Conte sua história, Museu da Pessoa
Depoimento de Mauricir Lairton Moreira
Entrevistado por Karol Coelho e Luísa Lara
São Paulo, 14 de julho de 2018
Entrevista número PCSH_A_HV06
Realização: Museu da Pessoa
Revisado e editado por Karol Coelho e Luísa Lara
P/2 - Só para começar, fala seu nome, a data e o local onde você nasceu.
R - Eu sou Mauricir Lairton Moreira, eu nasci em 2/10/71 em Jales, no interior de São Paulo.
P/2 - E que lembranças você tem de Jales?
R - Eu tenho muito da minha família, foi onde eu passei a fazer trabalho voluntário com meu pai. Ele fazia sopa, eu não entendia muito bem todos os trâmites que ele fazia, mas foi desde pequenininho. Eu comecei a aprender que a gente necessariamente tem que ajudar o próximo. Essa é a lembrança mais marcante que eu tenho.
P/2 - Como era esse trabalho que você fazia com seu pai?
R - Eu levantava todo domingo de manhã, era muito legal. Ele ia num lar transitório, cortava os alimentos, fazia sopa. E a gente saía para entregar na rua. O que me marcou bastante era essa vontade que ele tinha de ficar ajudando as pessoas. Ele sempre falava, “a gente tem que ajudar as pessoas, não pode deixar para lá, fingir que elas não existem”. Isso eu levei para a vida inteira. Até então eu não sabia, não tinha essa noção do que é o trabalho voluntário. Você não aprende, mas você nunca esquece. Com o passar do tempo, você vai aprendendo.
P/2 - E como era a relação sua com seus pais?
R - Muito legal. Eu ficava muito tempo com o meu pai, porque ele trabalhava com basquete, eu aprendi a jogar basquete com ele, então a gente sempre viajava pelo Brasil inteiro. A gente estava sempre junto, apesar de ele ser uma pessoa muito séria, metódica, eu aprendi muita coisa com ele. E com minha mãe o rigor da gente estudar muito. Tanto é que ela pediu, você vai parar de jogar basquete agora, você vai estudar. Mas, ao mesmo tempo, eu sempre quis fazer engenharia química. Eu botei na cabeça que queria ser engenheiro, falava que ia limpar piscina. Desde a época que eu fazia faculdade, saiu uma lei que exige que tenha um responsável técnico para clubes, para tomar conta de piscinas. Eu estudei justamente para isso. Mas a gente não determina nosso futuro. Eu fiz na UNIMEP, fiquei cinco anos lá, depois fui para a Unicamp. Chegou uma empresa perguntando se eu queria trabalhar, eu tinha bolsa iniciação científica, a diferença de valor era gritante e eu fui. E é justamente na área que eu estou trabalhando hoje, que é tratamento de superfície. Nesse período, eu sempre fazia trabalho voluntário na faculdade, estava sempre fazendo alguma coisa. Mas eu ainda não entendia. Eu sempre reclamava, que eu fazia, mas ninguém queria fazer. Passava o tempo, eu brigava comigo mesmo, “não vou fazer mais nada”. Eu conversava muito com meu pai e ele falava, “mas não importa as pessoas, importa você, você tem que fazer o seu e pronto”. E assim foi. Na verdade, eu sempre fiz trabalho voluntário, desde que eu me conheço como gente.
P/3 - Você aprendeu a jogar com seu pai e você foi jogar num time?
R - A minha trajetória no basquete foi muito interessante. Meu pai sempre falava para mim assim, ele deixava bem claro, o negro na sociedade tem uma dificuldade muito grande para se inserir no mercado de trabalho, então você tem que estudar absurdamente muito para conquistar alguma coisa. Ele falava, “estou te falando isso para o seu bem, porque você vai sofrer algumas coisas e não é para ficar triste, é para levantar a cabeça e ir em frente”. Jogando basquete, ele me ensinou isso, trabalho em equipe e nunca desistir. Tanto é que eu cheguei na seleção paulista, fiquei um tempinho jogando, foi muito bom. Foi uma experiência fantástica, mas minha mãe barrou, falou, “melhor você estudar, porque vai chegar uma hora que você não tem muito o que desenvolver, seu tamanho, sua altura”, me explicou direitinho como era. Meu pai foi para a Jales para jogar basquete, foi marcante para mim, porque você anda na cidade, as pessoas vem e associam, você é filho do Moreira, que jogou basquete, é muito legal isso. Esse legado, a gente tenta fazer com que aconteça para a futura geração. Eu tenho um filho e tento passar isso para ele, a gente tem que fazer o bem para as pessoas, não necessariamente você precisa ganhar horrores. Você precisa fazer o que você gosta e ajudar as pessoas.
P/3 - Mas você estava falando do basquete, você jogou muito?
R - Joguei bastante tempo, foi uma fase interessante da minha vida. Viajava bastante, cheguei a jogar com alguns jogadores da seleção brasileira. Eu era novo ainda, tinha Gerson, Amauri. Tive a honra de ficar dois minutos do lado do Oscar, marcando ele, impossível marcar ele. Mas essa experiência foi muito boa.
P/1 - Você lembra como foi seu primeiro jogo?
R - Meu primeiro jogo foi um desastre, meu pai falava assim, “você não leva jeito, mas vamos insistir”. E tinha o meu irmão, ele jogava super bem. Mas nessa insistência eu fui melhorando, até chegar na seleção paulista. Foi muito legal.
P/3 - Por que que foi desastre o jogo?
R - Eu jogava muito mal, não tinha noção de nada. Eu lembro que minha mãe foi também. Foi complicado, não tinha noção de nada. E basquete você tem que ter muito raciocínio, você tem que correr muito, cansa muito, tem que pensar muito. Foi um desastre, uma vergonha total.
P/3 - Em relação ao corpo, você tem como descrever a sensação de estar jogando basquete?
R - Prazer. É como se eu tivesse ajudando uma pessoa, é a mesma sensação. Às vezes eu jogo basquete, entrar na quadra, pegar a bola, olhar a cesta, olhar para seus companheiros de equipe. Aquele frio na barriga, sempre dá, mesmo jogar por jogar.
P/3 - Como o basquete é igual a ajudar a pessoa?
R - O basquete tem um raciocínio muito lógico, é pura matemática. E aí eu associo, se eu vou ajudar uma pessoa, por exemplo, vou montar lá 100 marmitex. É como se fosse uma jogada, tem o pivô, que vai passar a bola para o armador, que vai passar para o ala. Vira um ciclo, todo mundo trabalhando em equipe. Sempre associo o basquete a isso. Minha vida toda, estou sempre associando ao basquete. A gente sempre tem que associar a alguma coisa, que a gente consiga desenvolver bem e aplicar em algum lugar.
P/2 - Você lembra qual foi e como foi o jogo que você sentiu que você jogava bem, que você tinha melhorado? Como foi esse dia?
R - Lembro. Foi em Fernandópolis, 11 horas da manhã. No final do jogo as pessoas vieram pedir autógrafo para mim, olha que coisa mais fenomenal. Eu achei a coisa mais engraçada do mundo. Meu pai falava, “não fica mascarado não, fica calmo”. Era muito legal o jeito que meu pai tratava. Esse jogo foi marcante, porque aí eu cheguei, contei para minha mãe, ela ficou contente, chorou.
P/1 - Como foi esse momento, ela estava em casa, não tinha visto o jogo? Conta como foi esse dia.
R - A gente sempre levantava de manhã para viajar, tinha um ônibus que a prefeitura cedia. A gente se preparava, era muito interessante. Você não toma banho, para não perder a energia do seu corpo. Você fica se concentrando, se reúne em algum lugar, as pessoas ficam sentadas, conversando, todos reunidos. Até o momento de você embarcar no ônibus e ir para a cidade onde você vai jogar. Aí você chega, faz toda uma preparação, um aquecimento, vai para o vestiário, passa as jogadas, geralmente o capitão faz isso – na hora que eu chamar três você faz isso. Normalmente, o treinador não fala tanto, é mais o capitão do time, ele posiciona a gente. Eu tinha uma experiência muito maior na marcação, então eu não começava jogando. Nesse dia, eu comecei jogando. Eu lembro que meu pai falava assim, “num jogo de basquete você tem que sempre marcar a fonte”. Era o armador. Justamente eu fiquei marcando ele homem a homem. Foi marcante, a gente sempre perdia deles, esse dia nós ganhamos. Eu ganhei muito mais do que perdi, eu não sei até que ponto isso é bom, porque se você só ganha, você fica se achando o máximo, aí quando você perde, você fica muito abalado. Mas a maior parte do tempo eu ganhei. Aquele dia eu marquei muito bem, corri. Eu não conseguia correr muito tempo, aquele dia eu corri acima das minhas expectativas. Meu pai ficava direcionando muito, “marca, marca”, eu só escutava a voz dele. Às vezes ele batia palma, eu olhava para ele, ele fazia sinal para marcar mais, para fechar. O nosso time não era alto, só que era muito veloz, a gente tinha essa diferença. Então o contra-ataque era fenomenal, coisa mais linda do mundo. Eu lembro que chorei depois também, fiquei imaginando que se a gente se esforçar, lutar por aquilo que a gente quer, a gente consegue. Pode demorar um pouco, mas chega uma hora que as coisas acontecem.
P/1 - Quando sua mãe pediu para você sair, você tinha quantos anos?
R - Eu tinha acho que 15 anos.
P/1 - E o que você fazia além do basquete?
R - Eu estudava no COC, nosso time era de lá. Necessariamente para a gente jogar tinha que ter nota boa. Eu sempre tirei nota boa, nunca tive nota ruim. Engraçado é que meu pai sempre estava na escola, vendo nossas notas. O meu pai foi um super companheiro, apesar de ele ser muito fechado. Meu pai e minha mãe foram incríveis na minha vida.
P/2 - Os dois sempre iam com você nos jogos?
R - Minha mãe ficava em casa. Meu pai era o treinador, sempre estava junto nessa jornada, viajando, levando a gente. Depois nós montamos um time profissional, eu já estudava e não fazia mais parte. Aí ele virou diretor do time, que era muito bom, mas nunca foi campeão. Tinha praticamente todos os jogadores da seleção, mas nunca foi campeão. E eu treinava de vez em quando com eles. Mas eu já estava parando de jogar, estava estudando, então achei melhor seguir esse caminho.
P/1 - Ele era treinador do mesmo time que você jogava?
R - Sim. Ele que me ensinou a jogar basquete.
P/1 - Como eram os momentos que você passava com a sua mãe, como era essa relação?
R - Com minha mãe, eu jogava muito futebol. Estudava com ela, ela contava histórias. Ela sabia latim, ficava falando algumas palavras. Ela foi minha professora na escola. Foi muito incrível minha infância, com meus irmãos.
P/1 - Quantos irmãos você tem?
R - Tem o Otto, que tem praticamente minha idade, tem o Lauro que é mais novo. Somos em três. Mas eu considero minha família em cinco, tem dois primos que cresci com eles, passava as férias. Eles são padrinhos do meu irmão caçula. Um dos meus primos faleceu, deu um problema, foi internado, nunca descobriu o que era. Logo meu pai faleceu. Meu pai fumava muito, aí ele parou um tempo. Ele foi no médico, por dor de estômago, estava emagrecendo muito. Aí ele descobriu e voltou a fumar. Falou, “não vou no médico, não vou tratar”. Lá em Jales tem um hospital do câncer, mas ele não queria tratar, já tinha vaga pronta para ele. Estava no comecinho, mas ele, “assim que vai funcionar, vou ficar em casa”. E assim que aconteceu, faleceu em casa. Eu fui num domingo visitar ele, eu falei, “quinta-feira eu volto para a gente conversar mais um pouco”, era feriado. Apesar de ser muito longe, eu ia voltar. Era quinta-feira de madrugada minha cunhada liga, “seu pai faleceu”. Falei, “puxa”. Mas aí voltei a dormir. Comecei a pensar, “que que vou fazer agora?”. Eu perdi meu primo, que tinha uma referência muito grande, era como um irmão para mim. Eu morei com eles, fazia cursinho, eles me ensinaram bastante coisa. Aí ele foi embora, depois meu pai, aí eu fiquei meio tristonho, entrei numa depressão gigantesca. Eu já estava trabalhando, não estava fazendo muito trabalho voluntário. Porque quando você entra numa empresa você trabalha muito, esquece um pouco das coisas. Eu estava muito mal, aí eu saí do Noites Solidárias, que eu estava lá. No meio da semana, a Marina me mandou e-mail, chamando para ser voluntário. Aí eu fui e foi aí que tudo aconteceu. Foi muito radical na minha vida, conhecer o Atados, foi muito legal. Foi aí que eu aprendi mesmo como ser voluntário, como você ajudar pessoas de verdade e não ficar frustrado caso alguma coisa não dê certo. Mas a minha infância foi maravilhosa.
P/2 - Você falou que sua mãe foi sua professora, que você estudava muito. Como que era sua vida na escola?
R - Era muito legal, porque eu tinha muitos amigos, sempre tive, apesar da minha timidez toda. Nunca tive dificuldade de me relacionar com as pessoas. Minha mãe dava aula, era muito brava, antigamente a régua comia solta, não tinha conversa. Mas eu me dava bem. Eu tinha muita dificuldade em matemática. Quando eu cheguei na faculdade, não tinha visto um computador na vida. Fui ter aula de programação, fiz a primeira prova, o professor falou assim, “você vai reprovar”. Falou na frente de todo mundo. Mas eu não sei o que aconteceu, voltei no basquete, persistência. Vou insistir, estudar, até que eu consegui passar. Aconteceu um fato interessante, que ela falou assim, “poxa, você devia fazer processamento de dados, não engenharia, porque você ficou muito bom”. Aí eu desenvolvi um software que eu vendi bastante, de balanceamento dinâmico. Eu sempre destinava alguma coisa, por exemplo, se eu vendesse ele por 200 reais, alguma parte eu dava para algum lugar, alguma igreja, sempre fui de fazer isso.
P/1 - Sua mãe dava aula de que?
R - Era primário.
P/1 - E teve alguma situação constrangedora, muito legal ou muito ruim?
R - Eu não saía da diretoria, bagunçava demais. Apesar de tirar notas boas, eu sempre estava na diretoria, brigava muito, soltava bombinha dentro do banheiro, aquela coisa. Ela ficava muito brava, “vou falar pro seu pai”. Meu pai era muito bravo, “poxa, não faz isso, não pode fazer coisa errada”.
P/1 - Mas teve alguma situação com a sua mãe como professora? Que ela brigou com você, alguma coisa com ela sendo sua professora, alguma situação marcante.
R - Uma vez eu estava na diretoria em pé, escrevendo “não vou tirar mais a calça do meu colega de classe”, aí ela ficou em pé olhando eu escrever a folha inteira. Na hora que eu terminei, ela veio e me deu um pedala Robinho. Nossa, eu não podia nem chorar. Ela falava, “se você chorar, você apanha de novo”. E ela falou, “amanhã você vai voltar na diretoria”. Era muito legal a escola, ela ensinava realmente a gente as coisas da vida. Nós tínhamos matérias especiais. Bombava, não tinha essa de passa... não tinha, tinha que estudar muito e era muito difícil. Um fato legal também. Minha mãe dava aula num sítio lá de charrete. Às vezes eu ia com ela, o charreteiro passava lá, eu montava com ela e ia.
P/1 - Como que era o caminho?
R - De terra. Era um sítio. Ela ia, chegava lá tinha um campo de futebol, ela me colocava para jogar, eu corria que nem um bobo. Eles davam risada. Nunca joguei futebol, não tive vontade, em casa era só basquete, só tinha bola de basquete. Era livro de basquete, filme de basquete, meu pai contava história de basquete. Não sei se vocês conhecem Vlamir Marques, meu pai jogou com ele, uma pessoa extraordinária, todo mundo compara ele ao Michael Jordan. Ninguém conhece a história do basquete, que o primeiro campeão mundial foi o Vila Nova de Goiás. A história do basquete é muito rica. E eu convivi com essas pessoas, com os amigos do meu pai que contavam essas histórias. Eu ia muito na maçonaria também, meu pai era maçom. Eles entravam numa sala e a gente ficava lá, eu ficava com minha mãe brincando. Quando eles terminavam a reunião, a gente entrava na sala. Lá cada um tinha um nome diferente e eu sempre ficava perguntando para o meu pai que nome ele tinha, ele falava, “para de ficar perguntando, não tem nada a ver”. E uma vez eu vi ele com a roupa de um cavaleiro, foi o único momento que eu vi, foi muito rápido, minha mãe já fechou a porta do quarto. Eu lembro que era preta, tinha uma cruz na frente. E eles ajudavam muita gente, eu lembro disso. E ele nunca me deixou ser maçom, tem que ser convidado e ele nunca me convidou. Eu tenho essa frustração, eu queria ser. Paralelamente a isso, meu pai era católico, minha mãe também. Como eu entrei na UNIMEP, é metodista, a primeira vez me deram uma Bíblia na minha mão. Eu falei, “Bíblia, o que eu vou fazer com isso daqui”. Comecei a ler. E Santa Bárbara D’Oeste foi aonde os ingleses chegaram e a igreja Batista foi estabelecida ali. Eu comecei a ir na igreja Batista, eu sou evangélico. Também não sou radical, eu respeito todas as religiões, acho que não tem uma forma correta de você acreditar numa coisa maior, cada um acredita do jeito que quer e pronto.
P/3 - Como que você se tornou evangélico?
R - Me chamaram, “Mauricir, você não quer dar aula de voluntário na igreja para a molecadinha?”. Eu falava, “não, não vou entrar na igreja, não, vocês tão loucos”. Eu xingava ainda. E as pessoas falavam, “você não precisa ficar assistindo o culto, só entra, a gente deixa a sala preparada, você dá aula e vai embora”. Aí tudo bem, eu entrava, dava aula. Só que eu acabava escutando, aquela coisa ia entrando na minha mente. Eu chegava em casa, abria a Bíblia, difícil, uma unidade extremamente difícil para entender, eu falava, “não vou entender isso aqui, muito chato, não vou ficar lendo”. Mas foi entrando na minha cabeça. Aí eu conheci um casal na igreja e eles me chamaram para ser padrinho. Eu falei, “meu Deus, mais essa. Não vou”. “Pô, como não, vai ser legal”. Falei, “tá bom”. Eu fui, achei legal. Essa mania de a gente não conhecer as coisas e ter uma visão muito deteriorada, isso é muito grave. Por isso que às vezes as pessoas saem guerreando umas com as outras. Aí eu comecei a trabalhar em Campinas, viajava todo dia de Santa Bárbara para Campinas, encontrei uma igreja Batista lá.
P/3 - O que a igreja te trouxe, te acrescentou ou te fez mudar?
R - A ajudar o próximo muito mais do que eu ajudava. Eu ajudava muito pouco. E a Bíblia fala, Jesus veio para ajudar as pessoas, os necessitados. Passei a olhar com outros olhos. Não isso de quero ganhar muito dinheiro, não, quero ajudar as pessoas. Foi assim que eu consegui modular a igreja na minha vida.
P/1 - Mas você sentiu algo ou só foi uma consciência mesmo?
R - Na igreja tem todo o processo, você aceitar Jesus, aceitar os defeitos das outras pessoas, aceitar como ela é, respeitar a opinião dela. Eu passei a fazer isso. Não vou dizer que eu sou a pessoa mais perfeita do mundo, mas eu era muito radical com relação a algumas coisas. Por exemplo, eu não admitia conversar com um gay, para mim era homem e mulher e pronto. E, na verdade, mentira isso, eu tenho amigos gays que são fantásticos. É uma ideia absurda que a gente coloca na nossa cabeça, um radicalismo que você fala, “aonde vai me levar isso? Lugar nenhum”. A pessoa é do jeito dela, é bondosa do mesmo jeito, carinhosa do mesmo jeito. Tem um amigo meu, chamado Lucas, ele falava assim, “o dia que eu falar que eu sou, ele vai ficar possesso, brigar comigo”. E aí ele falou, “preciso contar uma coisa para você. Sou gay”. Eu falei, “tá e daí?”. Ele, “você não vai me bater?”. “Como assim, bater?”. “Você não vai brigar comigo, vai continuar conversando comigo?”. “Claro, gosto de você”. Ele falou, “nossa, pensei que, pelo seu jeito de falar... você é muito bonzinho, só que seu temperamento é muito genioso. Eu achei que você fosse parar de conversar comigo, brigar comigo”. Eu falei, “não tem nada a ver”. Hoje é um dos melhores amigos que eu tenho.
P/3 - Tiveram outras coisas que mudaram no seu comportamento, na sua postura?
R - Respeitar o próximo, melhorei bastante. Eu me formei, comecei a trabalhar, teve uma fase que a gente se acha o máximo. Se formar em engenharia química, imagina. Minha turma tinha dois negros, formei com notas altíssimas. Fui chamado para ir para a Unicamp, você imagina, ego lá no alto. Fica se achando o todo poderoso. E, na verdade, não é isso. Tem que ser mais pé no chão, meu pai falava sempre isso, tem que ser mais cauteloso com as coisas, para que você não prejudique as pessoas. Foi muito legal na Unicamp, porque me chamaram para ser orientado pelo Bombard, que hoje, de escoamento bifásico, é a pessoa mais fantástica do mundo, todas as pesquisas são direcionadas para ele. Eu fiquei um tempo com ele. É extremamente difícil, tem muita matemática. Eu saí do departamento de engenharia mecânica e ficava no departamento de matemática, era a coisa mais absurda do mundo, ficava olhando aquelas equações, “meu Deus, onde vou chegar com isso, onde vou aplicar isso?”. Mesmo sabendo, faltava alguma coisa. Aí veio uma empresa e me chamou para trabalhar na área de tratamento de superfície, foi assim que eu descobri uma área interessante para eu trabalhar. Mas nunca esquecendo a área de piscina. Meu pai sempre falava, “você é lento demais para fazer as coisas”. Mas eu ainda quero ter uma franquia de limpeza de piscina. A grande diferença vai ser eu dar a ART, Anotação de Responsabilidade Técnica, porque hoje as pessoas não dão. Ainda vou chegar nesse ponto.
P/1 - Você comentou que desde cedo seu pai deixou claro sobre a questão do racismo, de alguma forma ele contou para você que você tinha que se esforçar mais só por você ser negro. Você lembra a primeira vez que você sentiu na pele o que seu pai estava te explicando?
R - Visitar empresas. Teve uma vez que eu fui visitar uma empresa, eu nunca andei bem vestido, eu saía lá da produção, que estava tudo sujo. E a pessoa ao invés de vir conversar comigo, foi conversar com outra pessoa, “você que é o Mauricir?”. Eu falei, “não, sou eu”. Nossa, o cara não sabia onde enfiar a cara. Em várias entrevistas que eu fui fazer. No telefone era uma coisa impressionante, na hora da pessoa ficar cara a cara comigo, você já via, “sinto muito, não vou pegar ele. Porque ele é negro”. Dá para sentir. Mas eu também nunca desisti. Pouco tempo atrás eu fui fazer uma entrevista, o cara perguntou exatamente isso, “você já passou por situação de racismo?”. Eu falei, “já, várias vezes”. Ele falou, “porque eu tive um caso aqui, que o cara falou assim, eu não admito alguém negro mandar em mim. Aí eu tive que mandar essa pessoa embora. Como você reagiria nessa situação?”. “Eu mandaria ele embora, simples. Não tem muita conversa”. “Tá bom. Mas você não agrediria ele, não?”. Falei, “não, não tem por que. Já estou velho demais para fazer isso”.
P/1 - Eu queria que você tentasse resgatar algum momento em que você associou isso de fato ao que seu pai dizia. Você só foi ver isso quando você foi procurar emprego ou quando você era criança, adolescente você chegou a sentir?
R - Na escola. Chamaram de neguinho, macaquinho. Teve um fato que a mãe do aluno falou assim, era festa junina, eu estava de bigode, “tinha que ser neguinho mesmo para fazer isso”. Só que eu não entendia, eu ficava triste, mas não entendia, mesmo meu pai falando. Eu associo esse fato com meu pai, que foi pra Jales. Jales foi colonizada por holandeses, então imagina, todo mundo branco. Ele chegou, negro, foi jogar basquete, teve maior repercussão na cidade, ele sofreu pressão. Tinha uma mulher de um amigo dele, que era italiana, ela xingava meu pai, mudava de rua. Ela ficou doente e justamente ela precisava do sangue que meu pai tinha, que era O negativo. Quem que foi doar sangue? Meu pai. E aí a mulher passou a amar meu pai. Meu pai contava essa história, “tá vendo? A vida muda, as pessoas mudam. Por isso que a gente não pode levar muito a sério, ficar guardando. A gente tem que se libertar dessas coisas ruins e seguir em frente sempre”.
P/1 - Nenhuma situação te perturbou nesse sentido? Teve alguma vez que aconteceu um dia que você sentiu raiva, ficou nervoso ou muito triste?
R - Um dia, eu estava na C&A, tinha saído da Unicamp, estava sujo, porque ficava no laboratório. Eu fui fazer o cartão, eu falei assim para a mulher, “eu sou engenheiro químico”. Ela começou a dar risada, rachou o bico. Eu fiquei olhando para a cara dela, “quero conversar com o gerente”. Só sei que ele veio, falou algumas coisas, “você tá despedida”. Eu fiquei muito triste porque foi ridícula aquela situação. Uma vez na loja Marisa também, segurança andando atrás de mim. Eu falei, “vocês tão andando atrás de mim por que? Acham que vou pegar alguma coisa nessa loja?”. Eu cheguei e falei, “não vou roubar nada, não, pode ficar tranquilo”. Essas situações não foram legais, não, eu fiquei muito triste. Uma vez no metrô também, estava saindo um senhor negro, um cara fala, “ah, seu macaco”. Aí eu voltei e falei assim, “fala de novo para você ver se eu não jogo você daqui para fora do trem. Que negócio é esse?”. “Não, falei brincando”. Falei, “você não falou brincando. Ele é um senhor, para que fazer isso?”. Do nada, ele estava saindo só. Ele olhou e começou a dar risada com o amigo dele. O mundo é perturbado, né?
P/1 - Você já conversou sobre isso com seu filho?
R - Já, de boa. A gente tem uma mente muito aberta com relação a isso, ele sabe muito bem. Desde os cinco anos ele começou a lutar jiu-jitsu, teve um fato na escola que ele perdeu a cabeça e grudou num molequinho lá e não soltava mais. Aí liga para cá, para lá, aquela coisa. Eu falei, “Ian, por que você fez isso?”. Ele, “não aguentava mais, estava me chamando de macaco toda hora, neguinho, não aguentei”. Eu falei, “mas não pode fazer isso, é normal. Eu não falei pra você que acontece?”. “Mas eu não gostei, porque ele ficava fazendo isso toda vez e eu pedi para ele parar. Pedi várias vezes”. “No seu caso, você concorda comigo que você podia machucar ele?”. “Pelo menos ele parou de fazer isso”. No fundo, eu falei, puxa, ele tomou uma atitude. Não foi a correta, que eu sempre pedi para ele não fazer isso, mas ele mesmo se defendeu, falou “não vou fazer mais, mas não aguentei, ele ficou o dia inteiro andando atrás de mim e falando, me chamando de macaquinho. Aí eu grudei nele lá, botei ele pra dormir um pouquinho”. Eu falei, “não, mas isso é um absurdo, não pode fazer isso”. Aí a diretora da escola achou um absurdo, seu filho é muito violento. Mas acabou que não aconteceu nada, a gente já está avisando a escola, a escola não tomou nenhuma atitude. Não é a primeira vez que acontece isso, eu tenho uma amiga que o filho é negro, também acontece. Ela conta, eu falo, “puxa, que absurdo”. Mas hoje é muito nítido, às vezes você está no metrô, você senta, tem gente que não senta do seu lado. Isso acontece. Eu estou numa empresa agora que quando eu cheguei lá as pessoas olham e falam, “nossa, mas um negro, vai tomar conta daqui, mandar em mim”. É muito claro. Aí entra o jogo de basquete, sua imposição, sua tática para você driblar essas coisas e mostrar que você é capaz de fazer a coisa acontecer, independente da cor.
P/3 - É cotidiano então?
R - Sim. A polícia já me parou, aquela gritaria toda, mão na cabeça. Aí você pega o seu CRQ, mostra, aí muda, parece que você é outra pessoa. Você fala, pô, mas que que tem a ver? Eu fico pensando nas outras pessoas, o que que eles fazem. É maldade, não tem muito por que fazer isso, porque você é negro, você é bandido. Sei lá, não tem muito... mas faz parte da nossa vida, do nosso mundo, do nosso cotidiano isso. Se a gente ficar relevando muito, a gente não segue para frente, tem que pensar mais em ajudar outras pessoas, que isso alegra muito mais.
P/3 - Você mudou em algumas coisas, o que você sente, o que você faz, em relação a isso, nesse passar do tempo?
R - Eu não ligo mais, mudou. Não tem mais essa de ficar triste, não. Também não ligo, tem amigos meus que me chamam de macaco, neguinho. E você sabe a maneira, se a pessoa está falando brincando e se ela está falando na maldade. É muito cruel isso. Mas eu fico triste pelas outras pessoas que não conseguem se defender. Eu consigo me defender, vou lá na polícia, faço um boletim de ocorrência, só que tem gente que não tem essa capacidade, esse conhecimento. Isso é muito cruel, eu fico triste. Eu estou trabalhando agora com dois haitianos, é muito legal, eu coloquei eles em contato com Gene. Extremamente inteligentes. E aí eles falaram, “aqui eles não gostam de negros, né?”. Eu falei, “olha, a gente sempre tem que fazer por merecer as coisas, independente se você é branco, negro, amarelo. O Brasil é assim, a gente tenta fazer com que as coisas melhorem, mas é difícil. Às vezes você fica triste”. Poxa, eles tão sofrendo, que que eu posso fazer para defender eles? É instruir. A mesma situação aconteceu quando eu fui dar aula, imagina, você dá aula para a jovem aprendiz, entra um negro, engenheiro, fez isso, aquilo, vai dar aula para vocês. As pessoas ficam olhando... elas passam a acostumar com sua presença, mas no primeiro instante é sempre aquele espanto – será que ele tem capacidade, será que ele consegue.
P/2 - Voltando um pouquinho para a história da sua vida. Quando você acha que foi seu primeiro amor?
R - Eu acho que não tive. Eu dei muito trabalho, era muito mulherengo. Meu pai falava, “cuidado, para, você tá com uma menina hoje, no outro dia você tá com outra e assim vai, para com isso”. Foi muito tempo assim na minha vida. Eu não sou um bom exemplo.
P/1 - Como você conheceu sua esposa e parou nela?
R - Em Jales, ela veio conversar comigo. Ela é de Jales também. É uma história muito linda, foi perseverança. Teve um dia que eu larguei tudo em Campinas e falei, “vou para lá, ficar com ela”. Ela veio conversar comigo, “quero conhecer você, você que é irmão do Otto, né?”. Eu falei, “você não tem o que fazer não? Tá tarde, você é nova”. E ela começou a conversar comigo. Era férias, aí eu fui embora para Santa Bárbara. A gente se encontrava nas férias, feriado, mas sempre ficava aquele vai e vem. Nunca tinha assumido de verdade, eu falava que não queria casar, queria curtir. Falava, “não tenho tempo para isso, não”. Mas aí meu pai faleceu e eu vim para cá. Estava entrando em depressão, não queria fazer nada. Todo mundo fala que o Sistema Único de Saúde não é bom, mas para mim foi excelente. Eu fui e falei, “preciso de um psicólogo”, foi na hora. Eles me levaram lá para cima, conversei com psicóloga, fiquei lá uma hora, me passaram para um psiquiatra, agendaram, foram lá em casa. E eu passei a fazer sessões ali. Porque eu não trabalhava, larguei tudo, trabalhava há um tempão no mesmo lugar, falei “não quero mais isso aqui para minha vida”. Aí entrei nessa depressão bizarra, achei que fosse morrer, fiquei muito triste. E como Deus é bom, aí ele me apresentou o Atados.
P/1 - Mas e a sua esposa? Quanto tempo você ficou enrolando ela? Como foi o primeiro beijo?
R - Foi no primeiro dia, mesmo. Falei, já que ela quer, vou beijar ela. Só que ela era muito nova, menina fraldinha, não vou ficar com ela não. Eu era muito malandro, eu saía com ela mais cedo, aí levava ela embora, voltava e ficava lá com outra meninas, ficava curtindo. Meu pai falava, “para de fazer isso, deixa de ser sem vergonha, não ensinei isso para você”. Minha mãe, então, falava um monte. “Você é um exemplo pros seus irmãos, olha as coisas que você faz”. Teve um dia que eu peguei o carro do meu pai, saí, levei ele numa festa, eu estava com uma menina. Depois eu fui buscar ele com outra menina. Ele falou, “não vou entrar no carro, não, pode deixar que eu vou pedir para alguém me levar embora”.
P/3 - Mas você resolveu assumir sua esposa por algum motivo especial?
R - Acho que tinha chegado a hora já.
P/3 - Quantos anos você tinha?
R - Eu não lembro, não. Só que tem um detalhe. Eu tive um filho nesse tempo todo, o Ian, meu príncipe. Foi isso.
P/1 - E não foi com ela?
R - Não, não com ela. Eu demorei muito para contar para ela.
P/1 - Quantos anos vocês têm de diferença?
R - Quatro anos.
P/1 - Aí no primeiro dia ela te quis, você beijou ela, mas não queria. Você quis só tirar lasquinha.
R - Exatamente, porque eu tinha outras, era mais uma para minha coleção. Minha mãe falava, “você fica só mexendo com menina de família, isso vai dar rolo ainda”. Eu não estava nem aí. Eu ia para Rio Preto estudar com meu primo, eu ia em altas festas com ele. Ele era médico, me levava em cada festa que eu ficava... aí ele virou tenente do exército, ia numas casas, fechava, era pura orgia na minha vida. Eu fazia cursinho, era só na malandragem.
P/1 - E nesse meio tempo você encontrava com ela eventualmente?
R - Sim. Todo santinho. Eu falava, “não dá tempo, eu estudo muito”. Teve uma vez que ela apareceu na Unicamp, eu falei, nossa o que que ela está fazendo aqui. Tinham dois amigos meus que eram cubanos, ele ficou conversando com uma, “ele tá na sala dele”. Aí ela acabou me encontrando, falou, “vou ficar na sua casa”. Eu falei, “não, não, tem muita coisa para fazer aqui, vou sair tarde, não é assim que funciona, tem que avisar antes”. Sei que eu botei ela na van de volta. É uma história podre, que a gente não gosta de contar. Mas eu conto, para que as pessoas não façam isso, porque não é bom você mexer com o sentimento das outras pessoas.
P/2 - Mas o que que mudou que você decidiu assumir ela?
R - Foi o fato de eu virar cristão. Já estava com aquilo na cabeça, estava lendo a Bíblia com um pouco mais de entendimento, falei, “não vou seguir esse caminho não”. Aí tive meu filho, pensei, “esse é o exemplo que eu vou dar para ele?”.
P/3 - Você tem filhos com ela?
R - Com a Ana, não.
P/3 - Faz tempo que você é casado?
R - Acho que uns seis anos.
P/1 - Mas vocês se conhecem há mais de 15.
R - É.
P/1 - Nesse meio tempo você teve seu filho. Como foi o dia que você descobriu que ia ser pai?
R - Ela ligou para mim e falou, “você vai ser pai”. Eu falei, “o que? Como assim?”. Ela já tinha ligado para o meu pai, para minha mãe, para o meu primo. Aí eles ligaram, “você vai cuidar agora”. Meu pai falava, “seguinte, presta atenção, se vira. Você vai ter que cuidar e pronto. Dá seus pulo”.
P/3 - Você já trabalhava?
R - Já.
P/1 - A mãe do seu filho era de onde, como você conheceu ela?
R - Na faculdade. Ela fazia engenharia mecânica. Mas hoje a gente tem um relacionamento muito bom, a gente é uma família. É uma família diferente, que tem um filho, a gente se respeita, eu tento cuidar da melhor forma possível. A Ana compreende muito bem isso, me ajuda muito nessa questão, é muito bom isso. A Ana deu uma referência na minha vida, me direcionou para um caminho melhor, foi muito bom ter conhecido ela. Deveria ter assumido um pouco mais essa relação. Mas imagina, você ficar com uma mulher, tendo um filho, era a coisa mais bizarra da face da terra.
P/3 - Olha, tudo o que você viveu, a gente não tem julgamento, a gente só está propondo que você conte.
R - Não, eu conto para que as pessoas aprendam com os erros. Não faça isso, mexer com o sentimento das outras pessoas não é bom, porque uma hora vem para você também, aí você fica chorando pelos cantos. Coisas do coração tem que cuidar com muito amor e carinho.
P/2 - Aconteceu de você ficar chorando pelos cantos?
R - Eu sou muito dissimulado, nunca aconteceu de ficar chorando pelos cantos. Mais fingimento.
P/1 - Você ia contar a história do buquê.
R - Eu comprei um buquê, falei, “vou ter que contar para a Ana de qualquer jeito”. Ela falou, “nunca mais na sua vida você me dá um buquê de flores”. Mas acabou acostumando com o fato. Eu vou visitar ele às vezes, converso praticamente todos os dias com ele. Eu tive uma missão muito difícil de estudar matemática com ele, imagina. Ele estava indo muito mal em matemática, falei, poxa, ele vai repetir de ano. E era a única matéria, pensei, algum problema deve ter com o professor, porque não pode ser. E ele falou, “eu sento atrás, não enxergo direito”. E ele é muito genioso, todo temperamental. Culpando o professor, aquele drama todo que criança faz. Eu falei, “você não faz nada, tem tudo do bom e do melhor, seu pai e sua mãe te dão tudo, você vai mal em matemática, não dá”. Eu estava dando aula de matemática no NAIA, saía de lá, chegava em casa e a gente se comunicava pelo WhatsApp estudando. Foi uma experiência muito valorosa. O fato de você ter um filho e você dar exemplo para ele, mostra para você que você está indo no caminho correto. Por exemplo, ele me viu na televisão, foi o máximo para ele contar para as pessoas. Tem um amigo meu que escreve livros, escreveu uma história para mim, eu mostrei para ele. Eu mando muitas fotos para ele do Atados, ele conhece muito o Bernardo, o Amauri. Ele fala, “esse cabelo dele é muito legal, ele joga basquete também, né?”. Então ele associa o Atados com o Bernardo, “o Bernardo tá com você? O Amauri vai fazer isso com você?”. Isso é muito bom, eu mostro para ele que é bom você fazer o bem para os outros.
P/1 - Como foi o dia que ele nasceu, você estava perto? Como foi?
R - Eu estava perto. Aí o médico veio mostrar para mim, ele abriu o olho, aí fechou o olhinho dele, levou para dentro. A mãe dele falou, “você não vai registrar ele, né?”. A primeira coisa que eu fiz, saí, fui lá registrar ele. Foi muito engraçado e eles queriam que registrasse Ian Moreira Cigriste, porque se não Cigriste ia terminar. O meu irmão falou, “mais um para o clã Moreira”. Eu falei, quer saber de uma coisa, vai ser Cigriste Moreira. Pronto. Eu fiz o registro, fui levar lá, aí todo na expectativa, “mas você não colocou Moreira Cigriste”. Eu falei, “meu filho, poxa”. Porque na família dela só tem o pai que é Cigriste, então se não tiver nenhum homem que é Cigriste vai terminar, não vai continuar. E aí eles queriam que colocasse, mas chegou lá na hora e eu coloquei Moreira. Vai continuar Moreira.
P/3 - Como foi a sensação de ser pai, quando você viu o seu filho?
R - Foi a melhor sensação que eu tive no mundo. Eu fiquei assustado, mas muito feliz, porque eu falei, eu vou ter que cuidar de uma criança tão pequeninha, tão frágil. E a nossa convivência foi muito legal, muito boa, prazerosa. Eu pude estar com eles em vários momentos importantes da vida dele. Hoje eu fico mais ausente de não ir ver ele, mas a gente está sempre em contato, conversando. A gente põe regras para ele, por telefone. Ele fala, “papai, compra um jogo para mim?”, eu falo, “compro”. Aí eu pergunto para a mãe dele o que ele precisa fazer para melhorar para ganhar o jogo. “Estender a tolha etc. etc.”. Aí eu falo para ele e ele, “tá bom, vou fazer”. E essa relação é muito legal, ele entender, me chamar de papai. E ele é gigante perto das outras crianças. Eu sinto muita falta dele, faz parte. Ao mesmo tempo tenho total liberdade de ver ele quando eu quero. Hoje ele está morando em Sumaré. Ele é uma pessoa muito interessante, argumenta demais quando ele quer alguma coisa, é genioso. Às vezes eu vejo ele muito parecido comigo, só tem a cara de bonzinho.
P/2 - Quando você começou a trabalhar?
R - Eu considero um trabalho, quando eu comecei a iniciação científica na faculdade. Depois eu fui para a Unicamp, que é bolsa CNPq. Depois fui para a (Estancar) [00:59:38], foi aonde eu dei os meus primeiros passos na área de engenharia química.
P/3 - Qual era o seu trabalho na Unicamp?
R - Eu fazia pesquisa sobre escoamento bifásico, líquido-líquido, petróleo e água, sem reação química. A gente utilizava equação de Navier-Stokes para desenvolver alguns parâmetros, para a gente criar um software, Pascal. Sou viciado no teorema de Pascal. Eu já tinha feito iniciação científica que foi trocador de calor com vários tubos concêntricos.
P/3 - Para quem não conhece esses termos, o que que é tão importante para você estudar sobre isso?
R - A gente sempre fala, no how e no why, você sabe o motivo, da onde sai aquela equação, para que você está utilizando ela e aonde exatamente você vai utilizar ela para resolver determinado problema de algo importante, que você vá ajudar as pessoas. Necessariamente a pesquisa é para ajudar pessoas. Escoamento bifásico, o Brasil é pioneiro nisso. São perfurações bem profundas e esse escoamento auxilia no transporte do petróleo que é a frio, você não precisa esquentar nada. Você economiza energia, que é primordial para a gente criar um mundo melhor. A indústria me chamou e eu fui. A bolsa do CNPQ era 700 e meu salário era, nossa...
P/2 - E você gastava com o que?
P/3 - O primeiro salário que você recebeu.
R - O primeiro salário eu gastei na C&A, fazer o cartão. Comprar umas roupas e aí deu no que deu, não pude nem curtir o dinheiro muito.
P/1 - Por que você foi na C&A?
R - Porque eu queria fazer um cartão para comprar roupa lá. Em Jales, tinha Riachuelo, era parecida com ela, e meu pai comprava roupa para mim lá. Era no Iguatemi, Campinas, e eu fui lá. Aí foi um desastre.
P/2 - Você mencionou que você morou em vários lugares diferentes. Se você puder contar um pouquinho a trajetória.
R - Pareço um cigano. Morava em Santa Bárbara, depois fui para Campinas, Paulínia, depois vim para cá. Foi muito rápido, não foi muito longo, não. Eu não queria ir para Campinas, eu entrava na entrada da Unicamp falava, “nossa, detesto esse lugar”. Mas, ao mesmo tempo, pensava, poucas pessoas conseguiram chegar onde eu cheguei e me tratavam lá como rei. Tinha uma sala, a orientadora era uma doçura, de um carinho muito grande.
P/1 - Por que você detestava?
R - Eu não queria fazer pesquisa. Mas acabei me envolvendo, estava na minha mente ainda o negócio da piscina.
P/3 - O que levava você a curtir tanto ser tratador de piscina?
R - Eu ainda vou ter uma franquia. Já em Jales tinha o clube do Ipê, eu cresci nesse clube. Foi o primeiro lugar onde eu treinei basquete, com o meu pai. Tinha piscina lá e eu via o cara limpar. Eu só ficava olhando, me perguntando, “por que ele tá fazendo isso, aquilo?”. Eu estava fazendo cursinho e conheci um amigo, que falou, “engenharia química é interessante, porque pode fazer isso, aquilo, pode tratar água”. Falei, “poxa, posso tratar água de piscina”. E aí coloquei na minha cabeça e fiz, com a cara e com a coragem. Estudei com bolsa, o CREDUC. Eu tinha passado na FEI, mas ia ficar muito caro. Meu pai falou, “só se você começar a trabalhar lá”. Meu pai era bem influente, conhecia bastante gente, apesar de ele não gostar de pedir favor, ele conseguiria um trabalho para mim. Mas aí passei na UNIMEP, era mais barato, nós conseguimos o CREDUC, então fui para Santa Bárbara. E eu fiquei lá.
P/1 - O que que a piscina representa para você?
R - Liberdade. Eu olho para piscina e penso, isso aqui me propõe tudo o que eu desejo, essa liberdade, essa paz. Eu não sei, me dá um prazer tão grande olhar para uma piscina, aquele cheirinho de cloro. Eu não ia voltar para o mercado de trabalho, ia ficar no terceiro setor. Mas a Ana negociou tudo com um cara, na verdade, dono da empresa. Ela só falou, “tem um cara que quer conversar com você, ele quer te contratar. Ele viu seu currículo lá na BTS, eu mandei e aí ele tá querendo falar com você”. Eu falei, “mas quem mandou você mandar meu currículo? Não, não quero esse currículo antigo. Você vai me ferrar, ele não vai me ligar mais”. Aí ele ligou. “Mauricir, é o seguinte, eu não posso te pagar o que você tá pedindo, vou ser bem sincero pra você. O salário que eu posso pagar é esse”. Eu falei, “tá bom, vou pensar então”. Aí no sábado ele mandou mensagem, “você pode vim trabalhar? Começa sábado e segunda você já vem”. Apareci lá. Aí eu larguei o NAIA assim do nada, mesmo, de largar, de não olhar para trás. Todos os lugares nosso ciclo sempre acaba, não tem jeito de a gente ficar insistindo. Eu fui embora e fui para lá. Estou acho que há dois meses, estou muito feliz lá. Eu mando muita gente embora, sem dó. Ou faz do meu jeito ou eu mando embora. Eu peço uma vez, não fez, chamo na sala e falo, “você não serve”. Pode até parecer cruel, mas eu estou montando minha equipe e necessariamente eu preciso dela para que eu consiga desenvolver um bom trabalho, porque eu preciso trazer dinheiro para essa empresa, senão não tem muita lógica ela me contratar. Então, eu sou bem radical com relação a isso.
P/1 - Quando o seu pai faleceu você entrou em depressão e recebeu a ligação da Marina. Conta como foi que a Marina te descobriu.
R - Eu estava no Noites Solidárias, fazia entrega de comida todo o final do mês para pessoas em situação de rua. Nesse período, eu comecei a achar interessante, e o Suplicy era secretário dessa área da prefeitura. Aí eu pensei, vou conhecer o Suplicy, quero conhecer ele, quero levar o Noites lá para que ele conheça o trabalho. Eu mandava e-mail e o pessoal dava risada, “você acha que ele vai te atender?”, “vai”. E mandava e-mail, e mandava e-mail... até o dia que ele respondeu. “Aqui é o Suplicy. Você pode vir tal dia?”. Marcou e desmarcou umas três vezes, até o dia que ele marcou realmente. Eu lembro que foi eu, o Jomar e o Silvio – presidente do Noites. Ele me cumprimentou, muito simpático, conversou comigo. Eu me senti um príncipe, porque ele estava dando atenção para mim, porque era eu que estava mandando e-mail. Achei fantástico. Eu entrei na vice-presidência do Noites, eu acabei saindo num domingo, aí quarta-feira chega um e-mail da Marina. Eu conheci o Atados pela internet, porque eu escrevia pedindo voluntários lá. Só que era só por e-mail, nunca tinha ligado para a Marina. Teve um dia que ela falou que queria me conhecer. Aí meu Skype era tão velho, ela não me via, eu via ela. Só sei que eu conversei com ela, aquela coisa toda. Eu sempre falava com ela, pedia a News, até um dia que ela falou que era com o Bernardo que eu ia conversar. “Pede pra ele que ele faz para você”, e eu sempre pedia. A News é um e-mail disparado para várias pessoas, elas conseguem visualizar mais a ONG e elas se identificam e vão. Eu cuidava dessa parte de relacionamento com os voluntários. Aí eu saí, do nada ela me mandou e-mail para mim. Eu fui, era na Capote Valente, eu sentei lá, ficava trocando foto, imagem, estava tendo DBA, eu ficava lá com ela. Apesar de falar muito bem, ela era supertímida também. Ela ficava lá do jeitinho dela e eu ficava do lado. Aí veio o Bernardo, que já era mais falante.
P/1 - O que você fazia exatamente?
R - As ONGs colocavam fotos lá, as fotos não ficavam legais, eu procurava na internet e trocava, para ficar mais atraente a vaga, ficava concertando erro de português. Nesse período, aconteceu o acidente com o meu pai e foi aí que eu me agarrei, no trabalho voluntário, não parei mais. Até tive uma conversa com a Marina. Eu trabalhava no banco PAN, abandonei, fiquei muito mal. Eu tomava remédio que o psiquiatra estava me dando, eu ficava meio aéreo, com medo das coisas. Nessa fase, a Ana me ajudou muito e o Atados me ajudou bastante. Conhecia os trabalhos, as ações todas. Eu participava mesmo para não ficar em casa, não ficar com essas neuras. Eu sempre falava, “frescura essa depressão”, é nada, você fica com um vazio tão grande, que você passa numa ponte, dá vontade de você pular. Muito ruim. Mas foi melhorando, conhecendo as pessoas no Atados.
P/3 - A depressão foi principalmente por causa do seu pai?
R - Foi. Eu perdi toda a minha expectativa de poder desenvolver as coisas que eu estava imaginando, a minha empresa de piscina, por exemplo. Ele era o meu parâmetro, eu falava com ele. Tudo o que eu ia fazer eu conversava com ele. E minha mãe teve dois AVCs, pensei que ia perder minha mãe também, mas ela está lá, firme e forte. Foi um momento da minha vida muito ruim.
P/1 - Como você conheceu o Noites Solidárias?
R - A Ana, através da Jose, da Dra. Fausto, que era amiga dela, chamou ela, ela falou para mim e eu falei, “vamos ajudar as pessoas”. A Jose é amiga da Ana, farmacêutica também, elas trabalham juntas. Foi legal também, porque nós fomos da casa do Leandro Lehart, que ela era amiga. Fiquei enchendo o saco dela para ela levar a gente lá, para ele ser padrinho do Noites. Foi muito legal, ele fez várias ações, super gente boa.
P/1 - Você criou um relacionamento do Atados que tudo o que acontece lá, vamos chamar o Mauricir.
R - Sim, eu não sei por que, toda vez eu me pergunto. Tudo o que acontece eles me chamam.
P/3 - O que você já fez lá, conta um pouco das pessoas.
R - Meu contato principal foi com a Marina, ela me ensinou todo o processo do Atados. Eu fiquei ajudando o Bernardo, depois eu comecei a participar das ações. Tem uma que me marcou muito, que nós montamos uma horta perto da Augusta, foi muito legal. Podia ter feito mais, não consegui fazer mais, fiquei meio frustrado.
P/1 - A horta da 9 de julho, né? Conta como foi o convite para você fazer, como que foi o dia, a preparação.
R - Eu cheguei lá já estava tudo prontinho. O legal no Atados é que eles te dão total liberdade para você fazer alguma coisa que você quer fazer, desde que você faça bem feito, não faça meia boca. Algumas coisas que eu passei por lá foi coordenador dos Criadores, de dois, fiz a Travessia Cultural, foi essa ocupação que foi muito legal, mas eu achei que faltaram mais coisas, a gente poderia ter feito melhor. Mas foi por causa da situação física do espaço, não estava adequado para montar uma horta, solo péssimo.
P/1 - Eu estava no dia da montagem da horta, mas conta pra Luísa e pra Márcia como que foi esse processo para criar a horta para a ocupação. Tudo, desde o convite até você ir lá no dia.
R - Funciona assim, se você for na Atados hoje, alguém fala que eu sou o Mauricir, mas nem sempre eu conheço a pessoa. O Atados deixou minha vida mais rica, eu pude estabelecer meu lado emocional que estava perdido, eu pude direcionar a minha energia da maneira correta, através dos ensinamentos deles. Você chega lá e você acha que é um caos, mas, na verdade, não tem nada de caos, é uma empresa que roda bonitinho. Todo mundo sabe muito bem o que tem que fazer, tem prazos para cumprir, às vezes é pior que empresa. E é desafiador isso, você poder usar o que você sabe e aplicar. Eu tive o prazer de administrar pessoas nos Criadores é muito legal, foi muito bom. A Travessia também. Aprendi muita coisa, me ensinaram a fazer financiamento coletivo, que eu achava que era um absurdo fazer. O último financiamento coletivo que eu fiz foi no NAIA, com uma menina, ela precisou de uma cadeira. Isso que o Atados ensina, a você ter conexões com as pessoas. Eu me conectei com o Gui, “você é ator, pode gravar um vídeo para mim, porque tem uma menina precisando de uma cadeira”. “Tá bom. Deixa eu falar com o pai dela”, “o pai dela não quer”. Foi lá na casa da menina, aquela coisa toda, a mãe dela pedindo ajuda, eu falei, “pode ficar tranquila, a gente vai sair com essa cadeira”. A cadeira custava mil e 500 reais, ele colocou cinco mil. Ele falou, “é simples, é fácil”. Foi muito fácil conseguir, eu fiquei muito feliz, a mãe dela agradecendo, “você mudou a vida da minha filha. Quando você passou no corredor, eu chamei, você mal olhou na minha cara, eu achei que você nem tinha prestado atenção em mim. Eu falei que precisava de ajuda, o Elson falou que você era uma pessoa que sempre ajudava, estava sempre no Atados”. Eu amadureci a ideia, demora muito fazer as coisas, eu falei, “bom, agora vamos colocar em ação”. Falei com o Gui, ele fez todo o vídeo, ele levou a menina para o Ibirapuera para passear. Ficou lindo o vídeo. E conseguimos. Foi a última ação que eu fiz efetivamente no NAIA. Depois fiz com as crianças, que eu fazia sempre terrário. Minha missão era uma missão impossível, colocar 120 crianças numa mesa e fazer terrário com elas.
P/3 - Essa é horta?
R - Não. A horta foi no NAIA – Núcleo Assistencial Irmão Alfredo. Tem 120 crianças do CCA, mais 60 alunos do jovem aprendiz.
P/3 - Que idade?
R - As crianças ficam na parte da manhã e à tarde, são crianças de 10, 12, 13 anos. O jovem aprendiz é de 15 para cima. Eles trabalham na empresa a semana e um dia eles vão no NAIA. Eles têm aula de informática, matemática, psicologia, um monte de coisa. Eu conheci o NAIA no Volunfest, aí tinha a horta. Fizemos uma hortinha lá meia boca, eu falei, “não vai dar. Bernardo, vamos fazer qualquer coisa nessa horta”. Bernardo é uma pessoa que trabalha no Atados, é impressionante, tudo o que eu falo para ele, ele fala, “tá bom, pode fazer”. “Me ajuda, Bernardo”. “Tá bom”. E aí deu certo, nós fizemos um financiamento coletivo, nós revitalizamos a horta, ficou linda. Aí as pessoas já começaram a olhar com outros olhos o NAIA. Como eu nunca tinha dado aula para criancinha assim, pensei, “vou dar aula na horta”, calcular a capacidade produtiva anual. Deu certo, as pessoas gostaram. Um belo dia eu estava na cozinha, vi uma latinha de leite, perguntei, “para onde vai essa latinha”, “a gente jogava fora”. O Amauri é uma pessoa com quem sempre faço trabalho voluntário junto, agora faz tempo que eu não faço, mas ele me deu uma hortinha pequenininha no pote. Eu fiquei olhando, vou fazer uma horta nisso daqui na aula de matemática. Aí calculei o rótulo, o perímetro, a área, quantidade de terra, aquela coisa, montamos a hortinha. Fez o maior sucesso. Eu conheci a Gene no Atados e eu sempre falava, “e aí, o poço de água? Essa escola não vai ter poço?”. Aí ela, “é verdade, faz o projeto do poço para mim?”.
P/1 - Por que ela queria o projeto do poço?
R - Porque a escola não tinha água, tinha que ter água.
P/1 - Que escola?
R - A escola que ela montou no Haiti. Eu falei para ela para a gente montar o projeto do poço. Ela falou, “você sabe?”, “eu sei. A gente vai captar a água como energia solar”. Aí ela entrou em contato com o Water for Life, só que eles não conseguiram, porque o solo lá é muito rochoso e não conseguiram perfurar. Aí ela veio com a ideia de fazer a captação de uma região com uma bomba. Mais fácil ainda. Nessa época, eu já fazia algumas coisas, como biodigestor com restos orgânicos para originar gás. Eu falei, Gene, vamos montar na nossa escola um biodigestor. “Então você tem que ir pra lá”. Tinha um monte de coisa que eu queria montar na escola dela. Aí fiquei amigo dela, ela falou “me ensina a mexer na horta?”. Começou a frequentar o NAIA, ia praticamente todos os dias e a gente ficava cuidando da horta. Ela me despertou um olhar diferente das coisas como eu via, o trabalho voluntário. Um dia eu levei ela no Capão Redondo, falei, “olha que coisa mais horrível”. Ela falou, “para. Isso aqui é um paraíso, você não viu o Haiti”. Ela me mostrou umas fotos, nossa. Não sei por que eu abri a boca. Ela falou, “você não sabe o que é pobreza, o que é gente passando fome. Aqui é um paraíso”. O grande detalhe era o seguinte, ela conhecia gente famosa. Aí ela falou, “já que você me ajudou eu vou te ajudar. Você quer que eu te ajude com o negócio da piscina ou você quer que eu te ajude a vender suas hortinhas?”. Eu falei, “agora você me ajuda a vender as hortinhas e você me ajuda com os negócios da piscina depois que você voltar”. Ela me liga lá da editora Abril, “eu tenho um amigo aqui que tá fazendo tal coisa e tem um produto muito legal para vocês comprarem”. Porque ela deu aula lá para a diretora da editora. Me levou lá, fez um absurdo de me apresentar para todo mundo, aí está lá Mauricir no telão, com a cara estampada. “Fala agora Mauricir”, nossa, fiquei branco. Não faz isso comigo não. Aí falei da hortinha. “Quero 800 latinhas”. “Não consigo produzir isso”. “Agora você vai ter que se virar”. Conseguimos as 800 latinhas, depois montamos para entregar para a Editora Abril. Aí nesse período, a Gene falou que ia me levar num cara muito legal, num dos donos da Saraiva. Demos uma latinha para ele de presente, ele me deu um monte de roupa para levar para o NAIA, para o Bazar. Ela falou, “são essas pessoas que você tem que ter contato, porque são elas que querem ajudar, só que elas não querem aparecer”. Ela estava fazendo aniversário e ele deu para ela cinco mil reais de presente. Eu comecei a entender a influência dela, ela ajudou bastante a vender essa latinha.
P/3 - Você que fez sozinho todas ou você fez com mais gente?
R - Eu chamei algumas pessoas, alguns alunos, algumas pessoas que ajudavam lá na horta. Foi uma loucura. Eu carregando aquelas latinhas dentro do metrô, com uma bolsa de tênis.
P/3 - Você dava aula de matemática ou dá ainda?
R - Eu dava aula de matemática e informática. Pros jovens e às vezes eu ia lá para as criancinhas também. Eu levava as crianças na horta para ensinar também, eles limpavam, plantavam, eu dava oficina de terrário, ensinava a plantar, a colher.
P/3 - Você dava aula de matemática quantas vezes por semana?
R - Duas vezes.
P/3 - E era num horário alternativo da escola?
R - Era o dia que era específico para eles irem no NAIA. Dava aula terça e quinta e para o preparatório quarta e sexta.
P/3 - Eles iam também na escola em outro período?
R - A maioria trabalha na Cargil ou no Estanplaza. Necessariamente eles tem que trabalhar e aí um dia eles tem que ir lá para aprender.
P/3 - Já é a escola lá?
P/1 - Não, é contraturno. A maioria dos alunos estudam à noite. Eles trabalham durante a semana.
P/3 - Você dá aula ainda?
R - Não, aí eu saí.
P/3 - Além da horta, tinha outras formas que você usava a prática?
R - Era só prático, tudo era na prática.
P/3 - Você lembra de alguma situação, algum aluno demonstrando alguma situação para você, aprendendo? Ou comparou com a escola?
R - Ah, tinha pessoas ali incríveis. Eu pegava projetos do Embrapa para a gente desenvolver, utilizava Arduíno para a gente colocar no minhocário para medir a temperatura e umidade. Outro foi um irrigador solar que um pesquisador da Embrapa desenvolveu, eu fazia essas coisas. Eu usava matemática para fazer filme. Por exemplo, eles tinham que fazer várias fotos e aí calculava o tempo, montava a equação. Eu imaginava o seguinte, não tem como eu pegar a matemática nua e crua, chegar aqui e ficar cobrando. Não ia dar certo. No começo, não deu mesmo, eles me odiavam. Com o passar do tempo, a gente calculava receita na cozinha, a proporção, eles passaram a entender melhor a maneira como eu ensinava e entender a matemática como uma maneira de usar para a vida. A gente fazia muita planilha para cálculo, vamos financiar um carro, tem que guardar tanto por mês.
P/3 - Tudo que você ensinou nesse período de matemática tinha uma relação com a vida?
R - Tudo.
P/3 - Algum jovem falou isso para você, manifestou alguma coisa em relação a isso?
R - Tinha pessoas ali que me testavam, alguns estavam fazendo engenharia, falavam, “faz esse exercício então do Enem, você não consegue fazer”. Aí colocava lá na lousa, “ah, você sabe mesmo”. Teve uma menina que pediu para usar o relatório da horta na faculdade – é como se fosse uma empresa, a entrada e saída de alimentos, capacidade produtiva, descrição. Eu achei incrível, valeu a pena. Uma outra começou a fazer doce para vender, a gente fez a tabelinha nutricional no Excel, ela pediu para usar também. Isso marca, pelo menos a gente está ajudando, alguma semente a gente está plantando.
P/3 - E alguém que tinha dificuldade com matemática?
R - A maioria.
P/3 - Teve alguém que você lembra que te marcou?
R - Eu dividia em grupos, uns faziam projetos e outros não. Os que não faziam projetos eram os que não sabiam tabuada. É muito cruel isso, ver um jovem hoje não saber tabuada, não querer absolutamente nada, não querer aprender, você tendo um profissional ali, trabalhando muito tempo na área de tratamento de superfície e eles não tirarem... eu mexo muito bem no Excel, tenho facilidade de mexer com números, tentem extrair o máximo possível. Alguns deixaram para trás. Mas em todo lugar é assim.
P/3 - Mas fala de mais algum. Essas meninas levaram para a área delas. Mas algum aluno que te contou que não gostava, que depois teve alguma mudança.
R - Tinha alguns que falavam, “não quero fazer isso, não gosto, a gente quer fazer um documentário”. E eu pensei, como é que vou deixar fazer um documentário na aula de matemática? Conversei com o Gui ele falou, “manda eles tirarem várias fotos, eles conseguem calcular espaçamento”. Eles amaram.
P/3 - É possível relacionar matemática com outras áreas, você teve alguma experiência dessas?
R - A gente sempre conversava entre os professores, sempre tentava vincular uma coisa na outra, para que fosse um corpo só. Muitas vezes eu estava na aula de psicologia, na aula de coaching, tentando fazer com que eles entendessem de forma mais racional as coisas, de uma forma mais direta. Porque às vezes a psicologia tem umas coisas que a gente não consegue entender.
P/3 - Como você fez isso?
R - Eu dava exemplos. A psicóloga dava exercícios que eles odiavam, que era o dragão azul. Você imaginava que era um dragão, saía do centro da terra e aí você ia fazendo os movimentos do dragão e saía até enxergar o céu azul. Eles odiavam. E eu passei a fazer aula também, falava, tem tudo a ver com matemática, porque os movimentos a gente consegue calcular. Aí eles compreenderam um pouco mais. Tem toda uma lógica esses movimentos, vamos tentar compreender um pouco mais, ser um pouco mais flexível, a gente não pode simplesmente “não quero fazer” e pronto. Eu sempre falava, na empresa de vocês, se você falar não para o seu chefe, uma hora ele vai mandar você embora. Eu estou falando de exemplo próprio, eu mandava gente a rodo embora, teve um dia que eu mandei seis, sete pessoas embora. Só que eu passei a ver um lado mais amoroso também, comecei a modificar meu modo de tratamento, são jovens, temperamento a flor da pele, eles ficam te testando a todo momento. Melhorei bastante com relação a isso. E aí voltei a trabalhar em empresa. Voltei a ser o que era também, a produção é muito cruel.
P/3 - Você trabalhou em empresas, ficou muito próximo do Atados como voluntário, continuou trabalhando?
R - Eu recebia para dar aula para os jovens e para o preparatório. Ficava todos os dias no NAIA, só não ia na segunda.
P/3 - Mas aí não deixou de ser voluntário?
R - Não. Mas é um trabalho.
P/3 - Explica isso como é.
R - Tinha gente que chegava lá, “vou fazer o que quero, a hora que quero”. Não é assim que funciona, é uma empresa, tem um presidente, tem os diretores, você tem que seguir à risca o que eles determinam. Você vai lá na horta a hora que você quer e colhe a hora que você quer? Não. Tem um horário determinado, tem que cuidar com carinho. Você não pode ir lá brincando com as crianças. Tem muita criança com vulnerabilidade, você não pode. Tem regras rígidas.
P/3 - Quando você entrou no Atados você não fazia esse tipo de trabalho mais constante, você fazia ações voluntárias ou você já era remunerado?
R - Não. Eu trabalhava em empresa e fazia trabalhos voluntários no Noites Solidárias. O Noites faz comidas todo o final do mês, a gente fazia mais ou menos mil marmitex para sair distribuindo na calada da noite para as pessoas. Eu fiquei muito abalado um dia, a gente estava no pátio do colégio e um menino falou, “tio, dá sua blusa para mim”. Eu falei, “mas assim eu vou ficar com frio”. Aí ele, “mas você tem cama na sua casa”. Eu tive um acesso de choro, ô boca, a gente não pensa antes de falar. Eu tirei minha blusa, dei para ele. A partir desse dia eu faço assim, vou com uma roupa e se eu ver que ela está precisando eu tiro. Só não vou tirar a calça, porque sou preso. É horrível essa sensação de frio, hoje mesmo eu estava passando frio e eu sempre lembro, eu não queria dar minha mesquinha blusa, velha, que eu comprei no Carrefour muito tempo atrás por mimo. Não vou dar minha blusa porque eu gosto dela. Para, você tem um monte na sua casa, você tem cama, sua comida, ele lá não tem nada. Esse dia eu me deixei levar pela sensação de tristeza, voltou toda a memória com o meu pai, ele falando. Ele ia falar, “tira a blusa e dá para o menino” ou “tira o sapato, dá para ele, você pode colocar depois um chinelo, você não vai ter problema nenhum”. Esse menino tinha acho que 12 anos, tinha um filho já. Nossa, gente, que crueldade. Na rua. E lá no pátio do colégio eu criei vínculo com uma pessoa, chamado Manoel. Ele é meu amigo, às vezes eu passo lá e vejo ele. É muito interessante, ele não é brasileiro, ele não conversava comigo, aí passou a conversar. Aí eu tirei uma foto com ele, às vezes eu apareço lá e ele pergunta, “como vai sua família, Deus abençoe”. Ele fala inglês, fala um monte de língua. Eu sempre pensava, “que raios essa pessoa tá fazendo aí”, “ela tá numa missão dela, fazendo alguma coisa de especial”. Às vezes eu quero dar dinheiro para ele, ele recusa. Ele me marcou muito, porque ele lembra muito meu pai. Apesar de fazer um tempinho que não vou ver ele, tenho uma admiração muito grande por ele, por ser aquela pessoa que me trata como se eu fosse um príncipe. Porque uma vez eu dei um cobertor para ele, ele achou a coisa mais máxima da vida. Uma vez eu perguntei para ele, “que que você tá precisando?”, ele “um sapato 46”. Não consegui encontrar ainda, mas eu vou encontrar. Geralmente, eu levo as pessoas para conhecer ele, trabalhei um tempo na Sky, levei minha chefe para conhecer ele. “Vou te levar para conhecer uma pessoa muito especial, esse cara é sensacional”.
P/3 - Você trabalhava nesse lugar para oferecer alimentação para as pessoas de rua. Depois você saiu da empresa e foi trabalhar mais no Atados?
R - Não, na verdade eu trabalhava seis horas, então tinha tempo de fazer voluntariado. Eu ia no Atados, ficava um pouco, depois ia trabalhar.
P/3 - Você falou que dá para fazer voluntariado ganhando, explica um pouco, porque é uma coisa que não é comum.
R - Tem muitas ONGs que pagam salários para você trabalhar. As pessoas acham que trabalho voluntário não tem uma volta financeira, isso é mentira. O NAIA foi muito interessante, eu conheci a Silvia, ela falou, “estou precisando de um professor de matemática”, eu falei, “não vem porque eu não sei dar aula de matemática”. “Não, você leva jeito. Se você conseguir dar aula aqui, você vai dar aula em qualquer lugar, tem lugar que precisa. Só que eu preciso de matemática e informática, sabe dar aula de informática? Tá aqui a grade, que dia você começa?”. Não tinha como eu falar não. Até então, falei, vou fazer. Aí ela falou depois, “você vai receber para isso. Geralmente, eu faço isso com as pessoas, eu pergunto se ela quer mesmo”. E eu recebia bem, muito bom. Mas indústria não tem comparação o salário. O que me pegou mais, é que a Ana falou, “você tem seu filho, você tem que pensar nisso também”, mudou radicalmente nossa vida com relação a parte financeira. E aí você se sente importante na sociedade, sou engenheiro químico de uma empresa, que está investindo em você, comprou um banho novo, ela está te mostrando novos caminhos, você está conhecendo o mercado. Você está voltando para o mercado e, querendo ou não, é um privilégio na idade que eu tenho, porque é muito difícil. Só que na minha área tem poucos profissionais, essa é uma grande vantagem. Está sendo incrível ter voltado, mas eu estou me preparando já para fazer um trabalho voluntário mais consistente, eu mesmo podendo investir, não ter que ficar pedindo. Por exemplo, quero fazer uma horta, vou lá, faço, compro as coisas, não vai ter problema nenhum com relação a dinheiro e isso é muito bom, essa condição me deixa muito feliz.
P/2 - E você está fazendo trabalho voluntário agora?
R - Ainda não, porque ainda não ajustei meu horário do trabalho. Eu trabalho em Osasco, saio cinco e meia da manhã, chego lá umas seis, trabalho. Saio cinco horas, só que nunca saio às cinco, porque tenho que esperar o caminhão chegar, descarregar. Aí eu pego a Marginal Pinheiros seis horas da tarde, chego oito horas, oito e meia. Eu demoro vinte minutos para chegar de manhã, para voltar umas duas horas e meia. O grande detalhe é que agora eu posso proporcionar uma qualidade de vida melhor para a Ana, para o Ian, agora ele tem um plano de saúde, a mãe dele está super feliz, consigo dar mais dinheiro. Esses dias falei de dar uma televisão para ele. Isso é muito gratificante, ter essa possibilidade de proporcionar para eles uma vida boa.
P/1 - Eu queria que você contasse um pouco quem é a Gene e como você a conheceu.
R - Eu conhecia através da Elis, que fez parte do Atados. Um dia ela me apresentou, falou que ela dava aula ali e estava fazendo financiamento para a escola. Não entendi nada do que ela falou comigo. A Gene dava aula no Abraço Cultural e ela é muito espoleta, não para. No primeiro momento, nós não entendemos muito bem, porque num momento ela está aqui, de repente ela já está lá na frente, ela tem essa dinâmica. Teve um dia que a gente estava no Atados, ela falou, “vamos comprar banana comigo”, nossa, que longe o lugar. E ela é toda humilde. Quando ela foi embora, ela foi em casa, “Mauricir, me ajuda a arrumar a mala”. Só que eu não fazia ideia, ela chegou lá em casa, abriu a mala, esparramou tudo. Me marcou muito a simplicidade dela em querer ajudar as pessoas, eu queria ter essa força toda que ela tem. Ela não fala absolutamente nada para ela, de ter alguma coisa, ela só fala em ajudar as pessoas, é incrível isso.
P/1 - Fala para gente que é a Gene, o que que ela faz.
R - Gene dá aula de francês no Abraço Cultural, ela tinha um sonho de construir uma escola no Haiti e, para isso, ela resolveu fazer um financiamento coletivo e solicitou ajuda do Atados. Nesse mover todo, o Atados começou a capitalizar dinheiro para que essa escola fosse construída. Mobilizou muitas pessoas. Pelo jeito dela, muito simples, ela conseguiu captar muitas pessoas importantes, que conseguiu disponibilizar muito dinheiro para ela. Eu achava isso extraordinário, o esforço que ela desprendia.
P/3 - Ela é do Haiti?
R - Isso. Quando ela começou a construir a escola, ela falou, “a primeira foto eu vou mandar para você. Parece que você não me ajudou, mas você me ajudou. Porque eu não sabia que eu precisava de água, não tinha pensado nisso”. Ela voltou para cá, falou assim, “voltei para te ajudar no negócio da piscina, só que eu vou ficar pouco tempo”. Um pessoal me chamou para fazer parte da construção de um biodigestor e cisterna. Eu falei que não ia dar tempo. Falei, “eu monto o biodigestor, faço funcionar e mando o projeto para você montar lá”. Ela falou, “mas não tem como eu montar um biodigestor lá, lá não tem comida, como é que eu vou alimentar?”. “Mas com restos de animal dá pra fazer”. “Mas é muito caro, eles vão tirar”. “A gente não vai montar a horta? Monta a horta e com o resto a gente consegue alimentar. A hora que começar a gerar gás vai ser incrível”. Quem ensinou essa tecnologia foi o Fabio, da Favela da Paz, que ele foi gentilmente construir para a gente o biodigestor, uma pessoa também extraordinária, podia muito bem cobrar. O Atados convidou a gente para participar do DBA, Dia das Boas Ações, ia ter uma barraquinha para gente, foi muito charmoso. Deram até dinheiro para a gente montar uma cisterna, que ainda está em casa, porque eu saí da Biointegrar e ainda não encontrei um lugar para instalar ela. Eu queria instalar em alguma escola para captação de água. Eu ia instalar no NAIA, mas eu saí de lá e com meus horários não tem nem como.
P/3 - E você tem intenção de, se conseguir conciliar, ter alguma ação lá no NAIA?
R - Não mais. O NAIA foi muito beneficiado pelo Atados, foi Pizza Hut, Ambev, Naturex.
P/3 - Você trabalhava lá pela relação com o Atados.
R - Sim.
P/3 - Você teria intenção de continuar trabalhando na empresa e ter alguma ação com o Atados?
R - Sim, nossa. Várias. Vou até o fim.
P/3 - Remunerado?
R - Não, agora inclusive ajudando, proporcionando as coisas.
P/2 - Que que você está pensando?
R - Montar uma horta num lugar que queira ter uma horta, que queira ter um minhocário, uma cisterna. Essa é a parte mais legal, você ter para ajudar as pessoas. Eu sempre falo de fazer uma doação mensal para o Atados, eu nunca fiz. Eu falei, “o dia que vocês arrumarem o site para fazer direito, eu vou fazer”. É muito confuso.
P/1 - Não está organizado essa parte no Atados, de receber.
R - Sim, é uma dificuldade. Eu falo para o Davi, “vocês não querem dinheiro”. Ele é todo enrolado também, é muito inteligente. Ele fica na parte financeira. Mas a pessoa que eu tenho mais relacionamento é com a Marina mesmo. O Bernardo marcou um fato muito interessante na minha vida. Eu estava no basquete, num clube paulistano, aí lá vem o cara da Rede Globo entrevistar, bota a câmera no rosto do Bernardo. Aí o Bernardo fala, “eu sou palmeirense, eu estou aqui porque esse rapaz ali me convidou” e o cara veio me perguntar “e o Jorginho?”. Eu pensei, “puxa, que jogador é esse?”. Senti meio preconceito, porque o Bernardo estava aqui, a Ana aqui e eu aqui. Aí ele pulou a Ana e veio perguntar para mim. Só que quem sabia do Jorginho era a Ana e a Ana começou a falar no meu ouvido e eu fui falando. Aí eu pensei, o cara não percebeu isso? Será que mulher não sabe também? Ela sabia muito mais do jogador do que eu. O Bernardo é uma pessoa fantástica, uma pessoa que me deixa muito feliz. Eu tive o privilégio de conhecer a mãe dele, foi muito legal, ele já visitou minha casa.
P/3 - Quem é o Bernardo?
R - Ele trabalha no Atados. Ele chegou depois que eu era voluntário lá, ele começou junto com a Marina e a gente começou a ter uma relação de amizade também. Para mim, ele é uma pessoa importante. Muitas vezes já briguei com ele. Eu ficava bravo, nós fizemos um financiamento coletivo e ele tomou conta do dinheiro da horta. E para tirar dinheiro desse cara? “Bernardo, preciso comprar tal coisa para a horta”. Ele pedia para fazer três orçamentos, eu ia lá, esperneava e não adiantava. Ele falava, “sinto muito, mestre, não é desse jeito que funciona”. E foi muito bom, porque ele tomou conta do dinheiro, ele cumpriu à risca a função que nós demos para ele.
P/2 - E a Marina?
R - Para falar a verdade, eu não sei o que ela faz lá. Foi a primeira pessoa que eu conheci, ela me ensinou a fazer todas as coisas lá, é a pessoa que eu me sinto seguro de conversar alguma coisa com relação a projeto, porque ela tem um know-how muito grande. Ela me deu suporte e a liberdade de fazer outras coisas, essa liberdade foi tão grande que as pessoas passaram a me conhecer. É muito legal isso. Depois veio a Carol também. Vai muito de ter segurança de conversar com as pessoas.
P/2 - E hoje em dia, o que você diria que são as coisas mais importantes para você?
R - Mais importante é ser bom para o próximo, fazer o bem sempre, sem olhar quem, sem julgar, sem ter a premissa de olhar para pessoa e gostar dela. Primeiro conversa, ver a logística do pensamento dela, para depois começar a entender mais. Eu tinha um aluno no NAIA, nossa, a gente brigava muito. No final, ele chegava e me beijava, muito interessante as relações que a gente cria. Esse é o ser humano, é muito bom, mas às vezes deixa se levar por umas questões que não condizem com a realidade. Mas no final das contas a gente tem que fazer o bem sempre.
P/3 - Você consegue imaginar seu pai vendo você atuando, o que você imagina que ele sentiria?
R - Eu não consegui convencer meu pai de se tratar, é ruim isso.
P/3 - Mas o que você acha que ele sentiria vendo você nessas ações voluntárias?
R - Ele não falaria nada, ele falaria que é minha obrigação. É obrigação ajudar as pessoas. Não tem que ficar reclamando de nada, se você não tiver, você se vira para conseguir. Ele falaria isso. Tempos atrás a Ana fez um monte de marmita lá em casa, ela falou, “você vai distribuir”. Ao invés de lembrar do Noites eu lembrei do meu pai. Ele podia muito bem estar aqui comigo, ele cozinhava muito bem, podia muito bem estar cozinhando. Mas a vida é assim.
P/3 - Ele ia dizer que era obrigação.
R - Sim, ele sempre falava. “Não tem que ficar reclamando, não. Não tem que ter muito tênis, muita calça, não tem que ter muito nada, você tem que ter a disponibilidade de ajudar as pessoas, é isso que faz de você uma pessoa boa. Você tem que ser bom, dar exemplo para pessoas”. Mesmo eu cometendo alguns erros eu acho que eu melhorei bastante. Apesar de não estar ajudando agora, eu estou pensando em como fazer isso. E é muito fácil, é só entrar no site do Atados, achar uma vaga e pronto. Não tem que pensar muito. Eu achei muito interessante, na Copa eu falei, “Bernardo, quero participar”, ele “chega lá e entra em qualquer lugar. Você pode. Acha lá algum lugar que você acha mais legal, você fica ajudando a gente”. Eu não vejo muito as pessoas, mas quando eu vou lá parece que eu vejo as pessoas todos os dias.
P/2 - Conta para a gente um sonho seu.
R - A piscina. Ela vai sair. É uma franquia da iGUi, eu acho, vamos ver. Eu tenho a capacidade de ter um negócio próprio, de poder conseguir mais para ajudar as outras pessoas. Eu não gosto de seguir alguns padrões que as outras pessoas estabelecem. Quando você trabalha numa empresa, ela limita muito você a fazer aquilo e pronto. Esses dias eu estava conversando com um cara e falei, “poxa, aquela moça lá tá dando trabalho de novo”, ele falou, “chama ela num canto, seja duro com ela, grita com ela, dá uma bronca nela feia que ela fica mansa”. Mas isso é arcaico, essa época já passou. Ele fala que eu sou muito bonzinho, converso, fico dialogando, tentando amenizar. Não tem muito, você maltratar o ser humano, você não sabe o dia de amanhã, o que que ele está passando. O salário numa produção é muito baixo pelo que eles trabalham, a gente tira até a alma da pessoa. Eu fico questionando muito isso, até que ponto eu tenho que fazer isso, fazendo esse tipo de coisa. Até conseguir minha franquia, eu acho, tentar realizar meu sonho.
P/3 - O que você achou de contar sua história aqui?
R - Eu tenho muita vergonha, tenho essa dificuldade de ficar olhando no olho. Ao mesmo tempo, me sinto honrado. Fico me perguntando, por que o Mauricir. Ao mesmo tempo, fico pensando que o Ian vai ver isso, eu vou marcar a história dele, ele vai mostrar para os amigos dele, vou marcar a história dos amigos dele. “Esse é o meu pai, uma pessoa que tenta fazer a coisa certa, fica falando para mim fazer tudo direitinho, falando para eu ajudar as pessoas”.
P/2 - Tem alguma coisa que você quer acrescentar que a gente não te perguntou?
R - Eu queria que minha mãe ficasse mais próximo de mim para ela ver, para ele ter essa consolidação no coração dela. Porque ela está velhinha, ela vê pela televisão. “Gostou, mãe?”. “Você não falou nada. O que importa é ajudar as pessoas, né?”. Eu fui pego desprevenido, não achei que fosse criar toda essa grandiosidade.
P/3 - Qual evento foi?
R - A Carol, no Atados, me proporcionou uma entrevista com a Rede Globo, Gente do Bem. Foi muito legal. Foi para mostrar a horta no pote, as aulas, depoimentos dos meus alunos.
P/3 - Ainda mais um professor de matemática.
R - O professor de matemática tem duas vertentes. Ou ele possibilita um olhar mais apreciativo do mundo para as pessoas, ou ele ferra com a consciência dela, mostra que matemática é a coisa mais chata do mundo. Eu chegava lá, “vamos fazer tabuada”, nossa, estava massacrando, é arcaico isso. Vamos aliviar, possibilitar um prazer para a pessoa, entender. Eu falava, “vocês têm que guardar dinheiro, para poder viajar no final de ano”. Fazia a conta. Criava planilha no Excel, mostrava para eles. Foi muito interessante. O que eu deixei de fazer, que eu larguei, abandonei, foi um projeto da Cargil. A Cargil mandou me entregar um edital para que eu escrevesse com eles sobre sustentabilidade, aí eu coloquei em pauta a construção de um biodigestor, energia renovável, aquela coisa toda. Eles falaram, “é só você escrever que a gente vai aprovar isso aí”. Eu, de repente, larguei, não falei absolutamente nada, deixei de ir. Me chamaram, na segunda já fui, e eu não dei justificativa nenhuma. E eu sempre conversava com eles sobre responsabilidade, que a gente tem que ter responsabilidade com as coisas, “às vezes vocês não me respeitam”. E eu não fiz isso, abandonei o barco. Mas alguns ainda entram em contato. Eu consegui criar um grupo de rock com eles, são três pessoas. Um grupo de teatro.
P/3 - Tudo com a matemática junto.
R - Tudo com a matemática. Era mais aula de motivação, de despertar. E eu sempre falava do Atados, todos os dias eu mostrava uma vaga para eles. Meu sonho era levar eles no Atados para tocar, apresentar, mas infelizmente não deu tempo, eu tive que sair.
P/3 - A gente agradece, parabéns pelo seu trabalho, pela tua história.
R - Obrigado.
P/2 - Obrigada.
Recolher