P/1 – Primeiro, obrigado pela participação, acho que vai ser uma experiência legal ouvir a sua história. E pra começar eu queria te perguntar o básico do básico: seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Maria Luzia Serraglio. Eu nasci em Presidente Bernardes, oeste paulista, no dia 25 de agosto de 1969.
P/1 – E os nomes dos seus pais?
R – Meu pai é João Bruno Serraglio e a minha mãe é Maria Lorenzoni Serraglio.
P/1 – Fala um pouquinho deles pra gente. Qual é a atividade deles?
R – Meus pais trabalhavam na lavoura, no sítio que era do meu avô, e eles ficaram lá por um bom tempo, até a família estar completa. Nascemos todos e depois eles vieram tentar a sorte na cidade grande, que no caso era Santo André. Em 1973 viemos com cachorro, papagaio, criança, todo mundo, com a fé e a coragem pra iniciar uma vida de operário. Meu pai arrumou emprego numa fábrica, ele era faxineiro, e o maior orgulho dele foi que ele se tornou operador de máquina até se aposentar. E eles conseguiram criar a família inteira de uma forma muito honesta, muito boa e a gente é extremamente grato pela forma que eles educaram e criaram a gente.
P/1 – Falando em família, você tem irmãos? Fala um pouquinho deles, os nomes.
R – Sim, nós somos em quatro irmãos, são três rapazes e eu, eu sou a caçula. O mais velho é o José Carlos Serraglio, depois vem o Luís Cássio Serraglio e o Marcos Gilberto Serraglio. E por último venho eu. Na verdade todo mundo tem um codinomezinho, o Carlos é Carlão, o Luís Cássio é Tinho, não me pergunte por que, ninguém na família sabe o motivo. E o Marcos Gilberto é Nenê porque ele foi o último bebê por cinco anos, depois eu vim, mas aí eu fiquei Maria mesmo, não teve jeito (risos).
P/1 – Mas virou Malu, né?
R – Virou Malu depois de grande porque todo mundo errava meu nome (risos).
P/1 – Mas Malu, antes da gente entrar na sua infância deixa eu rebobinar um pouquinho a fita. Eu fiquei curioso em saber como seus pais se conheceram. Qual é a história de amor deles?
R – Olha, na época as famílias eram muito tradicionais nos sítios. Então lá você não tinha endereço, você tinha o número do quilômetro que a via marcava da cidade que avançava pro sítio. Então tinha os do cinco, os do dez, os do nove, os do três, era o número do quilômetro da estrada. E aí o nome das famílias, o meu pai vinha dos Serraglios, família de italianos, e a minha mãe dos Lorenzoni, que também eram italianos. E eles se encontravam, tinha um coisa que se chamava patrimônio, que era um local meio que regional próximo a esses números dos quilômetros das estradas que era composto por uma igreja, um lugar que vendia secos e molhados, uma sorveteria e uma pracinha, então era o tal do patrimônio. Então festa na igreja era motivo de reunir todo mundo e quando eles se reuniam era na missa ou festas religiosas, essas coisas, e se conheciam dessa forma. Ou tinha umas festas nas casas, porque tinha o tal do paiol, que é onde você guarda as palhas, que em época de casamento, aniversários ou qualquer festa religiosa tirava-se as palhas do caminho, chamava-se um sanfoneiro, um violeiro, tocava-se música e ficava todo mundo dançando até o amanhecer (risos). E eles se conheceram nesses encontros da comunidade local que eles viviam por indicações de família: “Ó, família tal tem boa referência, são gente boa, são gente trabalhadora”. E aí se conheceram, namoraram por um tempo e casaram.
P/1 – Como é que foi passar a infância nessa comunidade, nessa cidade?
R – Olha, eu vim muito nova, eu vim com quase quatro anos de idade pra Santo André, então eu tenho pouca recordação. Mas eu tenho uma memória esquisita porque eu lembro de sensações, de cheiros. Tem uns filmes que eu lembro assim, que parecem que é um filme mas é de verdade, porque não é preto e branco, porque na época só tinha preto e branco. Eu lembro de ações da minha mãe chamando a gente pra se reunir na casa, lembro da minha mãe quarando roupa – que naquela época lá não tinha nem energia elétrica e nem água encanada, quanto menos uma máquina de lavar. Então eu lembro muito bem da minha mãe estendendo o lençol e os lençóis eram feitos de sacos de algodão, que eram brancos. Então eu lembro de uma cena muito bonita que era minha mãe jogar o lençol pra cima e aquilo cair que parecia um paraquedas porque tinha as emendas caindo naquele monte de grama que era pra tomar sol e clarear, isso é uma cena que eu lembro da minha infância. Das histórias que meus irmãos contavam, tinha histórias de família, umas coisas engraçadas que eles não lembram, mas eu que sou mais nova lembro de tanto minha mãe contar. Eu tinha um irmão que era guloso, que quando minha tia fazia bolinho ele nem sabia andar ainda, ele se arrastava assim no chão, chegava na porta da janela, sentia o cheiro do bolinho e falava: “Titi, to ati”, porque ele queria bolinho. E são coisas que a gente fala até hoje, a gente sente um cheiro gostoso na casa da minha mãe: “Titi, to ati” (risos) pra brincar porque são referências de infância. Eu lembro da minha infância com muito carinho. É uma infância saudosa, muito rica de referências, de coisas, a gente era de origem muito simples, muito pobre, então não tinha muito brinquedo, as coisas eram muito simples, então brincava com coisas, não com brinquedos. Então foi muito boa a infância, eu tenho lembranças muito gostosas.
P/1 – Que tipo de coisas?
R – O meu irmão gostava de brincar de, tinha um jogo, em italiano fala tômbola, que na verdade é bingo, mas minha mãe uma vez comprou uma tal de uma tômbola e a gente gostava de brincar. Aquilo era muito bom que a família inteira se reunia em volta da mesa e jogava tômbola. Com feijãozinho marcavas as coisas, tudo, mas esse até tinha o brinquedo, né? Mas eu lembro da gente brincar no quintal de cabana. A gente jogava um pano em cima do limoeiro que tinha e entrava debaixo pra se esconder, fazia de conta que estava fazendo comida, tudo era muito fazer de conta, mexia, fazia, buscava. “Eu vou trabalhar, vou pegar o ônibus”, porque pegar o ônibus era uma coisa incrivel naquela idade, né? E a gente ia contando essas histórias um para o outro e ia brincando no faz de conta. Mas o quintal de casa era muito bom. Ah, teve uma coisa muito legal, apareceu um passarinho, a casa estava meio bagunçada, iam quebrar uma parte para reformar e tinha um buraquinho lá no chão com folhas e acho que foi um filhote de passarinho que caiu do ninho e ficou ali. E aquele passarinho foi o nosso brinquedo pra semana inteira, né, porque ficava com dó, ficava cuidando. Aí a gente separava pão de manhã pra por água pro passarinho comer, pra ele ficar bem, tal, só que infelizmente o passarinho morreu, não resistiu. Nós fizemos o enterro, velório, do passarinho no quintal. Eu e meus dois irmãos, os mais novos (risos).
P/1 – Você falou que ouvia muita história nessa época, que até seus irmãos mais velhos não se lembram e você ainda se lembra. Tem alguma dessas marcantes que você poderia contar pra gente?
R – Deixa eu ver. Deles? Eu tenho minhas também.
P/1 – Algumas dessas histórias que...
R – Que eu me lembre e eles não?
P/1 – Eles podem até se lembrar também, mas que sejam especiais na sua lembrança.
R – Olha, tem uma que foi muito, eu sempre conto essa história pro meu irmão e ele fala: “Puxa, eu não lembro dessa, eu queria ter lembrado”. Nós estávamos indo viajar pra Presidente Bernardes, que é onde eu nasci, e são 650 quilômetros de Santo André até lá. Você imagina 650 quilômetros com quatro crianças. O meu pai dirigindo, a minha mãe na frente, uma Brasília, aquele motor atrás do carro e os quatro atrás. Então era um tédio danado, tinha hora que eu deitava no colo dos três atrás pra esperar o tempo passar. Tem uma certa altura da viagem que você só vê ou plantação de cana ou pasto. Estava lá cheio de vaca pastando. Você está andando na estrada e as vacas continuam lá, parece que elas estão paradas e te acompanhando. Aí eu fiquei olhando um monte das vaquinhas e o meu irmão, o mais novo dos mais velhos que é o Nenê, que é o mais, vamos dizer assim, mais criativo, ele olhou pra mim e falou: “Você está vendo aquela vaca lá?”, uma vaca branca. “Qual?” “A branca” “Tô” “Então, ela dá leite” “Ah” “Você está vendo aquela preta?” “To” “Ela dá café” “Ah...”. Eu devia ter uns sete anos de idade, seis, acreditando. “Tá vendo aquela branca e preta?” “To!” “Café com leite” “Puxa”. E aí eu: “E aquela marrom ali?” “Nescau!” (risos). São as coisas assim. E saía assim, no meio de um passeio, são coisas que eu me lembro com muito carinho.
P/1 – Isso foi numa ocasião em que vocês estavam visitando a cidade natal.
R – A cidade natal.
P/1 – Tá. Eu vou querer saber depois como foi essa ida pra Santo André. Mas antes disso, descreve pra mim um pouquinho o seu pai e a sua mãe, essa memória afetiva que você tem deles na sua infância, na sua formação. Pra quem não conhece seu pai quem é ele?
R – A geração deles não é uma geração que a gente vê hoje que é muito carinhosa, amorosa, com atitudes, com carinho físico. Eu lembro de raros momentos do meu pai dar um beijo no rosto da minha mãe. Eu achava bonitinho quando meu pai chamava ela de nega, porque chamar ela de nega era um momento carinhoso: “Ô nega, faz um não sei o quê, não sei o que lá?”, então era um momento mais carinhoso. Eles sempre se importavam muito com o bem-estar da família. Bem-estar pra eles não era realizar sonhos, trazer presentes, fazer viagens, o bem-estar pra eles era comida na mesa, cama quente e pagar as contas, era subsistência mesmo. Porque o bem-estar que eles receberam dos pais foi bem menos do que isso, então pra eles já era uma coisa melhor pra nós, então pra eles era muito importante trabalhar, trazer o pão pras crianças e manter essa vida dentro de casa. Eu acho, eu olho pra trás e falo: “Nossa, eu não sei como eles fizeram pra criar quatro crianças naquela época com salário de operário, minha mãe vendia Yakult na rua”, eram salários muito pequenos se a gente for comparar com hoje. Era tudo muito subsistência mesmo, sabe? Alimentação, os afazeres. Os nossos passeios eram pra visitar nossos primos que vieram conosco do interior pra São Bernardo, então de 15 em 15 dias nós visitávamos eles à tarde e eles visitavam a gente na outra semana. E as tardes que a gente tinha fazia bolo, que era super normal, até hoje a gente faz sempre bolo quando vem lá em casa. E meus irmãos com meus primos tocavam viola. Então eles tocavam viola, cantavam, era uma tarde de família, junto. Era muito simples, mas era muito gostoso (risos).
P/1 – E sua mãe? Fala um pouquinho dela.
R – A minha mãe? A minha mãe sempre foi uma dona de casa exemplar. A minha mãe é o tipo da mulher que abre a geladeira, não importa o que tem lá dentro, ela faz comida boa. A minha mãe faz uma coisa que eu fui interpretar isso depois que eu saí de casa: a minha mãe diz eu te amo pela boca. Então se você for lá e ela quiser te agradar, ela vai te preparar uma comida, ela vai te fazer um bolinho, ela vai querer saber o que você gosta, porque ela vai fazer alguma coisa gostosa pro seu paladar, ela tem essa mania. E é uma pessoa extremamente cuidadosa com a casa, com os filhos, a prole, os netos, ela é muito caseira. E ela sempre tenta fazer as coisas em casa. Quando a gente era mais novo ela até tentava costurar alguma coisa pra gente vestir (risos), mas ela sempre fez, as comidas ela sempre fez em casa, não é uma pessoa prática, de comprar pronto, tal, é muito caseira.
P/1 – Como é que foi a decisão de vir pra Santo André? Você era muito novinha, mas tem alguma memória dessa viagem, dessa mudança? Conta um pouquinho pra gente.
R – Eu tenho da história que eles contam e do que a gente viveu na infânca. Porque era assim, meus pais trabalhavam pro meu avô e o regime era de subsistência, meu avô não dava salário pra eles. A família inteira trabalhava só que não tinha dinheiro, só tinha o que comer e onde morar. E alguns dos outros irmãos tinham vindo pra São Paulo, trabalhavam, tinham seu dinheirinho, sua casa, estavam crescendo na vida e o meu pai lá trabalhando. E aí a minha mãe falou assim: “Ah, Fulano foi e deu certo, um tio foi, uma tia, vamos também pra lá, vamos tentar a vida, quem sabe a gente não arruma um emprego numa fábrica e a gente consegue ter um futuro melhor, alguma coisa mais nossa, porque aqui a gente não tem nada”. A verdade era essa, eles já tinham uma família composta e o dia que meu avô fosse desta pra melhor ia ter que dividir com todo mundo e ia ser nada. Então eles queriam ter o patrimônio deles, ter a vida deles e a independência mesmo de trabalhar pra si, não pra outra pessoa, pra si no sentido de você receber um salário, um ordenado e poder programar sua vida. E foi aí que eles tentaram. Nós viemos em 73, em junho de 73, aí nós moramos numa casa dos fundos da minha avó materna, que lá era o avô paterno que a gente trabalhava lá no sítio. Viemos, moramos seis meses de favor, minha mãe ajudava a pagar uma conta aqui, outra lá. Ficamos maravilhados com a geladeira porque lá não existia energia, nada disso. Até a minha mãe, eu lembro que ela trouxe carnes, antigamente você conservava carne em gordura, na própria gordura animal, em latas. Sacas de arroz e de feijão pra não ter que comprar comida por um bom tempo. E a gente viveu ali alguns meses assim, com os proventos que a gente trouxe do sítio. E aí meu pai conseguiu um emprego de faxineiro, na época era na Rhodia Têxtil, e as coisas começaram a melhorar.
P/1 – Qual lembrança você tem sua mesmo dessa época? Você tem alguma imagem, alguma impressão desse lugar onde vocês chegaram?
R – Eu lembro que tem várias coisinhas. Eu lembro que a minha mãe ia à padaria muito cedo e trazia, chamava filão de pão, que é um pão desse tamanho. E a gente comia todo aquele pão no café da manhã, um absurdo como a gente comia pão, que era tudo fresquinho, gostoso. No sítio era duro, amanhecido, e ali era fresquinho, a gente comia muito pão. A minha avó tinha no quintal um cachorro, pastor alemão, que era o Pitoco. E o Pitoco era muito bravo, muito bravo. Até ele ficava preso porque se ele ficasse solto ele atacava as pessoas. Tanto é que uma vez ele escapou, meu pai estava voltando do trabalho à noite, ele atacou meu pai, mordeu muito meu pai. E meu pai com medo de ficar sem o emprego foi machucado mesmo trabalhar, sabe aquelas coisas, que antigamente era tudo diferente, né? Aí ele foi, trabalhou todo machucado, mordido, tudo, e não podia fazer nada porque o cachorro era da minha avó, a casa era da minha avó, tudo era da minha avó (risos). Então vai trabalhar e fica quieto, não reclama (risos). Eu lembro do meu irmão na rua porque a rua era plana e o meu irmão gostava de soltar pipa. E meu irmão soltava pipa e eu corria atrás deles o tempo todo: “Fica na calçada, não fica aqui!” “Não, mas eu quero ir com você” “Não, mas fica na calçada”, e eu acompanhava ele na calçada enquanto ele estava soltando pipa na rua. São coisas dessa época da casa.
P/1 – E depois que vocês saíram de lá. Vocês ficaram seis meses lá e aí foram...
R – Meu pai já estava trabalhando, eles tinham uma pequena economia de um arrendamento de terra que eu acho que do sítio que pagaram pra eles, ele emprestou um dinheiro de um outro tio e comprou uma casinha bem velha no bairro. Segundo um primo meu o meu pai não tinha comprado uma casa, ele tinha comprado uma tapera. Você sabe o que é uma tapera? Uma casinha de pau a pique quase caindo aos pedaços. E meu pai comprou a casinha e aí nós nos mudamos pra lá do jeito que ela estava mesmo, ela podia ser uma tapera velha pra qualquer um, mas pra nós era um palácio porque era uma casa com quatro cômodos, tinha banheiro, tinha água encanada, tinha energia elétrica e era nossa. Pra nós foi uma coisa absurda. Ai tinha uma casinha nos fundos que é alugada, então o aluguel ajudava meu pai e a pagar a dívida que ele tinha com o meu tio. Continuaram trabalhando, minha mãe arrumou o emprego de vender Yakult. E naquela época não sei, a gente fazia as coisas acontecerem, sabe? Eles conseguiram pagar toda a casa, depois que pagou toda a casa reformaram a casa e vivem lá até hoje.
P/1 – Como era a infância nessa casa? Qual era a diferença em relação àquelas brincadeiras que você acabou de nos relatar lá no interior e agora, brincar, ser criança nessa casa em Santo André?
R – Ah, tinha um quintal gostoso pra brincar. Eu lembro que nos fundos a vizinha que morava lá tinha quatro filhos também, igual mamãe, e todas as faixas etárias parecidas, eram um pouco mais velhos. Então a gente brincava muito com eles no quintal. A rua era diferente da rua da minha avó porque a rua da minha avó era plana, a nossa era uma descida assim, descidona. Então meu irmão ia soltar papagaio, enroscava tudo no fio. Jogava futebol na rua. E eu sempre só podia assistir porque eu era muito pequena. A diferença de idade do meu irmão mais novo é de cinco anos e meio. Cinco anos e meio, seis anos e meio, sete anos e meio. Então eles brincavam muito e eu assistia. Mas de vez em quando eu dava um jeito de entrar na brincadeira deles também. E tinha o pessoal da rua que morava na rua, então tinha uma menina na frente da casa que era da minha idade, a gente logo fez amizade, vivia brincando, brincava na rua, brincava no quintal. Era bem gostoso.
P/1 – E escola? Como é que foi a sua entrada na escola aqui em Santo André?
R – (risos) A escola é um capítulo à parte porque todo mundo ia pra escola menos eu. E eu morria de vontade de ir pra escola, eu era louca, alucinada pra ir na escola. E naquela época não existia pré-escola pública, era só particular. E imagina, a gente estudou só em escola pública, não tinha condição de pagar escola. E eu, ainda por cima, fazia aniversário no segundo semestre, então eu tinha que entrar na escola com sete anos de idade, não podia entrar com seis. Aí teve um ano que todo mundo ia pra escola e eu fiquei o ano inteiro, sentava na calçada e chorava porque eu queria ir pra escola e via todo mundo indo pra escola. Quando eu fui pra escola foi uma coisa assim, eu fiquei tão, tão feliz e alucinada. E como o povo ia todo mundo junto, então tinha crianças que estavam no segundo, no quarto, no quinto, no sexto ano e era todo mundo no mesmo período. A escola ficava duas quadras abaixo de casa e a gente ia todo mundo junto. E na época a gente até usava um aventalzinho, um avental branco sobre a roupa, não usava mais uniforme. E eu lembro do meu primeiro dia na escola, que eu fui com os amigos da rua, aí chego lá, chamaram tudo pra ir pra escola, o chão era de madeira e você subia batendo o pé nas escadas assim, fazer barulho, tal. Aí subia, assistia aula, tudo, foi incrível. Um monte de pessoas como eu. Tinha um menino que chorava o tempo todo, eu não entendia por que ele chorava, que eu estava numa felicidade estar na escola (risos). Aí terminou a aula. Vamos todo mundo embora, né? Quem falou que deixava ir embora? A escola era da uma às cinco. Eu querendo ir embora e a professora, servente, o pessoal da escola: “Não, você tem que esperar sua mãe vir te buscar” “Mas minha mãe não vem me buscar” “Como não?” “Não, minha mãe não vem me buscar. Eu vou embora com meus amigos da rua” “Não, você tem que esperar sua mãe” “Não, minha mãe não vem me buscar, moça, eu tenho que ir embora, eu vou com eles” “Não”. Acho que eu fiquei uns 40 minutos lá, porque não deixavam eu ir embora. Até que eles realmente entenderam: “Não, mas eu moro aqui na rua de cima, aqui, eu vou lá andando, eu ando aqui no bairro, tudo”. Imagina, né, sete anos de idade naquela época eu ia no mercado comprar coisas. Aí a mulher deixou eu ir embora pra casa, acho que ela também queria ir embora, não quer ficar mais lá. Enfim, consegui ir embora pra casa no meu primeiro dia de escola (risos) porque tinha que voltar sozinha.
P/1 – E dessa primeira fase na escola teve alguma professora marcante cuja lembrança você ainda traz com você e te influenciou?
R – A primeira professora sempre impressiona, né? A dona Irce. Ela tinha um perfil, parecia aquelas mulheres inglesas, elegantes, sabe? Magrinha, alta. E ela era muito catedrática, falava tudo certinho, tudo era muito legal. Mas acho que no início a que mais me impressionou foi a do segundo ano, que foi uma professora que chamava Ana. Diferente da anterior, ela era divertida e ela deixava a gente usar caneta, já podia usar, pelo menos pro título dava pra escrever. E ela tinha uma didática diferente, mais divertida. Eu lembro, eu tinha muito carinho por ela porque eu gostava.
P/1 – E anos que se seguiram nessa escola, tem outra passagem que te marcou, por exemplo, como essa do primeiro dia que você acabou de nos contar? Seja na relação com os amigos, ou na parte mais de trabalho mesmo pra escola.
R – É, eu estudei lá o meu primeiro grau inteiro, foi um ano numa escola provisória e sete na outra que terminou. A gente conhecia todo mundo, a gente cresceu junto ali. Então nós tínhamos professores, que nós tivemos professores e nós sabíamos que professores nós íamos ter nos próximos anos. Até o meu irmão brincava, tinha um professor de Português que ele é poeta, até hoje ele ainda vende poemas lá no teatro municipal. E o nome dele eu acho que é Carlos, é isso. Cláudio, Cláudio! O nome dele é Cláudio. Só que o apelido dele era Cascão. E meu irmão sempre falava: “Você ainda vai ter aula com o Cascão, você ainda vai ter aula com o Cascão”. Eu falava: “Caramba, quem é esse Cascão?”. E ele era Cascão porque o pessoal achava que ele era sujinho. Ele pegava o avental, amassava de qualquer jeito, jogava no armário, catava ali, colocava e ia dar aula, né? E ele fazia uma coisa que é de autoria dele que é muito legal e hoje quando eu lembro disso eu falo: “Nossa, nós gostávamos, nos divertíamos, aprendíamos”. E eu não sei por que as pessoas não transformaram isso numa coisa da aula. Ele dava aula de Língua Portuguesa. E ele fazia uma competição ortográfica toda sexta-feira. Então no primeiro dia do ano ele anotava as fileiras, os nomes e aquela seria a sua posição. Você podia mudar de posição, mas no dia da competição ortográfica você tinha que ir praquela carteira porque a competição era entre as filas da classe. Ele chamava você no quadro e ele pegava o dicionário e abria, como se fosse uma bíblia. Pegava a primeira palavra que estava lá em cima e ele ditava a palavra e você tinha que escrever a palavra na lousa. Se você acertasse valia um ponto. E na primeira sexta-feira do mês era com significado, se você acertasse valia um ponto, se você soubesse o significado valiam dois. E se você não sabia o aluno de trás ia falando, até terminar a sua fila. E isso ajudava muito a gente a aprender a escrever direito. Às vezes ele perguntava: “Por que essa palavra se escreve assim e não de outro jeito?”. Regras de ortografia mesmo. Às vezes ele perguntava: “Qual é o radical dessa palavra? O que essa palavra tem, ela tem prefixo? Ela tem sufixo? Me fala um sinônimo dessa palavra, me fala o antônimo dessa palavra. O que essa palavra é, um substantivo? Um verbo, um advérbio”. Então eram coisas que você fala assim: “Pô, olha quanta coisa que você aprendia e era uma brincadeira”. A gente passava a aula se divertindo escrevendo na lousa o que ele ditava, então isso é uma coisa que me marcou muito. E eu gostava, gostava demais disso.
P/1 – Nessa época da infância também tem o lado às vezes difícil, do bullying, de frustrações com as quais você começa a se deparar no convívio social. Tem alguma lembrança desse seu primeiro grau, alguma passagem que seja uma passagem não muito alegre que tenha te marcado?
R – Tem, tem uma que eu acho que eu posso dizer até que foi a única que me marcou dessa forma porque ela foi bem ameaçadora pra mim na época. Eu deveria estar acho que no terceiro ano, ou no primeiro, acho que no terceiro ano. A gente estava aprendendo a somar, fazer somas com números, né? E a professora pedia pra nós levarmos palitos de fósforo usados pra poder fazer grupinhos, então você aprendia a somar, multiplicar, era um ábaco de palitos de fósforo. E eu lembro que a minha mãe gastava até o último fio do fósforo (risos) era difícil conseguir todos, mas dava um jeito, né, pedia pra vizinha, pedia pra não sei quem. E estavam lá os meus, todos arrumadinhos. E tinha uma menina na sala, o nome dela acho que era Maíra, e ela era mais velha que a turma, uns dois, três anos mais velha. E ela era bem maior e os meninos tiravam sarro dela, chamavam ela de Maguila Gorila porque ela era um pouquinho obesa, isso era bullying nela. E eu não sei o quê que houve que ela criou na cabeça dela que os meus palitinhos eram dela e ela queria de volta. Eu falei: “Não, mas são meus, a minha mãe que me deu” “Não, é meu, me devolve”. Tipo, ela pegou alguém na sala, porque eu sempre passava desapercebida, né, muito na minha, tranquila. E acho que ela resolveu pegar alguém que ela pudesse dominar pra se vingar do bullying que ela passava com os meninos. E ela queria porque queria aqueles palitos de fósforo lá. Eu falei que não, que era meu, não sei o quê e ela começou a falar que ela ia me pegar na saída, pra me bater. E eu era pequena, magrinha, miúda, ela ia me fazer de gato e sapato. E eu fiquei com medo. Aí eu fiquei com medo de contar pra minha mãe porque se eu conto isso pra minha mãe em casa minha mãe vai dar bronca em mim, ela vai falar: “O que você fez pra ela fazer isso?”, ela não ia acreditar. Eu cheguei pro meu irmão, pro Nenê, e contei pra ele o que estava acontecendo. Eu falei: “Olha é assim e assim”. Ele falou: “Você não pegou dela?”. Eu falei: “Imagina, pra que eu pegaria? Está os da mãe, que está aqui, ó”. Até ele olhou, ele reconheceu os fósforos que a minha mãe usa. Aí ele falou: “Tá bom, ela tá te falando que vai te pegar na saída?”. Eu falei: “É, to com medo, ela é muito grande. Eu tenho saído correndo mas eu não sei se vai dar certo sempre, porque ela está de olho em mim”. Ele: “Tá bom, eu vou te esperar”. Porque ele saía em um outro horário da escola, só que ele saía antes, aí ele foi me esperar na saída. Ele ficou uma semana indo me buscar na escola. E a menina via que meu irmão mais velho estava comigo e ela deixou pra lá, graças a Deus, não me bateu, não fez nada comigo (risos). Mas eu lembro até hoje, eu fiquei em pânico, eu falei: “Eu vou apanhar”. E era tudo muito ruim. Era o medo de apanhar, de ser machucada, a vergonha, a humilhação. Não ser de verdade, que era a pior coisa, né, eu não conseguia convencê-la de que eu estava certa e ela errada. E diante dos meus amigos, como que seria? Das pessoas. E ninguém sabia. Porque se você conta pra alguém parece que tira sarro da sua cara, faz bullying também. Esse foi traumatizante.
P/1 – Que bom que teve um final feliz.
R – Graças a Deus. Meu irmão sempre me protege, até hoje, parece que a gente tem um acordo de conduta, sabe? A vida inteira a gente se recorre um ao outro, a gente tem muita similaridade de pensamento. Ele pra mim sempre foi o meu mentor. O meu pai é uma pessoa muito digna, morro de orgulho do meu pai, tenho muito orgulho de tudo o que ele fez na vida, mas o meu irmão fazia coisas que meu pai não fez. Meu pai estudou até o terceiro ano só, então tudo o que meu irmão fazia, e ele era admirado porque ele sempre fazia tudo muito bem feito, muito inteligente, um cara que ia bem na escola, tudo, ele pra mim era a minha sequência, eu tinha que fazer como ele para ficar tão bem quanto ele.
P/1 – Que bom, que bom que tinha uma boa referência, né?
R – Tinha. Ele sempre foi uma referência pra mim.
P/1 – E nessa época da escola, qual era o seu sonho? Você se lembra o que você queria ser, o que você sonhava pra sua vida?
R – Eu queria ser desenhista (risos), eu queria desenhar. Eu sempre gostei de desenhar.
P/1 – Como é que o desenho entrou na sua vida? Como é que você se relacionava? Conta um pouquinho desse seu lado desenhista na infância.
R – Ah, eu não podia ver um papel que eu queria desenhar, tudo tinha vontade de desenhar. Quando a professora falava que no final da aula ia ter um desenho pra colorir como tema de Dia da Árvore, Dia do Soldado, não sei o quê eu ficava, nossa, eu ficava: “Hoje no final eu vou pintar, eu vou pintar”, eu ficava feliz da vida porque ia desenhar ou pintar. E eu lembro que tinha muito concurso na escola de cartazes, que eles faziam. Quando tinha trabalho de escola, quando começou a fazer trabalho em grupo até eu tinha um amigo meu que a gente fazia trabalho junto. Quando era pra pesquisar as coisas ele pesquisava, quando era para desenhar eu que fazia, e era sempre o nome dos dois nos trabalhos. E tinha muita campanha pra jogar o lixo no lixo, campanha pra manter o banheiro limpo, pra economizar a água, lá na época por causa de gasto, não de consumo. Alguma coisa para uma data comemorativa. E eu sempre ganhava os concursos, então também era um incentivo que eu tinha, que eu gostava muito, fazia, caprichava, cada hora fazia de um jeito, fazia com recorte, com colagem, com desenho, preto e branco, usava grafite, não sei o quê e todo mundo gostava, eu acabava ganhando esses concursos assim. Então sempre foi, de uma certa forma, um incentivo.
P/1 – Só um parênteses, quando você foi pra Publicidade depois você trabalha em alguma área que envolve desenho ou uma outra?
R – Sim, faço direção de arte.
P/1 – Ah, então legal, a gente retoma isso então lá na frente.
R – Teve uma outra coisa no meio do caminho porque eu adorava jogar bola, jogar vôlei. Eu comecei a jogar vôlei com oito anos de idade e joguei até os 16, que eu parei porque eu comecei a trabalhar. Na época eu estava com 12 anos de idade e naquela época o voleibol era o futebol que hoje é na cabeça dos meninos, mais em Santo André que tinha a Pirelli, não é do tempo de vocês.
P/1 – Sim, eu conheço, eu gosto muito de vôlei também, que legal.
R – Isso foi na época do Bernard, do William, Montanaro.
P/1 – Geração de Prata.
R – Aquela seleção era tudo da gente. E adorava jogar voleibol. E eu ia jogar bola no Pedro Dell’Antonia, que é estádio municipal de Santo André. Então eu jogava bola na escola, era da seleção da escola de vôlei, e treinava no estádio municipal. E lá tinha o ginásio onde a Pirelli locava pra treinar e a gente ficava encantado. Teve um dia que teve pré-seleção pra equipe mirim e a gente ficou de olho porque a gente queria fazer, eu e mais umas meninas lá. A gente fez um teste, na época era um japonês, ele chegou a ser técnico da seleção brasileira na época, até tinha umas meninas lá que fizeram com a gente e que chegaram à seleção. E aí a gente fez o teste e a gente passou e nós fomos convidadas pra fazer parte do time aí pra treinar na Pirelli. Nossa, eu cheguei em casa assim: “Mãe, você não sabe o que aconteceu, mamãe! A gente fez teste”. Porque o ginásio ficava a um quilômetro e meio de casa e a gente ia andando, jogava bola e voltava, tudo normal. “Você não sabe, mãe, eu fiz teste, eu entrei pra Pirelli!” “Entrou o quê?”. A minha mãe fala igual a Nair Belo, sabe? “Entrou o quê?” “Na Pirelli, mãe, pra jogar vôlei” “Vôlei?” “É” “Não” “Como não, mãe, eu jogo vôlei todo dia, caramba, qual o problema?” “Não” “Mãe, eu entrei na Pirelli, mãe! Não é todo mundo que entra, mãe” “Não. Jogar bola não é profissão, você não vai jogar bola” “Mãããeee!”. Aí meu irmão tinha chegado do trabalho e falou: “Aconteceu a mesma coisa comigo, eu tinha entrado no corintinha lá, no júniors, e ela não deixou jogar porque ela falou que jogar futebol não era profissão de gente”. Eu falei: “Mas, mãe” “Não”. E falou que não é não, né? “Mãe, se um dia eu não for desenhista a culpa vai ser sua porque eu não fui o que eu queria ser” (risos). E ela falou que ela guardou isso na cabeça até eu me formar (risos).
P/1 – Que bom. Mas então você não seguiu no vôlei na Pirelli.
R – Não, não segui, não consegui.
P/1 – Você disse que jogou até os 16.
R – Jogava.
P/1 – Então o vôlei estava presente na sua vida nessa sua transição infância-adolescência, etc. Então vamos usá-lo como porta de entrada pra essa nova fase da sua vida. Como é que foi esse transformar em adolescente naquele momento, naquele local em Santo André, o que se transformou na sua vida? Você mudou de escola? Conta um pouquinho pra gente dessa transição.
R – Essa é uma fase, né? Eu falo, as pessoas olham os adolescentes com 13, 14, 15 anos e falam assim: “Ai, que época boa”. Eu falo: “Deus me livre!” (risos), a época mais difícil da vida é essa. Você não é criança e você não é adulto. Você não se enquadra nas conversas porque você não é criança e você não é adulto. E na minha época criança não tinha muito o que falar, né? Então: “Pô, se eu já faço um monte de coisa de adulto por que eu não sou adulto?” “Não, você é adolescente, então paciência”. Mas eu passei jogando bola. Eu era uma menina moleca, pra mim roupa legal era um agasalho esportivo, uma joelheira bem resistente pra cair e não machucar o joelho pra dar peixinho. Atitudes bacanas era aprender a fazer o saque jornada nas estrelas, tudo se resumia ao voleibol. Até as paqueras eram em volta de voleibol, sabe? Tudo era legal no voleibol. Então as conversas eram sobre jogos, os passeios eram tudo perto do estádio porque a gente ia ver se conseguia assistir algum jogo, era tudo em torno disso. E eu lembro que o colégio eu terminei aos 14 e eu comecei a namorar muito novinha, fui precoce.
P/1 – Como que foi essa história?
R – Então, o pessoal todo da rua era tudo mais velho que eu, eles já iam pro bailinho, pra domingueira. E eu lembro que eu tinha 13 anos de idade eu cometi um crime, eu alterei a minha carteirinha da escola para eu assistir A Lagoa Azul no cinema. Era 14 anos, eu tinha 13. Aí, data de nascimento, 1969. Eu falei... “Hum”. Puxei a perninha ali, virou um oito, maravilha, fui assistir A Lagoa Azul no cinema. Com essa carteirinha eu conseguia ir na domingueira, que era 14 anos pra cima. Porque naquela época a gente não tinha identidade, a RG foi tirada com 15 anos eu acho, alguma coisa assim. E se estava também não usava, usava a carteirinha porque aquela lá é que me dava uma idade mais. E como eu sempre fui muito alta, com 13 anos eu tinha a altura que eu tenho hoje, tinha 1 metro e 72 já, então passava por 16 anos tranquila, nunca ninguém me barrou. Só na escola me chamaram, a diretora me chamou pra dar uma bronca porque foram fazer a carteirinha para o próximo semestre e viram que estava adulterada. Ela me ameaçou mandar pra juizado de menores e pra prisão. Na hora eu falei: “Não, eu prometo que eu nunca mais vou fazer isso”. Aí eu saí e as meninas disseram: “Não vai mais fazer mesmo?” “Não, mês que vem eu faço 14, está tudo bem” (risos). Mas foi um delito meu. Então a gente ia no cinema, ia na domingueira, eu ia com toda a turma da rua, a minha mãe até deixava porque conhecia as meninas já de muitos anos, a gente já estava há dez anos morando ali, e a gente ia todo mundo junto. E na domingueira você conhece as pessoas, aí eu conheci um rapaz lá, a gente começou a namorar, namorico bobo, e o namorico bobo durou cinco anos. E era engraçado porque eu só encontrava com ele na domingueira e eu só podia ir na domingueira de 15 em 15 dias. Então às vezes ele vinha ver eu jogar bola no estádio porque lá era minha diversão. Ele fazia Senai na época, vinha lá e ficava vendo a gente jogar bola. Mas era uma coisa tão ingênua, era tão puro, vou falar, porque a alegria da gente era se ver. Então a gente se encontrava, andava de mão dada, dava um selinho, beijinho assim e ele ficava vendo eu jogar bola. Só que num desses retornos pra casa, até chegar uns três quarteirões da minha casa ele vinha de mão dada comigo, depois ele soltava, pegava o ônibus pra ir pra casa dele e a gente vinha pra casa. E sempre com a turminha, a gente nunca saiu sozinho, nada. Só que aí o meu irmão começou a desconfiar que tanto eu jogava bola. Só que ele desconfiou na hora certa porque fazia uns 20 dias, nem um mês que eu tinha começado a namorar com ele e a gente se via de 15 em 15 dias (risos) quase nada, né? E ele pegou o carro, chegou em casa, que ele já estudava longe, tal, ele falou pra minha mãe: “Onde ela está?”, porque ele já tinha, acho, 19 anos. Ele falou: “Cadê a Maria?”. Minha mãe falou: “Ah, foi jogar bola lá no estádio com as meninas” “Ah tá”. E ele foi rondar pra ver. E ele viu, passou com o carro e viu eu de mão dada com ele. Eu nem tinha percebido, quem veio me avisar foi minha vizinha, ela falou: “Ó, a casa caiu pra você, nega. Seu irmão passou aqui de carro e viu você com o seu namorado”. Eu: “Ô-oh, e agora? Nossa, não pode ser, e agora?”. Eu sei que ele saiu, ele namorava com a minha cunhada já também na época e acho que ele demorou pra vir. Eu sei que eu fiquei umas três horas sentada na calçada esperando ele chegar antes dele entrar pra conversar com ele. Ele chegou, encostou lá e eu falei: “Oi”. Ele: “Oi”. Eu: “Você foi onde?” “Ah, fazer umas coisas por aí, fui estudar, fui no curso de violão” “Hum. Você foi lá perto do estádio hoje?”. Ele: “Fui”, tipo, pergunta logo, né? Aí eu: “Hum”. E eu não conseguia perguntar porque parece que você está dando a mão à palmatória, né? Aí ele virou pra mim e ele falou assim: “É, eu vi”. Eu falei: “Você viu?”. Ele: “Eu vi. Quem é esse cara?”. Eu falei: “Ah, é um rapaz que eu conheci no Aramaçan, na domingueira” “Tá namorando?” “É” “Quantos anos ele tem?” “Dezoito” “O quê???”. E ele era um molecão, ele tinha 18 mas uma cabeça de 14, 15 anos, molecão total. Eu era a primeira namorada dele, ele era meu primeiro namorado, nada. “Você está louca?” “Não, ele é gente boa, se você quiser eu te apresento ele, não tem problema” “Não, onde já se viu. Você é louca? Não, não. Não é assim”. Como ele estava passando a mesma situação ao inverso com a minha cunhada porque o pai dela também não sabia, aí eu peguei e fiquei sentada assim e ele sentado comigo na calçada, do lado assim. Então você imagina, eu com 13, ele com 18, os dois irmãos ali sentados, ele olhou pra mim e falou assim: “Bom, eu não vou contar pra mãe, só que é o seguinte, eu vou querer conhecer ele, eu vou querer ver ele e você tem que agir direitinho, rapaz não gosta de menina fácil. Você não pode deixar ele fazer o que ele quiser com você, você é muito nova”. Ele me passou o que minha mãe e meu pai deveriam ter passado. E eu cheguei e falei: “Tá bom”. Ele falou: “Então você se respeita que ele vai te respeitar”. Eu: “Tá bom”. E aí eu achei aquilo muito simples, porque eu já fazia isso. Eu falei: “Então tá bom”. Daí pra frente era uma situação assim, eu apresentei ele na domingueira, ele conheceu ele, tudo, não sei o quê. Ele falou assim: “Só quero saber quem você é, tudo, pra saber com quem minha irmã está, tal, mas né” “Não, tudo bom, tal”. E eles se deram super bem na época. Aí passou um mês e pouco, tal, a vizinha da frente deve ter visto alguma coisa, viu ele passando na rua lá no bairro. E era mãe da minha amiga de frente. E essa mulher na época era um pouco maldosa, então ela ia tirar muito sarro da minha cara pra minha mãe, pra contar. E aquele dia eu queria dormir e nunca mais acordar, era uma sexta-feira. De manhã no sábado eu falei: “Agora eu vou ter que contar pra minha mãe, porque se eu não contar pra minha mãe ela vai contar do jeito dela, que é um jeito que minha mãe vai pensar totalmente diferente do que realmente é”. Ela ia maquiar muito e ela ia falar com maldade, sabe? Eu acordei, tomei café da manhã e falei: “Mãe, eu preciso te contar uma coisa” “Ah, o quê que é?” “Não, mãe, é que sabe, a gente vai lá na domingueira”, sabe aquela coisa, enrola, enrola, enrola, aí eu consegui contar. Nossa, minha mãe ficou louca, ela ficou louca, louca, louca. Ela: “Onde já se viu? Você ainda é menina!” “Menina nada, mãe, eu já sou mocinha faz tempo” (risos). “É, pra lavar a louça você não é mocinha, mas pra namorar é, né?” “Pô, mãe, não é assim, não sei o quê, não é assim também que você está pensando”. Foi engraçado que ela falou: “Você vai ver, quero ver quando seu irmão souber. Aí sim eu quero ver”. Aí eu (segura risada): “Tá, né”. Aí chega a hora do almoço, meu irmão trabalhava e ele vinha almoçar meia hora. Ele sentava na ponta, minha mãe de um lado e eu do outro da mesa. E ele comendo e a minha mãe: “Quero contar uma coisa, viu?”, pra ele. E eu assim, olhando pra minha mãe e olhando pra ele. “É, o que é, mãe?” “Não, essa daí”, meteu o pau em mim, falou, falou, falou: “Tá de namoradinho, que não sei o quê”. Meu irmão comendo assim (risos), ele só virou o olho pra mim, eu virei pra ele, tal. Eu falei, quero ver o que ele vai falar, né? Aí minha mãe falou, falou, falou, a hora que ele terminou ele virou pra ela e falou assim: “É, mãe, eu sabia” (risos). “O quê??? O que vocês estão pensando? Eu não mando mais nessa casa”, que não sei o quê. Ele falou: “Ah mãe, é um namoradinho, eu não ia contar pra senhora. Eu também passo pela mesma coisa com a Carolina, tal”. E eu acho que esse foi um ponto em que eu entendi que ele sempre estava tentando cuidar de mim, de alguma forma ele cuidava. E foi assim a vida inteira, ele me dava conselhos, ele fez colégio técnico, eu quis fazer colégio técnico, ele fez faculdade, eu quis fazer faculdade, que o outro irmão não fez. E tudo o que ele, é incrível que até hoje. Ele casou com a minha cunhada e eles tiveram a vida um pouco complicada porque o sonho do meu irmão era constituir família e ele casou muito jovem com ela. Eles ficaram um tempo curtindo a vida, uns sete, oito anos curtindo a vida pra ter o primeiro filho e quando ela engravidou do primeiro bebê eles tiveram um problema e a criança foi natimorta, ela morreu na última semana de gestação, na barriga. Então foi um trauma muito grande pra eles e pra família toda porque era o primeiro neto, primeiro sobrinho, tal. E foi muito triste porque na época eu ficava me questionando, com toda religiosidade que a gente tinha, tudo, eu falava: “Meu Deus, por que com ele? Ele não merece”. Pra mim ele era o cara, é o cara, não podia acontecer uma coisa dessas com ele. E aconteceu. Aí eles estavam pesquisando o quê que tinha ocorrido, tudo. No final da pesquisa minha cunhada estava grávida novamente, aí ela teve uma menina, foi tudo programado, o parto foi cesárea, agendado, tal. E a minha sobrinha nasceu. E a gente achava que tinha algum problema com a criança porque a gente brinca muito, ela não tinha reflexos. A gente pegava um brinquedo vermelho e punha na frente, a visão dela não reagia. E eu e minha mãe ficávamos nos questionando, falando assim, era Maiara o nome dela: “A Maiara não está desenvolvendo direito, tem alguma coisa. E se a gente tocasse nesse assunto com a minha cunhada, minha cunhada era muito bruta, ela ficava muito nervosa e falava: “Cada criança tem o seu tempo de desenvolvimento, o pediatra disse que está tudo bem”. Só que tem pediatra que só serve pra medir o peso e o tamanho da criança, sabe? No caso... Aí com oito meses de idade foi detectado que ela tinha uma síndrome de Jordan, que era uma síndrome rara onde se meu irmão tivesse filhos com qualquer outra pessoa seria perfeito, minha cunhada com qualquer outra pessoa também seria perfeito, a junção cromossômica deles, não é sanguínea, nada, a junção cromossômica, sabe quando junta os 23 de cada lado assim? Tem um que fica uma rabíola. Não é Down, mas ele fica um cromossomo sobrando. E essa síndrome é rara, a criança é completamente cega, ela tem uma deficiência renal leve, ela não tem coordenação motora, então o pescoço não firma, né, tal. E se você não tem coordenação motora você também tem um certo retardamento mental, não desenvolve normal. E a expectativa de vida era de dois anos de idade. Foi, acho que, você está pronto pra tudo na vida, sabe? Pra você perder alguém, mas não pra perder um filho. Acho que quando você perde um filho vai um pedaço de você junto. E na época foi uma sentença que pra gente baqueou a família inteira. E aí foram buscar um monte de tratamentos alternativos. A minha sobrinha foi uma das primeiras crianças a receber equoterapia, sabe aquela coisa com o cavalo? O reflexo, assim. Aquaterapia. Encontramos uma escolinha, minha cunhada encontrou uma escolinha pra crianças especiais. E ela viveu seis anos e meio. Ela chegou num ponto em que a gente não acreditava mais na Ciência, a gente acreditava nela. O ginecologista que fez o parto, que é o ginecologista da família inteira porque ele fez o primeiro parto da minha cunhada quando ela perdeu e virou o médico de todo mundo. Ele sempre falava: “A Maiara viveu de amor porque essa síndrome não sobrevive”. E tem muito pouco, caso raro, então não existe pesquisa, não existem estudos pra você ver o que pode ser feito pra melhorar e tudo. Mas ela superou tudo isso. E aí foi, né? Foi um pedaço.
P/1 – Que barra, hein?
R – Foi. Eu lembro que na época, no dia do enterro eu ficava atrás do meu irmão o tempo todo. Porque assim, pra você ter uma ideia como eles eram cuidadosos, o óbito seria uma parada respiratória, às vezes ela poderia suportar a primeira, mas talvez a segunda, não. Então eles calcularam o tempo que eles gastariam de casa pro PS mais perto que tivesse pra fazer o caminho mais curto pra ver como chegaria lá a tempo suficiente deles entubarem, fazer alguma coisa pra segurar. Então eles calcularam rota, calcularam caminho. E quando aconteceu foi minha cunhada com a vizinha pra levar, ela chegou já com óbito no PS, não teve jeito. E ele tinha um, nossa, a Maiara era tudo, né? Tudo e mais um pouco. Ela dava um trabalho danado, mas era o melhor trabalho do mundo porque era filha deles. Minha cunhada sempre tratou com muito amor, muito carinho, muita paciência. Não tinha uma vez que a Maiara não estivesse arrumadinha, bonitinha. E ela tinha uma coisa assim, quando você pegava ela, ela tinha um reflexo que ela te apertava, um sapinho, sabe assim? Então a gente chegava perto dela, ela conhecia pela voz, que ela não enxergava. Aí eu chamava ela de princesa. Eu chegava, encostava pertinho e falava: “Cadê a princesa da tia?”, aí ela soltava um miadinho (hum hum hum) e agarrava no pescoço e não soltava mais. E essa era uma sensação maravilhosa, que era o contato que você tinha com ela. E no dia que teve o enterro, tudo, eu falava pra ele o tempo todo, eu ficava atrás dele, né? Eu falava: “Nenê, chora” “Não, eu estou bem”. Dava a volta, voltava. “Nenê, fala alguma coisa” “Não, eu estou bem” “Nenê, xinga, bate em mim, faz alguma coisa. Meu, você não pode estar bem. Você sabe quem está lá” “Eu sei. Eu estou bem”. Eu falei: “Meu Deus do céu, ele vai desmoronar no momento...”. Aí aconteceu o enterro, tudo, falei pra ele: “Vamos lá pra casa da mãe”, eu morava na minha mãe ainda. Ele: “Não, eu vou pra minha casa, eu estou bem”. E a minha cunhada também, aos pedaços, só que minha cunhada botou pra fora, ele não. Aí eu cheguei em casa, toca o telefone, é ele. Eu escutava a minha mãe assim no telefone: “Tá, você tá bem, filho? Vem pra cá. Não? Então tá. Tá, ela tá aqui”. Eu falei: “Ai meu Deus, ele quer falar comigo. E agora, o que eu vou falar pra ele?”. Porque eu acho enterro uma coisa tão fatídica pra quem está perdendo, porque você ouve um monte de frase feita, sabe aquela coisa de pasquim, que não ajuda em nada. Eu detesto frase feita, se alguém chega pra mim e fala assim: “Ah, não era pra você. Ah...”. Eu acho isso, não repara, fala alguma coisa que você sente por mim que é melhor, não fala isso. Minha mãe passou o telefone e falou: “Ele quer falar com você”. Eu falei: “Tá bom”. Eu falei: “Oi Nenê”. Ele: “Oi. Fala alguma coisa pra mim”. Eu falei: “Nenê, o que eu vou te dizer, Nenê? Eu não sei. Eu ouvi as pessoas falando tanta coisa pra você hoje e eu não queria dizer nada do que elas disseram pra você porque aquilo não resolve” “É, eles disseram que ela vai ficar melhor assim, que ela vai ficar mais feliz, que ela vai estar com Deus. Ela é minha filha, eu que sabia o que era bom pra ela, eu dava o que era bom pra ela. Ela tinha que ficar comigo”. Eu falei: “Eu concordo com você, também acho que vocês foram mais do que poderia ser e era o melhor pra ela”. E sabe quando você não consegue? Aí eu ficava cantando na orelha dele, depois de um tempo: “Adota uma criança”. Porque a possibilidade deles terem uma outra criança com o mesmo problema era muito grande. Aí eu falava assim: “Então faz vasectomia”. E eles sempre foram tão racionais. Ele falou: “Não. A gente não vai se esterilizar porque vai que amanhã a gente se desentenda e se separa? A gente vai neutralizar a possibilidade de ter um filho um do outro? Não”. Eu falava assim: “Então adota, adota uma criança. Tem tanta criança por aí”. Porque eu sempre pensei isso, quando eu era criança eu imaginava isso um dia na vida. “Ah não, não”, porque a minha outra sobrinha também é adotiva, de Campinas, do outro irmão, que é uma outra história absurda também. Aí passou o tempo e ele: “Não, não, não quero. Queria meu, se não é meu a gente vai viver a nossa vida, a gente vai viajar, vai conhecer o mundo e tudo bem”. Eu falei: “Então tá”. Eu falei: “Eu vou parar de bater na mesma tecla porque quando você cutuca uma ferida ela não cura, né?”. Aí teve um sábado que ele me ligou todo feliz assim, falou: “Tudo bem?” e eu: “Tudo, e você?” “Ah, tudo bem. Sabe onde eu fui hoje?” “Não, onde é que você foi hoje?” “Eu fui num grupo de adoção” “É mesmo? Pô, que legal”. Tenho dois sobrinhos, o Henrique e a Gabi, os dois são adotivos. Eles precisavam disso, precisavam completar a família. E ele conseguiu.
P/1 – Que bom que conseguiram, né?
R – É muito bom.
P/1 – Mas que história, hein?
R – É longa, né? Mas é uma coisa que a gente viveu intensamente e a gente sente muita falta dela, mas a gente tem uma esperança, né, a gente foi criado de uma forma que a gente acredita que essa vida não é em vão, a gente precisa passar por uma outra coisa mais interessante, quem sabe um dia a gente se encontra de novo. Aí sempre que eu vou num velório eu sempre falo, aprendi isso da minha mãe, a gente não está lá por quem está morto, mas pela família que está em volta, você tem que dar suporte pra quem fica porque o sofrimento da perda é muito grande. E nossa, inúmeros velórios que eu fui e a minha sobrinha é a única pessoa que eu vi e que eu olhei e falei assim: “Eu ainda vou sentir o seu abraço de novo”, é uma coisa que eu tenho guardado forte em mim que eu acredito muito que eu ainda vou encontrar com ela de novo.
P/1 – Se Deus quiser. Na medida do possível, vamos agora voltar um pouquinho na sua história pessoal pra te alcançar novamente ali na sua adolescência. E eu queria saber um pouco como que as questões da vida adulta, sobretudo escolhas profissionais de faculdade, etc, como que isso veio chegando na sua vida? As decisões, as escolhas.
R – Foi bem pontual, foi super pontual. Ainda na oitava série eu estava numa aula, tinha uma professora de Ciências na escola e ela era muito boa professora de Ciências mas eu não imaginava que ela fazia teste vocacional. E sempre no final do ano ia ter uma feira de uma escola de cursos, que é até a escola que eu acabei indo estudar depois, e ela queria que nós fôssemos, tipo excursão de escola, sabe, todo mundo junto, pra gente escolher alguma coisa, tal. E eu tinha na cabeça que eu queria fazer Arquitetura, porque tinha desenho (risos) e eu queria desenhar, eu continuava com desenho na cabeça. Aí essa professora sentou assim, eram aquelas cadeirinhas que eram cadeirinhas, ela se sentou na mesinha, cruzou a perna e falou: “E você, Maria Luzia?”, porque tinha um monte de Maria na sala, tinha que chamar o nome composto, né? “E você, Maria Luzia? O que você vai fazer?” “Ah, eu quero fazer Arquitetura. Eu quero prestar vestibulinho na ETE Júlio de Mesquita que lá tem o curso de Edificações, eu quero fazer, tal” “Mas por que você vai fazer Arquitetura?” “Ah, gosto muito de desenhar, eu acho legal. Geometria é uma coisa que eu sempre me dei muito bem”. E eu tinha um problema na escola, que hoje seria uma solução, eu sempre fui um bicho muito CDF. Eu ia bem em todas as matérias, eu só não ia muito bem em Estudos Sociais e Geografia, o resto, Matemática, Língua Portuguesa, análise sintática, essas coisas todas eu adorava, pra mim era um videogame fazer análise sintática e fazer equação do segundo grau, era uma coisa assim, eu sempre gostei muito. Eu me dava muito bem com cálculos, com geometria, então eu achava que Arquitetura era o que juntava o útil ao agradável pra mim. Aí ela começou a desviar o assunto, ela começou a perguntar o que eu fazia na hora vaga, umas coisas que eu não lembro mais qual foi o roteiro de perguntas que ela fez. E no final ela virou pra mim e falou assim: “Você não devia fazer Arquitetura, você devia fazer Propaganda”. Eu parei: “Ah?”, sabe quando faz plim na sua cabeça e você fala: “Como não pensei nisso antes?” (risos) “Mas por que, pro?”. Ela falou assim: “Quando você assiste TV, o que você presta mais atenção, no comercial ou na programação?” “Ah, eu presto bastante atenção no comercial”, porque minha mãe falava isso, que eu via mais comercial do que TV. “Quando você vê uma revista, tal, não sei o quê, você lembra do que você leu?” “Ah, lembro” “Mas você lembra do que tinha no meio?” “Lembro” “Então, você gosta de desenho, tal, tem tudo a ver”. Eu falei: “Mas o que faz? O que a gente trabalha na propaganda?”. Ela falou: “Vamos lá na tal feira, você vai ver umas coisas”. Eu vi uma coisa ou outra e decidi fazer o colégio técnico em Propaganda. Conversei com meu irmão, me aconselhei com ele, tal, ele falou: “Faz e faça uma coisa que você gosta. E procure desde o início um trabalho, um estágio, uma coisa que você gosta pra você começar desde o início”. Aí fui, eu tinha até trabalhado um tempo de balconista numa doceria lá no bairro, aí tinha parado, tudo. E comecei o colégio técnico, fiz o primeiro ano de manhã, o segundo já mudou pra noite. E na metade do segundo ano eu procurei estágio. E o colégio pedia hora estágio pra você ter o diploma técnico. Eu consegui um estagiozinho em uma agenciazinha, um balcão de anúncios que tinha lá em Santo André, eu comecei a trabalhar e essas foram minhas palavras com relação à escolha da profissão e não saí mais (risos).
P/1 – Mas eu fiquei curioso pra saber como é que foi esse primeiro trabalho lá, esse estágio. Como é que foi a sensação de começar a trilhar esse caminho profissional, responsabilidades?
R – Eu lembro que eu tinha que copiar um desenho pra fazer um teste. E eu tinha feito um cursinho de desenho numa escolinha de artes que tinha lá em Santo André e eu parei de fazer o curso porque ele só mandava eu copiar desenho. Eu não queria copiar desenho, eu queria olhar, fechar os olhos e fazer o desenho, desenho de observação tudo. Ele mandou eu copiar um desenho, uma charge, foi bico. Copiei bonitinho, terminei, tal. Ainda quando eu fui entregar eu virei pro cara e falei: “Ó, eu não vou assinar porque é uma cópia de uma charge, a charge é desse cara, eu não vou assinar o desenho”, porque todo mundo assina o desenho. E aí me chamaram, tal, e eu me sentia gente grande, né? Tinha uma prancheta para eu trabalhar, régua paralela, caneta nanquim, tudo bonitinho. E eu achava o máximo. E desde o meu primeiro salário eu já pedi pro meu pai: “Pai, não paga mais o colégio, agora eu que pago o colégio”. E é incrível, né, na época o meu salário era meio salário mínimo e eu pagava o colégio, a passagem porque não tinha vale transporte, nada disso e ainda sobrava um troquinho para ir ao cinema e na domingueira, alguma coisa assim. Tudo funcionava, então a partir do meu primeiro mês o meu pai bancava comida em casa, roupa, alguma coisa, mas o resto era eu que fazia. E foi maravilhoso porque eu fiquei, foram três meses que eu trabalhei nesse balcão. Três não, minto, seis meses, foram três meses sem registro. E o cara era sacana, ele era malandro, sabe? Aprendi a fazer os anúncios de nanquim lá, bonitinho, de classificados e aí ele te contratava. Aí você falava: “Agora estou contratada!”. Dava os três meses de experiência da CLT ele te mandava embora, contratava outra pessoa, sabe? E quando estava no último mês ele já punha um outro cara pra aprender porque pra ele era barato. Nossa, mas eu fui entender isso bem depois. Porque aí eu me senti a pessoa mais frustrada profissionalmente do mundo. “Fui demitida, meu primeiro emprego” (fala com voz de choro). Minha mãe falava assim: “Que nada”. Eu tinha visto isso no anúncio Classificados no jornal. Minha mãe falava: “Que nada, você arruma outro”. Passou uma semana e meia eu já estava trabalhando em uma outra agência, que era já no formato agência em Santo André, onde tinha departamentos, tudo bonitinho, várias pranchetas, tinha um redator, contrataram um diretor de arte que é um cara que virou uma evidência no mercado, ele foi meu mentor no trabalho. Aprendi tudo, um monte de coisa com ele, ele era muito bom. E eles me contrataram já com carteira assinada e na profissão de arte finalista. Lá eu aprendi a fazer embalagem, aprendi a desenhar desenho técnico de embalagem, aprendi a fazer produção tipográfica, que na época era outra coisa. Eu falo que eu sou da época do estilete lascado, que tinha os dinossauros na terra, a gente desviava dos meteoros, chegava na prancheta e trabalhava, porque é bem antigo. Eu trabalhei acho que dois anos e meio lá. Aí eu fiz cursinho porque eu não entrei na faculdade direto. O colégio que eu fiz era técnico, eu não tinha Matemática, não tinha Português, eu tinha Literatura e Linguagem de Comunicação, mas eu não tinha Língua Portuguesa. Então eu perdi conteúdo pro vestibular. Aí fui fazer turma de maio, ralei muito, paguei todo o cursinho também, bonitinho, aí eu entrei na Metodista, que era onde eu queria muito entrar. Porque no ano anterior faltou dois desistentes para eu poder entrar, aí eu consegui entrar na primeira chamada no outro ano.
P/1 – Você tinha uns 19 anos nessa época, mais ou menos?
R – Dezenove.
P/1 – E nessa época o primeiro namorado tinha ficado pelo caminho.
R – Tinha. Ele ficou. Ele era muito inseguro, tadinho. Acho que esse foi o grande amor da minha vida porque eu sou solteira, eu não casei. Ele era filho de pais separados, então sabe aquela pessoa que a grama do vizinho é sempre mais verde? Ele sempre pensava: “E se eu tivesse feito outra coisa, não seria melhor?”. Então se aparecesse uma menina um pouco interessante e que desse bola pra ele, ele já ficava achando. Ele desistiu de mim quatro vezes, ele voltou três. Na quarta vez que ele desistiu eu estava me preparando, pensando onde eu ia fazer o cursinho. Eu cheguei pra ele e falei assim: “Olha, essa é a última vez que a gente se separa”. Eu era estupidamente apaixonada por ele, eu adorava ele. Para mim ele era o cara da minha vida. Ele era muito legal, a gente tinha uma relação muito boa, a gente se dava super bem, tinha família, tudo, era muito bacana. Tinha tudo pra dar certo, mas a insegurança que ele tinha me deixou insegura também com relação à gente. E a quarta vez o motivo foi muito idiota porque ele tinha desistido de mim por causa de uma outra menina que ele tinha conhecido, ele tinha desistido porque ele queria curtir a vida, que não era assim. A última vez, naquela época a gente tinha um pensamento meio primata de morar em Miami, Orlando, trabalhando em subemprego, fazer dinheiro e voltar, comprar uma casa e montar um negócio. E ele queria isso. Nossa, eu era muito patriota. Não, imagina, eu assinei a emenda Dante de Oliveira umas 20 vezes pra votar pras Diretas, eu sempre achei que aqui, esse país, tinha alguma coisa pra prover, né? Aí eu falava: “Não, eu não quero essa vida” “Não, porque aí eu vou, ajeito lá, não sei o quê, depois eu volto, a gente casa, a gente vai lá, fica lá” “Não, não. Eu não quero ser ninguém num país que eu não conheço e ter uma vida tranquila. Eu quero ser alguém no país onde eu conheço todo mundo, perto da minha família, e ter uma vida relativamente tranquila. Eu estou estudando, eu quero uma profissão, eu tenho uma profissão, eu quero ser alguém aqui” “Ah, não sei o quê. Ah, eu acho que você não é o que eu quero pra mim porque você não quer o mesmo que eu, tal” “Então tá, você vai terminar pra ir pra lá?” “Vou” “Vai, boa sorte. Mas é a última vez que você está terminando comigo, eu não volto mais”. E, nossa, esse dia eu cheguei em casa, eu acho que eu chorei umas três horas seguidas. Eu tinha palpitação, tremia, fiquei amortecida de tanto que eu chorei de tristeza. Aí no dia seguinte eu acordava e falava: “Hoje é um novo dia, amanhã eu vou estar melhor do que hoje”, era o que me deixava bem porque foi uma... foram cinco anos, naquela idade, uma coisa forte demais. Ele foi, em 15 dias ele voltou (risos). Voltou, aí ele ficava em contato comigo, ele vinha na minha mãe, visitava. E pra ele era confortável porque eu estava com 18, ele estava com 23, ele tinha o carro dele. Então ele tinha um emprego, um carro, tudo. Era legal naquela época sair pra baladinha, né? Hoje o pessoal chama de balada, naquela época era ir pra shows, tinha show do Camisa de Vênus, Ultraje a Rigor, tudo. E era tudo de noite, de madrugada que as coisas aconteciam. E a minha mãe não deixava eu sair de madrugada, tinha horário pra voltar à noite. E ele ficava um pouco inconformado que a gente ficou junto tanto tempo e minha mãe não confiava. Ele ficava visitando minha família porque meu pai gostava muito dele, então ele passava a tarde inteira do sábado lá em casa perturbando minha mãe, enchendo o saco. Quando dava a hora dele tomar um banho e ir pra balada ele ia embora. Com isso ele me prendeu o tempo todo e eu não arrumei compromisso pra sair à noite, não conseguia marcar com as minhas amigas, nada, pra sair. Então eu ficava conservada em casa enquanto ele ia se divertir. Mas eu estava fazendo cursinho (risos).
P/1 – E ai você entrou na faculdade.
R – Não, durante o cursinho eu conheci um rapaz, a gente acabou se apaixonando, só que a gente ficou na nossa porque a gente estava com o foco de entrar na faculdade. A gente se conheceu em maio, a gente foi namorar no final de janeiro porque foi quando saiu o resultado dos vestibulares, que a gente fez matrícula e tudo o mais. Aí quando chegou no início de janeiro ou dezembro, não sei, ele veio pedir pra voltar. E aí eu já estava apaixonada pelo outro rapaz, eu estava cansada porque eu via ele me segurando em casa e indo pras festinhas, pros bailes, shows, se divertindo. E eu não achei justo e eu não queria mais. Ai eu falei que não, que não queria voltar. E aí foi difícil porque ele não aceitava. Eu comecei a namorar o outro rapaz, ele ficava me seguindo, foi meio perturbador no início, até ele arrumar uma namorada lá, aí ela ficou grávida, eles casaram e estão juntos até hoje (risos). Mas foi complicado, bem complicado na época.
P/1 – Bem na entrada da faculdade.
R – Na entrada da faculdade.
P/1 – E o outro lado dessa história? O lado acadêmico de virar uma página da vida, de começar a faculdade, de novos contatos sociais.
R – A faculdade é uma porta que te abre por um prédio de labirintos, né? Você passa o primeiro andar: ufa! Mais um, mais um. Assim, a faculdade em si pra mim foi muito fácil, foi muito simples. O meu curso tinha prova só no primeiro ano, eu tenho uma coisa, eu não gosto de prova, eu não funciono sobre pressão, então fazer prova eu fico nervosa, eu esqueço, dá branco, aquela coisa toda. Agora se você me pede pra fazer um trabalho, normalmente eu surpreendia qualquer professor com os trabalhos porque o trabalho eu crescia na atividade. Depois eram só trabalhos e eu me dei super bem. E como eu trabalhava em agência, aí eu já estava trabalhando, com 18 anos eu fui trabalhar para uma agência de porte médio aqui em São Paulo e eu tinha contato com uma agência que estava bem no mercado, tinha nome, tinha clientes interessantes. E muitas vezes eu chegava na faculdade, chegava atrasada, só tinha o bedel no corredor, aí eu entrava atrasada, batia na porta. Eu lembro de um professor, Marin, que dava aula de Marketing e falava assim: “Entra, Malu”, que ele já sabia que era eu do outro lado da porta, por causa do horário. E eu era muito introspectiva, na minha, tal. “Dá licença, professor, desculpa o atraso” “Tudo bem, você é sempre bem-vinda”, entrava. E eu tinha uma mania de sentar assim, o professor ficava lá na frente, a sala estava todo mundo aqui e aqui tinha as janelas. Aí tinha cadeira aqui no início, eu virava a cadeira de costas para a janela para eu poder ver a sala e o professor porque tinha muita participação, tal, e eu gostava de ver tudo. Então eu sentava, minha cadeira estava ali, e o professor falava assim: “Por que você se atrasou hoje?” “Hoje ele perguntou”. Eu sentava e falava: “Ai, hoje ele não vai perguntar, hoje ele não vai perguntar”. E pum, perguntava. E eu ficava toda encabulada porque tinha que contar o que aconteceu na agência, tal. Porque do ponto de vista dele as coisas que eu contava ali era uma parte da aula, era experiência que ele queria que os alunos entendessem que acontecia na agência, que ninguém trabalhava em agência quase, né? E, nossa, passou assim.
P/1 – E o que acontecia em agência? O que dessas peripécias que você teve que fazer, essas coisas de última hora, que te marcou nesse começo profissional mesmo, já trabalhando numa agência?
R – Eu fui pra essa agência indicada por esse rapaz que eu conheci em Santo André, que trabalhou comigo, que eu falei que foi meu mentor. Ele me indicou lá, eu fui pra lá. E era assim, eu trabalhava no estúdio, na época não existia computador, o computador veio bem depois. E aliás, o computador foi uma ameaça pra mim no início, atrapalhou toda a minha profissão. E desde o início que eu comecei a trabalhar em agência eu queria fazer criação, desde o primeiro contato. Só que eu estava no estúdio, estava na produção, eu entrei como assistente do past-up, aí eu virei a chefe de arte finalista, depois eu virei chefe de estúdio. E tinha uma pessoa que cuidava do tráfego de trabalho, que ela falava assim pra mim: “Malu, se depender de mim sabe quando você vai ser diretora de arte?”, eu falava: “Quando?”. Ela falava: “Nunca. Porque é difícil encontrar um chefe de estúdio que funcione e você funciona”. Eu falava: “Eu vou ter que ser incompetente pra virar Diretora de Arte?”. Ela falava: “Não, se você for incompetente você é demitida”. Eu: “Ops, então tá”. Aí eu ficava sempre lá na criação. E eu pegava carona com ele, então a gente conversava muito, então eu sempre fazia os trabalhos da faculdade, mostrava. Era anúncio, anúncios do Estadão que era sempre na última hora que era aprovado, tinha que produzir para ser publicado no dia seguinte, tal, aquela correria. Então sempre atrasava por conta de entrega de material de finalização. Ou de campanhas que tinham que ser entregues, reunião no dia seguinte, não deu tempo de fazer e a gente ficava a noite afora fazendo, mas aí eu nem ia pra faculdade, né?
P/1 – Você estava numa fase, você estava se estabelecendo no trabalho, na faculdade, com o namorado novo. Imagino que você estava numa fase boa de descobertas, de consolidação mesmo da sua vida.
R – É, tinha eu tinha o horizonte todo pela minha frente (risos).
P/1 – Tem algum trabalho nesse momento que você fez, algum projeto que tenha te marcado mais lá na agência?
R – Como eu produzia, eu era finalista, dessa época eu não estava trabalhando na criação ainda, né? Então não tinha muito de referência. Mas eu adorava, eu sempre gostei muito do meu trabalho, fazia com tanta paixão, tanto carinho, sempre gostei muito. E era mais assim situações: “Ah, conseguimos entregar o anúncio em um menor prazo do que era e ainda consegui ir de ônibus pra faculdade”, sabe? Porque às vezes perdia a carona e eu via a criação comemorando as coisas. Então quando ganhava uma concorrência eles vinham agradecer porque a gente participou, fez todas as coisas, tal. Era mais nesse sentido. Não tinha uma coisa que é da minha mão, da minha cabeça, né?
P/1 – E foi nessa época que você teve o diagnóstico da diabetes?
R – Foi. Foi com 22 anos, no último ano da faculdade.
P/1 – Como que foi? Conta essa história pra gente.
R – Assim, eu estava com sintomas típicos de diabetes. Eu sempre fui magra, eu nunca fui além do peso, mas eu pesava honrados 63 quilos, era uma honra pesar aquilo, hoje que eu penso. E aí eu passei a beber muita água, fazia uma quantidade de xixi absurda. Eu passava no bebedouro, bebia água e corria pro banheiro; voltava do banheiro, bebia água, voltava pra prancheta, logo tinha que ir de novo lá. Uma vez eu fiz a conta, eu bebi cinco litros de água em um dia, fora outros líquidos, chá, suco, café, leite. E perdendo peso. Eu não percebi que eu estava perdendo peso, mas eu sentia que as calças estavam muito largas. Teve um dia que eu estava voltando da faculdade, eu estava descendo a rampa da Metodista assim e eu estava com cólica intestinal. Eu desmaiei de cólica. Senti uma fraqueza tão grande, desmaiei. Garganta inflamava assim, o vento mudava de direção, gripe, garganta inflamada, tudo. E não sabia o que estava acontecendo. Aí eu estava passando por um médico que era um ginecologista porque eu estava com formações císticas nos ovários. E aí a minha mãe falou assim: “Filha, fala pro médico desses sintomas porque são sintomas de diabetes”. A minha avó paterna tinha diabetes tipo 2 e minha mãe conhecia os sintomas. Eu falei: “Será mãe? Nãoooo”. Ela: “Não, não deve ser, mas fala pro médico”. Eu falei: “Tá bom”. Aí falei e o médico falou assim: “Realmente, são sintomas de diabetes mas eu vou te pedir um exame”. E ele pediu. Eu fiz o exame e deu glicemia em jejum de 127, era o limite. Na época o diagnóstico era com outros números, hoje é até 99 só. Aí ele falou assim: “Olha, você continua com os sintomas?”. Eu falei: “Continuo” “Tem alguma coisa estranha, mas eu acho que não é diabetes. Vou te encaminhar, você vai passar com um clínico pra ele pesquisar e te encaminhar para um especialista”. Eu falei: “Tá bom”. Aí fui lá, na época era até um tal de doutor Plínio, que era um dos donos do hospital lá perto de casa que eu costumo ir. Eu passei, contei pra ele. “Você está com diabetes”. E era um senhorzinho, sabe, bem velhinho. “Você está com diabetes” “Não, doutor, está aqui o exame, está falando que eu não tenho diabetes” “Quando você fez esse exame?” “Na semana passada” “Então, esse exame já está velho! Você vai fazer amanhã um exame com urgência e vai passar aqui à tarde”. Eu falei: “Tá bom”, tipo, desafiando, né? Aí eu fui, fiz o exame, peguei o resultado e passei no médico. E o médico abriu, olhou pra mim, naquela época você não abria exame, né, só médico que abria. Ele olhou, ele comemorou. “Não falei? Você está com diabetes!”, aí deu 226 a minha glicemia. Eu olhei assim pra cara dele, como é que esse cara tá feliz falando que eu estou com um problema de saúde?. “Mas doutor, eu fiz exame outro dia” “O outro exame era velho, esse aqui está falando você está com diabetes. Você vai passar agora com o endocrinologista, ele vai te encaminhar e vai passar o tratamento pra você fazer”. Eu saí de um consultório e fui pro outro. Passei com o endócrino e aí que caiu a ficha, sabe? Porque na época esse endócrino era muito bom, eu fiquei dez anos em tratamento com ele. E ele olhou o exame, tal e falou assim: “Olha, você está com diabetes, você vai ter que fazer uma dieta alimentar, de preferência, se você tiver oportunidade, fazer alguma atividade física. Eu vou te passar um medicamento, você vai tomar um medicamento, vai fazer a dieta alimentar, vai ficar de olho nos sintomas, vai ficar de olho no que está acontecendo e você vai voltar aqui em uma semana. Dependendo de como for a evolução do seu tratamento a gente muda a dosagem do medicamento ou começa a entrar com outro tipo de medicamento e tratamento, como insulina, tal”, e eu nem. Ouvi tudo o que ele tinha pra falar. “Ok, doutor, tá bom”. E eu sou muito disciplinada, sabe? Se você falar pra mim: “Não pise no vermelho porque o vermelho vai te causar...” “Tá bom, não vou pisar no vermelho”. Eu falei: “Ok, doutor. E em quanto tempo eu estou curada com o tratamento?”. Ele olhou pra mim, fez uma pausinha e repetiu tudo o que ele disse de novo. Aí eu ficava ouvindo ele falar, falei: “Caramba, ele já não falou tudo isso? Será que ele pensa que eu não entendi? Será que acha que eu sou burra, não escutei, não prestei atenção? Eu fiz cara de displicente?”. E a hora que ele terminou de falar tudo, ele olhou e falou assim: “Diabetes não tem cura”. Na hora eu aturaria o tratamento pelo tempo que ele determinasse, mas eu sou virginiana, é um defeito que eu vou ter pelo resto da minha vida, a hora que ele falou que não tinha cura, aquilo pra mim foi um baque. Eu fiquei pensando, eu falei: “Eu sou doente, eu vou estar doente o resto da minha vida. E quanto vai ser o resto da minha vida?”. Eu saí do consultório, estava sozinha porque eu sempre ia sozinha em médico. E a casa da minha mãe ficava uns três quilômetros de lá andando. Eu fui andando. Até a esquina da minha casa eu fui chorando porque foi... eu lembrava da minha avó. Minha avó tomava só remédio, medicação oral, fazia lá os regiminhos dela, tal, mas tudo o que dava errado ela culpava o diabetes. E na época não tinha a versatilidade, o conforto, a disponibilidade dos tratamentos que nós temos hoje. Na época eu acho que não era nem 5% do que nós temos hoje. E conhecimento. Eu tive que ouvir que eu ia ter que amputar a perna em algum momento, que meu rim ia parar de funcionar, que eu ia ter que fazer diálise, que eu ia ficar cega, que eu nunca mais ia poder comer doce na minha vida, que eu não ia poder gerar um filho. O que mais que falavam, que eu ficava chocada? Era tanta coisa ruim e eu fiquei chocada na época, inclusive o meu relacionamento foi por água abaixo por conta disso, do diagnóstico. A mãe dele era uma pessoa muito influente na vida dele e na época eu não tinha como me defender com conhecimento. Porque hoje eu sou voluntária na Associação de Diabetes, então eu trabalho com a educação em diabetes voluntariamente. Qualquer pessoa que se aproxima de mim, recém-diagnosticada no diabetes eu vou falar os cuidados que ela tem que ter, mas na sequência vai ouvir: “Você vai comer doce, você não vai amputar sua perna, você não vai ficar cega porque você vai ter conhecimento, você vai aprender a andar e você vai ficar bem. Pelo contrário, é a oportunidade de você ter uma qualidade de vida melhor porque todo mundo tem, porque o tratamento de diabetes, tirando a parte de medicamento, o tratamento alimentar, a atividade física, atitude e conhecimento é o que todo mundo deveria ter pra ser saudável, então você tem uma oportunidade de ser saudável e você vai ficar bem”. E na época não existia isso, não tinha. E pra ela, na cabeça dela, eu não geraria filhos saudáveis. E ela convenceu ele, mesmo gostando de mim, a pular fora. Aí eu tinha medo de falar que eu era diabética em qualquer lugar que eu ia. Teve uma situação que eu estava com ele num churrasco, aí veio uma mulher do nada: “Quer Coca-Cola?” “Ah não, obrigada”. Eu não ficava falando: “Não, sou diabética”. Não. “Não quero, obrigada” “Você quer suco?” “Não, não, obrigada” “Mas você não vai beber nada?” “Depois eu bebo água” “Água?! Você está numa festa!” “Não, depois eu bebo. É que eu não posso consumir açúcar porque eu tenho diabetes, então eu vou...” “Ah, coitada! Tão nova! Não vai poder ter filhos”. Eu ouvi isso. Nossa, eu fiquei. Porque o sonho da minha vida era a maternidade. Eu acho que eu vim ao mundo pra um dia ter uma família, mas ter família pra mim é ter filhos, porque depois eu vou chegar num outro negócio também pra te contar. A hora que ela falou aquilo, eu fui lá ver que dia que eu tinha que voltar ao médico porque eu tinha que ir todo mês, ou de dois em dois, depois que a coisa ficou mais controlada, na época ainda ia de mês em mês. A hora que eu cheguei lá na consulta, e o médico me tratava muito bem porque ele falava que eu era uma paciente que respeitava o que ele dizia, que o paciente diabético tem uma resistência a aderir ao tratamento e isso é um problema muito grande. Então ele falava que como eu aderia a tudo o que ele dizia de tratamento eu tive até, a gente chama de lua de mel que é o período que você é diagnosticado até você começar com insulinização, eu tive um período muito longo por conta da minha disciplina. Aí ele falava assim pra mim, inclusive a insulina eu comecei a tomar um dia depois que o rapaz terminou o relacionamento comigo. Eu falei: “Da outra vez eu falava que o próximo dia ia ser melhor do que o anterior e agora vai ser vida nova, insulina”. E foi tudo bem, eu acho que eu até consegui superar isso de uma forma legal, só que o diabetes virou um problema, eu tinha que esconder que eu era diabética porque eu achava que eu ia afastar as pessoas de mim por causa do diabetes. E eu demorei um tempão pra usar a insulina e como eu era muito disciplinada, a hora que eu cheguei pra ele, você acaba criando uma relação com o médico. Graças a Deus, todos os meus médicos eu tenho relação de amizade com eles, né? Não sou um número, sou uma paciente com um nome e uma história. Eu cheguei pra ele falei: “Doutor, o senhor seja muito honesto e sincero comigo. Me disseram que eu não vou poder ter filhos. Isso é verdade? Não minta pra mim, eu quero saber a verdade”. Aí ele olhou e falou: “Quem te disse isso?”. Eu falei: “Ah, foi uma mulher lá” “Mas que mulher?” “Doutor, é verdade ou não?” “Não. Olha, se alguém vir dizer alguma coisa pra você do diabetes você sempre traga a informação pra mim pra questionar porque eu te falo. Porque as pessoas criam umas coisas, uns monstros que não existem”. Ele falou: “Não, você vai poder ter filhos sim, você pode ter filhos normalmente. O único conselho que a gente dá é que você tenha os filhos mais jovem ou, quando você for ter, isso também planeje pra poder controlar bem a glicemia pra criança não ficar grande. Porque o problema não é você ficar com a glicemia, seu filho não vai nascer diabético, só que com muito açúcar no sangue a criança cresce demasiadamente, aí você vai ter um filho com quatro quilos, quatro quilos e meio e você vai sofrer muito com isso. Então a gente pede pra controlar a glicemia pra criança não crescer muito, mas você vai poder ter filho e filho normal”. Aí eu fiquei mais tranquila, mas já tinha criado os traumas já, né?
P/1 – Logo no começo dessa sua história já dá pra ver que muita coisa na sua vida mudou a partir disso, a começar por essas questões, digamos, psicológicas, sentimentais, até no trato social. Agora, em termos práticos ou mesmo outras mudanças, o quê que logo de cara mudou na sua vida? Além dessa questão grave de você ter terminado uma relação, etc, pro dia a dia da sua vida o que mudou?
R – Alimentação (risos). Não podia ir mais comprar chocolate no mercadinho do lado do trabalho pra comer à tarde. Bala de goma. Ahhhh, adorava bala de goma! Comprava um pacotinho de bala de goma e passava a tarde comendo bala de goma no meu trabalho, aí não podia mais comer bala de goma. Porque naquela época tinha que cortar o açúcar de tudo, a massa. McDonald’s, não podia mais comer lanche no McDonald’s. Suco, eu não confiava pedir um suco sem açúcar e ter certeza que estava sem açúcar. Então a alimentação foi o maior baque de mudança. E aí as pessoas que me conheciam também me tratavam diferente. “Você pode comer isso?”. Se eu ia visitar alguém: “Você pode comer aquilo?”. Eu me sentia um pouco desconfortável, porque a restrição alimentar muda. Festa de família, nossa, eu tenho uma história engraçada de uma tia minha. Eu cresci com uns priminhos meus que são mais jovens, um pouco mais jovens que eu, e esses que são um pouco mais jovens a gente tem uma relação muito boa. Hoje a diferença já não é tanta, né, então a gente tem um carinho muito grande, a gente é quase que irmão. E eu lembro das festas de família de Natal que reunia todo mundo na casa de um tio. Aí minha mãe sempre levava salada de fruta sem o guaraná, sem leite condensado, nada, que era para eu poder comer alguma coisa. E comia carne, comia salada, uma coisa sempre, né? E a minha tia veio toda eufórica pra mim falando: “Olha, fica tranquila, tá, que eu comprei Coca aidética pra você” “Como é que é, tia?” “Comprei Coca aidética pra você tomar” “Dietética, tia! Dietética” (risos). Agora na família sempre a Coca é aidética, não é dietética por causa dessa história (risos), ela fez confusão lá. Então tinha sobremesas que todo mundo comia, a salada de fruta para eu comer. Os refrigerantes, sucos, a Coca aidética para eu tomar. E isso, quem está de fora, quem está fora do meu corpo vê isso como um carinho porque tem uma coisa especial pra mim. Mas do ponto de vista do paciente diabético eu sou diferente, eu sou um extraterreste, eu não sou como eles. E isso te exclui, sabe, é ruim. E eu só fui conseguir passar essas coisas pras pessoas depois que eu passei a frequentar a Associação de Diabetes, a entender. E parece que lá eu ganhei armamento para me defender, para me impor e para expor o que eu acho. Porque aí eu sabia dizer por que, como e quando, antes disso não. “Ah, eu não posso comer” “Mas por quê?” “Ah, porque não” “Não tem açúcar”, um negócio cheio de macarrão, de molho de tomate, tal, aquele festival do carboidrato. “Mas não tem açúcar!” “Não posso, está na lista do não pode, então não vou comer e pronto” (risos). Mas aí depois que você aprende: “Não, é que isso é carboidrato, carboidrato vira açúcar no sangue, isso vai aumentar a minha taxa de glicemia. Se tivesse um pouco de fibra ainda vá lá”. Então você vai aprendendo e as pessoas também vão aprendendo com você, né? A minha mãe hoje é uma cozinheira de mão cheia de pratos dietéticos, ela inventa coisas dietéticas, ela faz coisas diferentes, ela adapta e é impressionante como aprendeu a se alimentar melhor.
P/1 – Isso que eu ia te perguntar agora porque você falou das mudanças no sentido das restrições, etc. Mas tem também aquilo que você disse um pouco antes, de isso estimular um novo estilo de vida, etc. A partir de então, daquela época, o que mudou? Os tratamentos que você passou a fazer, as novas condutas diante da vida, de atividades físicas, enfim, o que mudou na sua vida nesse aspecto?
R – Eu acho assim, vamos dividir isso por assuntos. Eu vou falar primeiro de conduta. A primeira coisa que mudou é que eu tomava um medicamentozinho oral, um remédio que chamava acho que Daonil na época, que hoje ele é usado muito, em lugar que não tem medicamento bom pra tipo 2. E quando eu comecei com a insulina eu não sabia aplicar insulina. Assim, aplicar insulina é uma coisa, aplicar injeção é outra. Só que a hora que você toma insulina você vai falar “tomar injeção”. Eu ia numa farmácia no centro da cidade, então eu tinha que tomar insulina às sete e meia da manhã, a primeira parte do tratamento que eu comecei a usar era só uma vez por dia. Aí eu tinha que tomar sete e meia da manhã antes do café da manhã pra depois tomar o café da manhã e seguir meu dia. E tinha aquele horário. Eu lembro que eu fui ao médico na terça-feira, na quarta eu tomei a minha primeira dose de insulina na farmácia. Fui, comprei a insulina, comprei a seringa, a moça me aplicou lá na farmácia. A seringa da farmácia, a insulina ficava na geladeira deles com meu nome. Aí na quinta-feira eu fui de novo, tomei insulina, voltei pra casa, tomei pra casa e aperta o play, vai o dia. Na sexta-feira eu cheguei e falei: “Pô, amanhã é sabado. Vou ter que acordar seis e meia da manhã pra vir tomar insulina e voltar pra casa. E se eu quisesse ficar na cama ou se eu não quisesse vir até aqui no centro?”. Porque tinha que ir de carro lá. Cheguei na sexta-feira pra moça que aplicava na farmácia e falei: “Como é que eu aplico isso aí?”, ela aplicava aqui no meu braço. Ela falou: “Olha, é simples a insulina, a agulha entra a 90 graus, você faz um beliscão, aperta, coloca, solta, injeta e tira” “Eu queria eu mesma aplicar” “Ah, você mesma? Então aplica na barriga. Você pode aplicar aqui, aqui, na barriga, no bumbum e na coxa”. Eu falei: “Na coxa?” “É, na coxa vai doer um pouco”, porque eu tinha perdido nove quilos, eu estava pesando 51 quilos, então não tinha muita gordurinha pra pôr, né? Ela falou: “Olha, o melhor lugar pra você aplicar é na barriga pra você pegar e por ter mais gordura também é mais fácil, aí você aplica aí”. Eu: “Ah, tá bom”. Aí eu prestei atenção nela aplicando, tal. “Ó, você faz assim. Quer levar?” “Quero. Me dá a insulina aqui, me dá a seringa, que amanhã eu vou tomar em casa”. E naquela época era uma agulha desse tamanho com, quantos milímetros? Eu não lembro agora quantos milímetros que era, acho que era 1,7 milímetros de espessura, você via até chanfro dela, sabe, assim? E era uma seringa grande, tal, você puxava, tudo. Ela explicou como é que fazia para tirar as bolinhas de ar, não sei o quê. Aí sábado de manhã eu acordei e falei pra minha mãe: “Mãe, eu que vou tomar insulina hoje aqui em casa” “Você tá louca?” “Não” “Não, você tá louca? Vai lá na farmácia, que negócio é esse” “Mãe, todo diabético tem que aplicar nele mesmo, eu vou fazer isso o resto da minha vida. Você acha que eu vou ficar o resto da minha vida indo na farmácia tomar insulina? Nãooo, eu tenho que aprender, uma coisa que eu tenho que fazer assim, tal”. Aí minha mãe vira e fala: “Não, você não vai fazer isso”. E minha mãe de costas pra mim fazendo café, passando o café no coador, ali, tal, né? Ai eu peguei, olhei a insulina, a seringa, a agulha, coloquei, puxei, peguei, eu vi, acho que é por aqui, peguei, passei álcool, pá, coloquei. Pô, nem doeu, legal. Acabou. Minha mãe virou do café: “Então, você vai agora? Vai lá que depois você toma café quando voltar”. Eu: “Não mãe, já tomei a insulina”. Ela: “Como assim?” “Não, eu já apliquei aqui” “Você é louca? E se você tomou no lugar errado?” “Mãe, a moça me explicou, não é nenhum bicho de sete cabeças. Está aqui, ó!”, mostrei onde tinha, não dava nem pra ver o furinho, tal, uma bolinha de sanguezinho assim. “Ah, você é doida mesmo!”. Eu falei: “Mãe, eu tenho que aprender, mãe, é uma coisa minha”. Então eu tinha acabado de passar pelo final de um relacionamento porque ele terminou comigo um dia antes de eu ir ao médico, que eu comecei a insulinização logo um dia depois, eu estava numa fase difícil sentimentalmente, psicologicamente, eu tinha que encarar as coisas, tal. Mas ao mesmo tempo era uma novidade que eu tinha que aprender. Tem uma coisa que eu tenho na cabeça que é assim, isso pra tudo: “Se eu tiver que mudar alguma coisa e eu não tenho outra saída, então vamos começar agora e vamos fazer da maneira correta. Eu vou fazer da melhor maneira que eu possa fazer porque eu preciso fazer isso, então que seja bem feito. Não adianta fazer de qualquer jeito que vai dar errado”. Isso é uma coisa que eu tenho na cabeça pra tudo. Aí essa mudança e essa determinação de fazer me dão ânimo, energia para eu começar a fazer. Porque aí eu fiquei orgulhosa que eu mesma consegui aplicar a minha quarta dose de insulina e a partir daí ninguém mais aplicou insulina em mim. Eu fiquei internada uma vez no hospital, a enfermeira veio e eu: “Não, não, não, me dá aqui, me dá aqui, não vem você com essa agulha, não, que eu não confio em ninguém com agulha perto de mim” (risos). Então isso me dá um incentivo pessoal interno dentro da minha cabeça, dentro do meu coração, para eu fazer as coisas melhores. E funciona, ainda bem. Isso de conduta. Ao mesmo tempo, alimentação. Eu chegava no médico, na consulta, eu chegava com uma sacolinha de produtos ou xerox de rótulos de produtos dietéticos: “Doutor, eu posso comer isso aqui? Eu posso comer isso aqui? E isso aqui? Isso aqui?” “Olha, você pode, mas isso aqui você não pode comer muito porque ele tem bastante caloria”, aí você tinha que aprender a ler calorias. Então não pode exagerar. “E fruta, eu posso comer fruta?” “Pode, mas uma porção por dia”. Naquela época era uma porção. “Mas quanto é uma porção? Eu posso comer melancia?” “Pode” “Quanto? Uma inteira?” “Não, uma fatia”, porque eu sou louca por melancia, né? Aí teve um dia muito engraçado que eu cheguei pra ele e falei assim: “Ô doutor, eu posso tomar garapa?”, é caldo de cana. Aí a gente já tinha uma relação de amizade médico-paciente, ele virou e falou assim: “Eu vou te dar um conselho: quando você ver uma barraca de caldo de cana, você atravessa a rua e vai pro lado oposto, nem passa perto porque a sua glicemia vai aumentar só de chegar perto daquilo” (risos). Tinha situações que chegavam a ser divertidas com ele. E ele sempre fazia um elogio, sempre fazia elogio conforme os resultados do meu tratamento, a forma como eu estava lidando com a insulina, a forma como eu lidava com os produtos, que ele gostava que eu levava. Ele falava assim: “Se todos os meus pacientes fossem como você eu dormiria tranquilo”. E eu adoro um elogio! Aqueles elogios dele eram um trampolim pra melhorar o tratamento, sabe? Aí ele falava:”Leia, leia muito”. Não tinha internet. “Se aparecer uma matéria na revista compra a revista e lê. Se aparecer uma matéria no jornal, leia. Se aparecer uma matéria na TV, veja. Se você conhecer um livro, compre, leia. Livros com experiências contando da diabetes, você precisa aprender, você precisa entender o que acontece no seu corpo pra você respeitar ele e controlar”. E isso era já uma dica para ir numa associação, que não existia na época em Santo André.
P/1 – E como a Associação entrou na sua vida?
R – Então, depois desse médico, ele ficou dez anos cuidando de mim e ele precisou, por um motivo pessoal, eu não sei se ele teve um assalto, uma coisa violenta, ele acabou se mudando pro Vale do Paraíba, então eu perdi o contato dele. Aí eu acabei herdando o chefe de departamento na época daquele hospital, eu achei que eu ia ser super master blaster atendida por um chefe de departamento, né? Só que ele era o avesso. Com o médico anterior eu já tinha aprendido valores de hemoglobina glicada, que a hemoglobina glicada é um exame que você, é o dedo duro pro médico. Você vai lá, faz o regime bonitinho no dia anterior e faz o teste de jejum e está lá 85, 93, olha, que exame bonitinho! Vamos ver a glicada, 9%. Que a glicada é assim, a insulina abre a porta da célula pra energia entrar dentro da célula pra ela passar no seu sangue. Se você não tem insulina, a energia não entra na célula, então ela fica livre no sangue. E é onde aumenta a glicemia. Essas moléculas de energia glicam, elas grudam, e fica, por isso que chama hemoglobina glicada, ela gruda e fica por um período de três meses no seu organismo, que isso é renovado, milhões de células todo dia, você sabe disso, né, aula de Biologia, aquela coisa. E aí esse exame te dá esse resultado. Por mais que na glicemia, no sangue, tenha pouca glicose, a glicada está ali. E esse percentual é o que te dedura pro médico. E o normal, o ideal é até 7%. Pessoas normais têm média de 5%, sem diabetes. E quando você vai aumentando isso, ele te passa uma média glicêmica, acho que 7% é uma média glicêmica de 130 a 140. Acima disso proporcionalmente vai aumentando. Eu cheguei a 12% com esse médico chefe de departamento. Aí eu falava pra ele: “Doutor, esse exame tá alto, né?” “Nãooo, tá bom, deixa assim” “Doutor, lançaram uma insulina diferente assim, assim que eu vi lá, não é legal testar?” “Nãooo, deixa assim”. E eu comecei a ficar cansada. E ele tinha uma postura não muito ética no consultório, ou ele não estava nem aí, nem olhava pra sua cara, ou ele vinha cheio de dedos assim, sabe? Aí eu fiquei revoltada, fiquei quase um ano sem ir no médico. E isso é um pouco de suicídio para um diabético, você não pode ficar tanto tempo sem ir ao médico. Aí eu conheci uma menina que fazia ginástica comigo porque eu estava nadando, fazendo natação. Ela falou assim: “A minha irmã tem diabetes também e ela vai num médico em Santo André muito bom”. Eu falei: “Santo André? Me passa o telefone”. Ela me passou e foi quando eu conheci o médico que eu estou até hoje, acho que a gente já está junto há uns 12 anos, por aí. E aí a minha vida mudou da água pra água de coco (risos). Ele me mostrou que o meu tratamento realmente estava totalmente fora, estava démodé pelo que a Ciência tinha disponível. Ele mudou radicalmente a forma de tratar, número de testes. E o custo também ficou bem maior, mas eu sempre falava, era um investimento, eu investia no meu tratamento. E ele queria que eu fosse na tal da Adiabc, que era a Associação de Diabetes da qual ele é presidente. Aí ele falava assim: “Vai lá”. Eu: “Tá, eu vou” “Não, vai lá. Vai”. E foi muito engraçado que a primeira vez que eu passei com ele em consulta, ele: “Olha, você quer saber o que tem disponível no mercado hoje pra você?” “Quero” “Então, tem injeções múltiplas que é o que eu estou prescrevendo pra você agora, mas tem também um sistema eletrônico de insulinização que é uma bomba de insulina”. Eu: “Bomba de insulina?” “É. É simples, parece um pager eletrônico e ele é inserido no seu abdômen, com catéter, e ele vai injetando microdoses de insulina durante as 24 horas do dia e é bem melhor”. Ele falando e eu assim, horrorizada, né? E eu sou assim, não importa quem é que está conversando comigo, o que tiver no meu rosto é o que eu estou pensando (risos). Eu sou extremamente expressiva. E eu comecei a ficar horrorizada assim e ele: “Não, calma, você não está pronta pra isso. Eu vou te preparar pra isso”. Eu fiquei olhando aquilo: “Que é isso”. E aí já tinha internet, já tinha as coisas. Comecei o tratamento com ele, tal, mudou tudo, melhorou muito. Fui na Adiabc, comecei a frequentar lá e fui pesquisar a tal bomba de insulina. E, nossa, na época só tinha estudos em inglês, material de informação não tinha nada em português, tinham poucos aqui no Brasil ainda. E eu achei muito legal, achei interessante a forma de tratar. E aí ele já me ensinou, me passou contagem de carboidrato. Então para eu usar as múltiplas eu já entrei com contagem de carboidrato, passei com nutricionista. Isso pra vocês parece uma coisa absurda, mas é muito natural diabético tipo 1 fazer contagem de carboidrato. E eu lembro que quando a nutricionista passou pra mim aquela tabela com folhas e folhas e folhas de alimentos, o que cada um tinha de carboidrato pra você contar, que você não conta caloria. Carboidrato é unidade de alimento que mede o volume que mais se transforma em açúcar no seu organismo. Então às vezes tem um produto que tem uma quantidade de caloria que não é referente ao carboidrato, então o certo é contar os carboidratos. E isso é novo, acho que deve ter uns 20 anos no mundo, no Brasil menos, a gente sempre chega depois aqui, difícil atravessar o oceano pra chegar. E aí eu comecei, na primeira semana eu contava, seguia aquelas tabelas – tabelas não, eram umas folhas de sulfite enormes, eu consultava, tudo. Na segunda eu já estava mais confortável. Na terceira já estava tudo tranquilo, contava, injetava insulina, tudo bonitinho, as canetinhas, me adaptei muito rápido. Porque você não come diferente, você come praticamente as mesmas coisas, então você acaba decorando. Porque a minha memória não funciona nem pra números e nem pra nomes, então é terrível pra mim ter que lembrar. Mas nesse caso eu lembrava por causa das referências, minha memória é ramificada, para eu lembrar de uma coisa eu lembro de várias juntas, de uma história pra poder montar a minha conclusão. E aí deu certinho, comecei na Adiabc e na segunda consulta eu já cheguei pra ele e falei assim: “Ah, vamos ver esse lance da bomba, aí?”. Ele: “Não, é cedo. Espera”. Aí acho que passou uns dois, três meses, eu ia todo mês lá, aí ele falou assim: “Olha, vamos fazer o teste da bomba?”. Eu falei: “Vamos”. Eu fiz o teste e adorei. Nessa época eu já estava mais familiarizada com a Adiabc. A Adiabc pra mim, eu falo que eu encontrei os da minha espécie, porque eu era um extraterrestre nos outros lugares. Eu cheguei lá, eu contava histórias de hipoglicemia que eu tinha tido, que quando eu contava algum problema que eu tinha tido com diabetes, de queda de açúcar, que é hipoglicemia, na minha família. “Ahhh, nossa, você não pode andar sozinha! Você não pode dirigir sozinha. Você não pode nada. Você tem que ficar com andador e alguém do seu lado amparando o tempo todo”, segundo eles, se fosse assim. E na Adiabc, chegava lá, contava uma história de hipo: “Ah, a sua foi. Eu tenho uma assim, tal, que é bem pior e tal”. Além de amenizar a sua história (risos), você percebia que você não estava sozinha, que tinha outras pessoas também que tinham problema e que tinham coisas a acrescentar na sua vida. E isso mudou tudo, tudo. Eu queria encontrar a mãe daquele meu segundo namorado pra explicar pra ela todos os detalhes do que é ser uma mãe saudável. Queria encontrar com aquela senhora que me disse que eu não poderia gerar um filho, realmente eu não gerei, mas não foi por causa do diabetes. Queria contar pra ela dente por dente como se faz um filho quando se é diabético e como você pode. Eu queria encontrar com pessoas que disseram que eu ia ficar cega, que eu não podia cortar braço porque não ia cicatrizar nunca. Porque aí eu aprendi tudo e eu aprendi da forma correta, da forma científica e da forma, vamos dizer, diplomática (risos), poder falar isso com diplomacia. Porque aí eu virei um centro de informação. No meu trabalho, na época eu estava trabalhando em uma agência internacional e tinha um seguro de vida em grupo, isso foi uma coisa que me traumatizou também um pouco. Mas aí eu já tinha educação em diabetes. O departamento pessoal me chamou e eu tinha recém entrado na empresa, estava feliz da vida, salário melhor, função melhor, uma equipe enorme, clientes incríveis. Aí o departamento pessoal me chamou e falou assim: “Olha, nós temos 300 funcionários e você é a única pessoa que não vai poder entrar no seguro de vida em grupo”. Eu falei: “É mesmo? Mas por quê?” “Ah, porque você tem diabetes”. Eu: “Ah?” “É. É doença incurável, assim como o câncer, então você não pode entrar no seguro de vida”. Eu falei: “Mas quem disse isso?” “Na apólice, na apólice diz”. E ela falava de um jeito como se ela fosse o seguro, né? Eu falei: “Nossa, não sabia disso”. Ela: “É, doença incurável não pode entrar em seguro de vida, ainda mais em grupo”. Eu falei: “Isso vai atrapalhar alguma coisa na minha contratação?”. Ela: “Não, só que você vai ser a única pessoa aqui que não tem direito a seguro de vida”. Eu falei: “Hum. Tá, tudo bem”. Eu falei: “Eu vou no enterro do cara que escreveu essa apólice, mas ele não vai no meu”. Eu saí da sala assim, entrei no elevador. Aaaaiii, chorava, desesperadamente, que eu falei assim: “Nossa, que discriminação! Que coisa mais desagradável”. E da forma como ela colocou, sabe? Aí eu passei no banheiro, lavei o rosto, tal, sentei na minha mesa, fui trabalhar. E o meu chefe tinha me chamado, que o meu chefe era muito meu amigo também, me conhecia de longa data, a gente trabalhou junto acho que uns 16 anos. Aí ele falou assim: “Malu, vem pra cá” “Não, deixa eu terminar um negócio aqui”, que eu estava com o olhão vermelho, né? “Deixa eu terminar aqui que eu já vou”. E ele sabia que tinham me chamado no departamento pessoal, então ele ficou assustado porque foi ele que me convidou pra trabalhar lá. Aí ele falou: “Vem cá!” “Já vou” “Vem cá agora” “Tá bom”. Aí fui. “Fecha a porta” “Ih, meu Deus”, porque eu brincava com ele, né, quando ele chamava com a porta aberta era CRG, que era Comida de Rabo Geral e se fechava a porta era CRI, que era Comida de Rabo Individual (risos), não tinha jeito. Aí eu sentei e ele falou assim: “O quê que foi?”. Eu falei: “Nada” “Não vale a pena, “conta pra mim o que aconteceu. Você foi chamada no departamento pessoal que eu sei” “Como é que você sabe?” “Ah, porque eu te chamei ali e você não estava e falaram que tinham te chamado lá”. Eu falei: “Aham”. Aí ele pediu e eu contei pra ele. Ele parou. E ele é um descendente de espanhol, ficou vermelho na hora, xingou de um monte de nome feio a pessoa do departamento e ele falou: “Eu tenho certeza que desse andar inteiro aqui a única pessoa que não vai precisar desse seguro de vida é você porque você se cuida. Eu sei o quanto você é cuidadosa com todas as coisas que você faz”. Eu não sabia que existia esse tipo de coisa numa apólice, até virou um argumento quando alguém me oferece seguro de vida e não quero comprar: “Não posso, tenho doença incurável” (risos). Então foi uma coisa que marcou, de ruim, mas não altera, o conhecimento que eu ganhei consegue me fazer defender todas essas intempéries que aparecem, sabe?
P/1 – E nesse meio tempo todo, a gente passou alguns anos na sua vida focado agora na diabetes e nos conhecimentos que você foi adquirindo, etc. Mas eu imagino que em paralelo em algum momento nesse tempo você saiu da casa dos seus pais, foi morar sozinha. Como é que foi alçar novos voos, mais independente, nesse meio tempo todo.
R – Os meus pais sempre valorizaram muito que você tivesse sua casa, casa própria, era o sonho. Assim como eles sonharam com isso e conseguiram realizar, eles até gostavam, quando os filhos casassem eles fossem morar na casa deles, não numa casa alugada. Até o meu irmão no início morou numa alugada, mas depois comprou e a minha mãe não sossegou enquanto ele não tivesse a casa dele. Ajudou como pôde e tudo o mais. E quando eu estava com acho que idade? Acho que 27 anos, 26 acho, eu dei entrada num apartamento. E na época a minha família achava que era muito caro e eu estava assumindo uma dívida muito grande. Mas eu confiava que eu conseguiria. Até eu peguei contrato, levei para uma prima minha que era gerente de banco e ela conhecia tudo de administração pra ela ler, me dizer que riscos que eu corria e tudo o mais. Aí ela já conhecia o contrato daquela construtora, elogiou, falou que era uma boa, para eu ir avante. Então meu irmão que é meu mentor foi contra, ele falou assim pra mim: “Você não pode gastar mais do que 30% do seu salário numa parcela de imóvel”. Eu falei: “Vou morar numa favela, num cubículo lá porque 30% do meu salário não vai pagar”, eu pagava bem mais de 50%, mas eu conseguia pagar. Ele falou: “Não, não sei o quê”. Meu, décimo terceiro, férias, tudo virava parcelinha do apartamento, ia pagando. Não fui viajar pra lugar nenhum, não tirava férias, vendia, fazia tudo o que podia, se aparecesse um freelancer, a moeda corrente da minha vida era a parcela do apartamento (risos). E aí eu tive esse namorado que desistiu por causa da diabetes. Depois eu namorei com um cara que era estudante de Medicina, eu falei: “Pronto, a vida está tranquila agora, vai me ajudar”. Também não deu certo. Eu falo que ou eu fui trocada por outra pessoa ou foi o problema do diabetes, não tive sorte na vida amorosa. Aí não deu certo, eu tinha dado entrada no apartamento prum investimento. E aí também teve um outro relacionamento que foi traumatizante, foi uma coisa muito, foi uma decepção muito grande, envolvia traição, dinheiro, um monte de coisa que isso eu acho que deixou minha vida sentimental sem muita perspectiva, eu acabei desistindo de achar que eu ia ter minha família mesmo. E o apartamento começou a ser construído, foi construído, ele foi entregue e ele foi entregue bem na época que eu estava em crise desse relacionamento da decepção grande. Eu peguei as chaves, tudo, e eu estava montando os móveis no apartamento pra morar com essa pessoa. A gente tinha plano de casar, de morar junto, alguma coisa e na época ele não ajudou em nada porque ele estava desempregado, então eu falei: “Não, eu vou fazendo conforme dá, quando ficar pronto a gente vai pra lá”. Só que aí as coisas começaram a se desequilibrar, não deu certo, eu saí fora porque envolvia um monte de coisas que não dava, tinha traição, mentira, dinheiro emprestado que nunca me devolveu em quantias bem grandes, dinheiro que era usado pra ficar com a outra pessoa e não comigo, então, foi uma coisa que me humilhou de uma forma muito, muito dramática, muito drástica. Eu até falo assim: “Nossa, eu já passei por várias situações na vida e se alguém falar pra mim: ‘Você perdoa?’ ‘Perdoo’”. E aquela pessoa, eu evito pensar nessa pessoa pra não contaminar minha mente, que é uma coisa muito ruim. Só que de novo, aí vem aquela coisa, né? Pô, estava montando o apartamento, a cozinha eu escolhi com ele, ia morar com ele, apartamento pronto, faltava por uns móveis lá, tal. “Mãe, seguinte, vou morar no meu apartamento” “Como é que é?” “Ah mãe, tenho um monte de amigo publicitário que mora sozinho desde novo, 32 anos, chega, né? Vou morar no meu apartamento” “Ah não, filha minha não sai de casa solteira” “Ei, o que é isso? Não é assim também, né mãe? Não é porque eu não encontrei uma pessoa bacana pra dividir a minha vida que eu não vou ter a minha casa, eu sempre quis ter minha casa, minha cozinha, meus móveis”. E o apartamento é um apartamento gostoso, é um apartamento num local bom da cidade, é perto do centro, num bairro bem gostoso de viver, tal. Eu falei: “Não mãe, e outra, eu chego de madrugada”, não tinha hora pra voltar da agência, chegava uma, três, quatro da manhã, eu tinha que ligar pra ela, pra ela abrir o portão para eu entrar de madrugada. Eu achava um perigo isso. Tinha um pastor alemão desse tamanho em casa, o Urso, mas mesmo assim a gente tinha medo de assalto, coisa, e ela ficava acordada. Eu falava: “Mãe, você não tem mais idade pra ficar me esperando. Eu não sou mais a menininha do colégio que volta da faculdade, coisa desse tipo. Vou viver minha vida, vou estar pertinho de vocês”. E assim, na minha família eu sou meio que uma ovelha negra, família que eu chamo é mãe, pai, tios, tias, primos, tal. Eu fui a primeira pessoa a viajar pro exterior sozinha, com diabetes, que pra eles é uma dor de cabeça terrível. Pra mim também foi na época, mas tirei de letra. Eu fui a primeira pessoa a morar sozinha. Eu sou a única pessoa na família que anda de motocicleta (risos). Então é tudo. Queria fazer corrida grande e longa, ninguém faz atividade nenhuma, eles acham que eu sou louca de correr dez quilômetros. Eu fui correr 63 em dois dias em Orlando (risos). Então tudo pra eles eu sou exagerada, né? Mas eles me ouvem e eles entendem que é uma coisa que é boa pra mim, que me faz bem e aí todo mundo aprova e fica orgulhoso (risos), você vira a moeda. Então minha mãe não queria que eu fosse morar sozinha de jeito nenhum, também sou a única pessoa que saiu de casa pra morar sozinha solteira. Eu explicava. Ela falava: “O que você quer, liberdade?” “Não, não é liberdade. Liberdade hoje a gente tem em qualquer lugar. O que eu quero é ter a minha casa, eu sou adulta. Pô, eu sou independente financeiramente, eu quero ter minha casa. Tanta gente quer ter casa, vai lá, aluga e vai morar, o meu está pronto, é meu, deixa eu ir lá morar nele, curtir minha casa”. Aí foi indo, foi indo, foi indo, ela chorou pra caramba na primeira noite, eu também chorei em casa, tal, mas você sabe que criou uma relação diferente, a gente já era muito amiga, a gente se tornou mais amiga ainda, eu e minha mãe. E aí deu certo. Então eu tinha saído do relacionamento, terminei de montar o apartamento, falei: “Agora, eu vou morar sozinha. Ah, eu planejei ficar nesse ambiente com aquela pessoa, ela não vai estar lá. Ela nunca esteve, então, não vai fazer diferença”. E eu moro nesse apartamento até hoje, não pretendo sair de lá acho que nunca porque eu adoro lá (risos) e aí fui morar sozinha com 32 anos de idade. E foi super bem, mudou bastante coisa, a responsabilidade de ter sua casa, de fazer sua comida. E aí depois disso o que mudou bastante foi quando eu... Eu trabalhei muitos anos com healthcare em agência e eu me tornei diretora de arte eu tinha 26 anos, foi quando eu fui convidada a fazer criação mesmo. Porque assim, voltando agora pra parte profissional, eu fiquei diabética e eu era chefe de estúdio e, segundo a tráfego eu nunca ia ser porque eu funcionava. Fiquei lá, aí ela saiu. Aí entraram os computadores. E o computador fazia tudo, só que não montava o layout, as coisas, então a gente ainda fazia isso. Só que foi enxugando muito, a ferramenta de trabalho que era o meu departamento se resumia a um computador e uma pessoa pra colar o material e apresentar. E eu acabei sendo a pessoa que colava o material. Aí a agência mudou de endereço, nós estávamos em um lugar maior, tal, e mudou um cara que ele veio e fez uma reengenharia na empresa pra enxugar custos. Porque a propaganda, na década de 70 e 80 você vendia ideia e você vendia por um valor muitas vezes inestimável, mas ela dava resultado porque era ideia. Depois eles começaram a vender o espaço, então as agências tinham lucro no percentual de publicação.
P/1 – No BV.
R – BV. Aí depois o próprio cliente comprava o espaço. Então o salário do profissional de propaganda foi se enxugando, enxugando, enxugando, enxugando, chegou uma hora que teve que reduzir o número de pessoas. E o computador foi uma ferramenta que proporcionava isso porque o computador era colocado na agência pela indústria gráfica, que pra ela era interessante que você fizesse no computador e mandasse o trabalho pra eles. Então eles bancavam o computador pra você trabalhar pra eles. Isso limitava a agência a trabalhar com essa gráfica, mas eliminava um departamento inteiro de trabalho, então pra eles era vantagem. E nessa reengenharia decidiram me demitir. Eu fui demitida cinco e meia da tarde, às sete e meia da noite eu fui readmitida porque os diretores de arte protestaram porque eles falaram assim: “Ela faz a montagem, vocês vão ficar sem ela?”. Eu lembro que o rapaz falava assim: “Vocês preferem pagar oito mil dólares pra fazer montagem porcamente durante o dia inteiro uma coisa que ela faz em meia hora por 500 dólares? É isso que vocês pretendem?”, aí me readmitiram. Como eu estava na agência já, acho que na época há uns 11 anos, dez anos, o presidente da empresa que foi me demitir com lágrimas nos olhos, né? E eu também. E na hora, eu falo que esse foi um dos momentos da minha vida que eu tive uma luz muito grande na cabeça, porque eu poderia reclamar de tudo ali. Estava sendo demiitida sem uma perspectiva de arrumar emprego porque meu emprego estava indo por água abaixo, a minha profissão estava indo por água abaixo e na hora que ele falou isso, ele me demitiu, eu: “Tá, eu entendo, eu entendo”. Ele disse: “Você tem alguma coisa pra me dizer?” “Ah, eu tenho, tenho sim”. E tinha sido demitida uma grande amiga minha antes, um pouco antes, pelo mesmo motivo e eu falo que ela é minha irmã de coração porque a gente virou comadre e a gente tem uma amizade muito forte há mais 29 anos, vai fazer 30 anos que a gente é amiga, então é muito forte a amizade da gente. E eu fique muito triste na época com a demissão dela. E tinha umas pessoas que eles contrataram que não tinham caráter, que faziam coisas que não era legal para a empresa, eles se beneficiavam de benefícios através de formas ilícitas e todo mundo sabia, não era uma coisa que só um sabia, todo mundo sabia e, paciência, está trabalhando, vai lá, né? Eu falei pra ele: “Ah, eu acho que vocês deveriam valorizar um pouco mais as pessoas que trabalham pra vocês, não os funcionários. Eu acho que a gente adquiriu um amor, um carinho tão grande pela empresa, aqui é a minha segunda casa, eu passo mais tempo aqui do que com a minha família. E eu sempre gostei muito de vocês, vocês me ajudaram em tantos momentos difíceis na minha vida. E eu queria que vocês valorizassem a forma como a gente trabalha e transformar isso em ferramenta pra nós. Por exemplo, se eu não posso ser operadora no computador, eu fiz curso, vocês me deram um curso pra aprender a mexer e não me deram a opção de trabalhar nele, então eu não pude nem mostrar meu conhecimento pra vocês e vocês estão me eliminando. E vocês sabem que eu sou uma pessoa de índole, que se você me colocasse de novo pra trabalhar ali eu ia fazer tudo o que eu poderia fazer, não como as pessoas que vocês contratam lá fora que vendem um peixe absurdo, chega aqui não tem nem sardinha pra te oferecer”. E estava acontecendo isso no departamento de computação gráfica, né? Aí ele pegou e falou assim: “Olha, eu acho que você tem razão e eu vou tentar pensar nisso. E eu vou ver se a gente consegue fazer um turno noturno. Você viria trabalhar à noite aqui no computador pra adiantar os trabalhos pro dia seguinte?”. Eu falei: “Viria”. É a oportunidade que eu teria pra aprender a mexer no computador. Aí fui demitida, cinco e meia. Sete e meia ele rasgou a carta de demissão porque protestaram e eu ia continuar lá. E eles iam começar a me chamar na hora do almoço pra trabalhar no computador. Então eu trabalhava de montadora e na hora do almoço eu fazia um lanchinho rapidinho e ia lá no computador ajudar com alguma coisa. E com isso eu aprendi a mexer e todo trabalho ruim que tinha de computador, mais difícil, mais chato, aquele cara que não tinha uma índole muito boa passava para eu fazer. E nessas eu fiz a minha cama no departamento porque trabalho complicado era eu quem fazia, trabalho chato e demorado era eu quem fazia, então eu acabei adquirindo habilidades que eles não tinham, eu virei uma operadora exclusiva de marketing direto, que na época era preenchimento de cartão de crédito basicamente (risos), sabe aquelas grades assim? É muito chato de fazer aquilo no computador e eu fazia aquilo pra eles. E com isso eu adquiri um grande conhecimento no marketing direto porque o rapaz que trabalhava comigo, o diretor de arte, ele verbalizava tudo o que estava fazendo e eu perguntava: “Mas por que assim?” “Ah, essa carta aqui tem um Johnson box, tem um não sei o quê” “Por que chama Johnson box?” “Ah porque foi um cara que chamava não sei o quê Johnson que começou a usar essa técnica e virou o nome dele essa técnica de usar essa conversa aqui com o cliente” “Ah. Mas por que não sei o quê?”, e ele ia explicando tudo. Fui absorvendo. Aí eu virei responsável pelas artes de marketing direto e com isso eu aprendi a mexer com marketing direto. Aí tinha um diretor de arte, que era esse cara que eu trabalhei 16 anos com ele, que sacou que eu estava fazendo as coisas assim, aí eu já era assistente de arte do diretor de arte master da agência, que eu mexia muito no Photoshop e ele gostava do meu trabalho e eu fazia com ele. O outro cara veio e me convidou pra ser diretora de arte júnior de marketing direto. Eu falei: “Mas é claro que eu quero”. Ele: “Então eu vou falar com o diretor de criação pra ele trocar a minha assistente com você e a sua função”. Eu falei: “Então espera, posso eu falar pro meu diretor de arte?”, que eu era assistente, né? E ele era tido na agência como um carrasco, mas eu nunca vi ele como um carrasco, muito pelo contrário, trabalhava super bem com ele. Eu cheguei pra ele e falei: “Olha, eu fui convidada assim, assim, assim. Eu gosto muito de trabalhar com você, mas é a oportunidade que eu espero a minha vida inteira que eu trabalho em agência, eu quero muito fazer criação, você sabe disso”. Tanto é que ele jogava um monte de coisa para eu desenvolver e ia com o nome dele. Ele falou: “Claro, eu te parabenizo pelo convite e eu nunca vou esquecer do seu trabalho”. Foi super aberto, sabe? E quando eu contei pro outro ele falou: “Ah, não acredito que ele falou isso pra você”. Eu falei: “É, ele já falou muitas coisas pra mim que vocês não acreditariam, mas tudo bem, ele não é o que vocês acham que ele era” (risos). E eu comecei a trabalhar com criação e não parei mais. Eu fui pra outra agência, multinacional, junto com ele, fiquei lá uns três anos, aí teve um corte. Eu trabalhei numa outra agência menor, numa outra menor, depois voltei para uma outra agência grande também, que era ali na Vila Olímpia, eu fiquei três anos lá e sempre trabalhando com cuidados de saúde, no marketing direto eu acabei, teve uma época que teve o lançamento dos genéricos no Brasil e tinha uma marca de medicamento que lançou o genérico aqui. E eu desenvolvia todo o material dos genéricos, então eu sei cada nome absurdo de remédio, de princípio ativo, você vai aprendendo e isso acabou fazendo uma pasta interessante, então me especializei nessa área. E é uma área que as pessoas não gostam de trabalhar porque você tem que estudar o produto, você tem que entender pra que serve, o que pode falar, tem regras de Anvisa que você não pode sair dizendo qualquer coisa pra qualquer um. Então é uma área que você tem uma monte de regras pra respeitar e precisa ficar bonito e criativo pra você vender e aparecer mais do que o concorrente, né? E na Adiabc eu conheci uma pessoa que trabalhava com a gente lá e eu fazia o trabalho de comunicação da Adiabc. Qualquer coisinha que ia fazer eu desenhava, era um dos meus trabalhos voluntários além de educação lá. E esse rapaz viu o trabalho e gostou muito. Eu não sabia. E na época ele até fez um monte de elogio pro presidente, pros médicos da Adiabc e falou assim: “Olha, não percam essa menina, ela vai mudar a cara de vocês com o público”. E realmente mudou porque criou uma identidade visual, a gente tinha toda uma linguagem pra usar. Como eu sabia bastante coisa sobre diabetes, eu sabia falar com o público, o que colocar, então a gente criou uma forma apresentável de material. E essa pessoa, depois de alguns anos, me chamou pra fazer um folhetinho pra ele, pra indústria farmacêutica. Eu falei: “Claro, faço”. Aí ele me passou uma tabela de preços que ele tinha lá de trabalho, eu falei: “Nossa, sua tabela é boa, porque quem faz freelance ganha pouquinho”. E eu já tinha a empresa aberta porque teve uma época que eu trabalhei com nota de serviço. De vez em quando ele pedia uma coisinha. Teve uma oportunidade que ele virou pra mim, ele estava gostando do meu trabalho, que estava crescendo, volta e meia ele pedia uma coisa ou outra. Aí falou assim: “Olha, eu estou com um visual aid”, que é aquele material que o representante apresenta pro médico, “está empacado na agência que cuida e não sai. Eu falei: “Como assim?” “Não, os caras...” “Não, mas sabe o que é? Eu vejo lá na agência, você tem que pedir direito, explicar pra eles o conteúdo direitinho, fala como você quer que o pessoal desenha. Lá nós temos o outro lado, eu não recebo informação pra fazer meus trabalhos”. Ele: “Não, você não está entendendo. Vamos marcar um almoço e aí eu vou te passar, ver o que você acha, se você consegue fazer uma proposta de trabalho pra mim”. A hora que ele trouxe, só tinha que fazer um desenho, estava toda a informação ali. E é tudo informação científica, você não precisa escrever, ou seja, eu não preciso de um redator, só precisava de um diretor de arte mesmo pra fazer a coisa acontecer. E ainda tinha um brand book pra seguir. Eu fiz o material, ele falou: “Quando você me entrega? Você consegue me entregar até não sei quando”, que era uma data de junho. Eu virei pra ele e falei: “Me dá o feriado de Corpus Christi para eu fazer”. Eu levei o trabalho pra casa, passei o feriado inteiro trabalhando. Um trabalho que ele falou que estava há três meses parado na agência eu fiz em quatro dias em casa com duas opções de layout. Montei tudo bonitinho e fui tremendo apresentar pra assistente dele, numa hora de almoço que a gente marcou num restaurante fui mostrar. Foi uma coisa mágica porque ela adorou o trabalho, de cara, ela nem me conhecia, ela virou e falou assim: “Ai, o meu chefe falou muito bem de você, mas eu não imaginava que era tanto”, ela fez um elogio que eu nunca tive em agência. Ela falou que nunca tinha recebido um material tão completo e tão organizado do jeito que eles precisavam, até além de como eles esperavam. Eu falei: “Pô, que bom!”, eu saí chorando de felicidade do restaurante. Aí passou isso e ele vivia pedindo coisa para eu fazer. Pra mim estava ótimo porque eu estava tendo quase dois salários, né? Um do trabalho. Só que estava pesado porque eu trabalhava à noite, na hora do almoço, final de semana, tal. Aí ele virou pra mim e falou assim: “Olha, larga essa vida aí que você tem nessa agência, que você só sofre lá, trabalha até tarde, não ganha hora extra, não tem nada”. Eu falei: “Ah, mas o mercado é assim mesmo” “Não, larga essa vida aí, me fala seu salário e eu te garanto esse faturamento mensal pra você trabalhar em casa pra mim”. Eu olhei e falei: “Ah? Como assim?”. Ele falou: “Não, eu acho que eu consigo te garantir por um ano aí e você vai vendo se consegue outros clientes, tal, alguma coisa”. Eu falei: “Nossa, se eu encontrasse uma lâmpada enferrujada na praia, esfregasse e saísse um homem gordinho azul lá de dentro eu não conseguiria fazer um pedido tão completo como esse”. Eu falei: “Então tá, vamos ver”. Eu pedi demissão, avisei na agência o que eu ia fazer. E é engraçado que eu lido sempre com verdade, né? Eu falei: “Olha, estou atendendo um cliente assim, assim, assim, fiz um servicinho ou outro, não é concorrente de vocês, nada, e deu certo, ele me propôs isso”. O meu chefe ficou com beicinho, tipo: “Pô, eu queria isso pra mim, não consegui até hoje, né?”. Eu falei: “Não é legal?”. Ele: “Pô, é muito bom!”. O diretor de criação que era um dos sócios, a hora que eu contei pra ele assim, fui lá pianinho, tal. “Nossa, mas que coisa boa!”, me ofereceu ajuda se eu precisasse usar a impressora, se eu precisasse de alguma coisa deles, se eu tivesse algum problema no meio do caminho e tivesse alguma coisa. E eu deixei claro, se eles precisassem dar continuidade a alguma coisa pra eles me chamarem que eu ajudava eles, tal, não sei o quê. Foi maravilhoso. E aí a minha vida mudou tudo. Trabalhar em casa. As pessoas falam: “Ah, você faz o seu horário”, eu trabalho pra caramba (risos). Eu sou disciplinada, tenho horário de almoço, tenho horário pra começar, horário pra terminar, mas a vida mudou tudo, inclusive para eu tomar decisões de realizar coisas que eu queria pra mim. Então eu comecei a praticar atividade física com 27 anos porque meu joelho detonou aqui, agora eu estou voltando numa outra parte, do diabetes, tá? Meu joelho inchou entre a, não foi aqui que ele inchou, foi entre a minha mesa e a impressora, eu levantei pra ir lá, deu um estalo e inchou. Eu fui no médico, o médico vira e fala assim pra mim: “Isso é sedentarismo”. Eu morri de vergonha (risos). Eu falei: “Meu Deus, eu jogava bola quatro horas por dia até os 16 anos e eu estou sedentária” “É, vamos curar isso aí e você vai fazer uma atividade física” “Ah, tá bom, então eu vou jogar vôlei” “Não vai, não. Joelho assim, não, você não pode fazer nada com impacto” “Como assim?” “Não, vai nadar, hidroginástica” (fala baixinho): “Hidroginástica é coisa de velho” “Não” “Não sei nadar, tenho fobia de água, morro de medo de água”. Aí fui na ACM, me matriculei pra aprender a nadar. Eu falei: “Vou pegar, vou acertar dois bichos com um tiro só, vou perder o medo da água e vou cuidar do meu diabetes melhor pra fazer atividade física que meu médico mandou”. Aí comecei a nadar. Me apaixonei pela piscina. Até hoje eu tenho medo de água aberta, mas se deixar eu fico lá, vai e vem, vai e vem, adoro nadar. Aí depois da natação eu brincava com a hidroginástica, que não era de velho, é muito engraçado, muito divertido. Aí um dia eu comecei a correr. Meu médico me chamou pra... porque eu não gostava de corrida, eu nunca tinha corrido mas eu não gostava de correr porque eu achava que corrida era chato. Aí eu tinha uma amiga que tinha feito maratona já: “Que nada, sua boba! Você tem biotipo de corrida, por que você não começa?”. Eu: “Não, não vou correr, não”. Aí tinha um dia que tinha um evento, campanha do agasalho, aí esse meu médico que cuida de mim até hoje falou assim: “Ah, vamos lá no parque correr” “Não, eu não corro”, estava fazendo o teste da bomba. “Não, eu não corro” “Ah, então vem caminhar” “Ah não, caminhar não, não vou, não” “Não, vem comigo correr! Vamos lá pra ajudar eles na campanha do agasalho, não sei o quê, tal” “Mas eu estou fazendo o teste da bomba” “Grande coisa, eu tenho uma paciente que corre seis quilômetros por dia com a bomba. Você é maluca, você vai“. Porque eu tenho o apelido de maluca, Malu, Maluca. “Você é maluca, você vai”. Eu falei: “Então tá”. Aí fui, aí dei uma volta no parque com ele. O parque tem mil e 200 metros. Não é que foi legal? Aí ele parou porque começou a atacar a asma dele: “Ah, vou dar mais uma volta”. Eu corri dois quilômetros e meio e achei legal. Na semana seguinte eu corri três, depois quatro, depois cinco. Quando chegou no sétimo quilômetro uma amiga minha virou pra mim: “Ó, vai ter uma corrida de verão lá no Pacaembu, vamos fazer?”. Eu falei: “Você tá louca! Dez K, imagina! Eu só corri sete até hoje” “Ah, se você corre sete em treino, você corre dez na corrida”. Eu falei: “Não”. Aí fui. Fiz os dez quilômetros. Não parei mais. Aí meu médico pegou no meu pé, que ele falou: “Bom, tá correndo?” “Tô, tá legal, tá bacana” “Tá nadando?” “Tô, muito bom” “Então, né, dois exercícios aeróbicos, vai queimar tudo o que você tem de energia. Pode começar a consumir açúcar”. Eu falei: “Não, tá louco?” “Vai comer doce. Pode comer doce e fazer musculação, que senão suas juntas não aguentam, não” “Não, eu não gosto de musculação” “Não vai correr, não vai nadar. Ou só um, só vai nadar. Se for correr tem que fazer a musculação e tem que não sei o quê”. E como eu te falei, se ele fala é lei. Aí fui fazer musculação, comecei a comer doce. E aí não parei mais. Já fiz duas maratonas, corro pelo menos umas duas ou três vezes por semana, faço a tal da musculação pra poder fazer as coisas. Nadar também. Agora está de férias, em recesso, mas duas vezes por semana. Trabalho em casa, tenho um cãozinho que é a coisa mais fofa desse mundo, meu Google (risos), um shih tzu. Porque eu também sempre quis ter um bicho em casa, mas trabalhando fora não tinha condição porque passava seis horas por noite em casa com sorte, então seria muito egoísmo ter um bichinho lá que passasse a vida solitariamente. Depois que eu estava há dois anos trabalhando em casa eu falei: “Ah, acho que dá pra pegar um bichinho”. Que aí eu tinha feito uma viagem, que essa viagem também foi muito importante na minha vida. Eu fui fazer uma peregrinação, sabe tipo Santiago de Compostela? E eu nunca tinha ido pra Europa e eu conheci um peregrino bem experiente, amigo de corrida assim, um senhor, e ele tinha falado que tinha uma peregrinação na Itália, de São Francisco de Assis. E eu sou devota, apaixonada, amiga, tudo, de São Francisco, eu sou uma admiradora da vida dele, da história dele e de tudo o que ele construiu com a santidade dele, né? Aí eu falei: “Nossa, seria muita honra poder fazer o caminho dele”. Porque eu tinha lido na história dele que ele fez um caminho de Assis até Roma pra pedir ao papa que ele pudesse abrir a igrejinha que ele restaurou, porque uma igreja só pode abrir com um padre lá dentro, né, e não tinha. E ele queria abrir, então ele foi pedir autorização pro papa. E ele foi a pé. E aí eu fiz esse caminho e mais um outro que ele fez uma época, no início da vida de religioso dele pra curar os olhos, que ele teve uns problemas. Então foram 360 quilômetros de caminhada. Em bosque, no meio do mato, naquele país maravilhoso, que eu não sei por que meus antepassados vieram pro Brasil (risos). E foi mágico. Foi uma viagem. E até com o diabetes foi muito louco porque eu andava de 12 a 36 quilômetros por dia, dependendo do percurso. E a gente fez peregrino mesmo, tudo o que eu levei pra viagem estava nas minhas costas. E o indicado é que você leve 10% do seu peso. Eu estava sendo otimista dizendo que eu pesava 60 quilos, mas eu pesava um pouco menos, pesava 58, acho, 56. Aí eu levei sete quilos de bagagem porque eu tinha que levar os meus insumos de diabetes, mais 50% e pesava um pouco. E eu queria levar um iPad pra registrar bem as coisas, tal, então ficou um pouco pesado. Mas deu tudo certo. Fiz bolha no pé, fiz bolha de sangue no pé, andava com a bolha no pé, aprendia com os experientes a não deixar aquilo infeccionar. Então se você tem uma bolha e tem água dentro você tem que furar, você pega uma agulha, limpa bem com álcool, tal, ou esteriliza no calor, põe uma linha, fura a bolha e sai do outro lado e deixa a linha. Porque se você só fura cicatriza o buraco e a água permanece lá e essa água pode infeccionar, então ela tem que sair. Então quando você passa a linha o buraco permanece e ela vai dragando naturalmente. Quando secar, ela vai sair sozinha, então não machucava. E pra não infeccionar, quando é bolha de sangue, a gente usava... meu Deus, eu sempre esqueço o nome disso, é aquele produto que é indicado pra garganta quando você tem infecção de garganta. Própolis! Própolis puro. Pingava própolis puro ali. Não tive nenhuma infecção com minhas bolhas de sangue, tudo. E foi maravilhoso. Voltei da Itália assim, sentindo todos os odores diferente, vendo diferente, ouvindo diferente. O contato com a natureza, andando, o tempo todo andando, ele fortalece todos os seus sentidos. E eu voltei com uma vontade muito grande de ter um amiguinho canino em casa. Quinze dias depois veio a oportunidade, o Google apareceu. Eu falei: “Ah, isso é coisa de São Francisco, né?”, que ele é o protetor dos animais. Tenho esse amiguinho meu em casa, que é uma maravilha. E o plano é realizar meu sonho de maternidade, porque se eu não geri eu vou criar. E eu consegui entrar na fila de adoção, que eu achava que você não podia adotar solteiro. O meu irmão tem duas crianças adotivas, ele falou: “Não, pode. É só você ir atrás. A sua possibilidade é a mesma de um casal”. Aí passei por toda a avaliação que envolve tudo, foi aprovado, e desde janeiro estou na fila. Estou grávida do coração.
P/1 – Que legal! Que bonito. E deixa eu te perguntar uma coisa, Malu. Como você começou a monitorar a sua glicose?
R – Então, eu uso glicosímetro normal de ponta de dedo. Eu costumo monitorar pelo menos cinco vezes ao dia, de cinco a oito, depende da situação.
P/1 – E o que você acha disso? De furar o dedo.
R – Ah, se eu for comparar com a época do meu diagnóstico, que não tinha isso, é muito seguro. Você fazer o teste, ele é desconfortável, dói. Eu costumo dizer assim, quando as pessoas perguntam: “Se eu disser que dói é mentira, mas se eu disser que não dói também é mentira” (risos) porque você sente, às vezes eu fico com hematomas na ponta do dedo, sabe? Porque dependendo como pega machuca, fica roxo. E o meu dedo é todo furadinho. Se eu apertar assim você vai ver um monte de furadinhos assim porque são pelo menos cinco por dia. E é dependendo do local que você está não é confortável. Não é todo mundo que se sente bem vendo alguém picar o dedo e sair sangue. Às vezes você tá, pô, eu vou me alimentar, é o meu sangue e ele não vai estar em contato com nada, mas tem gente que olha feio, sabe?
P/1 – Já teve alguma passagem específica envolvendo o picar o dedo assim, ou uma situação embaraçosa, ou algo que tenha sido chato?
R – Teve uma época que eu trabalhei numa agência que tinha uma menina que não podia ver nem agulha, ela gritava quando eu ia fazer teste de glicose. Então se eu fosse almoçar com a mesma turma que ela, o que eu evitava, eu tinha que ir lá no banheiro fazer um teste de glicose separado pra voltar pra mesa pra poder fazer ou pedir para alguém distrair ela porque ela gritava quando ela via sangue ou alguém com uma agulha. Isso era desconcertante. Mas assim, às vezes você está num shopping, numa praça de alimentação, aí você saca o glicosímetro, pá, fura o dedo. Tem gente que fica assim, olhando. Ainda, né? Eu me sinto um viajante no tempo porque hoje em dia eu acho que isso é extremamente natural, mas as pessoas ficam olhando, parece que você tem aquela bolsinha de... sabe, externa?
P/1 – De colostomia.
R – Isso, que todo mundo olha, né? Sempre que eu vejo eu evito olhar, eu acho que é uma situação constrangedora pra pessoa que está usando e as pessoas ficam assim, né? Com aquele imã magnético encarando. E o mesmo às vezes ocorre quando você saca o seu glicosímetro em local público. Até o sangue mesmo, tem gente que não se sente muito confortável. Eu acho que hoje as pessoas são mais confortáveis com relação à AIDS, esse tipo de coisa, ou contaminação por sangue, mas não é 100%, não, tem gente ainda que te olha estranho.
P/1 – Um pouco mais cedo você tinha falado meio an passant de casos de hipoglicemia, que você ia na associação e você disse: “Nossa, aqui eu consegui encontrar pessoas que...”, mas você acabou não relatando nenhum episódio disso. Tem algum que você poderia compartilhar com a gente?
R – Ah, tem vários. O meu médico disse que um dia ele vai escrever um livro sobre hipoglicemia de paciente e eu vou ter um capítulo à parte porque eu tenho várias histórias de hipoglicemia absurdas.
P/1 – Por exemplo.
R – A primeira vez que eu tive uma hipoglicemia, que eu não sabia diagnosticar o que era uma hipoglicemia, foi num feriado de Corpus Christi na quarta-feira, na noite anterior. Eu estava próximo da... sabe a Igreja de São Judas, ali? Eu fui no Shopping Ibirapuera numa loja ali, aí eu desci a Igreja de São Judas e eu ia pegar a Imigrantes, ia pra casa. A última coisa que eu me lembro é de ter passado em frente a Igreja de São Judas. Depois disso, isso era por volta de sete horas da noite. O que eu me lembro, conscientemente depois disso era às nove e meia da noite no Pronto Socorro do Pari. Não me pergunte como que eu chego lá, mas eu cheguei lá dirigindo, na época era o primeiro médico que eu tinha. Ele disse que eu dirigi inconsciente, porque eu não lembro de nada. Eu tive uma queda e eu perdi. Olha, o que eu lembro são flashes. Na época até hoje o que eu lembro é isso. Eu lembro de ter visto uma placa indicando Avenida do Estado, uma outra placa indicando Dutra. Eu lembro do painel do meu carro que parecia o meu computador, mas não era. E eu não lembro de como eu fui socorrida. E depois me disseram que eu estava na pista da via expressa da Marginal Tietê sentido Dutra e eu parei. E eu ando lacrada, até hoje, no carro eu ando totalmente fechada. E os rapazes vieram, bateram no vidro e pediram para eu abrir o vidro, eu não abria. E eles disseram que eu estava com o olho muito aberto. Aí o rapaz disse que ele insistiu e eu não ouvia o que ele falava, então eu abaixei um tantinho assim o vidro. Ele falou que ele falava assim: “Você precisa de ajuda? O que está acontecendo?”. E eu disse pra ele que eu era diabética, que estava em hipoglicemia. Aí ele falou: “Abre o vidro, eu tenho Coca-Cola no carro”. Era uma pessoa até bem informada. “Eu tenho Coca-Cola no carro, eu te dou Coca-Cola e você melhora”. Eu falava: “Não, eu quero a minha mãe”. Depois disso eu desmaiei no carro, perdi a consciência total e eles forçaram o vidro para abrir, me tiraram. Tinha dois carros de estudantes que estavam ali, um deles pegou o meu carro e levou num posto de gasolina ali perto, fecharam, explicaram a situação, e o outro me levou pro Pronto Socorro do Pari que era ali perto. Eu já fui desmaiada. E quando você desmaia você está queimando neurônios, porque o seu corpo inteiro funciona sem açúcar, menos o seu cérebro. Então quando você perde a consciência total é porque você está queimando neurônio e aí você está deixando de oxigenar o cérebro de forma correta, aí você corre risco de não voltar. Eles chegaram lá, já avisaram o que estava acontecendo, injetaram glicose. Eu lembro que eles injetaram aqui porque eles não conseguiam pegar veia minha. Pegaram, injetaram, aí eu lembro quando eu acordei. Eu vi um monte de cabeça redonda por cima, que nem uma junta médica, aí eu abri o olho, olhei e falei: “Ai que pesadelo” e fechei de novo. Aí eles falaram: “Não, não, não! Você não está sonhando!”. Eu abri de novo, olhei: “Onde é que eu estou?” “Você está no Pronto Socorro do Pari”. Eu falei: “Onde???” “Perto da Marginal” “Marginal Pinheiros?”, porque é a região que eu conhecia. “Não, Marginal Tietê”. Aí eu comecei a chorar na hora, fiquei desesperada, eu falei: “Nossa”. E o médico explicou o que aconteceu, que eu fui socorrida, tal, não sei o quê. Assim, foi a primeira hipo assintomática que eu tive, que eu não percebi sintomas, nem nada, não soube identificar também e foi traumático. E eu fiquei com medo. Aí quando eu fui contar pro médico eu fiquei com medo de contar pra ele e tomar bronca, né? Eu relatei pra ele e ele falou: “Olha, uma coisa boa e uma coisa ruim. Coisa ruim é que realmente, eu acho que acumulou alguma região de insulina e absorveu muito rápido e você ficou sem”, porque eu tinha me alimentado às cinco e meia da tarde, não era pra cair. E ele falou: “Então eu acho que teve um acúmulo de insulina na sua perna”, que eu aplicava na perna à tarde, “absorveu de uma vez e a queda ocorreu por isso, por excesso de insulina absorvida. Agora a boa é que o seu inconsciente está educado porque mesmo não lembrando, não sabendo o que estava fazendo, você disse que era diabética e que estava em hipoglicemia”. Eu falei: “Ah tá. Mas eu não sei o caminho que faz pra chegar lá”. Eu respeitei trânsito porque estava, imagina, véspera de feriado prolongado, trânsito, respeitei sinalização, que eu não entrei em lugar errado assim, só que eu fui levada pelo fluxo, né? Essa foi uma.
P/1 – Que sorte ter encontrado esse pessoal também, né?
R – Anjos da guarda. Graças a Deus eu sempre encontro gente boa no caminho (risos).
P/1 – Alguma outra história?
R – Teve uma outra. Eu estava saindo da academia que ficava em Pinheiros e estava indo pra Vila Olímpia, no meu trabalho – na agência que não me aceitou no grupo de seguro lá. Aí eu estava passando debaixo da Ponte Cidade Jardim e eu ouvi o Heródoto Barbeiro falando na CBN: “São nove horas. Repita. Nove horas”. Eu: “Nossa, estou atrasada, demoro ainda dez minutos pra chegar lá, vou chegar nove e dez na agência”, eu não gostava de chegar atrasada. Ninguém tinha chego ainda, mas eu não gostava de chegar atrasada (risos). Fui retomar a consciência na estrada de Itapecerica da Serra, mas bem mato, bem, só via mato dos dois lados, com uma casca de banana no meu colo. Eu sempre levava fruta, alguma coisa, e eu perdi de novo a consciência, noção, fui direto pela Marginal, peguei a João Dias ali, fui, Estrada de Itapecerica, fui, fui, fui, fui bem longe, acho que lancei uns dez quilômetros por ali. A hora que eu retomei eu sentia o gosto de banana, eu olhei, tinha uma casca de banana. Eu acho que eu peguei a banana e comi e percebi que estava em lugar estranho. Aí eu comecei a chorar desesperada, já tinha celular, liguei pro meu colega de trabalho, eu falei: “Eu tive uma hipo, eu comi uma banana, eu estou voltando” “Me fala onde você está, eu estou indo aí pra te buscar”. Eu comecei a chorar e falei: “Eu não sei onde eu estou, não faço a mínima ideia, não tem placa, só tem mato aqui”. Eu falei assim: “Eu vou voltar”. Aí eu peguei, virei o carro e comecei a voltar, porque era uma estrada única, eu vou chegar em algum lugar. Depois de muito tempo tinha um posto de gasolina, eu parei e perguntei: “Onde é que eu estou?”. Ele falou: “Você está na Estrada de Itapecerica”. Eu falei: “Meu Deus do céu! Como é que eu faço pra pegar a Marginal Pinheiros?” “Não, você segue direto, vai sempre direto, você vai ver a Ponte João Dias lá na frente. Mas vai demorar um pouco, viu?”. Eu falei: “Nossa”, já estava com o olho tudo inchado de chorar, desesperada. Ele falou: “Está tudo bem?”. Eu falei: “Vai ficar bem, vai ficar bem”. Aí eu peguei um outro carboidrato que eu tinha, que eu sempre carrego comigo, na mochila ali eu tenho glicosímetro e como diz o meu amigo, um saquinho de Cosme e Damião pro ano inteiro, sempre tem doce para eu poder usar em momentos de necessidade assim. Aí eu voltei pra agência e acabei indo pra casa depois porque estava nervosa pra caramba, não sabia direito o que eu tinha feito. Mas tem vários. Teve um na minha casa, que eu sempre tinha o hábito de fazer exercício, atividade física, de manhã. Aí eu ia correr a São Silvestre. Eu falei: “Ah, a São Silvestre é no final da tarde”, na época era às cinco da tarde a corrida. Eu falei: “Vou fazer um treininho à tarde pra me habituar a fazer o exercício nessa hora”, porque eu não gosto muito de correr no final do dia. Aí fiz o treininho, tal, voltei pra casa, comi alguma coisa e relaxei, sabe, deitei na cama um pouquinho. A hora que eu deitei comecei a ficar mole, vi assim que eu estava ficando hipoglicêmica. Ainda deu tempo de eu correr pra cozinha, pegar um sachê de glicose, eu abri e espremi na boca. Ele é ruim de abrir, sabe, você tem que cortar, tudo. Abri. Eu acordei acho que uma hora depois em cima do tapete, caída no chão, o saquinho de glicose pela metade, jogado longe. E tinha um tapete no chão, o tapete estava o desenho do meu corpo certinho, molhada de suor frio, né, por causa da hipoglicemia. Eu desmaiei e até fazer o efeito da glicose que eu absorvi, até eu retomar, a hora que eu voltei mal conseguia levantar, fiquei um tempo sentada no chão, peguei o restinho do açúcar (risos) e joguei na boca. Sozinha em casa. E fiquei lá.
P/1 – Te preocupa o fato de morar sozinha?
R – Não. Depois que eu... essas hipos foram antes da bomba. Depois que eu passei a usar a bomba de insulina elas reduziram bastante. Mas é o que eu estava falando, eu acho que eu tenho um anjo da guarda que é um piloto excelente, ele faz conexões para eu me reajustar. Teve uma vez, eu falo que o cordão umbilical com a minha mãe não vai ser cortado nunca. Uma vez eu estava em casa descansando à tarde e eu fiquei hipoglicêmica descansando. E ela tentava ligar pra mim e não conseguia. E a gente sempre fala uma pra outra o que vai fazer, tanto ela como eu, pra estar ciente, se não estiver disponível, se está ocupado. E eu não falei nada aquele dia, ela ligava no fixo eu não atendia, no celular não atendia. Ela falou assim: “Não, ela não está bem”. Aí ligou pro meu irmão, o Nenê, e falou assim: “Olha, eu estou tentando falar com ela e não consigo, eu acho que está acontecendo alguma coisa” “Tá bom, mãe, vamos lá agora”. Aí ele pegou o carro, foi correndo lá pra casa e a casa dela na minha casa são seis quilômetros. Eles vieram correndo e o meu irmão entrou pela casa desesperado, na frente da minha mãe, já foi e eu estava no quarto deitada. E ele me chacoalhou, eu olhei meio mole assim, olhei pra ele, minha mãe falou: “Ela está hipoglicêmica!”. Foi lá na cozinha, pegou água com açúcar, colocou umas duas, três colheres de açúcar e fez eu beber. Porque eu estava ainda mais pra lá do que pra cá, mas estava acordada. Aí ela falou que deu a água para eu beber, eu bebi. Aí o meu irmão que conta a história, né? Que eu não lembro, essas coisas eu não lembro nada direito. Ele falou que ele me pegou no colo, me levou pro carro e me levou pro hospital que fica a um quilômetro de casa, pertinho. Ele foi, deu entrada no PS, no lugar da ambulância, e já foi avisando o pessoal do atendimento. Ele falou assim: “Olha, ela é diabética, está em hipoglicemia”. Eles me puseram numa cadeira de rodas e foram levando para o atendimento lá dentro. Então você passa no balcão assim, que meu irmão falou assim: “É o balcão de quem chega no PS e aqui fica um monte de gente sentado esperando pra ser atendido com aquele olhar de ódio pra recepção. E o enfermeiro passa com você na cadeira de rodas, levando lá pra ser atendida e eu passo assim, dando tchauzinho pra todo mundo” (risos). Ele falou assim: “O que você pensa? É Miss? Tchauzinho de Miss assim, dando tchauzinho pro pessoal” (risos). Eu falei assim: “Eu fiz isso?”. Ele falou: “Fez” “Ainda bem que eu não lembro, que eu ia morrer de vergonha de mim”. E aí o médico veio e eu ficava assim, pros dois lados, virando a cabeça. O médico falou assim: “O que foi?”, eu falei: “Eu não sei com quem eu falo”, porque a visão fica, eu via dois médicos, mas distintamente dois médicos. Aí ele falou assim: “Não, tudo bem”. Aí deu glicose, tudo, eu melhorei. Aí depois de um tempo o médico voltou na sala, virou pra mim e falou assim: “Tá tudo bem?” “Ah, estou melhor, doutor, só estou com uma pressão na cabeça, mas estou melhor”. Ele: “Quantos de mim você vê?”. Eu falei: “Um só” “Ah, então agora você está bem” (risos). Sempre tem umas histórias assim, que ou vira piada...
P/1 – É, você tem essa capacidade, dá pra ver, de conseguir olhar, saber olhar as coisas da vida com um olhar positivo, com fé.
R – Ah, é uma tentativa (risos).
P/1 – Eu ia te perguntar agora, a gente está terminando, de um sonho na sua vida. Mas eu acho que depois de você ter contado da história que está na fila da adoção, talvez seja até uma pergunta desnecessária. Mas, eu queria adaptá-la, então. Qualidade de vida pra você hoje, o que é qualidade de vida na sua vida?
R – Olha, desculpa, eu acabo me estendendo com as histórias, eu falo demais.
P/1 – Desculpa? Você não sabe como eu vou te agradecer depois da gente terminar essa entrevista (risos).
R – Lá na Adiabc, às vezes eu faço as boas vindas pra pais que chegam desesperados porque têm medo que o filho vá morrer numa hipoglicemia na madrugada. E eu costumo dizer que o diabetes entrou na minha vida como um bicho papão porque ele chegou ameaçando, destruindo, tirando as coisas que me eram ricas, válidas, valorosas, e eu fiquei muito assustada. Mas eu fui conhecendo ele melhor, fui lidando com ele, ele foi me dando conhecimento e de bicho papão ele virou meu bicho de estimação, que o bicho papão te ameaça, o bicho de estimação você trata com carinho, aquele amor incondicional, aquela coisa e você recebe isso de volta. Então eu costumo dizer às pessoas: “Ah, você é diabética?” “Eu sou diabética, graças a Deus”. Hoje eu digo isso, porque a diabetes me ensinou a me alimentar melhor, ela me ensinou a buscar, a ter uma atividade física, pelo menos uma regular que eu acabo fazendo mais do que uma, e me dá prazer, me dá alegria, me fez conhecer pessoas incríveis. Eu conheço diabéticos no Brasil inteiro, um monte de amigos que eu fiz com essa história de correr junto e fazer um monte de coisa. Então cresceu demais essa coisa na minha vida. A diabetes me deu oportunidade de trabalho, foi através dela que eu conheci pessoas que mudaram a minha forma de trabalhar, porque eu adoro, amo de paixão o que eu faço, mas não da forma como eu fazia. Hoje é bem melhor, é mais prazeroso, mais construtivo e mais independente. E ela também me fez entender que as coisas não são como eu planejo. Tudo o que eu planejei da minha vida pessoal, que eu achava que ia ser simples e natural de acontecer, que era constituir minha família, ter minha casa, vida, marido, filhos, cachorro, papagaio, passarinho, não é assim. A vida te dá oportunidades, ela não tira oportunidades, ela te dá oportunidades pra você decidir caminhos diferentes. E a diabetes me mostrou isso de uma forma que eu pudesse transformar esse limão numa limonada. Então eu falo que a diabetes trouxe qualidade de vida pra mim, ela me ensinou a escolher qualidade de vida. Dá trabalho? Dá. Dá retorno? Muito. Me faz bem? Não, não me faz bem, me faz feliz. Não importa como eu vou fazer isso, mas eu vou fazer, isso é uma coisa que a diabetes me ensinou, às vezes eu estou tão enrolada, tão atrapalhada, com um monte de coisa de trabalho pra fazer, eu preciso limpar ali a casa, arrumar aqui, arrumar ali. Aí tem hora que eu paro: “Não, uma coisa de cada vez”. É uma medida de dedo, um carboidrato que eu ingiro, uma quantidade de insulina que eu injeto, um trabalho que eu desenvolvo. Outra picada de dedo, outra de glicemia, outra alimentação. E é uma coisa de cada vez. E a diabetes fez isso. Eu comecei com agulha desse tamanho, com seringa enorme, usei até seringa de vidro que eu tinha que ferver toda hora que eu usava, que era mais barato porque eu só consumia agulha em vez de consumir seringa e agulha. Depois eu fui para aquelas seringuinhas pequeninhas, uma maravilha, mas elas tinham dois milímetros de comprimento, hoje tem quatro a agulha. Quando eu comecei eram 17, hoje a agulha tem quatro. Ela entra na parte certinha e pronto. Isso com agulha. Se usar caneta, caneta é maravilhosa! Você vai lá, gira a quantidade de insulina, põe bonitinho, tal. Vários tipos de insulina. Ah, mas são várias picadas! Sim, mas o seu controle é melhor. A diabetes é uma doença silenciosa que se você não cuidar dela hoje, você não vai viver bem no futuro. A complicação só vem com um período longo fora do controle. Então às vezes a pessoa fala assim: “Ah, eu não vou tomar esse remédio, não estou sentindo nada”. Realmente, você não sente agora, você vai sentir depois de um tempão com a sua glicada alta pra caramba que vai vir as complicações. E todas as complicações da diabetes são irreversíveis. A cegueira, que é a retinopatia diabética, quando você descobre você faz tratamento de laser com controle glicêmico que você deveria ter feito a vida inteira e não fez, mas ela não te devolve a visão, ela estanca onde está, você não recupera o que você perdeu. Quando você tiver uma gangrena, um problema no pé, que tiver que amputar, não vai devolver teu pé. Se o teu rim chegou numa falência, você não vai conseguir fazer ele filtrar as coisas direito como ele filtrava antes. Então se você tiver gordura na veia, ela entope. Ah, faz um cateterismo às vezes, uma coisa, mas você vai tomar um baque bem alto. Então tudo é prevenção. Meu cardiologista sempre fala pra mim. Eu sou magra, meu colesterol é bem cuidado, mas teve uma época que ele foi num limitezinho e eu tomo medicamento pra controle de colesterol pra previnir que faça gordurinhas. Ele sempre fala pra mim: “Enquanto eu te encontrar correndo na Avenida Portugal”, que é uma avenida de Santo André lá, “eu estou feliz. Mas enquanto eu estou cuidando de você agora, daqui dez anos eu vou continuar te vendo bem”. É um consórcio.
P/1 – O que é viver plenamente pra você?
R – Plenamente? Ah... eu acho que é o que eu vivo hoje, eu acho que eu vivo plenamente. Eu faço coisas que eu gosto, eu acredito que coisas melhores possam vir a acontecer. Eu tenho consciência dos problemas que eu tenho, que não é só diabetes, tem um monte de problemas, busco soluções. Eu acho que viver plenamente é você acordar, ver o sol raiar ali, sabe, e você estar feliz porque você vai viver mais um dia. Você vive mais um dia. Acho que isso é viver plenamente, não tenho um dia a menos de vida, tenho um dia a mais, estou somando.
P/1 – O que você achou de contar a sua história aqui?
R – Ah, eu fico um pouco assustada porque eu falo demais, sabe? (risos) Eu tenho uma brincadeira, um nickname que eu falo que eu sou Maluca Gump, porque eu sou uma contadora de histórias. Se você começar a perguntar coisas pra mim eu não vou parar de falar, eu não tenho limite. E eu gosto muito de falar. E eu gosto muito de falar de diabetes, diabetes é uma coisa que eu acho que é um assunto que não me incomoda, me faz bem e se eu puder levar um pouco desse bem pra uma outra pessoa que não está bem com esse assunto, me faz melhor ainda. Eu achei muito interessante. Eu fiquei muito admirada com essa coisa do museu de pessoas porque é uma ideia maravilhosa, é aquela inveja alheia de uma ideia, eu acho incrível isso. E se isso for colaborar com alguma coisa pra alguém, perfeito.
P/1 – A gente queria te agradecer por essa história. Você tem, além de contar muito bem, você tem uma história muito rica, muito interessante.
R – Você acha? (risos)
P/1 – Ser humano de primeira. Foi um privilégio pra gente te ouvir.
R – Imagina! Todo mundo tem histórias. É vocês que sabem roteirizar isso.
P/1 – A sua é uma bela história e muito bem contada. Muito obrigado, viu?
R – Imagina, o prazer é meu.
FINAL DA ENTREVISTA
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