslávia, porque em muitos países e, no Brasil também, até a idade de casar a moça tem que cumprir certas tarefas e na Iugoslávia uma delas é saber fazer aquela renda do país. Gente é um sonho. Então, esse moço ele voltou, trouxe muitas peças, ele está em contato com as pessoas ele fundou um Associação e as mulheres fazer as rendas mandam para os Estados Unidos e ele vende e devolve o dinheiro, compra material e manda. Então tem esses movimentos de artesanato andando por aí, muitos deles e eu quero, eu preciso fazer isso, mas com um pessoal que sabe muito. Eu gostaria de ensinar essa renda em todos os CRAS [Centro de Referência de Assistência Social] da cidade, mas eles colocam tanta barreira, eu não vejo dificuldade quando eu tenho carro, de pegar o meu carro com a minha gasolina ir a Belo Horizonte (MG) e fazer uma coisa que é necessário para desenvolver um projeto. NÃO! Não vou falar de burocracia se não a gente não sai daqui e a complicação da burocracia é que as coisas estão morrendo.
P/2 – E conta para a gente o que significa ser artesã?
R – Olha eu gosto, para mim é tradição, nós já nascemos vivendo isso. Já nascemos vendo a minha avó, as minhas tias avós não sabiam ler, mas elas sabiam todo o tipo de renda do mundo, o acabamento francês é um acabamento de terno de alfaiate, fazer uma barra invisível, não é todo mundo que sabe fazer uma barra invisível, você costura uma renda na barra de uma saia de seda e você usa fio de nylon? Tem gente que usa cabelo, cabelo! Para fazer barra, o cabelo não é usado para aquelas bombas, aqueles foguetes propulsores podem usar para fazer a barra de uma saia de renda, como eu vou arrematar, queimando, pega o fosforo e queima. Então artesanato para mim é parte da vida e pio que a gente fica arrogante, já tive umas vizinhas que ficaram deprimidas e eu falei: “Meninas, vamos lá para casa para a gente fazer umas coisas”. A Célia faz dobradura de origami, faz quase tudo. Nós pintamos aqueles ovos ucranianos, eu mandei para ela dos Estados Unidos o material, as tintas que vem em um envelopinho e você mistura com vinagre ou água ou outro solvente e você pega uma gola de cera de abelha, o jeito tradicional, é parece uma conchinha com uma agulha em baixo aí você arrasta aquilo na cera de abelha, põe na vela para queimar e quando derrete você risca o ovo e aí você mergulha na tinta, a cor que você quer você cobre todinho com aquela cera quando termina ele vai estar todo coberto de cera menos a última pintura, aí você passa na vela, limpa, aí você tira o interior do ovo porque aqui é muito quente e vai explodir... Quem quer aprender isso, fala pra mim. E nós fazemos meia dúzia aqui meia dúzia ali e dá de presente, enfeita a casa. Não é que as pessoas não gostem mas parece que o mundo está mudando mesmo e muitas coisas a gente só vai ver no Museu.
P/2 – Como é que é ver a casa toda enfeitada, quer dizer, a gente chegou aqui e ela tem uns enfeites juninos então a gente já percebe que existe essa preocupação, como é que é?
R – Ah, é diferente. A vida toda, quando os meninos nascem, não está a porta porque o Caio disse que não é para pôr, tem o nome dos meninos em ponto cruz na porta de cada um, tem as toalhas de Natal com nome de cada um, o menino nasce tem 12, 15 toalhas, sujou? Ficou velha? Faz de novo marcando o nome, “Ah que quero Indiana Jones no do trem”, a Célia faz. “Eu quero não sei o que não sei o que”. No Natal, a gente coloca tudo de Natal, tudo bordado, tudo bonito. Já morei em uma casa aqui que estava tão ruim que a parede estava toda mofada, eu comprei TNT e cobri a parede inteira com prego porque fita não pega, se não for 3M não cola, botei prego e fiz uma árvore de Natal linda, falei: “Ué agora eu estou morando em uma casa mofada e eu não vou ter Natal? Hello!” Que nem gente fala nos Estados Unidos põe a mão na testa e fala: “Dããã” (risos) é diferente uai. Quando você enfeita fica bonito e é melhor.
P/1 – E Ana conta como é que você conta a sua história e a história da sua família por esses bordados, por essas costuras.
R – Olha é continuidade. O fato de eu não ter casado não quer dizer que essa história tem que acabar. E a gente ensina para todo mundo até meu pai sabia fazer frivolité, todos os meninos aprenderam que além de tudo é coordenação motora. Meu pai usava frivolité na camisa, tem uns que põem no bolso e fica bonito, tem passar fita tem isso e os meninos aprenderam ponto cruz, o Lucas e o Caio porque nós morávamos em uma casa em Alexânia e nós somos mesmo muito fechados, nós só fazemos amizade se a pessoa quiser muito amizade, nós somos quietos, calados: “Vocês foram viajar esse final de semana?”, “Uai, eu estava em casa”, “Aí não ouvi barulho” eu tenho que ficar em casa gritando? Eu tenho que pôr a música tão alta que o vizinho vem reclamar? As coisas têm que ter continuidade, a minha sobrinha que casou sabe fazer frivolité, essa não quis aprender e eu falo para o Caio que ele tem que fazer e ele fala, o que adolescente fala: “Isso é coisa veado” (risos) não quer. Gente isso é tradição, eu não vejo a vida de outro jeito, eu não vejo a vida sem fazer pão, quando a gente não compra um fardo de farinha a gente compra um quilo mas tem que ter pão, não é porque o pão da padaria é diferente, é ruim, tem que ter pão e depois tem os números, um pão custa sessenta centavos, com menos de quatro reais eu faço dois pães de 840 gramas, está ali em cima da mesa, vocês têm que comer um pedacinho, viu. Isso é passo da vida. Eu tenho grandes planos, já deveria estar aposentada, mas quando eu viajei não recolhi não fiz nada mas eu não vou ficar quieta, e não vou ficar, eu não moro em casa que não tem chão, tem que ter chão, tem que ter terra porque você tem que plantar alguma coisa, você tem que fazer alguma coisa e você tem. Eu fico triste quando eu encontro pessoas que não tem nenhum hobbie, não tem hobbie, de onde que ela tira o prazer da vida, eu conheço gente que tira o prazer da vida de um tarja preta, o que é que te dá um tarja preta? Então eu não mudaria nada da minha vida.
P/1 – E a minha última pergunta de costura, não sei se a Fê vai ter depois mais, é que a gente sabe que você tem uma técnica tua de fazer o frivolité, conta para a gente.
R – Ah sim, eu fiz para melhorar. A minha professora fazia muito e fazia muito rápido e ela não fazia o acabamento tão apertado e eu mostrei para ela, se aquilo ia dar certo e ela achou que era bom. O meu ponto é muito apertado eu consigo fazer todas as amostras que eu encontro nos livros e agora eu estou com um problema de material e agora eu tenho que fazer pouco porque as mãos vão ficando finas e corta, corta, faz calo aqui, faz calo aqui. Mas se você fizer rende bem, rende bem. Nenhuma de nós, mamãe fazia isso às vezes, ela costurava à noite, mas nós só fazemos artesanato enquanto tem luz do dia porque luz artificial além de ser ruim acaba com os olhos. A gente sempre teve esse cuidado, mamãe não deixava a gente fazer coisas à noite, mas eu gosto muito, viu. Depois que eu aprendi a fazer frivolité, eu deixei muitos outros trabalhos porque é muito minucioso, é muito trabalhoso e requer muito tempo, tira muito tempo e eu já não gostava mesmo do tricô, mas eu acho que mais para a velhice eu vou aprender a fazer crochê porque é lindo, mamãe fazia crochê só com linha MC Crochê ela dizia que as outras linhas não davam beleza. Era essa aqui olha, então os crochês que ela deixou, ela á estava fazendo crochê filet mas ela só usava linha fina, linha mercerizada.
P/1 – E Ana a gente já está caminhando para o final e a gente sabe que você namora então se você quiser contar rapidinho como você conheceu ele e os planos do futuro com ele.
R – Olha, quando eu fui para os Estados Unidos, eu estava namorando bem uma pessoa e eu tinha que ir porque eu acho que as vidas têm que ser juntas, mas não tem que ser pregadas e se tiver que ter futuro, vai ter futuro. Então, eu viajei assim mesmo. A minha cunhada tinha morrido e eu queria muito ver o que o meu irmão precisava. E esse namoro acabou, ele casou e tem filhos. E lá eu conheci uma pessoa que era amiga da família. Minha cunhada quando ficou grávida da última filha a minha mãe estava lá e ela tinha muito amor com pássaros e ela lidava com pássaros exóticos e ela pegou uma doença de piolho de papagaio grávida e foi para o hospital porque senão ela ia morrer, e esse jovem era estagiário onde ela esteve e eles ficaram amigos. Ele comprou uma arara dela muito bonita e quando eu cheguei lá ele sempre ia ver as crianças e começou a amizade, a amizade e quando eu vi a gente estava namorando dez anos. Na hora de vim embora, eu não vim para ficar, eu vim para passear, tinha que ir, há de pensar que eu sou uma mulher má, eu não sou. Então está aí meio assim, meio lá, ele estuda muito já era desquitado ele é dois anos mais jovem do que eu e vamos ver no que que dá, e para levar o Caio é capaz que eu vou ter que casar viu gente. Acho bem capaz (risos). Não desacredito em casamento mas é que nós temos que fazer escolhas e como na nossa família quem cria os filhos é quem tem os filhos, na época em que eu teria filhos eu estava envolvida em outras coisas, o Balé tira todo o seu tempo, você tem que estar saudável, de pé, bailarino não toma sol, bailarino não anda de skate para não endurecer o tendão do pé e quando eu saí do Balé eu continuei fazendo aula, fazendo aula de dança típica, dança folclórica, aqui eu fiz aula, dancei pela Corpus em 2004, eu era a única velha na sapatilha de ponta e aí quando a cirurgia inflama eu tenho que parar tudo, aí eu engordo, aí muda porque essa cirurgia mudou a minha vida. E eu não sei, se tiver que ter futuro, o meu namorado já tem uma filha que já está na universidade, nós não tivemos filhos e provavelmente eu não vou adotar filho e é isso aí gente. O amor tem que estar na vida, tudo tem que estar na vida mas é na medidinha certa (risos).
P/2 – E o enxoval já está pronto?
R – Ah não, mas eu tenho umas peças bonitas, viu. Mamãe deixou um lençol maravilhoso para mim aplicado e a gente tem que ver e não sei se eu vou morar na mesma casa, viu, só para você saber (risos).
P/1 – E tem umas duas últimas perguntas para a primeira é como é que foi para você participar dessa entrevista?
R – Olha, eu achei um privilégio ainda tem algumas pessoas que a gente está sempre em contato, eu estou sempre à disposição para todo mundo que chegar aqui precisando de informação em qualquer lugar público que eu estiver, que eu ver um turista solto eu peço licença e eu vou lá eu ajudo eu encaminho. Eu tenho um cadastro que precisa ser atualizado de todas as coisas boas de Paracatu, até quem conserta sapato, tudo, e eu deixei toda essa informação na Casa do Artesão, aquele livro de hóspedes que tem lá e que vocês assinam, eu planejei aquele livro com e-mail, telefone, nós ganhamos um computador em um projeto, eu não sei se foi da Kinross, RPM [Rio Paracatu Mineração], que deveria estar na Casa do Artesão para dar feedback para todas as pessoas que visitam. Vocês não têm ideia das pessoas que vem a Paracatu por causa da história, da comida e do artesanato. Esses artesanatos, os bordados dos pontos turísticos, ele não é único mas ele é muito especial e aquelas meninas são muito desvalorizadas porque gente vamos falar de negócios agora, tem sempre um intermediário e isso, às vezes, danifica o processo porque ele é cortado no meio pelo intermediário. Só para vocês terem uma ideia quando eu deixei a Casa do Artesão para criar outra Associação eu não me desliguei e eu sempre ponho peças para vender que são caras para já ir abatendo as mensalidades e tal tal tal. Da última vez que eles fizeram uma limpeza, porque lá hoje está parecendo uma loja de camelô porque aquela Casa do Artesão não foi desenhada para ser aquilo eles puseram as minhas peças de oitenta reais, de cem reais na liquidação por quinze reais. Peguei todas de volta: “Ah mas você não pode”, “Não só posso, como eu faço! ” Eu achei que isso foi ótimo, eu estou muito agradecida e estou lisonjeada, porque como dizia o vovô não se vive de política e nem de riqueza mas se vive de fama (risos)!
P/1 – E para você, nós estamos conversando com outras pessoas aqui de Paracatu e para você qual é a importância da Kinross promover essa pesquisa de memória oral dos moradores daqui?
R – Olha é importante e eu quero ver o seguimento. Porque já foram feitos outros trabalhos que eu soube, o trabalho que eu participei e eu fiquei decepcionada com o resultado, o pessoal do IAB nós fizemos Cristalina (GO), Jambeiro (MG) e São Domingos (bairro de Paracatu). No Jambeiro, tem uma fazenda lá perto, se vocês não forem, não estiver na pesquisa, deem um jeito. A casa é centenária, estava caindo aos pedaços é dessas famílias Botelho, tem que ver o vídeo, o pessoal do IAB conseguiu um arquiteto para fazer o projeto de restauração, conseguiu tudo mas tinha que conseguir também a verba, eu acho que aquela casa se não caiu está caindo. A casa branca que é onde Jorge Amado terminou Gabriela, Cravo e Canela, que ele era amigo de muitos políticos de Minas e você sabe que muitas coisas da história acontecerão em Minas. Coluna Prestes e não sei o que, passou todo mundo por Paracatu, viu. Morreu faz dois anos Dona Ana Botelho, gente o que essa mulher sabia, eu ia para a casa dela ouvir as histórias e tomar licor de chocolate (risos) que ela fazia, a tarde inteira. O pai dela quando veio para Paracatu era médico, esse Paracatuzinho era a cidade que começou no Santana, muitas das casas era de palha ou de taipa de mão e 80% das pessoas eram infectadas já pela doença de chagas, o pai dela com outro médico do Rio mandou pôr fogo em todas as casas, realocou o pessoal e começou a construir alvenaria. O médico do Rio pegou chagas e morreu quase em seguida. A Dona Marta tem fotos de Juscelino na parece dela quando ele vinha para cá eles passavam na casa dela. Eu acho muito importante que isso tenha sequência porque eu rezo todos os dias para que as pessoas daqui se apossarem desse conhecimento porque Tiradentes (MG) é uma cidade menor que já tem um Hotel Escola do Senac [Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial] que eu sei e tem um Festival de Gastronomia que algumas pessoas que deram palestras no meu tempo de faculdade, essas pessoas, essas pessoas quentes que estão todas velhas deram palestras na minha faculdade porque o povo judeu eles são dez. Eu sei do amor de Claude (inaudível) com o jiló desde que eu era jovem e aqui em Paracatu o que falta no meu sentimento de alma é a união das pessoas. Desde que eu cheguei aqui para passear em 2000, que eu cheguei e fui para São Paulo, fui para o Rio, depois que eu voltei a morar, fomos para Alexânia, aí mamãe morreu e nós voltamos, eu gostaria, no Santana ainda tinha duas casas com forno, vocês ouviram um forno que a gente anda dentro dele, na casa da minha tia avó tinha um. O forno é gigante, assa, assa, assa, aí tem certos pães que você deixa no último calor para pegar amanhã cedo. Eu morei em uma casa que tinha um forno desse, do lado da casa de Dona Luizinha, vocês tem que conhecer Dona Luizinha, e tinha duas casas no Santana que tinha um forno desse eu implorei para o patrimônio, para todo mundo para transformar aquela casa em um restaurante típico. Minha ideia é a seguinte, eu não quero que a avó da Fernanda saia da casa dela para ela levar o doce que ela faz para lá, a Fernanda, se não ela uma pessoa de confiança desse time que vai ter que se formar pega o doce da avó dela e leva, aqui é o doce da Dona Josefina a avó de Fernanda. Tem duas doceiras que não vão falar com vocês porque elas não falaram comigo, elas moram do lado, perto, atrás da Igreja de Santana você vai reto assim tem um predinho e duas casas para cá, não sei endereço, mas tem uma delas que faz o melhor doce de mamão, de leite, de tudo o que você imaginar do mundo, mas ela disse que já fizeram uma trairagem com ela que ela não quer nem saber do povo, morreu esse conhecimento. Então o que eu gostaria de ver aqui é o povo, os detentores do conhecimento pelo menos ficando famoso gente. A quinta geração de Joana Balbino, mora no campo em Santana, tem a barriguda e você desce na primeira casa amarela da esquina, a quinta geração daquela mulher, a moça é casada com um amigo do dono do buffet que a Célia trabalha não sabia que a avó era famosa, ta vendo se a greta tivesse tampado, eu estou sem eira nem beira (risos) é isso que dá ficar sem eira e nem beira. Porque esses detentores do conhecimento apareçam e que esta cidade em nome dessa culinária, vamos voltar para a quitanda, o que a gente faz primeiro quando nasce? Respira e segundo come, come a vida inteira então se eu pudesse aquele Santana quando eu cheguei não tinha nada lá, tinha o Bar do Baixinho que vendia cachaça e o pessoal ia ver jogo, ele é maravilhoso e foi meu vizinho eu conheço pessoalmente e eu falava gente, esvaziavam essa casa e falava: “Aluga essa casa e põe no restauro. Porque você não faz? ”, “Eu não tenho dinheiro”. As casas do forno já devem ter derrubado o forno. Aí tinha uma casa aqui que a mulher fazia bolo de domingo igual a Dona César bem aqui na descida da jovem lá no Posto Neon, fui na casa dela, ela me mostrou a casa, passou três, quatro anos e eu voltei lá, a mãe morreu, dividiram a casa, o irmão ficou com a parte do forno e a primeira coisa que ele fez foi jogar o forno no chão. Daqui a alguns anos nós vamos ver no Museu, aqui está a foto igual de como parecia, gente isso é tão triste. Não é que a gente vai viver no passado, o mundo está mudando. Aquele apartamento de milhão, quinhentos mil reais com aquela horta na estufa é lindo mas eu ainda prefiro o meu quintal. E essa cidade tem muito potencial mas olha não desenvolva.
P/2 – Quando você vê um turista na rua para onde você leva ele, o que que você sempre mostra da cidade ou gosta de mostrar?
R – Olha eu mostro, se ele tem tempo, eu mostro o Circuito Cultural, e eu falo das mulheres velhas e do lugar que tem comida boa. Porque a pessoa vem aqui para conhecer, mas a maioria dos domingos a Igreja está fechada. Quando eu dava plantão na Casa do Artesão, eu ficava até as cinco e meia à revelia de todos, o Caio ia comigo. Você para um casamento no sábado você dorme, você saiu da festa as cindo e meia da manhã, você vai dormir até dez horas, você vai para o Museu, para a Casa de Cultura, para a Casa do Artesão dez e meia correndo, não você vai depois do almoço. Aí vem a burocracia, segurança, o plantão e tem uma janela na Casa do Artesão que está quebrada desde que eu conheço e nunca pôs a tramela qualquer um entra por aquela janela, só fazer assim e a tramela cai e vão me falar de segurança então. Está faltando e eu digo que está faltando porque eu conheço todo mundo da cúpula, quando minha sobrinha veio aqui eu mandei ela sozinha para a Casa de Cultura não tinha ninguém que falasse inglês para dar directions para ir na cachoeira de Ascânio, ela fez o trajeto com o Google e nós fomos. Então isso em uma cidade que é turística que é histórica precisa, aí a pessoa fala: “Como? Mas você fala demais”, “Falo”, estagiário de turismo, estagiário de direito. Eu já trabalhei com estagiário, estagiário é uma criança que está crescendo, você tem que ensinar e ajudar e tem que ter sequência. Quando eu vendia essas coisas na Casa do Artesão só para turistas, vinha gente, toda vez que eles vinham eles iam lá porque sabiam que tinha, a desmamada, o pessoal ama a desmamada e é uma coisa simples mas é uma delícia então isso se tiver alguém que possa fazer porque se Deus quiser até outubro do ano que vem eu vou mudar, tem que ser feito Fernanda, porque depois que morre acabou, a boneca de Orobó está por um fio, está por um fio de cair no esquecimento, mas eu cutuco até onde eu posso (risos) agora que eu vou ter mais uma folga de tempo e de dinheiro eu vu procurar o Oliveira Melo, eu já conversei com ele umas duas vezes. Agora, eu estou bem afastada porque eu estou trabalhando muito e eu como eu estou com um PRONATEC [Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego] que é lá no Sesc então eu estou de onde eu estou, de onde eu estou para lá, mas está precisando dar uma sacudida no turismo aqui, não é falta de conhecimento, não é falta de material. Eu acho que é falta de boa vontade e dividir não é fácil, não é fácil dividir, mas você tem, se você quer ver a sua cidade no mapa no mapa da história; você tem que pôr a sua cidade no mapa da história, tem que tirar o lixo da rua, esse lixo é uma vergonha. Você sabia que no estrangeiro você paga taxa de lixo? A Prefeitura não tem que tirar lixo seu de graça, nós estamos muito acostumados com tudo alguém dá, tudo alguém subsidia, tem que acabar com essa mania de subsídio. Aqui é lindo é maravilhoso, eu amo essa cidade, mas dá uma olhada naquela Parque do Santana, da Igreja do Santana. A Igreja é histórica, so what? O turista vem aqui para sir daqui feliz, chegaste o negócio tudo abandonado, “Ah mais avisa alguém” aí vai lá e arrebenta.
P/1 – Então agora para acabar de verdade quais são seus sonhos?
R – Olha eu estou meio chocada, não tem uma joalheria aqui, uma boa joalheria para uma escola, eu não sei como é que chama uma escola para joalheiro, tem um professor, mas não tem aula, como é que chama? Lá em Cuiabá tem, onde a pessoa aprende a lapidar e a fazer joias, desenhas joias. Ourivesaria. Tem uma pessoa que veio do Paraná ele é um professor e gostaria de montar aqui uma escola para ensinar joalheiros, mas precisa de um transformador para suportar o tanto de amperes que puxa, não conseguiu nunca fazer isso, o homem vai abrir uma Padaria e eu vou estar lá na Padaria dele porque eu só trabalho com coisa orgânica, de boa qualidade e simples ele não conseguiu trazer isso para cá. Então aqui não tem uma ourivesaria e agora com a internet eu vi muitas joias, muitas coisas lindas eu tenho muitas peças pequenas que eu faço para acabar a linha ou para treinar uma coisa nova num livro que eu não sei onde está, estou achando que eu perdi aquele livro, tem uns quadros que é pintura e todas as folhas e flores são feitas de frivolité, uma beleza, então eu já comecei a fazer algumas peças e aí eu vou ter que procurar um joalheiro, mas tudo isso é investimento gente na atual conjuntura da minha vida não cabe, então eu vou fazendo e pondo na caixa, pondo na caixa (risos) Uma hora ele sai uma hora sai.
P/1 – E aí você ia contar os seus sonhos para a gente para encerrar?
R – Olha gente sonho começa e não acaba. Quando eu me sonhei bailarina, era para ser uma grande bailarina, o pé abriu; fui fazer faculdade para ser uma grande hoteleira, ganhei a bolsa para a Europa e eu queria trabalhar sempre nos Leadings, que é o lugar de trabalhar e a gerência sendo boa, você não quer sair. Aí eu fui para os Estados Unidos, mudou tudo aí lá eu pesquisei culinária, cozinhei muito e pesquisei artesanato e estudei muita língua eu fiz tradução oficial, fiz tradução free lancer e aprendi com o meu irmão a fazer tradução de mecânica pesada. Quando em me inscrevi na Kinross o gerente de recursos humanos queria saber onde é que estava meu marido eu falei: “Pronto! ” Complica, brincadeira, mas ele queria saber se o meu marido também trabalha na mineradora e eu falei: “Não, não vamos por este lado”. Quando eu voltei, eu queria fazer o curso de tradutor e interprete, terminar para trabalhar também com isso, não deu certo. Agora aposentando, o Caio tem 18 anos, vai para a faculdade, eu ainda penso em terminar um curso para ser tradutora e intérprete juramentada e sempre no ar com as minhas quitandas, as minhas comidas o meu artesanato. Eu gosto muito de cozinhar, eu não tenho problema nenhuma de cozinhar o almoço daqui a pouco para cinquenta pessoas, nenhum, porque comida é vida. E eu vou continuar a fazer as coisas que eu gosto, cuidando da minha família, meu irmão deixou dois filhos em um projeto lindo, não é de informática é uma coisa que eu ainda não alcancei, eu vim dos microfilmes para as microfichas e de repente era 144 dessas em um, em uma aí foi diminuindo e eu vi essa tecnologia, nascer e crescer na minha frente. O computador da CESP era meio andar de um prédio que isso aqui era um banheiro na comparação esse computador diminuiu o que está aqui, já tem no relógio, então eu vi essa mudança que é ótima é linda, mas eu gostaria que acompanhasse as outras coisas. Eu ainda penso em fazer esse curso de tradutor e intérprete e acompanhar sempre os meninos quem me ouviu estudou línguas, está estudando. O Lucas estudou inglês e francês em um ano, está estudando alemão sozinho e a internet é uma faca de dois gumes como dizia o meu avô você paga o lado bom ou você pega o lado que corta, tem curso de qualquer idioma do mundo. Eu achei 52 lições de russo no meu iPod e eu estou ouvindo, eu não vou ler e escrever russo nunca, mas eu estou ouvindo. Se eu fosse para a Copa da Rússia, eu já saberia pedir água, comida, hotel não sei o que, não sei o que, porque eu acho que o tempo tem que ser bem aproveitado e você não pode desviar de um plano, mas não pode sair do sonho porque senão você não vive (choro) você não vive. E o meu sonhe é que vocês voltem para tomar café com bolo.
P/2 – Muito Obrigada.
R – De nada.
P/1 – Então em nome do Museu da Pessoa e da Kinross a gente agradece imensamente a sua presença...
R - Imagina foi uma honra. Eu acho que a Célia está chegando. O Caio está mofado no quarto. Então, eu achei que esse foi um privilégio, foi uma coisa que precisava vir agora, porque a gente estava assim bem, a gente estava num óleo que estava precisando de um sorvete de mel.
P/3 – É eu tenho uma pergunta, eu quero que você me conte mas não precisa explicar como, mas assim se você fosse contar dessa parte do artesanato, tudo o que você faz como se fosse uma lista assim, fala que você tem o frivolité, as bonecas em um monte de coisas, né.
P/1 – Eu costuro, eu bordo o bordado antigo, o ponto cheio, a bainha aberta, todos as flores feitas com rolotê que é um cadarçinho feito de tecido, eu não pinto, eu não desenho e eu faço todas as coisas de casa, costura reta, cortina, colchas, faço roupas para mim, aumento, roupas de boneca, além de cozinhar as quitandas, eu faço pesquisa de idiomas e eu busco na internet também muitas informações. Com o escotismo, a gente faço muitas ações contra a dengue e doenças, contaminações cruzadas eu sou muito preocupada com a educação das pessoas então eu assinei um member ship no Centers for Disease Control and Prevention de Atlanta e eu tenho as notícias em primeira mão das coisas que vão acontecer no meio de saúde, por exemplo, já não tem remédio, já não tem antibiótico para gonorreia. Em 2040, tuberculose não vai aceitar antibiótico mais e as doenças que estão vindo, a maioria delas, é por causa de falta de higiene. Não é falta de higiene de morar no lixão, é a contaminação cruzada da coisa primaria e básica. Então eu me envolvo muito com esses assuntos no escotismo a gente passa todos os conceitos para as crianças, e é fazer as cosias da vida, o que precisa ser articulado, ser industrioso e não perder o entusiasmo porque você perder o entusiasmo está morto. Definitivamente morto.
P/3 – E eu tenho outra pergunta: você falou de uma senhora que chama Dona César eu queria que você me contasse quem é e o que ela faz?
R – A Dona César faz Bolo de Domingo. Eu já a história dela em um livro, mas eu não lembro o nome de pai e de mãe, os avós dela, nunca ficou claro para mim se teve escravo em Paracatu, dizem que Dom Elizeu, Bispo, que derrubou a Igreja do Santana em 1935, ele mandou derrubar a Igreja, acabar com a Igreja, o altar da Igreja do Santo Antônio, era do Santana que eles levaram de carroça. A Dona Cesar é uma pessoa iluminada, ela reza todos os dias as seis horas da manhã, ela é uma pessoa de uma fé inabalável. Gente! Aquele Bolo de Domingo é tão importante para ela, é tão importante aquele dinheiro para ela que ela tem que fazer uma cirurgia a mais de dez anos e ela não pode fazer, aí eu perguntei porque que ela não ia fazer a cirurgia, e quando ela morrer, aquele bolo também vai morrer porque eu conheço os filhos dela e algumas das netas e elas não estão interessadas. Eu amo a Dona César, ela é gentil, ela é, o meu açafrão está lá no quintal dela, viu, eu tive que mudar, tirar todas as plantas aí eu levei o açafrão, levei uma porção de plantas, e ela aguou as minhas plantas durante meses e é uma pessoa muito suave, sempre de bom humor, sempre tem uma palavra boa para você, eu não fui esse domingo, mas eu sempre vou comer o bolo de domingo lá, trago uma sacolada para os meninos. Quando eu, uma época eu tive excesso, eu fui morar numa casa muito, muito grande e na época eu não tinha mobília, e aí nós fomos ganhando, comprando, ganhando e aí o pessoal ficou discutindo é que nem família, dá tudo o que você precisa. Aí eu tinha cama demais, aí eu passava as coisas para ela e ela é muito generosa, muito bonita e eu estou muito feliz que vocês entrevistaram porque ninguém conseguiu antes, gente. Ela é muito linda, muito linda, eu gosto demais dela.
FINAL DA ENTREVISTA
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