Entrevista de Maria de Lourdes Domingues Abel
Entrevistada por Telma Salvador Barbosa e Luiza Gallo
Rafard, 07/10/2022
Projeto: Todo Lugar tem uma História pra Contar – Rafard
Entrevista número: PSCH_HV1370
Realizado por: Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Bom dia, Lourdinha.
R – Bom dia, Telma.
P/1 – Posso chamar assim, né?
R – Claro!
P/1 - Pra começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, local de nascimento e a data.
R – O meu nome é Maria de Lourdes Domingues Abel. Eu nasci em Capivari, no dia quinze de março de 1957.
P/1 – Lourdinha, te contaram como foi o seu dia de nascimento? Você sabe como foi escolhido seu nome?
R – Eu nasci linda, né? Loirinha, de olho claro. Isso mamãe que falou e foi tudo bem… mamãe me teve de parto normal, nasci na Santa Casa de Misericórdia de Capivari e os meus pais já moravam em Rafard, então eu vim dormir no meu bercinho, aqui em Rafard e fiquei aqui até os meus dezenove anos de idade.
P/1 – E o nome da sua mãe, do seu pai?
R – O nome da minha mãe é Adélia Domingues Abel e do meu pai, Danilo Abel.
P/1 – Seu pai exercia alguma atividade aqui em Rafard. Você tem lembrança? O que você tem pra contar pra nós?
R – Tenho. Convivi com papai em todos os momentos da minha vida, no seu salão de barbeiro. Inclusive ele me punha de faxineira, de vez em quando, então eu ficava ali pra limpar, varrer o cabelo do chão, desinfetar os equipamentos. Ele tinha muitos ciúmes, era tudo muito bem organizado. Morávamos perto, depois que eu já estava mais mocinha, então ele falava assim: “Filha, você fica um pouco aqui pro papai que eu vou tomar um café em casa?” Nossa vida era assim, tudo pertinho. Então, daí eu ficava no salão, organizando as coisas. Hoje, se eu vou no salão de cabeleireiro das minhas amigas, eu quero varrer o chão, porque eu vejo aquele cabelo no chão. Então isso me marcou demais. E eu queria, aprendi com papai, eu o olhava cortar os cabelos, ele era um artista. Fenomenal o jeito que ele trabalhava com a navalha, com a tesoura, com aquelas maquininhas de fazer aqueles cabelos estilo alemão atrás, sabe? E eu deveria ter seguido, porque eu sei cortar cabelo, eu falei que eu estaria muito bem melhor de vida se eu tivesse feito, mas é assim: como eu cresci no meio masculino, eu gosto de cortar cabelo masculino, que é muito mais fácil. Hoje em dia eu não sei se é fácil, porque é muito modelo de cabelo, né? Os cabeleireiros hoje são artistas também. Mas eu cresci nesse meio de salão de papai, eu era muito respeitada, muito querida por todos os clientes que iam lá. Enfim, a minha juventude foi dentro do salão do papai, na responsabilidade, assim: “Você tem que ajudar seu pai, sua mãe” e era muito bom ficar no salão. Tinha hora que ele falava assim: “Viu, filha, melhor você subir pra você ajudar sua mãe, fazer lição de casa”. Por mim eu ficava o dia inteiro, como se fosse no trabalho, entendeu? Então essa era uma satisfação enorme de eu estar com papai e o nosso gênio muito igual: alegre, expansivo, falando, mexendo com todo mundo e era muito bom estar com meu pai no salão.
P/2 – Lou, como era o jeito dele?
R – Ai, meu pai era maravilhoso. Papai foi embora muito cedo da nossa vida. Ele faleceu com 53 anos. (choro) Ele teve um infarto e naquela época, isso foi em 1976, não tinha o recurso que tem agora, na parte cardiológica. Então pra mim foi uma perda muito grande. Eu tinha dezenove anos de idade. Quando você consegue entender, a dar valor, a respeitar um pai, como eu sempre respeitei, mas a gente estava mais madura. Eu perdi papai, então nós ficamos meio ‘sem chão’, sabe? Mas ele era lindo, alegre, comunicativo. Na época tinha, fazia-se álbum de figurinhas. Então ele tinha álbuns de bichos; de artista de TV e cinema; de futebol, dos... (choro) desculpe chorar. E papai fazia toda essa coleção, só que não fazia sozinho, o salão dele vivia cheio de criança. Ele trocava - brigava com as crianças, no bom sentido – figurinha e abafava figurinha. Então eu via tudo isso, a gente acompanhava. Daí nesses álbuns tinha-se brinde, então ganhava-se um jogo de xícara de café, ganhava-se copo. Eu lembro um dia que ele apareceu em casa com um jogo de boliche de plástico, que não tinha brinquedo como tem agora, era um boliche desse tamanho assim, falei: “Nossa pai, que legal!” Ele levou, porque ele ganhou, pegou uma figurinha acho que premiada e saiu esse jogo pra ele. Então a vida do meu pai era muito boa. Ele levava alegria pra todo mundo. A satisfação dele era estar bem, além do que ele era - com a simples escolaridade dele, com o primário – muito inteligente. No salão dele ele ouvia A Hora do Brasil todo dia, seis horas da tarde. Era sagrado pra ele. Se tivesse cliente, lógico que tinha, mas o radinho estava funcionando. Naquela época não se tinha tantas revistas, como tem agora e muitas revistas não era pra todo mundo ver, tipo Capricho, essas coisas, papai não deixava a gente ver. Era proibido, pecado ver essas coisas. Então papai assinava a revista O Cruzeiro e Manchete. Ele tinha sempre no salão pra que os clientes pudessem ver e ele também ficar sabendo das novidades ali, da revista. Só que antes dele colocar a revista em cima da mesinha, no salão, pra que as pessoas pudessem ver, ele pegava uma agulha com barbante e costurava o meio da revista, pra ela não se soltar. Então num canto do salão tinha um pacote de revista O Cruzeiro e Manchete. E não era barato, mas isso era um capricho dele. Daí, outro capricho de papai, que isso eu tenho guardado até hoje, está tudo desfolhado já, ele tinha um dicionário preto, assim e ele ficava no salão até nove horas, nove e meia da noite, dependendo do serviço que tinha, daí ele ia pra casa, ia tomar banho, depois jantar e ficar com a gente, depois a gente ia dormir, mas ele levava no banheiro o dicionário, gente. Então a pergunta que você fizesse, de palavras, ele sabia. Ele era muito inteligente, muito culto. O que mais que papai fazia? Nós tínhamos o cinema, né? Paratodos. É isso?
P/1 – Eu acho que é, eu não lembro o nome.
R – É. Então, nosso cinema era fantástico, enorme, com duas janelas no fundo, lá. O que papai fazia? Você vê, ele sempre gostou de coisas culturais: ele entrava no fim do filme, _____ e assistia o fim do filme. Dependendo do dia ele entrava no cinema. Abria-se aquela cortina de veludo grande que tinha e ele ficava vendo o fim do filme. Então tinha faroeste, filme chinês. Ele gostava dessas coisas. E a vida dele foi linda. Ele viveu uma vida plena. Tinha um carinho muito grande pelos meus nonnos, que eram os pais, minha nonna Elvira e meu nonno Zeabé, que falavam Zeabé, era José Abel. Era um respeito lindo, ele ia todo dia, ele descia pra saber como eles estavam. E o salão dele eu falo que era uma vitrine, né? Porque eu descia pra ir na casa de alguém ou ir na casa da minha nonna e ele, do lado de lá, enxergava. Não passava na calçada, ele fazia assim: “Tchi, tchi, onde vai? Já falou pra sua mãe?” Falei: “Já, papai, eu vou na casa de nonna, ou na casa de alguém, lá das meninas” “Sua mãe está sabendo, né?” “Está, papai”. Ele me vigiava. Mas, assim, tudo com muito amor, carinho, atenção, entendeu? Então meu pai era assim.
E do outro lado tinha tio Laerte Abel, com a alfaiataria, pai da Lilian. E aí tinha o ponto de ônibus. Ali chegava e saía um monte de gente da cidade: as pessoas que iam trabalhar em Capivari, que iam estudar. Então o salão do meu pai era uma vitrine e do tio Laerte também, porque reunia todos os homens aposentados da cidade, ficavam ali. E, modéstia à parte, meu tio Laerte fazia um terno como ninguém. Ele era um espetáculo como alfaiate. Então, a vida deles era essa Rua Maurício Allain, onde tinha muita gente, entendeu? Muita gente boa. Nós éramos família, mesmo. Todo mundo se conhecia.
P/2 – E a sua mãe? Qual o nome dela, como ela era?
R – A minha mãe era Dona Adélia Domingues Abel, uma pessoa linda por dentro e por fora, de uma sabedoria incrível, fazia poesias, só fez primário e ela não teve oportunidade de estudar, estudou só a irmã dela mais nova, minha tia Edite, que se formou professora, que as outras irmãs ajudaram, vovô ajudou. Eles moravam em Capivari, mas a mamãe nasceu pra casar. Mamãe casou acho que com trinta anos. E meu pai, Danilo Abel, foi pra Capivari, conheceu mamãe e começaram a namorar, os dois lindos. Daí mamãe, o que fazia? Ela costurava muito bem, então ela ajudava o papai nas despesas da casa. Até teve uma vez um concurso de desfile de modas em Rafard, eu não vou lembrar a data, e convidaram a minha mãe, ela foi participar. Ela fez um vestido lindo, um vermelho rubi, de organza, minissaia, que aquela época usava, saia godê e tinha uma moça que foi desfilar e ganhou o concurso. Aí ela ficou feliz, realizada. Lindo, eu estou enxergando o vestido da mamãe, que ela fez. Então, essa era nossa vida. E depois a gente, mais jovem, foi trabalhar em Capivari, foi estudar. E essa era a vidinha da gente. Sempre voltando pra Rafard, na nossa casa.
P/1 – Lou, você lembra de algum costume da família? Você, seus irmãos, seus pais. Comida, datas comemorativas. O que você pode contar pra nós sobre essa época?
R – Comida nós comíamos... eu falo que nossa comida era muito saudável. Era fruta, arroz, feijão, polenta, carne. Não tinha esse negócio que tem hoje, que você precisa saber o que você vai comer, quanto é, comprar. A gente nunca passou fome, graças a Deus! A gente se alimentava muito bem. E com esse carisma que a gente tinha com vizinhos, então era assim: um trazia um doce... Rafard é uma cidade abençoada com água e frutas, porque os quintais eram grandes e todos tinham pé de fruta. Era carambola, jabuticaba, goiaba. Como tinha goiaba aqui, vermelha, goiaba branca. A gente fazia doce. Banana. A gente pulava no quintal do vizinho pra roubar laranja, goiaba e era quintal do vizinho, pulava a cerca, porque não tinha muro. Os vizinhos se falavam através da cerca. E outra coisa que eu achava bonita era que vinha, as pessoas plantavam chuchu. Então, dependendo da quantidade, ficava aquela cerca cheia de chuchu, com aqueles chuchus lindos, entendeu? Agora você vai comprar as coisas, está tudo tão caro. Nós tínhamos o quintal, tínhamos o vizinho, a gente trocava essas mercadorias, alimentos. Enfim, a gente se alimentava muito bem. Bebia leite fresquinho, não tinha nada de caixinha, fervia aquele monte de leite. Eu sou de uma geração que fui conhecendo as coisas devagar. Família simples, pobre. Não tinha geladeira. Não tinha televisão. Papai comprou uma televisão preto e branco, usada e funcionou na minha casa. E era aquele chiado pra gente enxergar. Tinha horário pra assistir televisão. Meu pai chegava e falava: “Viu, dez e meia vamos dormir”. Daí geladeira não tinha. Então na época a gente falava pote ou talha. Mamãe tinha um pote desse tamanho, de barro, que era uma delícia beber água ali, era fresquinha. Então era assim: na semana papai ia no açougue, que as carnes eram frescas também e comprava um pouco da carne, pra semana. Mas guardar como, se não tinha geladeira? Então comprava-se o necessário: um pouquinho de carne moída, uns cinco ou seis bifes, ia ver o que ia fazer, no cardápio, e mamãe temperava e punha numa panela especial que ela tinha, de... como fala?... alumínio e punha na boca do pote pra ficar fresquinha a carne, pra gente poder comer durante dois, três dias, entendeu? Depois papai comprou uma geladeira usada, pra mamãe, mas não tinha freezer. Era aquele montão de gelo pra limpar aquela geladeira. Então as coisas foram vindo devagar. Mamãe tinha máquina de costura que ela trabalhava, que ela comprou pra pagar devagarzinho, era o equipamento principal dela e a nossa vida foi melhorando assim, sucessivamente.
P/1 – Lourdinha, você conhece a história dos seus avós? O que você pode falar sobre, pra nós?
R – Eu conheço a história que eu vivi. A minha nonna era italianinha pura, veio da Itália, conheceu meu nonno não sei como e ela falava até arrastadinho e meus primos imitavam a nonna falar. Meu primo Nelson, meu primo Romeri, meu primo Lalo, pessoas que eu adoro, infelizmente dois já foram, mas o Lalo está entre a gente, graças a Deus! Então eles abusavam da nonna, sabe? A nonna era linda. Ela viveu pros filhos e pro marido. A hora que você chegasse lá, ela estava de avental. A gente falava assim: “Nonna, precisa tirar o avental” e os filhos e as filhas, e outra: a casa dela… ela sempre acolhendo os filhos, que por um motivo ou outro tinham que morar com eles. Eu lembro que o banheiro era precário, tinha um banheiro fora e tinha um outro banheiro dentro, no barracão, onde tinha o ferro-velho do nonno, fechadinho, assim e minha tia Leda, que ainda vive, graças a Deus, falava assim pra minha nonna: “Mãe, a senhora apronta meu banho?” Ai, gente, é muito engraçado isso. A minha nonna esquentava no fogão de lenha um caldeirão de água e, dependendo da situação, tia Leda ia tomar banho de bacia. Umas coisas assim, sabe, que não dá pra explicar. Teria que ver, né? Então a nonna era assim: 24 horas mãe, esposa, cozinheira, que até a gente ficava brava: “Nonna, a senhora precisa pedir ajuda”. Ia lá, tinha louça, a gente ajudava a lavar, eu menina. E o nonno sempre trabalhando. Ele tinha uma carroça, duas mulas, eu não vou lembrar o nome agora, meu primo Lalo fala de vez em quando, eu não sei se uma era Aurora, a outra não vou lembrar. E nesse quintal ele tinha um rancho que ele chegava todo dia com a carroça, desatrelava as duas mulas e a carroça ficava meio assim, ali, e daí ele ia levar as mulas pra descansar e levava lá pra baixo, no Bate Pau, no meio do mato. E também, no meio de tudo isso, dependendo do dia, nós estávamos na casa da nonna, ele vinha com cana. As canas eram deliciosas. Ele pegava a cana e falava assim: “Quem vai querer garapa e quem vai querer cana?” “Eu quero garapa” “Eu quero cana”. Numa moendinha de lata, lavada, tudo, mas aquela higiene não era uma higiene assim como tudo, hoje, se tem que higienizar pra não ter problema. Ele fazia garapa pra gente, que delícia! Mas gelo não tinha, era a garapa que ele fazia ali, com a cana que ele chegou. Daí ele cortava os palitos de cana pra gente chupar. E depois ele reservava a cana inteira, com a casca, picava, pra fazer um farelo, pra dar pras mulas comerem. Então era uma engenharia ali, sabe? O que mais que tinha? O nonno, quando trabalhava na cooperativa, que entregava na carrocinha dele Itapeva, São Bernardo, ele pegava as compras que as pessoas faziam e ia entregar, de carroça, subindo aquele estradão, onde a gente sobe agora, que tem o museu, ele subia aquilo e ia embora, do lado de São Bernardo, Itapeva, levar a compras com as duas mulas e com a carroça cheia de compras. Então essa era a vida deles. Daí eu lembro outra coisa do meu nonno: ele comia com garfo e uma colher grandes. Só que o garfo dele era especial. Ele abria todas as coisas do garfo e ai de quem pegasse o garfo dele! Ele procurava o garfo e falava assim: “Quem pegou meu garfo? Elvira, cadê meu garfo?” Alguém tinha usado o garfo dele. Às vezes eram os meninos, pra ‘encher o saco’ do nonno, entendeu? Daí eu o via comer, ele comia muito bem, aquela comida gostosa da minha nonna, sabe? Esse era o jeitinho dos dois. No guarda-comida da nonna, do lado, fechadinho, tudo limpinho, tinha-se xícaras e copos e na parte de baixo tinha sempre uma marmelada desse tamanho e um queijo meia cura. Quando estava reunida a criançada, que ficava tudo brincando, ia na varanda, lá na frente da estação, eu tinha fome e às vezes meus primos de São Paulo estavam aí. Eu dava, escapava e ia roubar a marmelada com o queijo, sem minha nonna ver, porque senão tinha que dar pra todo mundo. Mas isso não significava que nonna não fizesse uma mesa linda, com pão, queijo, café, leite, tipo umas três e meia, quatro horas, pra nós. Então eu lembro que eu roubava marmelada e queijo sem ninguém ver. Era o meu pecado, esse. A casa era toda de telha, sem forro, tinha vermelhão no chão, que minha tia Eliza encerava, aquilo brilhava como ninguém, passava-se escovão pesado, só que era assim: morava encostado com a usina, a usina não tinha um sistema especial pra segurar o cisco da cidade. A gente comia cisco, né, Telma?
P/1 – Exato.
R – Comia, que precisava, às vezes, fazer assim na mesa, dependendo da ventania que dava, de tanto cisco que caía. Então, minha tia Eliza, às vezes... era gaga _____, ela acabava de limpar a sala, passava uma hora, duas horas, dava alguma ventania, ia lá, uma sala grande, com uma mesona que tinha, nossa, aquele monte de cisco na sala: “Meu Deus do céu, acabei de limpar” e a gente dava risada da tia Eliza, né? E nessa história, entrando meu nonno, com os meus primos, eles abusavam da minha tia Eliza, a imitavam gaga, então ela ficava muito brava e aquele tempo usava tamanquinho de madeira. Horrível, nada ortopédico, pesadíssimo. E eles começaram a abusar da tia Eliza um dia e a tia Eliza tirou o tamanco e voou nesse meu nonno, entrou, deu na testa do meu nonno. Meu nonno ficou louco. Conclusão: os meninos sumiram, tia Eliza também sumiu, foi na casa da minha mãe, na nossa casa. E ela chegava lá e falava assim: “Ai, Amélia, ai, ai, eu vou ficar um pouco aqui, porque papai está bravo comigo, vai bater em mim”. Minha mãe: “Calma, Eliza, conta pra mim o que aconteceu”. Minha mãe assustou, né? Ela falou assim: “Eu não aguento mais esses meninos. Ai”, mas ela gaguejava muito, minha mãe a imitava, pra gente ver. Daí ela contou, falou: “Eu voei o meu tamanco na cabeça no nonno, no meu pai, por causa dos meninos, papapa”. E daí minha mãe a acalmou, ela ficou a tarde inteira lá, com a minha mãe, de medo que o nonno ficasse bravo com ela, né? Mas eles só faziam arte. Então a casa da minha nonna era isso, gente. Era uma alegria. Tinha primos que cantavam, tias que cantavam, primos que tocavam violão. Meu tio Zezo era um artista fantástico, nunca teve sorte na vida. Ele tocava um violão e cantava como ninguém. Ele já faleceu faz uns cinco, seis anos. Estava morando em Santos. Eu tenho até um vídeo dele comigo, que o meu primo Danilo passou pra mim, marido da Lilian. Foi a última vez que ele veio aqui, acho que foi em 2003. Depois, infelizmente, ele ficou doente e faleceu. Mas era uma família de artistas, sabe? Os primos de São Paulo vinham, ficavam tudo no quintal, embaixo da paineira, não sei se cortaram aquela paineira lá. Então ela dava bem no centro do quintal, aqui nonno punha a carroça, eles conseguiram pôr uma rede e Lalo e Sueli namorando, ficavam se beijando ali, na rede e meu pai não queria que ficasse ali, vendo aquelas coisas, com pinguinha com limão, até sair o almoço, meus primos de São Paulo e a gente era menina, então a gente via tudo isso. Essa era a casa da minha nonna.
P/2 – E, Lou, e a sua casa, como era? Você dormia com seus irmãos?
R – A minha casa era... eu lembro que eu, menina, mudei sete vezes de casa, porque papai não tinha casa. Então a gente mudava pra melhorar o aluguel. A última casa, que foi no ano que papai morreu, que eu cresci ali, já estava com dezenove anos, era uma sala grande, subindo o círculo operário, tinha uma parede de... como fala?... madeira e nesse quarto comprido tinha a cama da mamãe, a penteadeira, a cadeira de roupa, mamãe fez uma cortina, daí tinha a minha cama, a da Célia e um guarda-roupa grande. Dormíamos ali. Saindo dali a sala, com televisão preto e branca, mamãe tinha um sofá bonito, vermelho, de veludo, a máquina de costura dela ali no canto e um sofazinho de dois lugares aqui. Saía, entrava na cozinha e pra cá tinha o quarto do meu irmão e um banheiro, daí tinha o quintal, tudo de terra, com cerca, que falava com os vizinhos, papapa. De vez em quando a gente assustava, porque nossa, como tinha sapo aqui em Rafard, de todo tamanho. Mas a gente via essas coisas, não pensava como se fosse um cachorro e um gato, mas dava aquele mal-estar na gente. E morando mais menina, que eu tinha meus seis anos, numa outra casa, no Centro, onde papai tinha o salão junto, tinha poço. Então a água era uma delícia! Então, mamãe puxava água de poço e um dia mamãe puxou e veio um sapo junto. Ai, que desespero, gente! Mas isso era comum, entendeu?
Morria-se as pessoas, fazia o velório na casa. E eu adoro velório. Não que eu goste que as pessoas morram, mas sempre fui muito xereta. Então, (risos) tinha velório na casa, gente tudo conhecida. Eu me lembro tão bem de um que eu fui, era vizinho da minha casa, acho, ali no Centro. Podia procurar, minha mãe procurava: “Cadê Lourdinha, Danilo? Cadê Lourdinha?” A Lourdinha sumiu. Podia ir no velório, que estava sentadinha lá. Eu ia ver. Não adianta, eu ia. Então,são histórias que não dá pra explicar. E outra: quem tinha cachorro, o cachorro estava embaixo do caixão, ali, sabia que a pessoa tinha falecido. São histórias lindas, tristes.
P/1 – Lou, posso te chamar de Lou, né?
R – Claro!
P/1 – Conta pra gente uma história que marcou na época do período escolar. Tem alguma coisa pra contar pra nós?
R – Tenho muita coisa. (risos) Mas eu posso falar primeiro da chuva?
P/1 – Pode.
R – Como nós não tínhamos asfalto, a rua principal era paralelepípedo e descia aquelas enxurradas lindas, dava aqueles temporais de verão, aquelas coisas, aquelas enxurradas lindas, amarelas. Não eram vermelhas, porque era no Centro. E eu acho que devia ter nascido pata, né? Porque adorava. Não sei nadar, mas adorava estar na enxurrada. Então a mamãe precisava tirar, porque ela falava: “Lourdinha!”. Quanta dor de garganta que eu tive! “Lourdinha, sai da enxurrada, filha, venha”, mas às vezes mamãe deixava a gente brincar, porque junto vinha um barro amarelo e a gente fazia riozinho. Sabe quando você faz muretinha, assim, ali na enxurrada, pra água fazer contorno e ir embora? Nossa, aquilo era lindo, pra mim. E daí nós fazíamos também barquinho de jornal, de papel e a gente punha, pra ver o barquinho ir embora. Isso não dá pra explicar. Era muito bom. E mamãe, assim: “Lourdinha, quando está frio você está sem agasalho; quando está calor, você está de meia e sapato”. Mamãe ‘pegava no meu pé’. Mas a gente via, até a chuva era especial. E voltando no casarão da minha nonna, aquela chuva que descia do estradão, descia com tudo ali e tinha um bueiro desse tamanho, de ferro, do lado da casa da nonna, que você descia pra ir pra estação. Ali eram galerias de água e quando chovia bastante, aquilo mexia até com aquela tampa de ferro, então ficava que nem uma fonte, borbulhando, até a chuva passar. Então, isso fica na minha memória, eu acho que vai ficar sempre, enquanto eu viver. E daí, de repente, vinha aquele sol maravilhoso, o arco-íris e a chuva passava, mas até a chegada da água era bonita em Rafard.
Daí você perguntou sobre escola. Eu era um moleque, né? Tinha o ‘Seu’ Dedé, que era inspetor de alunos, pai do meu amigo Zé Henrique, que ainda está conosco. Então tinha a parte de baixo - eu estudei no [EMEF Prof] Luis Grellet – que só ficavam os meninos, tinha um monte de árvores. Na parte de cima as meninas. Mas imagina, eu tinha amizade com todo mundo. ‘Virava e mexia’, a Lourdinha estava na parte de baixo, lá, com os meninos. Aí ‘Seu’ Dedé chegava: “Vamos, meninas pra cima”. Até isso, né, gente? Mas não tinha maldade, entendeu? Daí nós tínhamos a fila, cantava-se o Hino Nacional, Hino à Bandeira, Dona Lucrécia fazia isso, a gente ali, em posição, um civismo maravilhoso, que a gente não vê mais. Depois tinha as refeições. Ai, como era boa a sopa da Dona Benedita! Tinha groselha, leite com chocolate, café com leite. Imagine! Dependendo do que tinha, eu entrava na fila duas vezes pra comer. E faziam também sagu, doces caseiros. Nas salas de aula o primeiro ano tinha a minha tia Leonilde, depois a gente foi tendo as outras professoras. Mas era tudo muito lindo, muito simples, mas tudo limpinho, organizado. Era uma escola fantástica. No final nós tivemos o ‘Seu’ Januzzi como nosso diretor. Pra mim ele foi uma pessoa muito boa. Pra nós, na época, ele era um diretor que dava atenção pra todo mundo, pras professoras. Então nosso convívio na escola foi muito bom. Eu sempre fui pequeninha. Não sou tão pequena, mas o que acontecia? Tive as minhas amigas da família Escarço, tinha uma que era uma ‘vareta’ e tinha a Pascoalina, minha amiga que foi vereadora. A adoro, até hoje. E elas eram briguentas, gente! E eu estava no meio, ali, mas eu estava sempre de bem, com todo mundo. E protegida também, porque de repente, se vieram falar alguma coisa pra mim, olha minhas amigas, o tamanho delas, né? Mas assim: briga saudável, entendeu? Então, até ali, na escola, eu me dava bem com todo mundo. Como chamava a mãe de Célia ____? Dona... ela era inspetora de alunos. Nossa, esqueci o nome dela. Minha amigona. Até depois de mais jovem, mais velha, tinha muito respeito - Dona Jovina – por ela. Carinho. E cresci com as filhas. Então eu acho assim: tudo que eu vivi aqui não sei se tem defeito, sabe? Eu fui crescendo como pessoa, com caráter, sempre respeitei muito minha casa, meu pai e minha mãe, sempre pai e mãe em primeiro lugar e eu vivi assim, por isso eu estou aqui hoje, de bem com a vida.
P/2 – E, Lou, e a juventude? Como vocês se divertiam? Como foi essa época da sua vida?
R – Ah, foi bom! Eu sempre fui muito apaixonada. Sou do signo de peixes, né? Peixes chora, é romântica, gosta de tudo. Eu sou apaixonada por tudo. Ai, se eu fosse rica, meu Deus do céu! Não tem o que eu não goste, mas a gente tem as nossas limitações, né? Eu acho que eu mereço tudo, mas dentro do que eu posso ter, né? Minha juventude foi maravilhosa. A minha e da minha irmã. Mamãe costureira, nos vestia como princesas. Eu lembro que tinha baile de debutantes e pro baile de debutantes, tinha que ter dinheiro. É álbum, vestido. E mamãe nunca pôde fazer isso, nem meu pai, só que eu fui em baile. Tinha que ir com a família também. Daí eu não sei se foi no baile de Marinês Quagliato, que eu queria ir no baile de todo jeito, mas papai não podia fazer eu debutar, né? Então mamãe falou: “Lou, mamãe vai fazer um vestido pra você”. Ela fez um vestido amarelinho bebê pra mim, de seda, era um voal, eu não sei explicar, com forro, tinha uma capinha e uma flor aqui. Lindo o vestido! E ele fazia assim, então você andava, aquele movimento lindo da seda, crepe, sei lá o que era. Eu estava bem mais vestida do que muitas debutantes, pelo carinho da minha mãe fazer o vestido. Me diverti demais no baile, mas fui acompanhada. Eu não sei se papai me levou, ou se eu fui com alguma família. Então, pra mim, por eu não debutar, eu não fiquei triste, porque eu estava nessa festa e eu estava muito bem trajada, muito bem arrumada. Então era assim: você vai crescendo, daí tive amores, paquerinha, fui fazer o Ginásio Comercial de Rafard, que tinha aqui, eu fiz o ginásio, os meninos de Capivari vinham todos paquerar as meninas do ginásio. Eu não vou citar nomes, mas tinha vários pretendentes, sabe, que queriam namorar comigo. Fui apaixonada por um amigo do meu irmão, eu tinha quinze anos, também não vou citar nome, meu pai não queria, meu irmão não queria, ficava com ciúme e me ‘entregava’ pro meu pai. Mas não fiz nada de errado, não passava de um beijo e de um abraço a nossa juventude. Depois eu comecei a trabalhar, eu precisava ajudar mamãe e papai. Trabalhei em fábrica de confecção, fazia-se jeans. Trabalhei na fábrica de Dona Tita Marretto, costurava sutiã de bojo nas máquinas, que é um artesanato fantástico daquela época. Ficava eu, Sueli Groppo, ia fazer alça de sutiã na mãe dela, que dava pras famílias fazerem e ela tinha televisão e a gente sentava no sofá e fazia o serviço, pra Dona Lourdes ganhar dinheiro, né? Porque era um tal de todo mundo fazendo alça de sutiã! Então, era assim, entendeu? E a juventude eu fui crescendo, daí a gente foi pra Capivari, estudar, trabalhar, fui entrando na área administrativa, trabalhei nas Casas Pernambucanas, em Capivari. Foi uma loja que durou muitos e muitos anos e, na época, não se tinha lingerie e eles criaram o setor de lingerie. Que era só pano de metro, né? Trabalhei com uma equipe, uma turma muito boa, sabe, que eu tenho amizade até agora com eles. São mais velhos, lógico. E saí de lá pra trabalhar, eu não lembro se foi na Brasilit. Não, não foi na Brasilit. Ah, saí de lá pra trabalhar na Capivari Automóveis, que meu irmão era gerente, e fiquei lá um tempão. Que daí que foi que papai morreu, em 1976, eu estava trabalhando na Capivari Automóveis. Então eu faturava carro. Entrava, sentia aquele cheiro gostoso de carro zero. Ficava ali na recepção, no caixa. Daí que eu saí de lá, é isso mesmo e fui trabalhar acho que na Brasilit. Então, é assim: eu fui melhorando, estudando gradativamente e tentando me encaixar em alguma coisa.
P/2 – Lou, se você puder contar um pouco pra gente esse ano muito importante na sua vida, imagino, com dezenove anos, com a perda do seu pai, a mudança de cidade e trabalho, como foi, que recordações você tem desse momento?
R – Aí, com dezessete anos eu comecei a namorar um moço, fiquei quase oito anos com ele, aquela fase bonita da gente, de se apaixonar, pensávamos em casamento, tudo, mas não deu certo. E daí papai morreu e inclusive a gente estava namorando. Depois esse tempo passou, daí nós viemos pra Capivari e a vida continuou, né? A perda do meu pai foi, assim, muito doída, sabe? Eu falo que são situações assim: depois que acontece com a gente, que a gente tenta explicar o sentimento. Quando se tem pai e mãe, eles são tudo pra nós. Você tem conforto, carinho, a casa, independente de como você viva, porque às vezes o filho também é revoltado, judia de pai e mãe, mas chega uma hora que você tem que entender, caramba, eles dão tudo pra gente, né? Então, eu perdi meu pai, eu tinha dezenove anos, eu ‘perdi meu chão’. Ele era meu amigo, a gente se dava... e papai me ajudava: “Papai, tem baile assim, assim, o senhor deixa eu ir com Dona Emília, por exemplo, a mãe da Marinês?” Ele falava assim: “Não sei, precisa ver com a sua mãe”. Isso era três dias. Pedia pra minha mãe: “Não sei, precisa ver com seu pai”. Até que enfim eu, explosiva do jeito que eu sou: “Vocês vão deixar eu ir ou não vão?” Então, a perda do meu pai foi assim: a gente perdeu uma força bruta dentro de casa, que não deixava faltar nada, que estava ali, com a gente. O pai é força, mesmo. Daí passaram-se os anos, minha mãe faleceu em 2012, com 91 anos e na época mamãe tinha 53 anos, então mamãe assumiu a casa como pai e mãe e a gente tinha que respeitá-la e eu sempre fui assim, né? Moleca, de sair, de falar, mas na minha, sabe? Eu não fiz nada pra prejudicar o meu jeito de viver. Então mamãe falava assim: “Sua irmã já está em casa e você está na rua, filha”. Eu falava: “Mãe, eu não estou na rua, eu estou na casa de Sônia”. A gente estava conversando aquelas conversinhas que, quando você olha no relógio, é meia-noite. Nossa, meia-noite! Dez e meia, onze horas você estava em casa. Agora, se sai de casa dez horas, né? Então você vai começando a viver diferente. Se você perde a mãe primeiro, você perde muito mais, porque a mãe dá todo o suporte pra você: cuida da casa, de você, do alimento, é organizadora da sua vida. Não que o pai não seja, só que o pai vai fora, né? Então eu acho assim: perder jamais. Eu não queria ter perdido ninguém. Mas se você perde o pai primeiro, é uma vivência diferente, porque a mãe acolhe tudo. E outra: quando se perde os dois, a família parece que se abre, vai cada um pro seu lado. Quando eu perdi mamãe agora, em 2012, falei pra minha irmã Célia: “Nossa, Célia, nós somos órfãs, mesmo, sem pai e sem mãe”. Parece que você perde a sua essência, sabe? Quem eu sou? Meu pai e minha mãe já foram. Isso tudo porque é esse carinho de família, esse respeito que a gente sempre teve. Então essa é uma fase que eu falei que depois dos trinta anos, quarenta anos, a gente tem que aceitar cada minuto da nossa vida, porque daí a gente começa a perder as pessoas. Você perde tio, primo, vó, vô, você vai perdendo e nesse mundo do jeito que está, nosso, eu falei, um mundo tão frio, né? Antes a gente ligava por telefone: “Ai, como vai, tudo bem?” A gente visitava. Meus primos vinham a cada quinze dias de São Paulo, não se gastava dinheiro. Agora você precisa pensar pra gastar, pra sair, pra fazer alguma coisa. É tudo tão caro! Não que seja difícil, mas você tem que ver outras prioridades. Então até o lazer nosso era diferente. Em Rafard tinha o círculo operário, tinha teatrinho, eu participava, tinha as festinhas da juventude, com som, fazia bailinho. Ai, pra eu ir nesses bailinhos na frente da minha casa, tinha que: “Pai, posso ir?” Fazia de sábado, domingo à tarde, uma coisa assim. Então isso aí são valores que não voltam mais. E eu pude vivenciar tudo isso em Rafard. Festival da música foi fantástico, da música popular brasileira, foi lindo. Sempre fui religiosa, ficava na igreja, participava de tudo. Teve uma época que nós tínhamos seis freiras aqui, as Irmãs... como elas chamavam? As pastorinhas. Eu só sei que eu fui parar até no convento. Eu e mais duas amigas. De minissaia, ainda. Ficamos três dias no convento. Via a vida como eram as freiras. Fomos com a Irmã Valéria. Então elas tinham um livro de peças teatrais. Eu achei fantástico aquilo. Então elas punham as datas comemorativas da igreja, tinha outras peças infantis. Elas passavam toda essa cultura pra gente. Nessa época eu tinha dez anos. Depois, quando eu fui no convento, eu acho que eu tinha quatorze anos, com elas. Eu fui com a Irmã Valéria e uma outra Irmã. E lá no convento, vendo aquelas freiras, cada mulher linda, meu Deus, eu já começava a questionar: “O que elas estão fazendo aqui? Por que Deus fez com que elas viessem pra cá?” Você começa a entender a vocação, sabe? Tinha uma freira gaúcha, loira, linda, tipo Vera Fischer, que mulher linda! Alta. Eu olhava nela, porque daí a gente almoçava com as freiras, tudo no horário e tem as equipes das freiras. Uma cuida da comida, outra cuida de pôr as mesas e nós, visitas, sentávamos ali também. Então, você olhava cada uma. E lá não tem espelho. Tinha espelho só no nosso quarto. Então, são coisas que eu fui aprendendo, sabe? E ali tinha escola, ginásio. Elas faziam muita coisa artesanal. Sabe aquele papel vegetal, branquinho? Elas faziam cartão de Natal, gente! Eu fiquei encantada de ver, elas vendiam. Faziam duas folhinhas, uma mais branquinha, embaixo e o vegetal em cima. Daí ela fazia florzinha, santinho, com pedacinho de madeira, lasquinhas, grudavam e saía uma imagem, sabe? E vendiam. Era assim. Belezinha. Falei: “Elas vivem pra isso, mesmo, pra rezar, pela conversão do mundo delas, pra ensinar”. Daí nós fomos nas Irmãs Pias, que eram mais pra cima, lá em Osasco. Ela foi buscar um documento lá, nós fomos junto. Aquelas Irmãs são enclausuradas. Só vem a responsável na portaria, lá numa sala, ali, pra receber alguma coisa, informação, pessoas. As outras não põem a ‘cara fora’, não vivem na sociedade. Outra coisa que eu aprendi, e falei: “Meu Deus do céu!” E elas estão ali pra rezar pra nós, pro mundo. Então essa infância eu também tive.
P/2 – Lou, me conta um pouco dos seus trabalhos. Você estava contando, parou na Brasilit. Como seguiu? Que trabalhos foram marcantes pra você?
R – Nossa, foram tantos! Eu gostei demais de trabalhar no Banco Itaú, numa época que não se tinha computador, tudo manual, eu trabalhava na conta corrente, vinha um listão, ali a gente lançava o que debitava, o que creditava. Nossa, como eu trabalhei! Nós éramos uma agência aqui em Capivari, trinta funcionários atrás de um balcão. Imagine você! Nos éramos em quatro meninas e o resto todos meninos. Então o banco dá uma visão de trabalho pra você, pelo menos eu, que fiz e gostei, ensina organização, destreza, visão, você tem que perceber tudo ao seu lado, é um treinamento incrível sobre documentação, papéis, cheque, boleto, dinheiro, aplicação. Pelo menos na minha época era tudo... não tinha computador, nós tínhamos que falar e fazer. E eu era muito querida no banco, por eu conhecer todo mundo. Então tinha certos clientes que chegavam, vinham aqueles maços de cheque e eu tinha que relacionar atrás, pôr a série do cheque, o valor do cheque e o banco que era. Depois a gente somava. E, na época que nós tivéssemos, por exemplo, quatro açougues na cidade, não tinha supermercados grandes; que nós tivéssemos quatro farmácias, então o movimento do final de semana eles iam depositar tudo na segunda-feira, não tinha caixa eletrônico. Daí cada cliente com aquele mação, você fazia tudo na mão, no balcão, tinha que separar cheque que era da praça, que não era, entendeu? Nossa! Então ali tinha cliente que chegava, tinha aquele monte de gente sendo atendida ali no balcão, alguém chegava nele e falava: “Pois não, ‘seu’ João”, ele falava: “Não, vou falar com Lourdinha”, o outro: “Preciso falar com Lourdinha”, porque gostavam do jeito que eu trabalhava. Eu percebia isso, entendeu? Então, isso, pra gente, é muito bom. E tudo que eu fazia, lógico, com muita responsabilidade, muito carinho. Sei lá, sofremos um assalto no banco, foi horrível. Entraram cinco ladrões. Eu me enfiei debaixo de uma mesa com cinco pessoas. Dava impressão - deram uns tiros pra sair – que aquele tiro vinha no meu pé. Tinha uma criança junto, que eu falei que era o anjo da guarda. Imagine trinta funcionários assustados com um assalto! Esses assaltantes ficaram no Grand Tour cinco dias pra planejar o assalto. Isso foi uma coisa que me marcou demais. Eu fiquei um ano com medo de gente. Eu andava na rua, olhava pra trás. Agora a gente vê que isso é tudo tão comum! Que diferente, né? Mas o banco me deu uma visão e outra: trabalhar em banco era status, um emprego muito bom e eu lembro que eu estava trabalhando lá, eu ganhava bem, nós morávamos em Capivari, já e eu comprei uma geladeira pra mamãe, novinha. Gelomatic, amarelinha. Que felicidade! Não tinha freezer, era geladeira, só. Então, é assim: o trabalho traz muita coisa pra você, ele dá força pra você viver, pra você conquistar. Independente do trabalho que você faz, a gente tem que trabalhar, se movimentar e eu sempre fui assim: gosto de trabalhar em equipe, ajudar, mas eu achei que eu podia ter feito muito mais, mas as nossas informações eram diferentes. Talvez pelo meu jeito de ter perdido papai muito cedo, a vidinha da gente ficou mais ‘apertada’, teve que ajudar minha mãe, mas tudo que eu fiz foi muito bem-feito, com muito amor. Muito, mesmo. Trabalhei em sindicato, convivi com fornecedores de cana, conheço um monte de gente, sítios. Depois fui pro Banco do Povo, fiquei oito anos na prefeitura, trabalhei com três prefeitos, conheci muita gente, vi a importância que o ser humano tem em ter seu próprio negócio, o que falta pra ele é informação, pra que ele melhore, saiba lidar com a parte financeira, com seu estoque. Tudo isso eu fui aprendendo também, aprendi muito no Banco do Povo. Enfim, trabalhei. Eu acho que eu deixei alguns patrões meus ‘bem de vida’, pelo meu trabalho, porque tudo que eu fiz, eu fiz trabalhando como se a coisa fosse minha.
P/1 – Lou, e seu dia a dia, como é hoje? O que você gosta de fazer nas horas de lazer?
R – (risos) Ai, ai, o que eu posso fazer, não? Bom, eu tenho bichinhos na minha casa. Tenho a July, minha pinscher; a Fê, a poodle; Lili, a gatinha siamesa; e a Penélope. Adoro-os! Eles ficam atrás de mim, se eu estou em casa. Adoro bicho, qualquer bicho. Mas ainda eu trabalho. Me aposentei já fez um tempo, mas a gente precisa trabalhar. Então, levanta cedo, vai pro trabalho, chega tarde em casa, organiza as coisas. Adoro uma televisão, só que eu acho que com a idade a gente dorme, então tem hora que eu quero assistir alguma coisa boa na TV, em dez minutos eu já estou roncando. Mas a minha vida é essa. Com a pandemia, nossa vida parou, né? Mas eu sempre gostei de sair, de ver as minhas amigas. Nós temos dezesseis amigas que se reúnem numa chácara, tem solteira, tem casada, tem divorciada, a gente se diverte. Joga um baralho, às vezes faz churrasquinho e com essa pandemia nós ficamos dois anos e meio afastadas. Eu tive covid, minha família teve, meu irmão, infelizmente, o ano passado, foi muito triste… mas ali, naquele espaço com elas, é muito bom. Fala-se de tudo, dá risada, mas risada, que você vai dormir bem, de tanto que você dá risada. Qualquer coisa é motivo. E já há um tempo, antes, nós viajávamos todo ano. A gente começava a pagar uma casa boa no Guarujá, em algum lugar e iam, imagina, dezesseis mulheres, quatorze mulheres todas juntas, uma semana, gente, no carnaval! Era farra. Então eu sempre gostei de estar com alguém, assim. Não importa se eu vá na sua casa tomar um café, assistir um filme, ‘bater papo’, adoro ficar na rua, ali, com as minhas vizinhas, eu conheço todo mundo, mas tudo tem seu limite, né? Então, a minha vida é linda! Sou feliz.
P/2 – Com o que você trabalha hoje?
R – Eu estou trabalhando em um escritório, é uma imobiliária e eu estou de secretária, ali e ali também ficou fechado por um tempo, mandou gente embora e o dono de lá é muito meu amigo, desde a época que eu trabalhava no escritório, em 1990, que tinha os turneiros e ele era turneiro. E ele é uma pessoa inteligentíssima. Simples, da roça, mas cresceu muito, sabe? Ele foi vereador. E eu fiquei sem emprego, que eu saí de um outro emprego e fiquei em casa uns quatro meses. Aí encontrei com ele, ele falou: “Nossa, Lou, estou precisando de alguém como você”. Então eu fui lá, pra ‘pôr a casa em ordem’, né? E agora eu estava de férias e agora vou voltar, de novo, na atividade, com ele. Ontem nós conversamos. Mas eu faço qualquer coisa, entendeu? A gente precisa trabalhar, né? Eu tenho minha casa, graças a Deus! E é assim a nossa vidinha aqui no interior: sossegada, né? Não se tem muito pra fazer de lazer aqui. Quando a gente quer alguma coisa diferente, um shopping, qualquer coisa assim, a gente vai pra Piracicaba, que é muito bom. Tem Itu, tem Salto, Campinas. Então nós estamos no melhor lugar, eu falo. É meio. Livre acesso pra todos os grandes centros e é tudo muito perto, não é longe. Que nem daqui a São Paulo, 150 quilômetros. Cidade fantástica São Paulo, mas não queria nunca viver lá. Imagine, eu quero fazer amizade com todo mundo, em São Paulo não pode. Então a vida da gente é assim, sabe? Quando dá a gente sai pra passear, vai comer uma pizza. Falei que até isso parou, porque parou tudo, não podia fazer nada. Mas agora acho que a vidinha da gente está voltando ao normal. Que não venha mais nenhuma pandemia!
P/1 – Lou, como foi, pra você, dar essa entrevista pra nós?
P/2 – Posso fazer, antes…?
P/1 – Pode.
P/2 – Quais são seus sonhos?
R – Ai, Luiza, eu tenho tantos! Não sei se eu vou conseguir, nesse mundo, fazê-los. Não sei. Eu gostaria muito de viajar, conhecer cidades, outros países. Queria muito ir em Lourdes, na gruta, porque eu sou Maria de Lourdes por causa dela. Ah, eu tenho vontade de conhecer outros lugares. O Brasil é maravilhoso, tenho vontade também. Só que a condição financeira da gente precisa melhorar pra poder fazer alguma coisa. Quero arrumar minha casa, ganhar um carro novo, porque eu ganhei meu carro novinho, em 1996. Ele está comigo até hoje. Fiz o maior sucesso quando eu ganhei, lá em Capivari. Um dos últimos bingos. Lembra que tinha aquela ‘febre’ de bingo beneficente, que no fim, depois, começaram a fazer falcatruas? Então, eu ganhei. E com voz firme... eu vi os dois carros na praça, o Gol e o Uno. E na época o Uno era novo, o chamavam de ‘botinha’, então eu falava assim, eu trabalhava na prefeitura. Eu subia e falava assim: “Eu não quero esse Uno, eu quero o Gol”. O Gol era um carro forte, né? Daí eu entrava em casa e saía: “Vou ganhar um carro, não sei como, mas eu vou ganhar”. Saía, falava; entrava e falava, durante o mês do bingo. Daí minha irmã trabalhava na Santa Marina, na área comercial e ela ganhou um chaveiro lindo de um fornecedor, de couro, de metal e ela chegou em casa e falou: “Ai, Lou, pro seu carro zero, novo”. Eu não tinha comprado a cartela ainda. No começo de dezembro. Daí eu deixei no cantinho do rack, ali, com a televisão, todo final de semana que eu limpava a casa, eu tirava, limpava e: “Meu chaveiro do meu carro novo”. E esse bingo foi adiado, porque chovia muito, então foi mais pro final do mês, passou Natal e tudo. E eu comprei na hora que eu entrei no campo, as meninas: “Vamos, vamos” e o tempo de chuva de novo, pra chover. Eu falei: “Nossa, será que vai dar?” E daí eu estava lá. Tiveram brincadeiras, outros bingos, outros prêmios, tinha uma antena parabólica enorme, que era chique e um caminhão de prêmios, tinha 1500 reais, os dois veículos e eu não sei se tinha uma moto. Daí começou o bingo, propriamente dito. Porque antes eles fazem aquelas brincadeiras, pra você ir jogando e tentando ganhar. Daí foram fazer o Uno e eu, como sou muito católica, peguei uma revista em casa, católica, do Padre João Dehon, falei: “Padre João Dehon, ajuda eu ganhar esse carro” e levei pra fazer apoio e aí, quando eu comecei a marcar o Uno, eu não parei mais, fiquei marcando com a perna assim e as meninas: “Você vai ganhar, Lou, você vai ganhar, você vai ganhar”. Aqui bate, que você parece que vai explodir, sabe? É uma sensação, não dá pra explicar. Ao mesmo tempo parece que você vai morrer. Fiquei com o número 24 pendente, um ‘cara’ bateu. Daí o cara falou assim: “Bateu, fulano bateu” e eu estava assim, no alambrado, você senta naquelas coisas do campo, a arquibancada e eu estava acho que uma seis arquibancadas assim, de cimento e o alambrado, lá. E o ‘cara’ foi lá e começou a conferir, passou ‘batido’. Daí o ‘cara’ falou assim: “Não ganhou o carro”. Eu nunca vi um ‘cara’ ‘cantar’ tão bem um bingo como aquele. Daí ele falou assim: “Eu vou ‘cantar’ três pedras. Se não sair nenhuma, o carro é seu”. Daí ele começou a ‘cantar’ daquele jeito dele: “Númeroooooooo dez”. Eu já não falava mais. Ahn, ahn. E as meninas assim: “Você vai ganhar, Lou, você vai ganhar, Lou, você vai ganhar o carro, vai ganhar o carro”. Ele ditou a outra pedra. Quando foi na última pedra, ele falou: “Número vinte e... quatro”. Era a minha pedra. Eu desci, as meninas não viram eu descer, me grudei no alambrado, daí eu, com o cabelo comprido, aqui, ele falava assim: “A loira fatal ganhou o carro” e o povo, lá, todo mundo me conhece, imagine no campo! E daí? Ele falou: “ ‘Canta’ todas as pedras de novo”. Eu falei: “E se eu ‘passei batido’?” É outro desespero, total. Ganhei o carro. Daí tinha mais um carro, que daí era o Gol. E o tempo formando chuva e todo mundo rezando: “Não pode chover”. Sei dizer que gente de lá do outro lado vinha sentar perto de mim, amigos. Meu primo Ademir, marido da Sandra, foi um. Mas eu não acreditava, sabe quando você está meio adormecida ainda e pensando naquele tempo que ia chover? Enfim, saiu o outro carro, daí eu desci, você vai lá no vestiário pra passar informação, documentação. Já vieram correndo em cima de mim, todo mundo, casal amigo da gente: “Lourdinha, não tem pessoa melhor, você tinha que ganhar esse carro, você é merecedora”. Eu lembro que Sonia Laurito pegou um tercinho e falou assim: “Já ponha no retrovisor do carro” e eu pus. Daí nós descemos, fiquei esperando, que fez a ficha de todo mundo, a documentação e onde eu vou ‘enfiar’ esse carro agora? Estava com o Fusca da minha irmã. Daí minha amiga Tereza pegou o Fusca. “Eu preciso achar um lugar, não tenho seguro do carro”. O tempão formando, saímos do campo uma e meia da tarde, naquele auê, o bar do Vado ‘fervendo’, ali. Daí desci, eu precisava abastecer o carro, estava sem gasolina. Desci no posto pra pôr gasolina, caiu uma chuva, mas uma chuva, daí eu fui lá no meu amigo Valdir, que era dono do estacionamento na minha rua, ali, pra ver se ele tinha um box pra colocar o carro, consegui. Daí quando foi no mesmo dia, eu cheguei em casa primeiro, daí fui falar pra mamãe que eu ganhei o carro, tinha minha cachorrinha pequenininha, mamãe estava fazendo nhoque, toda cheia de trigo, nós encostamos ali, fui na cozinha e falei: “Mãe, eu ganhei o carro”. Minha mãe falou: “Para de brincar, Lou”. Falei: “Verdade. Mãe, o carro está aí na porta, da rua, venha ver”. E as meninas todas conversando ali, no carro de Célia, minha irmã, daí mamãe veio, o avental que era só trigo, eu lembro da July, a cachorrinha e mamãe falou: “Filha, você ganhou o carro? Que bom! Eu estava aqui, rezando pra Nossa Senhora, que ela desse um presente pra você, pra você resolver suas coisas, que você tem muita coisa pra resolver. Que fizesse você feliz”. Olha, coração de mãe! E eu pedi pro Padre João Dehon, falei: “Padre, se eu for merecedora desse automóvel, que ele seja meu”. Só. Bom, daí aquela choradeira, mamãe chorou, pa, pa, daí que eu fui ver a garagem. Telefone não tinha na minha casa, tinha nas minhas tias, na casa de vovó, vizinhas da minha casa, irmã da minha mãe. O telefone não parou de tocar, até as nove da noite. Queria falar comigo, minha tia ia e chamava: “Lou, fulana...”, todo mundo: “Lou, que maravilha! Nós estamos muito felizes que você ganhou o carro”. Eu fiz uma semana de sensação na cidade. Os bicheiros jogavam no número do meu carro, da placa. Eles queriam saber o número. E eu ia ser operada em janeiro e eu tinha uma quitanda, que eu ia fechar. Deus fez tudo certinho pra mim. Eu não peguei nesse carro durante trinta dias, porque eu fui operada, depois. Eu o ganhei no final de dezembro, o pus na garagem, lógico, usei um pouquinho e guardei, fiz seguro e daí eu fui operada do útero, aí fiquei bem. São provas de vida. E esse carro está comigo até agora. Muitas vezes eu pensei em vender, mas mamãe já estava acamada, com alzheimer leve, por quatro anos e eu conversava com um amigo meu, pastor, ele falava: “Lou, você não vai vender esse carro. Ele é pra utilizar pra locomover sua mãe pro hospital, resolver as coisas, médico” e não vendi o carro. E já ofereceram muito dinheiro pra esse carrinho, mas ele está feinho agora, porque ficou um tempo na rua, desbotou, é metálico, agora eu vou fazer o banco do carro, mas é essa vida que Jesus me deu, que eu agradeço todos os dias. Lógico que eu quero um novo. Quem sabe eu ganho, né? Jogo na megasena, na lotomania. A gente precisa jogar. Daí as pessoas falavam assim, fui num outro bingo que teve uma pessoa que virou e falou assim pra mim: “Se vier de novo aqui vai ganhar outro carro, você já ganhou um”. Não deve falar assim. A gente não deve falar: “Você já ganhou”. Queira ganhar o que é seu, né? Isso é humildade, agradecimento. Todo mundo tem sua vez. Então a inveja é que mata a pessoa, né? Mas eu me saí bem, até agora. De repente eu fico rica daqui pra frente, não sei, com essa entrevista aqui muita gente vai querer falar comigo.
P/2 – Lou, a gente está caminhando pro fim, eu queria saber se você gostaria de acrescentar algo mais, que a gente não tenha te perguntado, alguma passagem, algum momento importante que não foi dito.
R – Não. Eu acho que eu não vou lembrar agora. Posso lembrar depois, como todo mundo faz, né? A gente vai se acostumando com as coisas. Vai aprendendo com as coisas. Mas eu não sei. No começo eu relutei pra fazer isso, porque queria entender, mas eu não sei, eu acho que é Deus na minha vida dando mais essa chance pra mim, eu aparecer de algum modo, ser importante pra alguma coisa e Deus me ajudar, entendeu? Eu acho que é isso que está acontecendo. Essa semana que passou aconteceram muitas coisas boas. Tenho recebido alguns convites de trabalho, recebendo mesmo: “Nossa, você vai trabalhar comigo”. Então, é merecimento. E essa entrevista aqui, que eu não sei dizer o que vai acontecer, mas eu acho que vai acontecer muita coisa boa, pra muita gente. E principalmente porque eu falei do lugar onde eu nasci, né? Onde eu vivi. Onde eu me tornei gente. Nós, né? Nós somos lindas, né, Telma?
P/1 – Nós somos maravilhosas.
R – Nós somos rafardenses e sou capivariana, também adoro a cidade Capivari.
P/1 – Eu não sou capivariana, mas amo a cidade de Capivari.
R – Era uma cidade só, na verdade, depois se emancipou, mas aqui é especial. A água, aqui, é uma delícia. Tudo é bom aqui. Ah, eu subia no pé de goiaba e ele fazia uma escadinha pra mim. Eu vou terminar assim. Eu morava no canto do jardim principal, na rua principal e o quintal era comprido e subia, assim. E mamãe vinha pra cidade, aliás, ela ia pra Capivari pra comprar aviamento, que ela costurava. Então eu chegava da escola assim, por meio-dia e meia, uma hora, ela falava assim: “Filha, a mamãe vai pegar o ônibus agora, uma e meia e você almoça e arrume a cozinha pra mamãe”. Eu odiava arrumar a cozinha, mas faço muito bem. Daí, conclusão: quintal grande, com terra, restinho de comida chegava no quintal, às vezes, e essa árvore - eu estou enxergando a goiabeira - fazia escadinha pra subir. Como meu quintal fazia assim, eu enxergava dentro da usina, onde punha os vagões de enxofre e ela tinha uma raiz assim e a escadinha. Peguei aqui, peguei lá no terceiro e subi e contei quatro vagões de enxofre e desci. Quando desci no último degrau, quebrou e eu caí da árvore. A minha sorte foi que eu caí no meio das duas raízes, porque se eu tivesse... arrebentava meu cóccix, mas mesmo assim, que dor! Eu falava assim: “Minha Nossa Senhora, faça com que eu não tenha quebrado nada. Ai, minha Nossa Senhora!”, sozinha e mamãe já tinha ido pra Capivari e papai estava trabalhando e minha irmã na escola. Bom, levantei, tudo, fui, comi, arrumei cozinha, tudo na dor, mamãe chegou cinco e meia da tarde em casa. E eu meio ‘jururu’, né? Imagine se eu vou contar pra mamãe que eu subi na árvore e caí? Daí minha mãe viu, já falou: “O que foi, filha? O que você tem?” “Não tenho nada” “Você tem. Você chorou? O que aconteceu?” “Eu caí da árvore”. Ela falou: “Ai, eu não acredito, Lourdinha, o que você foi fazer?” “Eu fui contar o vagão lá, mamãe” “Mas Lourdinha, você acha que era pra você subir na árvore, sozinha, aqui em casa, filha? É Deus que guarda, mesmo”. Aí minha mãe me acalmou, passou. Daí comecei a levar minha irmã na árvore. Não tinha jeito. Célia era cinco anos mais nova que eu. Minha mãe falou: “Não, senhora! Eu não quero ver você fazendo arte com a Célia”. Eu era moleque, gente. Mas era bom. Jogava bolinha de gude com o meu irmão, brincava no quintal, ele fazia oficininha. Não tinha brinquedo como tem agora, aqueles brinquedinhos de montar e desmontar e ele falava assim: “Lou, vá lá dentro com mamãe, aqui não é lugar de menina. Aqui são os meninos” “Não, eu vou ficar aqui” “Eu vou chamar papai” “Vá”. E eu ficava. Daí quando enchia mesmo meu ‘saco’ e eu me revoltava, um dia eu peguei e passei o pé em tudo, eu desmanchei tudo com o pé e sumi, daí ele foi atrás do meu pai: “Pai, eu não aguento mais Lou, ela destruiu nossos brinquedos”. Mas você acha que meu pai me achou? Não achou. E era assim, uma delícia. Meu irmão tinha um boneco de papelão, como eu nunca vi. Minha mãe comprou, não sei onde. Era lindo o boneco, de papelão, pintado, ele tinha a roupa pintada. Ai daria uma história linda esse boneco. E esse boneco eu brincava com ele. E a minha casa, tinha atrás da casa, que falava. Aqui a cozinha, a sala, aqui o quarto e o banheiro fora e nesse ‘atrás da casa’ a gente deixava os brinquedos, que era cimentado e depois era terra. Brinquei, brinquei com esse boneco, larguei o boneco na chuva. Deu um puta toró. Quando meu irmão foi ver o boneco, o boneco estava assim. Acabei com o boneco dele. “Ai, papai, olha o que ela fez com o boneco. Ai”. E tem umas outras histórias que eu não posso contar. Eu só fiz molecada.
P/2 – Lou, você gostaria de deixar alguma mensagem? Pensando na cidade, ou pras pessoas que vão te ouvir, te assistir.
R – Ai, eu acho assim: vivam intensamente cada momento da sua vida, mas vivam bem, ajudando quem você pode, acolhendo quem você pode, seja humilde sempre, não perca sua fé na vida, procure ter Deus sempre com você. Eu peço pra Jesus todos os dias que ele direcione meu dia. Que sem ele a gente não é ninguém. E que a gente tenha, assim, temos que ter muita paciência pra lidar com as pessoas, pra entender o nosso dia a dia. É isso que eu peço. E pra vocês, que são especiais, trabalhando, fazendo esse trabalho, vocês estão crescendo. Quanta informação, quanta ideia vai surgir pra vocês e que sirva pra um monte de gente. Que as pessoas cresçam, mas espiritualmente. Deus é tudo na nossa vida. A gente está aqui respirando, porque Ele quer. Que amanhã a gente pode não estar. Então todo dia amanheça, agradeça a Deus e olhe o céu. Nós temos um céu fantástico, que Deus fez pra nós, deu uma natureza linda, que a gente não liga mais pra isso. A gente precisa enxergar a natureza, os bichos, os pássaros. Eu tenho na minha casa um quintal, tem dois pés de frutas lá, vive cheio de passarinho, eu fico conversando com os passarinhos, ensino minhas cachorras: “Olha lá o passarinho, July”. Então, é assim. Goste de tudo aquilo que Deus pôs na sua frente e seja bom, com sabedoria. Isso a minha mãe me ensinou. Nós temos que saber ser bons e a gente não deve deixar ninguém fazer a gente de bobo, nem se aproveitar. Se eu posso ajudar, eu ajudo; se eu posso dividir, eu divido. Nós temos que dividir, ajudar.
Olha, eu trabalhei num lugar, agora eu não vou falar, eram trinta meninas. Tinha meninas pobres, gente passando fome e eu levava meu lanchinho. Teve um dia que eu dei meu lanchinho pra uma, que não tomou café, estava com fome, era depois do almoço. Eu falei: “Eu tenho um pãozinho lá”. E eu levei um pão integral, que é mais caro, quatorze grãos, minha irmã comprou e eu levei, com um pouquinho de manteiga. A satisfação daquela menina em comer aquele pão lá. Ela falou: “Nossa, eu nunca comi desse pão”. Falei: “Tem no supermercado, tem até mais barato. É que esse daqui eles vão modernizando os pães, acrescentando grãos, fica mais caro”. Passou três dias, outra com fome. Eu tinha uma banana e um pão comum. Daí eu falei assim: “Você já comeu pão com banana? É uma delícia. Eu comia na escola pão com banana, com ovo frito, levava, né? Pão com marmelada”. Ela falou: “Ah, eu gosto”. Falei: “Então, você está com fome? Então tá, leve lá na cozinha”, dei minha bolsinha. Nossa! “Lou, Deus lhe pague, você ‘matou’ minha fome”. Sendo que a gente ia comer depois, porque tinha café, às vezes tinha marmitex na hora do almoço, sentava ali. Mas o mundo precisa disso, de ajuda, de orientação, de carinho, ouvir as pessoas. Tem pessoas que precisam ser ouvidas, orientadas nesse mundo ‘corrido’ nosso. Então é isso que quero passar pra vocês e pra todo mundo. A gente só tem que ser bom nesse mundo, tentar ser bom. Eu não sou perfeita, tenho meus defeitos, mas eu procuro ser alegre e perto de mim ninguém fica triste. Tem gente dando risada lá atrás. E é isso. E que vocês sejam muito bem-sucedidos com esse trabalho. E eu também, né? De repente eu vou ficar famosa, então a gente pá.
P/2 – Quer finalizar?
P/1 – Lou, como foi pra você dar essa entrevista pra nós, falar, rever toda sua vida, desde lá da infância, até os dias de hoje? Foi bom pra você? Como foi?
P/2 – Lembrar de tudo isso.
R – Querem dizer a Xuxa: “É muito bom estar com você”. Não tem o que falar, né? Olha, pra mim é uma surpresa eu estar aqui, na frente de vocês, o nosso querido amigo ali me filmando, tomara que eu esteja linda, maravilhosa e vê meu cachê, né, gente? Mas nossa, eu não sei explicar. Eu estou sentindo um negócio tão bom dentro de mim, que eu teria acho que muito mais coisas pra falar, que eu vou lembrar, como vocês já falaram. Então pra mim foi uma satisfação poder falar de Rafard, estar aqui. E olhe que importante que a gente é, família Abel, de Rafard. A nossa família, né, Telma?
P/1 – É.
R – Todos nós somos importantes na vida, nós temos que perceber isso. Então pra mim é isso. Falei demais, né, gente? Vejam o que vocês podem fazer aí.
P/2 – Querida, não sei como te agradecer, foi muito gostoso!
R – (risos) Se apaixonou.
P/1 – Se eu já era fã…
P/2 – Poder escutar, ver seu olho brilhando, contando. Muito obrigada por dividir todas as suas histórias, lembranças, emoções, momentos. Foi um presente, te agradeço de coração. Quando tudo estiver pronto... sua história virou uma obra de arte, ela vai estar registrada pra sempre, pra eternidade. Isso é muito forte, muito importante, então muito obrigada! Desculpe essa ‘correria’. Ontem a gente te ligou, obrigada pela disponibilidade, disposição. Foi um presente.
R – O que vale a pena de tudo isso é que eu tenho muitos amigos, principalmente aqui, em Rafard. Isso aí é o maior tesouro da vida da gente, as amizades, né? A gente saber reconhecer, dar valor, agradar. O resto passa, né? Vou me segurar, eu não vou chorar. (choro)
P/2 – As três.
P/1 – Obrigada, Lou, muito obrigada! Se eu já admirava, passei a admirar mais ainda, por saber toda uma história que ainda não conhecia. Muito obrigada, estou muito grata pela sua colaboração.
R – Eu queria poder desenhar o mapa de Rafard (choro). Formar todas as casinhas que tinha, muitas que já desmancharam. A usina era o reino pra cidade. Tudo, o jardim, as árvores, tudo, eu queria poder desenhar isso. Está tudo na minha mente. Tudo, tudo, tudo. As minhas amigas, os meus amigos, as famílias queridas, que eram amigos da minha família. Rafard era amizade, mesmo. Muita amizade. Muita. Eu estou enxergando papai. (choro) O tempo passa e a gente está aqui, né? Muitas pessoas boas foram embora. Eu queria até que meu irmão estivesse dando uma entrevista, vocês iam amar, tá bom? (choro).
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