P/1 – Miriam, pra gente começar eu queria que você falasse o seu nome completo, local e data de nascimento.
P/1 – Local de nascimento.
R – Meu nome é Miriam Duarte Pereira, nasci na capital de São Paulo e minha data de nascimento é 30 de agosto 1962.
P/1 – Qual é o nome dos seus pais?
R – Tarcisio Pereira Nau e Isolina Duarte Nau.
P/1 – E o que os seus pais faziam quando você era mais nova?
R – Meu pai, ele fazia manutenção em elevador, ele sempre trabalhou com isso, ele trabalhou na Otiz e na Atlas Villares; e minha mãe, prendas domésticas, cuidava sempre do lar.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Tenho, Nelson Duarte Nau, que é meu irmão do meio, e o Tarcisio Pereira Nau Júnior que é o meu irmão caçula.
P/1 – E a sua família, os seus pais, seus avós, eles vêm daqui de São Paulo mesmo?
R – Não, meus avós maternos são de Minas Gerais e os meus avós paternos são do Ceará.
P/1 – E aonde você morava quando você era pequena?
R – Na Vila Ema, aqui na região mesmo.
P/1 – E como é que era o lugar, a casa?
R – Eu lembro que a gente morava num cortiço. A lembrança que eu tenho é que na frente desse cortiço tinha uns postes de luzes, umas torres; eu gostava muito de brincar nesse local. Minha mãe dava bronca, mas mesmo assim eu ia.
P/1 – E você brincava de quê? Você lembra?
R – Eu brincava de esconde-esconde, tinha um morro, que hoje tem uma escola, e eu brincava nesse morro pra soltar pipas, subir e descer o morro - eu gostava muito de brincar com terra.
P/1 – E conta um pouquinho pra gente como é que era o dia-a-dia da sua casa.
R – Olha, meu pai sempre foi muito mulherengo e bebia muito e minha mãe muito ciumenta, então assim, tinha uma desarmonia, mas era uma desarmonia tranqüila porque eles respeitavam os filhos, transmitiam amor mesmo da forma deles. Transmitiam o amor e estavam sempre juntos, então os finais de semana eram primordiais pro meu pai estar junto com a família. Esse dia ele bebia menos e estava junto com a gente no almoço, na janta. Tinha esses valores.
P/1 – E você e os seus irmãos, vocês brincavam muito, vocês se relacionavam legal?
R – Eu e o meu irmão do meio, a gente veio a se relacionar bem na fase adolescente, porque quando ele era menor, aquele negócio de ciúmes um do outro, a gente brigava muito.
P/1 – E você lembra como é que foi quando você começou a ir pra escola?
R – Lembro, eu estudava na escola municipal de Vila Ema, bem próxima de casa. Tinha amizade, o caminho era com muita terra, a escola era gostosa, era tranqüila. Eu gostava muito.
P/1 – E dessa parte da infância você lembra de algumas histórias que você ouvia? Uns contos?
R – Lembro, minha avó tinha muitos contos; que hoje ela tem 107 anos, a minha avó, então ela contava muitas histórias assim de bicho, a mão pelada se mentir, o homem sem cabeça, ela falava “Olha, o homem sem cabeça vai aparecer pra você se você mentir, a mão pelada vai aparecer”. Depois você vai crescendo e você fala “Mas o que é mão pelada?” e na época eu tinha medo, mas nem sabia o que era.
P/1 – E a sua avó também fazia umas comidinhas que você.
R – Ah, a minha avó sempre foi muito especial. Com a comida, todos finais de semana a gente ia pra casa dela, que ela teve 135 netos, então a gente ia na casa dela e ela fazia assim, como mineira, polenta pra gente, quiabo, aquelas comidas bem mineiras mesmo.
P/1 – E você encontrava com esses seus 135 primos?
R – Olha, no aniversário da minha avó a gente fazia questão de todo mundo estar lá porque minha avó tinha a casa dela em Santo André e o terreno era bem grande, então dava pra família estar toda.
P/1 – Devia ser uma boa bagunça.
R – É, muito gostoso, eu tenho saudades.
P/1 – E você chegou a fazer algumas viagens quando você era pequena?
R – Não, não. Sempre assim, na casa da minha avó, em casa ou litoral; mais na casa da minha avó, como a minha mãe era muito católica, ia pra Aparecida do Norte.
P/1 – E como é que era a educação na sua casa? Como era com seus pais?
R – Ó, é bem antiga. Minha mãe era uma pessoa muito sistemática, ela não falava de sexualidade. Quando eu menstruei a primeira vez ela não quis explicar muito, ela só me colocou medo falando assim “Olha, homem nenhum não pode saber, você não pode ficar perto de homem nenhum quando tiver desse jeito”, então eu tinha muito medo. Então até hoje eu tenho o hábito de, é que eu não tenho mais, eu tinha o hábito de esconder tudo, porque isso eu trouxe comigo porque ela ensinou.
P/1 – E você lembra de pequena, assim um sonho de criança que você tinha, alguma vontade assim?
R – Ah eu lembro, eu tinha muita vontade de ter a boneca Susi e, naquela época, o meu irmão do meio, eu percebia que ele era o preferido da minha mãe, então o meu pai até deixava o dinheiro pra estar comprando a boneca, mas quando ia na loja, ele escolhia sempre o brinquedo mais caro e nunca sobrava pra minha boneca. Aí eu brincava com ele, com os carrinhos, pra não ter muita briga, que já tinha demais.
P/1 – E você tinha alguma vontade de alguma profissão, pensava em alguma coisa?
R – Olha, quando eu era pequenina eu pensava em ser professora, mas com o passar do tempo eu não tenho mais esse desejo.
P/2 – Que matéria que você gostava na escola?
R – História, sempre gostei de História.
P/1 – Você lembra de algum momento assim que você percebeu, que gostava de História?
R – Foi quando uma professora... - o nome dela era dona Teresinha -, eu estava na quarta série, então eu e uma menina, a gente sentava muito próximas da mesa da professora, e quando tinha tempo vago, uma ficava conversando com a outra. E a gente ficava lendo livro de história. Aí essa menina, ela indagou comigo, ela falou “Ai Miriam, quem descobriu o Brasil foi Pedro Álvares Cabral”, aí eu peguei e falei “É, ele veio de navio”, aquela coisa toda, a professora falou assim, “Olha, pensem bastante, porque o Brasil já era descoberto”, então a gente começou a gostar porque a gente foi descobrindo outras coisas.
P/1 – E como é que foi com o passar do tempo? Assim, entrar na adolescência.
R – Adolescência super tranquila porque a minha mãe era muito sistemática, então ela não deixava eu ter amizade; amizade só com os primos. Assim, pelo gosto das tias, primos e primas se casavam aquela coisa toda. Então eu ia pra Santo André - ficava aqui no bairro na semana estudando final de semana eu ia pra Santo André -, e ficava com as minhas primas lá, e lá ia pra salão de baile, ia dançar, gostava muito de curtir baile.
P/1 – E aí começou a paquerar também?
R – Não, porque naquela época a gente ia mais pra se aparecer. Aprendia um passinho novo de dança, você queria mostrar o passinho, não era aquela coisa assim, de namorar, de beijar como está hoje. Era bem diferente. Pelo menos pra mim foi muito diferente.
P/2 – Como que eram as roupas?
R – Ah, a roupa era com muito brilho, “dancing days”, você usava aquelas meias com brilho, sombra com muito brilho, as blusas com muito brilho, era muito gostoso e você começava um passo no salão aí todo mundo ia dançando da mesma forma, aprendia e ficava o salão inteiro dançando a mesma dança. Era muito gostoso.
P/1 – E aí tinha um grupo que vocês ensaiavam?
R – Tinha, eu e oito primas. A gente tinha a mesma idade, um ano de diferença uma da outra.
P/1 – E você praticava esportes?
R – Não, só a dança mesmo.
P/1 – Nessa época você também continuou a gostar de ir pra aula?
R – É, gostava. A escola eu gostei muito.
P/1 – E o seu dia-a-dia, era como?
R – Olha, eu levantava pela manhã, quando eu estudava à tarde, ajudava a minha mãe nos afazeres de casa, aí ia pra escola, retornava da escola e ficava em casa. Não tinha aquela coisa muito de rua porque minha mão era muito sistemática, então filho pra ela tinha que está muito próximo ou saindo com a família.
P/2 – Você era boa aluna, você gostava de estudar?
R – Eu era boa aluna, eu gostava de estudar.
P/1 – E quando é que foi que você conheceu seu primeiro namorado?
R – Olha, meu primeiro namorado foi meu marido. Conheci ele, eu estava no parque São Lucas vinda da casa da minha tia, que eu estava procurando emprego. Aí, como eu tinha um curso de cabeleireira, a minha tia falou: “Olha tem um salão próximo de casa que está precisando, eu te levo lá”. Aí eu fui, eu comecei a trabalhar nesse salão. No pegar ônibus, ele era motorista de ônibus, pronto, a gente começou a namorar.
P/1 – Com quantos anos que você fez?
R – Eu tinha dezessete anos.
P/1 – Hum, tipo você acabou o Ensino Médio e aí resolveu.
R – Não, eu estudei até a oitava série, porque aí quando eu entrei no Ensino Médio eu era muito apegada ao meu pai, aí ocorreu a separação porque ele era muito mulherengo e tinha outra mulher. Minha mãe descobriu e ele queria ficar com as duas; minha mãe não aceitou, ele chegou e ainda fez o acordo lá com a minha mãe, aí minha mãe não aceitou. Ele foi embora de casa, e aí nisso, acho que a minha revolta, como eu era muito próxima dele, foi nos estudos. Aí eu não quis saber mais, eu me fechei pros estudos.
P/1 – Aí você foi fazer o curso de cabeleireiro?
R – É.
P/1 – E como é que era trabalhar nesse salão?
R – Eu trabalhei muito pouco tempo, porque aí depois eu fui trabalhar em loja, ser balconista.
P/1 – E me conta um pouco como é que foi esse namoro com seu marido?
R – Ai, foi tudo assim muito rápido. A gente namorou oito meses, aí eu engravidei e depois casei, foi muito rápido.
P/1 – Qual que é o nome dele?
R – Vicente.
P/1 – E como é que foi quando você ficou grávida pela primeira vez? Conta um pouco dessa experiência.
R – A experiência é que eu fiquei com muito medo da minha mãe, como aquela coisa assim de virgem, a filha virgem, aquelas coisas aí minha mãe, eu tinha vergonha de falar pra ela, chegar nela e falar “Mãe, olha, minha menstruação não veio, eu estou grávida” eu tinha muito receio de falar isso pra ela, mas aí meu marido mesmo chegou nela e falou. Falou assim “A senhora tem que conversar com a sua filha, que ela precisa fazer pré-natal, ela está grávida”, pra minha mãe olhou, vi o ódio todo no olhar dela, mas depois ela sentou comigo e conversou, ela falou “Você vai casar porque você está grávida ou porque você gosta dele?” Achei até legal isso dela. Daí eu falei “Eu vou casar porque eu gosto”.
P/1 – E aí como é que foi o casamento?
R – Ah, teve a festa, foi gostoso. Foi tranqüilo.
P/1 – E vocês foram morar aonde depois?
R – Olha, eu morei no fundo da casa da minha mãe, porque tinha mais duas casas, aí eu fui morar no fundo.
P/1 – E aí me conta como é que foi quando seu filho nasceu?
R – Olha, quando meu primeiro filho nasceu, eu fiquei totalmente perdida. Eu tinha medo de troca porque era tudo molinho. Aí minha mãe tinha que estar muito próxima; eu tinha medo de amamentar, tinha muito medo do cuidar do neném, porque eu fui mãe com 18 anos, e eu tive muito medo porque aí eu percebi que eu tinha uma coisa que era minha e ia depender de mim pra tudo, e eu me assustei com aquilo. Eu fiquei muito assustada, então, eu peguei medo de cuidar do neném.
P/1 – E foi vencendo o medo de pouquinho em pouquinho?
R – De pouquinho em pouquinho, na companhia da minha mãe, com a orientação dela.
P/1 – Eu quando é que você ficou grávida de novo?
R – Eu fiquei grávida de novo depois de um ano e nove meses.
P/1 – O primeiro, como é que ele chama?
R – Jones.
P/1 – E o segundo?
R – Michael.
P/1 – E aí você já tava um pouco mais...
R – Experiente. Aí eu já não pegava tanto no colo, porque o primeiro eu peguei muito no colo, ficou com muita manha, chorava eu ia lá e pegava; aí o segundo eu já tinha mais experiência, não pegava tanto no colo.
P/1 – E você ficou cuidando dos meninos, o Vicente trabalhando?
R – Trabalhando de motorista até eu ficar grávida do terceiro. Daí deu a mesma continuidade, ele trabalhando e eu cuidando da casa e das crianças.
P/1 – E como é que foi então cuidar desses três meninos? Como é que foi que eles foram crescendo?
R – Olha, eu não dormia porque eu queria dar conta de tudo, ser perfeita em tudo. As crianças tinham que estar limpas, a casa muito limpa, eu gostava de tudo muito bem cuidado. Então assim, eu não conseguia dormir tranquila, eu sempre dormia pensando: “Olha, amanhã eu tenho que lavar roupa, tenho que acordar mais cedo, que eu tenho que lavar roupa ou que eu tenho que passar”, ou “Que eu tenho que ir no posto de saúde”, sempre preocupada com alguma coisa, então eu não tinha tranquilidade.
P/1 – E aí quando você foi pôr eles na escola, como é que foi isso, foi difícil pra você?
R – Ah, foi, porque afastou um pouco de mim. Que com quatro anos, o Jones foi pro prezinho e eu sentia assim muita falta, aquelas quatro horas ele distante, eu ficava com os dois, mas tinha falta dele, muita falta. E depois eu fui me acostumando.
P/2 – E como era a relação do pai com os filhos?
R – Olha, ele trabalhava bastante, mas dava carinho também, o tempo que ele tinha ele dava carinho.
P/1 – E aí festas de fim de ano em família, você ia?
R – Ia quando minha mãe estava viva, porque minha mãe ficou viva até eu ter o segundo filho; depois ela faleceu e eu ficava em casa mesmo, porque aí meu pai já morava com outra em Pirituba e eu não tinha aquela aceitação muito pela outra, tinha aquela barreira, então não tinha muito contato com ela. Eu tinha com meu pai, mas não com ela.
P/1 – Eu queria que você contasse um pouco essa sua experiência de mãe, de ver eles crescendo, passando pra adolescência. Como é que é acompanhar isso?
R – Quando eles eram crianças, a gente reclamava porque era pequeno, dependia do banho, dependia de tudo de mim, então eu tinha aquele desejo de eles crescerem rápido. Aí quando eu chegaram na adolescência eu vi que era a pior coisa que tinha, eu queria que eles voltassem a ser pequenos porque pelo menos quando eles eram pequenos eles me obedeciam, tudo aceitavam, tudo o que você dava. E na adolescência eles já escolhiam algumas coisas, e como a gente naquela época morava na Cohab, tinha a prestação do apartamento pra pagar, então as condições não eram boas. Você não podia dar o que eles precisavam. Aí você vai acordando pra vida, você fala “Poxa, eu tive três filhos, eu não pensei na educação, eu não pensei na saúde deles, no acompanhar deles, agora nesse aperto todo, eles têm o desejo deles”, aí você começa a perceber algumas coisas.
P/1 – E o que você percebeu Miriam?
R – Eu percebi que os desejos deles eram muito altos pra aquilo que eu poderia dar.
P/1 – E eles falavam isso pra você?
R – Falavam, eles tinham muito desejo. O meu caçula, às vezes que não dava pra ir a feira, ele reclamava. Ele reclamava, ele falava assim: “Poxa, vou sair dessa casa; abre essa geladeira, está vazia, eu procuro alguma coisa, não tem o que eu quero”, e aquilo machucava a gente porque eles tinham os desejos deles.
P/2 – E quando é que foi que os meninos foram crescendo, você falou que foi muito difícil essa parte da adolescência, com quem que eles andavam?
R – Ó, no começo da adolescência deles, eles eram entre eles mesmos, mas depois já enjoaram só de conversar com irmão tal e aí eles começaram a sair pra rua. Na rua mesmo que mora, que eu falava pra eles, “Vocês querem brincar na rua? Podem brincar”. Como eu fui criada muito presa, eu achei muito ruim, aí eu falava pra eles “Vocês podem brincar, mas que eu posso estar olhando toda hora com quem vocês estão.” Mas aí já foram dispersando da escola, já foram pegando outras amizades, já foram dispersando da rua.
P/1 – E aí nessa época você foi pensando em voltar a trabalhar ou fazer alguma outra atividade?
R – Isto, aí eu comecei a trabalhar em casa, ser manicure domiciliar, ou na minha casa mesmo. Eu comecei a ganhar dinheiro também pra estar ajudando eles.
P/1 – E quando é que foi que eles ficaram um pouco mais rebeldes assim?
R – Olha, o meu mais velho, ele começou a ficar rebelde aos 13 anos, dos 13 pros 14 anos; ele começou com 12 anos - ele foi trabalhar com a minha tia numa reciclagem, que ele queria porque queria trabalhar. Aí eu falei: “Com essa idade ninguém te pega”, “Então eu vou conversar com a minha tia”. Aí ele foi. Ele trabalhava meio período, no período da manhã, das sete ao meio-dia, e das três às sete ele estudava, ele vinha pra casa e ia pra escola. Aí ele começou a matar aula pra dormir, chegava cinco, seis horas da tarde, ele não queria ficar mais na escola, ele sentia sono e vinha pra casa, daí dormia até o outro dia. Aí eu falava pra ele “Esse emprego não ta dando certo não, que você não quer nem estudar mais”, aí ele falou, “Ó mãe, eu ganho a metade, se eu trabalhar o dia inteiro eu vou ganhar o dobro e eu estudo a noite”, aí eu falei “Mas você não está agüentando meio período trabalhar meio período estudar”, aí ele bateu o pé, fez a exigência dele, eu caí que nem patinha e conversei na escola, falando que ele queria continuar trabalhando o dia inteiro. Expliquei, aí a diretora cedeu uma vaga pra ele. Aí nisso ele já pegou outras amizades.
P/1 – E aí você acha que ficou um pouco mais difícil?
R – Ficou mais difícil, aí nisso que eu percebi o que eu comecei a fazer? Levar ele para o trabalho, buscar ele no o trabalho, levar ele pra escola à noite e buscar ele à noite. Só que nas escolas um portão fecha e outro não, e quando eu ia buscar ele, ele não estava mais na escola. Aí começou.
P/1 – Começou a chegar mais tarde?
R – Chegar mais tarde, começou a ir pras favelas, ficar lá nas favelas, aí começou tudo, começou a usar drogas.
P/1 – E deve ter sido um pouco difícil para você.
R – Foi. Foi muito difícil, muito difícil porque os outros dois não aceitavam o que ele fazia. Ele saía de casa, depois ele saiu do serviço, também não quis mais saber do trabalho, não quis mais saber da escola, não quis saber mais de nada, o negócio dele era ficar ali no meio daquele grupo, fazer uso de drogas. E eu não tinha entendimento nenhum, eu nem sabia que existia esse trabalho na região na época, que foi em 1998. Aí uma amiga minha da mesma religião, ela falou: “Ah, eu levei a minha cunhada no CEDECA, você tem que ir lá para conversar e falar do seu filho”, aí eu falei: “Mas eu não sei aonde que é”, aí ela falou assim: ”Então eu te levo lá”. Aí ela me levou eu me lembro que o CEDECA não tinha estrutura nenhuma, era uma casinha pequena, era uma mesinha bem velha, um telefone. Daí eu cheguei lá, quem me atendeu, na época, foi a Sueli, que hoje ela é coordenadora também de um projeto das medidas. Aí a Sueli me atendeu e eu peguei e falei pra ela do meu filho. Ela falou: “Não sei como eu vou te ajudar.” Aí ela ligou para vários lugares e ela descobriu um lugar que era uma reunião toda semana em São Caetano, mas aí já tinha outra parte que eu não ia ter o dinheiro da condução, eles não poderiam me fornecer. Aí fui vendo de outras formas, conversei com o meu pai, o meu pai já estava fazendo parte do grupo do AA, e me ensinou a ir no Ferrarini. Eu fui uma vez com meu filho no Ferrarini, o meu filho não gostou, também não gostei, achei muita brutalidade ali.
P/2 – O que é o Ferrarini?
R – É uma reunião que eles fazem para dependente químico, do Deputado Ferrarini, que era um coronel da policia. Eu fui lá e também não consegui nada, fui uma vez, ele não gostou, eu também odiei, aí depois teve o PROERD na escola onde o meu filho caçula estava estudando. Aí eu fui lá atrás do coronel da Rota, também pra conversar com ele, para ver se eu tinha alguma ajuda. Também não tinham como me ajudar, ele ainda falou assim, eu lembro até hoje, esse coronel do PROERD falou para o meu filho “Olha, hoje eu estou conversando com você numa boa neguinho, mas se eu te encontrar na rua vai ser diferente, vai se só porrada mesmo”. Aí eu sai de lá horrorizada, eu vim correndo para casa e falei “O que eu vou fazer? Só rezando mesmo para ter ajuda.” Aí com o passar do tempo esse meu filho foi pra FEBEM. Ficou lá 15 dias, e nesses 15 dias que ele ficou eu descobri a acumputura em Santana. Peguei e levei ele, arrumei o dinheiro, peguei, fui e levei ele. Aí a mulher lá me garantiu “Ele não volta a usar drogas, ele vai fazer isso e isso, a semana que vem ele volta e tal”, só que ele era muito teimoso, ele era uma pessoa assim muito quieta, tranqüila, mas ele tinha uma teimosia interior dele, ele insistia na coisa, então ele foi usar drogas, ele se entortou todinho, aí quebrou tudo os pontos da acumputura que ele fez e voltou a usar drogas. Nisso eu fui aprendendo mais lugares da drogadição, fui levando ele em casa de recuperação. Aí ficou uma semana, fugia, o CEDECA conseguiu uma casa, o CEDECA Foi se estruturando, conseguiu um lugar para ele ficar - ele também foi e ficou lá 12 dias, fugiu E aí foi indo e conheci outra casa de recuperação, levei ele também, aí nessa ele conseguiu ficar cinco meses. Com cinco meses ele fugiu, onde veio a falecer com 12 dias.
P/2 – E vocês conversavam sobre esse problema da droga, como que era o diálogo entre vocês
dois?
R – Então, eu e o meu filho? A gente conversava muito, porque antes eu já tinha medo porque o bairro ele é todo violento mesmo, nessa estrutura de drogadição, e agora está mais ainda a violência no bairro, então eu falava com ele sobre a droga, que o nome já dizia tudo. Eu falava assim “A coisa não é bom, o nome já está dizendo tudo”, mas como eu não tinha muita experiência, eu não sabia abordar muito nisso, aquela coisa de mãe “Olha, não presta, isso vai te acabar, isso vai te levar pro fundo do poço, isso vai te matar”. Era a experiência que eu tinha da minha visão, que aquilo não prestava, muito a apontar “Não anda com fulano que fulano não presta, não anda com cicrano porque não presta”, porque era a visão que eu tinha, não é a visão que eu tenho hoje.
P/1 – Aí ele faleceu?
R – Faleceu, foi assassinado pela policia.
P/1 – Aí como é que ficou os outros irmãos?
R – Olha antes do falecimento dele, os outros irmãos também se envolveram. O Michael veio se envolver também. Teve época que os três estavam na Febem, foi muito difícil para mim. Chegava em casa e não tinha ninguém; era muito difícil essa época. Eu pegava a foto dos meus filhos pequenos e falava assim “Meu Deus, onde eu errei?”, porque eu me culpava muito. Eu fui criada presa, não tinha o que passar para ele, a única coisa que eu sabia me divertir foi com dança, mais nada. Fui uma mãe que só sabia cuidar de casa, cuidar dos meus filhos, colocar as coisas tudo bonitinha pra eles fazerem. O que eu tinha que era pouco, um lar gostoso, isso que eu pensava pra eles, mas não era isso que eles queriam, faltava muito, eu acho que faltava assim um entendimento meu, do mundo, do portão pra fora, faltava muita coisa. Que eu fui criada naquela época, que a mãe só queria a filha dentro de casa, que a mãe criou a filha para casar, para cuidar de uma casa, não criou a filha para ter uma vida independente. Então teve muita falha. Eu percebi essas falhas conforme o meu sofrimento, eu fui percebendo muitas falhas, cheguei até a falar pro meu marido, eu falei assim: “Se eu tivesse uma filha mulher eu não iria deixar ela casar virgem”, eu mesma iria orientar, ia falar assim “Olha, se você gosta de uma pessoa, tenha relação com ela mesmo, mas se cuida.” Sabe, não ia deixar ela passar a mesma coisa que eu passei, ter só uma experiência, não conhecer o mundo direito. Então teve muita falha assim no meu desenvolvimento mesmo, a minha visão pro mundo, quando eu fui mãe. Eu não tive essa visão que era pra mim ter, então teve muita falha.
P/1 – O Vicente acompanhou ao seu lado? Como é que era pra ele?
R – Ele se distanciou, ele não quis saber porque ele também teve essa criação. Ele veio da roça, da enxada, tudo, então ele chegou em São Paulo e não tinha estudo, não tinha experiência nenhuma, e conseguiu uma profissão. Então ele tinha essa visão: o homem tinha que ser trabalhador. Agora, pra ele era sem-vergonhice, era safadeza, era vagabundagem, que eles não queriam nada com nada, porque ele trabalhava dia e noite, tipo daquele homem que mantém a casa, está tudo bom, o resto é teu, você que tem que fazer a sua parte. Então ele via, até hoje ele vê, dessa forma, que eles que procuraram. Ele não vê de outra forma. Então a visão dele é essa: o homem nasceu para trabalhar e para cuidar da casa, mais nada. E a mulher a de educar e de cuidar das outras coisas.
P/1 – Miriam, a primeira vez que você foi na Febem visitar o seu filho, como é que foi?
R – Foi horrível porque a primeira vez foi muito chocante pra mim, na Imigrantes. A Imigrantes sempre foi ruim, um cheiro muito ruim, que depois com o tempo a gente percebeu, eu e as outras mães que era o cheiro da tortura, eu sentia um cheiro no ar muito ruim e eu na fila pra entrar na ala A, que para poder entrar na ala A tinha várias filas: tinha fila pra dar documentação, depois tinha fila pra dar as bolachas que podia entrar, que é o jumbo, que eles falam, a fila do jumbo, depois tinha a fila da revista, depois tinha a fila pra poder entrar na ala... então era várias filas. Quando eu estava na última fila, que era da ala, aí de frente da ala tinha a ala C, e de repente nós que estávamos na fila começamos escutar que nem paulada mesmo, aquilo suava, vinha o eco e o menino gritando, e o menino gritando, então foi uma experiência muito horrível. Aí saiu um funcionário da ala C, que eu lembro até, não sei se ele ainda está trabalhando na Febem, o nome dele era até Seu Romildo, que eu vim a conhecer ele depois das outras passagens em outras unidades; ele saiu bem suado aí a gente perguntou “Nossa, o que está acontecendo?”, ele falou “Não, a gente estava separando os meninos porque um estava batendo no outro”, e rindo, sabe, ele rindo, falando assim como se fosse um monte de boba. Então foi uma experiência muito horrível. Aí quando eu entrei na ala A foi pior ainda, os meninos todos sujos, meu filho, o cabelo dele estava duro, pra cima, isso tinha uma semana, todo sujo, todo sujo mesmo. Aí eu falei “Nossa, meu Deus do céu, que lugar é esse, está num inferno mesmo”, eu senti que nem aquele filme de Hitler, campo de concentração, os meninos todos sujos, todos maltratados, com ferida. Eu fiquei horrorizada com aquilo e assim, trazia pra mim, porque eu não tinha experiência de fazer uma luta. Ainda conheci o CEDECA, mas não tinha experiência de denúncia, tinha muito medo de muitas coisas ainda. Aí o meu filho ficou 15 dias lá, aí quando ele saiu eu falei pra ele “Pelo amor de Deus, não volte mais pra um lugar daquele, é isso que você quer pra sua vida?”. Aí eu comecei a ter experiência, a dor foi me ensinando muitas coisas. Aí eu comecei. Eu não sabia pegar metrô, aí eu comecei pegar trem, pegar metrô porque eu tinha que andar, eu só sabia ir em Santo André, na casa da minha avó. Comecei a ir pro Brás, pra outros lugares, fui aprendendo andar no mundo.
P/1 – Procurando alternativas?
R – Procurando alternativas.
P/1 – Aí com seus outros filhos você já tinha um pouco mais de experiência, como é que foi essa luta também?
R – Olha, é, quando o Michael foi apreendido, o meu filho do meio, o Jones foi pego busca e apreensão porque ele não cumpriu o L.A.
P/1 – L.A?
R – Liberdade assistida. Ele era acompanhado, mas ele fazia muito uso de drogadição, aí a educadora dele, que hoje é minha coordenadora, a gente conversou muito sobre isso e até achou melhor achar um local pra ele estar ficando, a busca e apreensão. Eu concordei porque ele estava num estágio, ou dava overdose nele no meio da rua ou alguém matava ele. Então pra mim seria até bom naquele momento ele estar indo, eu sabia o lugar como que era, que tinha tortura, mas eu tinha aquilo comigo: “Pelo menos lá eu vou conversar com ele, eu vou ver ele”.
P/2 - Vai saber onde ele está?
R – É, pelo menos eu sabia onde ele estaria. Eu achei que era um momento de reflexão, eu e ele, pra estar conversando. Quando ele foi apreendido de busca e apreensão passou mais ou menos 15 dias. Meu filho do meio foi pego e foi também pra Imigrantes, só que o Jones estava na ala A, que ele era da ala A, e o Michael foi pra ala C, então a visita do Michael seria no sábado e do Jones no domingo, aí seriam dois gastos. Eu fui no domingo ver o Jones e conversei com a moça que pega os nomes, eu falei assim “Eu tenho meu outro filho”, aí dei uma de besta e falei assim “Eu não sei onde ele está, me falaram que ele estava aqui na Imigrantes, e eu preciso ver ele também”, aí ela colocou e eu consegui fazer visita pros dois. E foi muito triste porque assim, eu vi dois, e o Jones já era mais espertinho já sabia sair das encrencas, já estava se aperfeiçoando mais nesse caminho, então ele já tinha mais habilidades pra estar ali, pra estar conversando, tinha mais experiência nas coisas erradas do que o Michael. E o Michael meio bobão, eu senti muita dó do Michael porque ele ficou o tempo inteiro chorando, o tempo inteiro. Aí com uma semana ele saiu, só que ele saiu, o Michael, quando ele foi apreendido ele foi apreendido de carona, ele entrou dentro de um carro roubado. Ele sabia que era roubado, que ele falou pro juiz, mas ele queria andar de carro e o outro menino sabia dirigir, então ele não sabia dirigir e quando ele ficou oito dias lá ele aprendeu a dirigir: os meninos ensinaram desenhando na terra, mostrando onde tinha que ligar, o que ele tinha que mexer e tudo. Aí o que ele começou a fazer? Começou a roubar carro pra treinar, para conseguir dirigir, então ele roubava, ele conseguia dirigir um pouco, aí largava lá e roubava outro e conseguia dirigir mais um pouco. Ia largando, até que ele foi apreendido novamente, mas até ele ser apreendido, aí o Jones ainda estava na Imigrantes, aí ele foi apreendido e ficou com o Jones lá, três meses. Depois o Jones foi transferido pro Tatuapé onde teve rebelião.
P/2 – Quantos anos ele tinha, o Michael?
R - O Michael 16 anos. Aí o Jones foi apreendido e foi transferido pro Tatuapé, e teve rebelião e ele fugiu. Lá que eu conheci a AMAR, foi nessa época. Essa rebelião que estava tendo no Tatuapé. Foi o primeiro que eu peguei; eu peguei um na Imigrantes mas a gente ficou lá dentro, sem experiência nenhuma, já fiquei dentro de uma rebelião, aí eu já comecei a ver de perto como que era as coisas. Aí no Tatuapé, como era mais extenso, eu fiquei com mais medo, mas enquanto eu estava lá preocupada com ele, ele já estava em casa, que ele tinha fugido.
P/1 – E aí como é que foi esse encontro com as outras mães?
R – Ai, eu sentada lá queria entender o que estava acontecendo, aquele monte de cachorro, um monte de coisas, quando eu vi a Dona Conceição com a roupinha cinza dela, eu nunca esqueço, uma pranchetinha na mão, pensei que era até da igreja. As mulheres lá procurando, conversando, eu falei “Deve ser crente” pensando comigo. Aí me aproximei e eu vi que não era, e a gente ficou mais próxima. Eu pensei comigo “Nossa o meu problema é muito grande, eu tenho três, as mulheres aqui todas tem um, eu tenho três filhos nesse problema todo, então eu vou precisar muito de apoio”, naquela hora eu falei assim “Eu preciso muito de apoio de ambos, da CEDECA e da AMAR, eu preciso de apoio de todos.” Foi quando eu me fortaleci mesmo, tinha orientação daqui do CEDECA, aí eu falava da AMAR, eles me fortaleciam mais, pra estar na AMAR mesmo eu tive muito ajuda.
P/1 – E a AMAR, vocês se encontravam algumas mães, como é que era?
R – A gente se encontrava na praça da Sé porque a gente não tinha espaço pra estar se encontrando, então a gente marcava muito encontro na praça da Sé, e lá a gente sentava e conversava, a gente anotava as denúncias, o que tinha acontecido numa unidade, o que tinha acontecido na outra. Aí a gente foi se fortalecendo, até que a gente falou assim “Agora a gente vai pro fórum, a gente vai pro fórum, vai conversar com os promotores, eles não colocaram os filhos da gente lá, tudo bem que eles erraram, mas ninguém vai lá fiscalizar e ver a situação, pois agora eles vão começar a ir”. A gente começava a levar escrito mesmo, mal sabia escrever direito. A gente levava do jeito da gente, ia lá com as mães e fazia as denúncias. E foi aí que eles começaram acreditar.
P/1 – E aí como é que foi, porque tem alguns momentos da história da AMAR e da sua história que eu posso dizer que eu conheço, que é, por exemplo, as outras rebeliões que você participou, outras mães também que você conversou. Você podia contar?
R – Então, quando a gente consegue encontrar um espaço que nos fortalece, então nesse momento você consegue ter uma tranqüilidade para poder estar ajudando o outro, porque você tem um espaço para você se fortalecer, você ainda tem ouvidos que te escuta e acredita em você. Porque eu pensava assim “Poxa, três filhos, o juiz vai me apedrejar, minhas tias vão me apedrejar”, comecei a pensar num monte de coisas. Você é apedrejada, você fala assim “Nossa, eu sou a culpada”, porque meus três filhos nesse caminho, então aquilo me angustiava muito, porque era três. Então tinha pessoas que eu até tinha vergonha de conversar, porque eu sentia assim que ela olhava pra mim me culpando. Quando tinha essas rebeliões, o que eu fazia? Eu tranqüilizava as mães, eu tinha esse papel comigo, eu falei assim “Olha, foi assim que me fizeram comigo, assim dessa maneira me tranqüilizaram, então eu quero passar essa tranqüilidade pras pessoas também”, então a gente conversava. Tinha mãe que queria se matar, se jogar na frente ali na Celso Garcia, conforme tem muito movimento de carro; tinha mãe que na hora da rebelião ela queria se matar, se jogar debaixo de um ônibus. A gente ia lá, agarrava ela, conversava, orientava ela, sensibilizava ela pra ela perceber que aquele filho que estava ali dentro, pra ele a coisa mais importante era a mãe ali fora, que ele só ia contar com ela, a mãe morta ele ia fazer o quê? Quem ia cuidar daquele filho? A sociedade não cuidava porque estava todo mundo lá, o meu e o dela. Eu falei “Olha o que deu, esse governo aí que não vai cuidar, olha como ele cuida, olha os maus tratos como que é”, então eu falei pra ela “Tem que estar viva, tem que estar viva e desistir de morrer nesse momento”; então a gente tinha uma coisa assim que não pode morrer agora. Ficava doente, dava uma dorzinha, a gente olhava pro céu e falava “Eu não posso adoecer nesse momento, e nem posso morrer, eu ainda tenho que resolver a minha missão aqui nessa terra”.
P/1 – E isso também passava pros seus filhos, como é que você via, o que eles achavam, eles comentavam?
R - Quando começou as mães estarem indo nas rebeliões, então os meus pelo menos ficaram com aquela coisa, os denunciadores do quadrilátero, então quando eles se encontravam no campo de futebol do quadrilátero, os meninos já passavam pra eles “Olha, fala pras mães irem lá em tal na unidade, está acontecendo algumas coisas lá, olha na minha, está assim, assim, assado”. Aí quando era final de semana, que a gente ia visitar, eles passavam “Olha, encontrei com um menino de tal unidade, vocês tem que estar indo lá, está acontecendo isso, isso e isso.” Então eles foram virando denunciadores do próprio quadrilátero, foram passando.
P/1 – Mas eles gostavam, o que eles falavam pra você?
R – Eles sentiam ciúmes. Quando eles saíram da FEBEM, que eu continuei indo lá, eles falavam assim “O que você vai fazer lá? Eu estou aqui. Você perdeu alguma coisa lá? Teu filho não está lá não, teu filho está aqui, ó”. Daí eu falava “Mas tem outros lá, tem outras famílias”. Eu começava mostrar pra ele. Teve até uma ocasião que no prédio da AMAR colocaram uma bomba. Eu estava em casa, aí o meu menino falou assim, o meu caçula “Ô mãe, não é no Andradas que fica a amar?” eu falei “É”, aí ele falou “Colocaram uma bomba para matar vocês. Vai, fica indo pra lá denunciando que qualquer hora eu vou ver sua perninha caindo lá embaixo.”
P/1 – E aí, o que deu essa história?
R – Essa bomba acho que foi pra Parada Gay.
P1 – Lá no Andradas, na Rua dos Andradas. E como é que foi, então, no momento você estava ali como mãe e de repente já estava ajudando outras mães?
R – É difícil porque você tem que separar uma coisa da outra, que nem a última rebelião que eu peguei lá na Vila Maria em 2003, no final de 2003. Teve uma fuga, até morreu um adolescente lá, e antes disso a gente já tinha feito a denúncia que tinha uma arma lá dentro, pra eles tomarem cuidado. Aí fizeram a revista, não conseguiram entrar na mesma semana, e quando foi no final de semana aí tentaram a fuga. Até meu filho tentou essa fuga. Quando foi no domingo a todo mundo falou “Não vai ter visita”, mas eu fui pra lá, tinha umas mães lá, eu já pensei nas mães, “Elas vão estar lá na frente e vão precisar de apoio”, aí eu fui lá e eles ficaram me observando. Conforme eles viram, eu tranqüilizando as mães, eles pediram pra mim entrar e ver todos adolescentes lá dentro. Foi o próprio diretor da unidade. Eu peguei e entrei e o meu filho estava lá. Aí eu entrei, aí eu conversei com todo mundo, conversei com meu filho como se ele fosse um dos meninos, eu não misturei a coisa. Ele estava nas trancas, ele continuou nas trancas, ele só me mostrou que tinham queimado ele, como os outros também mostraram, que ele também já conseguiu separar as coisas; ali ele viu que eu estava ali não só por ele, eu estava por um todo. Então ele conseguiu perceber isso. Ele ficou ali nas trancas. Agora, teve mãe que não conseguiu isso, ela pegou o filho do lado e ficou olhando os meninos todos com o filho do lado, então eu achei assim que estava um pouco errado, porque eu estava ali com outro papel, não com aquele papel de estar com o filho do lado e mostrar pro outro um poder. Não. Ali tinha que mostrar uma igualdade. Então assim eu deixei meu filho nas trancas junto com o outro. Muito doido, eu poderia ter amenizado um pouco pra ele mas não, tratei ele como se fosse os outros, que eu estava ali para olhar a todos.
P/1 – E como é que foi essa história dos diretores estarem chamando vocês, de você começar a ir pro fórum, a perceber leis.
R – Olha, eles começaram a perceber porque eles viam que com a gente eles tinham uma ajuda, uma ajuda de controle ali dentro, de harmonia mesmo; harmonia entre o funcionário e o menino, entre a direção. Era aceitação do trabalho, porque ali também a gente já foi percebendo que faltavam muitas coisas pra eles, porque a gente passou um dia ali dentro da unidade e toda hora um menino, um funcionário escutava umas 50 vezes, 60, 70, 80 por dia, o menino falava “Ô, senhor eu preciso disso; ô, senhor eu preciso disso; ô, senhor eu preciso disso”, enlouquece também não ter aquilo que o menino está pedindo, e o funcionário falar que não tem e o menino achar que ele está escondendo, que ele não quer dar. Então tem isso também, que é muita loucura, muita loucura.
P/1 – Miriam, com toda essa vivência que você teve de acompanhar os seus filhos, de acompanhar outros meninos, outras mães, você deve conhecer um pouco mais do dia-a-dia de que é um menino dentro da FEBEM. Você podia descrever pra gente como que é o dia-a-dia deles lá?
R – Olha, pelo que os meus filhos passava e pelo que já vi também, meu filho falava assim que era tudo a mesma coisa, todo dia era igual, não tinha nada de diferente, todo dia igual. Você tinha que ser muito esperto lá dentro pra conseguir um curso, você tinha que ser muito esperto pra estar dentro da escola porque se você não fosse esperto, então você só ficava no pátio. Pra você participar de algumas coisas você tinha que ser muito esperto mesmo; pra não apanhar também você tinha que ser muito esperto, porque se você não fosse esperto você apanhava também muito lá dentro, tanto de um lado com de outro, ou dos meninos ou do funcionário, então você tinha que ter esperteza para o seu dia não ser igual. Eles acordavam, faziam a higiene pessoal, tomavam um café e ia pro pátio. Depois vinha o almoço, pro pátio, depois vinha a televisão da tarde, o jantar e ficava mais um pouquinho no pátio e iam dormir. Ele falava que lá dentro da lei da sobrevivência. E ele tinha um dizer assim, muito forte o meu filho caçula, ele falou que se as mães soubessem o que era a Febem elas não saiam de lá de dentro, coisa que ele não pôde me contar, não conseguiu contar, só contava o básico mesmo; outras coisas ele não falava, acho que pra não machucar, pra não doer muito na gente.
P/1 – E você lembra de outras histórias marcantes pra você, com seus filhos?
R - Olha, eu lembro de uma história muito marcante com meu filho mais velho, foi numa época que ele estava bem debilitado da droga. Ele chegou em mim e no meu irmão Nelson, que é o meu irmão do meio, ele falou assim “Olha, se me der vontade hoje de usar a droga, vocês não me deixam sair. Aí eu deitei ele na minha cama, deitei do lado dele, ele ficou no meio, meu irmão do lado eu do outro, e a gente segurando nele e as lágrimas dele descendo, e falando “Mãe, eu estou com muita vontade, eu estou com uma vontade assim louca, é uma coisa muito forte dentro de mim, muito forte que eu não consigo me segurar, mas pelo amor de Deus me segurem aqui hoje”. Eu não sei o que ele estava pressentindo naquele momento que ele pediu muito apoio meu e do meu irmão pra segurar ele aquela noite e a gente conseguiu segurar, mas no outro dia não, no outro dia ele já saiu pra fazer uso. Mas ele pediu assim, eu senti o pedido dele assim da alma, pedindo pra gente segurar ele. O meu irmão fazendo carinho, passando a mão na cabeça dele, eu segurando na mão dele, fazendo muito carinho nele. E outra coisa que marcou muito mesmo foi quando ele fugiu da casa de recuperação. Eu estava descendo do Al-anon, que eu estava indo pro grupo de Al-anon também para aprender também a lidar um pouco com essa situação, aí eu descendo eu encontrei com ele na padaria, e já tinha três dias que ele tinha fugido. Ele já tinha ido no CEDECA, porque ele tinha um vínculo muito bom com a educadora dele, muito forte, então ele foi direto nela. Aí ele falou “Eu fugi da clínica, não volto mais”, e ela ligou para mim e disse “O Jones fugiu, eu vi ele, ele veio aqui, vê se ele quer ir pra outro lugar.” E eu tentei, todo mundo viu ele, menos eu, tentei encontrar ele, procurar ele. Aí eu fui pro Al-anon, era até um domingo, eu estou voltando da reunião do Al-anon, aí quando eu desço eu vejo ele na padaria. Eu gritei do outro lado “Jones, vem aqui”, aí ele veio, aí eu peguei na mão dele e falei “Meu filho, me dá a mão pra mamãe, você está vendo essa mão que está segurando a sua mão, você pode estar no fundo do poço, mas é essa mão que vai te tirar”. Ele me abraçou e me falou “Eu sei mãe, eu não nasci desse jeito, eu vou mudar, a senhora pode ter certeza que eu vou mudar”. Depois de dois dias o meu filho foi assassinado. Aprende a não desistir dos sonhos, você vai aprendendo a lidar, vai pedindo força.
P/2 – E pra uma mãe é sempre difícil.
R – É, porque pra mãe nunca morre. Nunca morre, está sempre dentro de você. Chega a data de aniversário você lembra, chega o mês que morreu você lembra o dia. Aí você pensa assim, “Nossa, já passou tantos anos”, nove anos que o meu filho faleceu, foi mais um pro IBGE na lista, mais um. Foi morto pela polícia, sem reagir. E a polícia coloca que ele reagiu. Levou um tiro na nuca, único tiro, morreu na hora. De costas, reagiu de costas, então o braço dele vira. Muito difícil.
P/2 – E isso ficou por isso mesmo?
R – Ficou por isso mesmo. E o meu caçula foi no próprio bairro, a violência danada no bairro, na hora que eu me fortaleci da morte do outro, aí o meu caçula morreu. Foi assassinado no bairro pelas costas. Muito difícil. E o meu do meio, a gente está tentando, tem época que ele está bem, tem época que ele se desespera, que eu sinto que ele tem falta dos irmãos, aí vai pras drogas também. Tem época que ele está forte, tem época que não. Semana passada mesmo ele não estava bem, aí ele grava as músicas dos irmãos e coloca e escuta. Aí você já sabe, aquela semana ele vai usar alguma coisa, ele não vai dormir em casa, alguma coisa vai ter de diferente, é o que acontece. Mas uma coisa eu tenho dentro de mim, eu não me arrependo de ter sido mãe deles, eu agradeço todo dia de eles terem nascido de mim porque eles me ensinaram tanta coisa. Olha, eu me descobri, graças aos meus filhos, graças ao sofrimento eu me descobri, e aprendi a viver. Eles que me ajudaram, eu me desenvolvi muito mesmo, trouxeram sonho, me mostraram que eu posso muitas coisas. Eles me ensinaram, muito, muito mesmo. Daí teve o lado bom e eu agradeço todo dia a Deus por ter sido mãe deles e vou continuar agradecendo. E nunca me responderam, nunca gritaram comigo, nunca, nunca, nunca. Não falaram um palavrão na minha frente, nunca eles fizeram isso.
P/1 – Miriam, e essa força toda que você tem e também foi descobrindo pouco a pouco toda essa força dos seus filhos também, que momentos marcantes que você teve? Por exemplo, você fala de vários lugares que você foi você, veio no CEDECA, você foi a AAMAR, você foi no Al-anon, como é que foi essa descoberta, pra você, esse passo a passo de ver que existem lugares também que você poderia ir e conversar.
R – Olha, quando eu descobri esses espaços, é você descobrir que você tem esse espaço pra você. É você descobrir que você pode contar com alguém. É você descobrir você junto com outro; você pode fazer uma mudança, que não é você sozinho. Então eu fui me descobrindo que eu sozinha eu não podia nada, mas com outras pessoas pensando, me dando ideias, sugestões, eu podia alguma coisa. Então é assim, eu me fortaleci. Hoje eu me considero uma pessoa muito forte, uma pessoa com muita esperança nesse mundo. Um olhar completamente diferente. Mesmo o meu filho do meio não está do jeito que tem que estar, mas é o jeito que ele quer está. Hoje eu vejo dessa forma, tudo tem sua hora certa e o seu tempo certo. Eu vou orientando, vou pontuando algumas coisas pra ele, vou dando exemplo. Eu falo, “Olha, nossos papéis estão trocados: eu trabalho e estudo, e quem tinha que estar fazendo isso é você; agora você está em casa cuidando da casa, que é o meu papel, e eu tô trabalhando pra te ajudar”. Então ele dá uma risadinha, ele fala “Ah, mãe eu vou terminar meus estudos, eu vou fazer Química”, eu falo “Mas pra que você vai fazer Química? Pra você melhorar a droga, mistura”, então vem aquelas brincadeiras, ele fala “Ah, a senhora só pensa nisso”, vem aquelas brincadeiras, mas a gente vai brincando e nisso eu sinto que os meus filhos não foram piores, não cometeram atos piores mesmo de violência com outro ser humano com essa tranqüilidade minha de estar conversando. Hoje eu vejo isso, porque eles poderiam ter sido pessoas terríveis. Meu filho passou duas vezes pelo sistema prisional, foi pra Marabá, oito horas e meia de viagem. Poderia ter sido batizado pelo crime organizado, mas eu ia lá e falava pra ele. Ele foi convidado várias vezes, mas eu falava pra ele, eu falava “Você vai pagar pra ser bandido, que eles pagam pra ser bandido, e você vai pagar, eles estão pior que a polícia”, corrupção do lado da polícia e corrupção do lado do crime organizado, então fui conversando muitas coisas com ele. Eu falava pra ele “Olha, lá tem um juramento, eu sei que tem um juramento, igual à polícia, se tiver que me matar você vai ter que me matar, então se você entrar já me mata, porque você já me desgosta, aí você não vai ficar mais em casa, vai pra rua, porque você teve e sua escolha”. Então assim, muita coisa eu fui pontuando com ele. Ele tem amizade com todo mundo, conversa com todo mundo, mas ele não se infiltrou no crime organizado. Ele fica na dele, em cima do muro. Eu falo que ele está em cima do muro, ou ele vai cair pro lado da mentira ou da verdade. Eu falei “Os dois lados tem um obstáculo, mas de um desses lados você vai cair”.
P/1 – E com toda essa caminhada sua Miriam, chegou o momento que você voltou a trabalhar.
R – Isto.
P/1 – E você voltou a trabalhar primeiro aonde, então?
R – Olha, eu fui trabalhar numa creche de auxiliar de cozinha, aí fui me apaixonando pelas crianças também. Mas o meu negócio é adolescente. Eu me vi ali nas criança, adorava cuidar deles, arrumas as coisas pra eles, ajudava muito as tias; quando elas não iam eu ficava na sala também ajudando muito elas - até a diretora queria que eu ficasse. Mas eu falei pra ela que eu queria adolescente. Aí eu saí da creche, pedi a conta, fiquei lá um ano e meio, e fui pra AMAR. A AMAR já tinha verba, então tinha que ter um trabalho pra garantir, tinha que ir pra Febem, tinha que ir pra rebelião, e não tinha dinheiro pra isso. Aí eu fui pra AMAR, aí fiquei lá. Depois lá da AMAR eu falei “Dona Conceição, eu quero saber do outro lado, eu tenho essa necessidade de trabalhar com as medidas.”
P/2 – E o que você fazia na AMAR?
R – Na AMAR a gente fazia denúncia, ia pras rebeliões, ia pra porta da Febem ver os casos e está encaminhando pro Al-Anon ou pro Fórum, ver o órgão que era mais competente pra aquela demanda. Que a gente ia na porta das unidades, mas aí depois de um certo tempo eu queria uma outra coisa pra mim, queria estar com eles, com os adolescentes.
P/2 – E aí?
R – E aí eu tô. Já tem quatro anos.
P/1 – E como é que foi a sua entrada no CEDECA?
R – Olha a minha entrada... elas já vinham me convidando há um tempo. Elas iam lá na AMAR, faziam trabalho, aí começou da região, da região do CEDECA, e elas já vinham com as propostas pra eu estar trabalhando com as famílias. Assim, um dia eu acordei, aí primeiro eu faço pra depois eu tomar uma decisão, que eu sou budista. Aí eu fiz uma oração, eu falei “Ah, se tiver que mudar, eu vou mudar.” Esse meu filho estava de liberdade assistida, esse do meio, não era nem no CEDECA, que ainda não tinha aquela transição de ir pra municipalização, aquelas coisas toda, então ainda estava no posto leste e o posto leste estava ocupando uma região aqui numa igreja católica. Eu levei meu filho, aí vindo embora eu falei pra ele “Olha, você vai pra casa que eu vou dar uma passadinha lá no CEDECA” daí ele falou “Está bom”, daí eu falei “Gent,e eu estou procurando emprego, tem vaga?” Eles “Pra quê?” Eu falei “Pra educadora.” “Ah tem, pra você tem”, aí na hora já conversaram comigo, falou que quando chegasse o projeto eles iam me chamar. Foi o que aconteceu. Aí eu conversei com a Conceição, foi uma coisa que machucou muito ela, no início ela até adoeceu, porque a gente era muito grudada, pra cima e pra baixo, viajava junto, tudo era muito junto, nós duas, mas eu precisava, eu precisava sair da Amar naquele momento, eu tinha que tomar ar diferente, tomar novos rumos, sabe, conhecer coisas diferentes, porque eu já estava muito sufocada já, então eu tinha que tomar outros rumos.
P/1 – Miriam, conta pra mim uma história que você viveu num dia, uma história marcante pra você dentro da AMAR.
R – Olha, dentro da AMAR, uma história muito marcante foi, pode ser rebelião? Foi uma rebelião que aconteceu em Franco da Rocha, que hoje é penitenciária de Franco da Rocha. Deu na televisão. A gente já tinha vindo de uma rebelião e aí eu cheguei em casa, quando eu liguei a televisão, “Rebelião em Franco da Rocha”, mal falou e o telefone tocou, era a Conceição, ela falou assim “Você vai pra Franco da Rocha?”, eu falei “Eu só vou tomar um banho que eu acabei de chegar”, ela falou “Então vai que eu vou estar te esperando lá no metrô do Brás. Daí as outras mães também o mesmo. Quando nós chegamos os meninos estavam tudo em cima do telhado e o choque pra entrar, aí os meninos gritaram “A tropa choque não, a gente quer a tropa mãe, a gente negocia só com a tropa mãe.” Aí o choque se afastou e abriram as portas e a gente entrou. Nisso que a gente entrou já tiraram tudo as facas, colocaram tudo nos cantos, negociaram. Aí a gente foi levando cada um pra sua ala, pedimos pra tirar a roupa, pra ficar já no meio da contagem, que fazem a contagem que é pra ver se fugiu alguém ou não; ficaram tudo de cuequinha sentado lá, e isso a gente conseguiu. Achei muito legal o respeito deles e a confiança. Era uma coisa que não dava pra quebrar, nem pode, foi muito bom mesmo.
P/1 – Miriam, agora eu queria que você contasse uma história de uma vivência sua aqui no CEDECA.
R – Uma vivência?
P/1 – Uma família, um jovem, uma história que tenha sido importante.
R – Olha, tem uma história muito marcante. É marcante até hoje, porque ainda não teve resposta. Tem uma mãe que ela é usuária de crack e tem um filho de 18 que também é usuária. Esse menino, que eu sou apaixonada por ele, quando eu comecei a atender ele tinha 12 anos, que eu comecei a atender a irmã, aí eu conheci ele, que também é usuário de crack, mas ele tem um carinho muito grande por mim. Ele, na hora do sufoco dele vai até na minha casa ele vai pedir ajuda. Hoje outros educadores que acompanha ele, mas ele não deixa de me ver. É um menino assim, que ele grita, ele mostra toda a violência, os direitos deles que foram violados desde a nascença dele. É um menino assim, que não tem moradia, não tem alimentação, não tem amor, não tem carinho, ele não tem nada, ele não tem nada e uma coisa assim, que tá sendo bom. Que esse menino ele foi fruto de um romance da mãe, uma coisa aventureira, e agora ele está indo à casa do pai; com a luta da gente, esse pai também era da região, tinha uma família na região, depois foi morar em Santo André, e a gente conseguiu localizar esse pai junto com o conselho tutelar. Então assim, depois de muita luta de quase três anos com esse menino ele já ta começando ao final de semana ir na casa desse pai. Daí essa semana ele veio aqui aí ele falou “Foi muito bom”, que ele teve muito carinho, ele teve uma cama quentinha, que ele vai estar indo todo final de semana agora porque eu o juiz colocou, determinou. Isso então foi uma coisa assim, que me marcou muito. Não está totalmente resolvida, mas ele falava assim pra mim “Se o meu pai me aceitar, eu não vou usar mais droga; se o meu pai me aceita eu não vou roubar mais, eu quero só o meu pai, eu tenho um pai.” Então, ele está começando a ir. Foi uma coisa assim que muita gente teria desistido e não teria paciência. Mas eu não consegui, eu achava que eu tinha que insistir, ele me mostrava, o olhar dele me mostrava alguma coisa, eu acreditava naquele olhar dele. Quando eu conversava com ele no atendimento, o olhar dele me dizia, e eu comecei a observar tanto ele que quando ele chegava irritado aqui no núcleo eu já sabia que era fome. Então eu dava lanche pra ele, arrumava a mesa pra ele e aí depois que ele comia bastante a gente ia conversar, aí ele estava mais tranqüilo. Eu já sabia. Muitos ainda não tinham percebido isso, aí eu comecei a jogar, eu falava pra outra menina que trabalhava aqui na cozinha, eu falava pra ela “Quando fulano chegar, se ele tiver muito agitado, chama ele e dá um lanche, porque a gente não sabe que horas que esse menino comeu, como é que ele está, como ele amanheceu, então você chama ele, faça isso por mim que eu não vou estar aqui.” Que eu ia pra oficina de culinária, bijuteria, sempre estava participando de alguma coisa. Foi um menino assim, que me marcou muito, muito mesmo. Muito especial.
P/2 – Como que é o nome dele?
R – Daniel.
P/1 – E como é que foi voltar a pensar a estudar?
R – Olha, quando eu vim pro CEDECA, eu comecei a perceber umas coisas: não adianta você ter a prática, ter a ação e não ter a teoria. se as duas não estiverem ligadas, não adianta. uma sozinha não anda, tem que estar junto. Aí eu voltei. Tentei Ensino Médio duas vezes, aí desistia porque era muita bagunça na escola, eu falei “Ai meu Deus, não vai mais.” Eu fiz pelo Instituto Universal mesmo, eliminando matérias, à distância mesmo. Eu peguei e falei assim “Agora eu tenho que fazer faculdade”, mas eu tinha que arrumar a minha casa também, porque você só andava atrás de filho, então você vai deixando algumas coisas suas de lado, você vai deixando de fazer algumas coisas sua, e a minha casa estava um caco. Eu falei com o meu marido “Agora a gente vai ter que reformar a casa pra ter uma vida mais tranqüila, mais saudável, não dá mais pra ficar mais desse jeito”, aí nós reformamos a casa, um ano, eu dentro da casa. Esse mês podia quebrar isso, então outro mês podia quebrar uma coisa, e assim a gente foi fazendo. Foi um ano certinho a reforma. Aí depois que eu reformei a casa, eu falei assim “Agora eu tenho que fazer uma faculdade, eu tenho que fazer.” Aí a minha colega fez Pedagogia na Uni ABC, aí eu comecei a analisar, “É uma faculdade próxima, o meu trabalho requer muito de mim, então se eu for pra uma faculdade mais longe eu não vou ter corpo pra isso, já com a idade que eu estou; o cansaço também, o desgaste da gente também e os trabalhos requerem muito de você...mesmo que você não queira dar você tem uma família, você vai dar tudo de você pra dar esperança pra aquela família.” Aí eu queria fazer História e eu prestei vestibular. Passei, aí não formaram turma. Fiz a matrícula, tudo, E me chamaram na faculdade que não tinha turma, não formou turma pra História. Eu falei “Então vou fazer Letras” aí vim no outro dia pro serviço e falei que eu iria pensar no que eu iria fazer, não dei resposta de imediato, igual uma adolescente. Nossa fiquei tão decepcionada que não formou turma em História, eu ficava assim “Gente, que curso que eu vou fazer? Eu me vi em História e agora o que é que eu vou fazer?” Uma adolescente, naquele momento. Eu falei “E agora eu deveria ter pensado em dois cursos, eu só me identifiquei com um”, aquele drama todo. Aí minha coordenadora falou “Miriam, faz Letras, você gosta de escrever, então faz Letras, quem sabe você não vai ser nossa relatora.” Eu falei “Ah, então tá”. Aí então quando eu cheguei lá, de Inglês e Português eu falei “Pelo amor de Deus, eu não quero falar inglês, isso vai dificultar a minha cabeça”. Aí voltei pra cá e falei “Ingrid não, não dá, Letras não dá”, daí eu vi Biologia, tinha muita fórmula, falei “Deus me livre”, muita fórmula, eu falei “E agora?” Ela falou “Faz Pedagogia”, aí liguei pra Conceição “Conceição, não formou turma de História, o que é que eu vou fazer”, aquele drama, aí ela falou “Pra que você vai fazer História? Você tem que fazer Pedagogia” Aí eu falei “Então está bom.” Fui lá fiz, matrícula em Pedagogia, tô fazendo o curso. Gosto da disciplina. Eu só não gosto quando eles preparam muito Pedagogia só pra professores e eu acho que ela está muito ampla, está em hospitais, está em empresa e ele só vê na forma de professores. Então quando eles falam “Vocês vão dar aula”, aquilo me quebra, me quebra na mesma hora, aí eu pego raiva do curso. Mas eu vou fazer História, ainda.
P/1 – Miriam tem mais alguma coisa que você queira nos contar, que a gente deixou, esqueceu de perguntar, mais algumas coisas marcantes? A gente sabe que claro que tem muita história aí que você passou.
R – Olha, eu agradeço por ter conhecido as pessoas certas na minha vida e essas pessoas terem me ajudado na maneira de pensar, de crescer e de acreditar que o ser humano, ele muda.
P/2 – E o que significa mudança, então pra você?
R – A mudança de ele se olhar e ele ver dentro dele que ele é capaz, que quando ele quer, ele consegue. Eu consigo ver isso. Então, quando eu atendo um menino, eu volto atrás, muito atrás e eu passo pros outros educadores aqui. Eu falo “Gente, eles são que nem água, não dá pra segurar; é igual o vento, a gente não consegue pegar”. Então sempre fazia um atendimento como se fosse o primeiro, cada atendimento como se fosse o primeiro, porque a gente não sabe a semana que vem, se eles vão estar perto da gente. E o amor que vocês puderem transmitir pra eles, transmitam. Tem que dar muito amor pra essa população, que eles estão precisando, e o atendimento de coração a coração, não de competição, mas de coração a coração. Eu acho que se você toca no coração você consegue alguma coisa.
P/1 – E tem mais alguma coisa?
R – Tem, só mais uma tá?
P/1 – Claro, fica à vontade.
R – Eu sofri um acidente, porque eu sou muito elétrica, sabe, elétrica até para atravessar a rua. Daí eu aprendi agora, quando foi dia três de novembro, eu indo pra faculdade, a moto veio e me pegou, quebrou as duas pernas. Eu fiquei imobilizada, quase 80 dias na cama, engessada, dependendo de tudo, de todo mundo. Aconteceu uma coisa, fantástica, os adolescentes que eu atendo foram todos na minha casa, um foi falando pro outro, as famílias foram todas e olha que da minha casa na região, a pé, 45 minutos...foram todos, era telefone me ligando, eles atrás de mim, e uma birra da nova educadora, e eu colocando que eles têm que aceitar o novo, que o novo é pra vida deles, que eles tem é que aceitar os educadores que estavam ali mesmo. Foi uma luta deles pra conseguir aquele projeto. Mas foi muito gostoso, foi uma coisa assim que me marcou muito. Que aí foi o sinal do que eu fiz com eles, a minha preocupação assim com eles, de estar perto deles, eles tiveram a mesma comigo. As meninas iam à minha casa, faziam faxina, faziam comida, cuidavam de mim. As meninas que eu atendo e ela a todo o momento fica próxima de mim, foi uma coisa muito marcante mesmo. Aí mostra o amor como ele transmite, como ele vai pro outro, foi muito bom.
P/1 – Pode falar também mais histórias, fica à vontade.
R – Não, se eu for contar, não acaba hoje, muita coisa boa. O CEDECA me ensinou assim uma coisa boa. Eu tinha uma restrição com meninas, sabe aquela coisa assim, eu não sei explicar, a menina no ato infracional é uma coisa muito difícil de lhe dar, então eu tinha uma coisa assim com menina, eu não queria atender menina, eu não tinha paciência com essas meninas. Daí veio uma, veio outra e hoje eu adoro elas. Foi uma coisa que me mudou também, a maneira de olhar as meninas.
P/2 – Também, mãe de três meninos.
R – É, mas assim, as meninas são totalmente diferentes, elas são mais violentas do que os meninos, no ato em si elas são mais violentas, mas elas fazem por amor, sempre apaixonadas por um menino, por alguém. Elas cometem aquilo sempre por amor. Aí eu fui entendendo melhor, elas foram desabafando e eu fui entendendo, fui entendendo melhor as meninas.
P/1 – Conta pra gente então um pouco da sua amizade com a Teresinha, com as outras mães, como é que está?
R – Olha, a amizade da gente não morre, acho que vai existência após existência, porque a gente sempre está em contato. A Teresinha, quando quer chorar, ela liga pra mim, a gente conversa, conversa. Quando eu quero chorar eu ligo pra Conceição e assim fica o nosso vínculo, o nosso vínculo é uma com a outra, acho que é pra sempre, não tem como quebrar esse vínculo mais. É uma coisa assim que ficou muito ligada, então foi na hora da dor que uma transmitiu carinho pra outra, uma ficou perto da outra. Todo momento, a Conceição 24 horas ligava. Até pouco tempo, quando meu filho foi apreendido em 2005, liguei pra ela “Conceição, pegaram meu filho, está lá no 70 DP, o que eu faço?”, ela falou “O que você faz? Você vai pra lá que eu já estou chegando”, ela ficou comigo até de madrugada, ali, me dando apoio, conversando comigo. Então é uma coisa, assim, que não tem, não corta mais, não quebra mais esse vínculo. Uma pode dar bronca na outra, ficar brava com a outra, mas é uma ajudando a outra, é uma coisa inexplicável, acho que tinha que se conhecer mesmo e estar próxima, uma da outra.
P/2 – E o que você achou de contar a sua história?
R – Olha, achei muito bom porque as pessoas quererem te escutar, mostra que acreditam em você. Isso pra mim é muito bom porque não fica aquela coisa marcante, de “Ela foi mãe de infrator”, então alguém querer escutar a sua história é muito bom e me dá mais força pra eu acreditar mais no meu trabalho e mais em mim ainda.
P/1 – A gente quer agradecer, desejar muita força nessa caminhada aí, que ainda tem muita estrada pra correr ainda.
R – E eu que agradeço vocês pela oportunidade.
P/1 – Obrigada.
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