Projeto Conte Sua História - Atados e Abraço Cultural
Depoimento de Darcy da Silva Costa
Entrevistado por Leandro Pelegrine Gate e Talita Ramos
São Paulo, 23 de junho de 2018
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_A_HV01
Editado por Talita Ramos e Leandro Pelegrine Gate
P/1 - Tudo bom, Darcy?
R - Tudo bem, Leandro.
P/1 - Preciso que você fale para mim, antes de tudo, o seu nome completo, a sua data de nascimento e o seu local de nascimento.
R - Darci da Silva Costa, 04 de janeiro de 1967, Canto do Buriti, Piauí.
P/1 - Em que meio você cresceu, assim, que pessoas que faziam parte da tua infância?
R - Eu nasci no cerrado ali no Piauí, Canto do Buriti, e vim para São Paulo com dois anos de idade. Então eu faço parte da migração do Nordeste para São Paulo, na época da industrialização, nos anos 50 para cá, mais ou menos. E fui criado, vindo para a Vila Anastácia, São Paulo, depois a gente foi para a cidade de Osasco, e eu fui criado praticamente em família com outros primos, meus tios, primas, e a gente passava a maior parte do tempo brincando durante o dia em um campo de futebol. Então a nossa brincadeira na época era muita bola, meu avô acompanhava muito, ia assistir.
P/1 - Quando você veio para cá para São Paulo, você veio com quem, com seus pais e com o seu avô?
R - Eu vim para São Paulo, meu pai veio primeiro, ele veio e ele ficou um ano aqui procurando emprego, e depois que ele conseguiu trabalho ele mandou buscar minha mãe, e minha mãe veio, depois comigo, de dois anos, a gente veio de ônibus, meu pai veio de pau de arara com uma lata de farofa, a lata azedou no meio do caminho, a farofa, e aí as senhoras que vieram também no pau de arara que davam de comer para ele, porque ele não soube fazer direito a marmitinha dele. Foi assim que a gente chegou aqui em São Paulo. Aí ele trabalhou em uma empresa durante um ano, e depois ele entrou na Sofuge, aonde ele trabalhou até se aposentar.
P/1 - Você ainda tem contato com seus pais?
R - Eu hoje tenho novamente contato com a minha mãe, com meus irmãos, com a minha irmã.
P/1 - Quando você diz novamente, o que aconteceu com ela, teve uma briga?
R - Eu tive uma quebra de vínculo em uma época da minha história com eles. Isso se deu mais ou menos na época do ginásio mais ou menos, na década de 80 mais ou menos, eu tive um envolvimento, comecei a fumar cigarro, aquela coisa de estar descobrindo os vícios da vida, comecei a beber, e acabamos conhecendo a maconha. Então naquela época em 82 você poderia ser preso por andar com um cigarro de maconha. E aí eu tive toda uma trajetória envolvida com drogas, e isso aí minha mãe muito preocupada por conta disso me internou, no Sanatório Saião em Araras, e eu fiquei muito sentido com isso, e aí desse tempo para cá as nossas relações já não foram muito amigáveis.
P/1 - E como que se deu essa reaproximação de vocês?
R - Essa reaproximação se deu faz pouco tempo, depois que a gente começou uma militância no movimento nacional, população de rua, eu já estava em situação de rua nessa época, resolvi sair de casa porque a tensão estava muito grande. E em 2013 eu entrei no movimento, encontrei um motivo, uma causa por qual lutar, algo significativo. E depois de um tempo eu ganhei um auxílio-moradia, uma bolsa-aluguel do Município de Osasco.
P/1 - Legal. Você contou que com dois anos de idade você veio para cá, e como é que foi para você essa mudança, você tem alguma memória disso, de como é que foi?
R - Sim, eu lembro alguma coisa. Só concluindo a sua última pergunta, quando eu ganhei a bolsa-aluguel, eu precisava escolher um local para morar, e era justamente nessa época que eles queriam me aproximar da minha família novamente, e eu acabei alugando a casa dos fundos da minha mãe, que fica em cima da casa na verdade, e foi nessa época que eu comecei a retomar novamente, fiquei quase dois anos lá, aí foi nessa época que eu comecei a retomar. Agora, se eu lembro da minha história da infância até o momento? O que eu me lembro muito é que era uma época do rock pauleira, a gente curtia muito rock pauleira, era o que mais a gente curtia, tinha o punk também, que era uma rivalidade. E nessa época a gente frequentava muito um bar chamado Cavach, na periferia em Osasco, às vezes, a gente vinha para São Paulo também. E aí a minha infância foi toda construída em cima de um dos princípios do movimento hip, então por isso que esse contato com a maconha, a valorização da música, a gente via na música a liberdade contra a guerra, contra uma série de princípios em busca de paz e amor. E a gente cresceu nesse ambiente, aí depois dos anos 80 veio aquele movimento do rock dos anos 80, o rock brasileiro que começou, mas já não era muito a minha praia da minha geração, a gente já estava saindo já praticamente dessa situação. E quando eu tive essa desconexão, esse desligamento com a sociedade por conta de alguns traumas que eu acabei sofrendo, eu me desliguei completamente da sociedade.
P/1 - Você chegou a comentar da sua infância com o futebol, era o seu robe?
R - Era o que a gente fazia todo dia, era o que a gente brincava todo dia, era de futebol, era de guerra de mamona com estilingue e caçar passarinho, então era o que a gente fazia.
P/1 - E da casa que você morava aqui em São Paulo, você se lembra dela?
R - Lembro.
P/1 - Você poderia descrever ela?
R - Era uma casa pequena com três cômodos, com um terreno enorme, meu pai comprou aquele terreno com parceria com o meu tio, que hoje já é falecido, meu pai também. Aí era um terreno grande, acho que chegava a 600 metros, acho que tudo, não sei, não lembro direito, e eu brincava, e não tinha cerca, separação, casa do meu tio, casa do meu pai, era tudo em um terreno só, e eu tinha toda aquela esquina. E aí como o meu tio vendeu aquele pedaço de terra eu estranhei muito, porque eu cresci naquele chão e hoje aquele chão já não é nosso, mas se tem uma ligação com a terra, e era uma casa assim, hoje ela não existe mais, hoje a minha mãe já mora em uma outra casa.
P/1 - E você tem uma lembrança assim marcante da tua infância?
R - Eu tenho umas lembranças de alguns amigos na memória que eu não esqueço, são gente muita bacana. Eu tenho um amigo de infância que eu lembro dele, mas não lembro mais da fisionomia e nem do nome, e tem um outro que a gente se conheceu já na época da escola, que é muito difícil a gente se vê, mas eu lembro dele, também, é um amigo muito significativo que eu tenho, até hoje, amigas também, muito significativo, mas cada um já cuida da sua vida.
P/1 - Você falando da escola, como é que era a tua escola, você falou que você é católico, você estudou em escola católica?
R - Não, nunca estudei em escola católica, eu sempre estudei em escola pública, e na nossa escola pública a gente causava muito, a gente era muito bagunceiro na escola, gostava de beijar as meninas nos intervalos, era muito bacana, e a gente fazia parte de uma fanfarra, que eu participei, eu desfilei acho que uns três anos da fanfarra, a gente desfilou no 07 de setembro, fomos campeões uma vez por melhor harmonia, ganhamos uma viagem até o pico do Jaraguá por conta disso, quando nessa época, das festas juninas também, a gente saía pedindo merenda, prenda, e era uma concorrência, e a gente ganhou uma vez, ganhamos também uma viagem em um sítio aonde eram feitas as filmagens no sítio do Pica-pau Amarelo, o Reino das Águas Claras, nem me lembro mais aonde é isso. E o pessoal da escola, a gente também teve um time de vôlei e um de basquete, o de basquete era o das meninas, o de vôlei era dos meninos, e a gente tinha uma rivalidade muito forte entre as escolas. Então a gente cresceu em um ambiente assim, e teve um torneio de matemática também, a gente participava dos torneios de matemática, teve um da escola e depois ia crescendo, eu não era muito bom em matemática, fiquei em sexto lugar entre os dez, e foi nesse ambiente que a gente foi crescendo.
P/1 - Você falou que não era bom em matemática, tinha matérias assim que você já se interessava já?
R - Eu gostava da pessoa, dependendo da Professora que eu tinha eu aprendia, dependendo, eu não aprendia. Tinha uma que puxava o português, eu não conseguia aprender, mas a de matemática, quando ela entrava na sala eu me sentia bem com ela, eu tinha prazer de aprender com ela.
P/1 - Essa pessoa ela marcou você?
R - Marcou, essa Professora marcou, ela entrava assim, ela se sentia um amor, você se sentia acolhido, dava gosto de assistir aula, nunca perdia uma aula dela.
P/1 - Então você falou que tinha muitas paixões, você conheceu a mulher da sua vida nessa época, a sua esposa?
R - Não, se eu conheci a mulher da minha vida eu perdi, porque até hoje ainda acho que não encontrei essa mulher, ou não soube identificar quem era.
P/2 - Posso fazer? Nessa época sua da escola, que teve bastante participação em vários projetos, ali já teve a sua essência de liderança, de coordenação, já surgiu nesse momento?
R - Fora da escola a gente tinha um grupo que eram nossos amigos, e era uma época de muita rivalidade na rua, então a gente se afirmava enquanto grupo, nós éramos um grupo de moleques, tudo roqueiro, cabelo grande, usava camiseta preta dos músicos que a gente gostava, e tinham também outros grupos que eram mais violentos, tinha os carecas, enfim, todas essas tribos todas divididas, que quando se encontravam era muita briga. E também tinha o lado das pessoas que eram vistas também como criminosas, porque vendiam maconha. Então tudo isso a gente cresceu em um ambiente assim, que a gente só conseguiria se afirmar, se colocar o respeito na rua se a gente criasse forças, e era dessa forma que a gente mexeu com um, mexeu com todos, a gente sempre buscava, e a gente teve grandes perdas também de amigos, que vieram a sofrer ou foram mortos por algumas questões assim, de briga de rua.
P/2 - Então, não tinha liderança específica, vocês eram todos juntos? Ou tinha alguém que organizava?
R - Era meio intuitivo, a gente não se reunia para montar estratégia, era meio que intuitivo, as coisas iam acontecendo, você já criava praticamente dentro de um ambiente já pronto, e aí você pegava afinidade com algumas pessoas, às vezes, pessoas dos nossos grupos começavam a andar com a gente hoje, mas de um tempo já não andava mais com a gente, já estava em outro grupo, às vezes, grupos rivais. Mas a gente tinha aquelas pessoas com quem mais a gente trocava ideias, que a gente se reunia, cada um se reunia na casa de um, a gente fazia muitas festas na ausência dos pais, a gente usava o espaço para a gente fazer várias festas, a gente comprava muita bebida.
P/1 - E foi nessa época que se deu esse seu rompimento com a sociedade, que você falou?
R - Não, isso daí foi acho que depois de 82, acho que eu surtei em 82, não sei o que aconteceu, que eu lembro que era Natal de 82, véspera de Natal de 82, a gente estava pensando de ir para uma festa aqui na Lapa, na casa de um dos meus primos, e a gente estava cada um com um cigarro de maconha, mas não sei se vocês conhece aquela seda que tem no maço de cigarro, e a gente fez aquilo inteiro de maconha, mas ele fez um charuto, uma a gente não fez um charuto para correr a banca, a gente fez um charuto para cada um, e começamos a fumar aquilo de um jeito, e de repente deu uma depressão tão grande, e eu fui para casa, fui embora, falei, não, vou embora, fui embora. Aí depois daquele dia lá eu entrei em uma depressão, dentro de um quarto escuro muito grande, e tipo tranquei a porta pelo lado de dentro. Entendeu? E aí me desliguei completamente de quem estava do lado de fora. E nunca teve algum diagnóstico a respeito disso, eu não sei, mas aí criou todo um problema. Eu cheguei para a minha mãe e falei: “Mãe, estava fumando droga”, aí ela se desesperou. Aí a primeira reação dela foi procurar um médico, e pelo conselho de uma vizinha ela acabou me internando em um sanatório, acho que ali foi quando realmente perdi. Não sei, eu não sei se eu fui buscar, eu me senti talvez traído, acho que não era aquilo que eu esperava, que me prendesse daquela forma, compulsória, me internou daquele jeito, e tratava a base de remédio, vendo muitas pessoas sendo medicadas, amarradas. Então eu vi coisas assim que eu não esperava enxergar, acabei vendo, acho que foi justamente aí que eu acabei perdendo essa confiança, de me abrir, porque se eu me abrir vão vir coisas pesadas para cima de mim.
P/2 - E você se recorda do pouco tempo que você ficou dentro desse sanatório?
R - Então, hoje eu sei que foi acho que nove meses, mas lá dentro eu achei que eu já estava mais de dois anos, porque eu perdi completamente a noção do tempo, porque eu tipo assim, me anulei, entrei em uma anulação muito grande a respeito da minha família, de tudo. Então como eu não tinha saída e todas as pessoas que tentavam fugir, e depois eram penalizadas brutalmente, tomava o sossega-leão, uma injeção, uns coquetéis. Aí eu fiquei lá, passou o tempo, depois meu pai foi e me buscou e levou de volta para casa. Mas até hoje eu nunca mais recuperei aquela liberdade da infância, aquela relação de segurança, do espaço com a família, isso aí eu já perdi e acho que não dá mais.
P/1 - De pensar nessa situação, em lembrar que a sua mãe te colocou nesse sanatório, quando você vê a sua mãe, isso automaticamente traz uma lembrança? Você guarda uma mágoa?
R - Eu agora penso assim, que nessa época, quando eu fui internado, muitos dos meus amigos morreram, porque em 82 para cá que a AIDS começou a chegar no Brasil, foi na mesma época que chegou a cocaína, e a cocaína aquele tempo era muito mais pura do que é hoje, a cocaína naquele tempo você preparava ela para injetar na veia, a mesma agulha corria muitas veias, e muita gente foi contaminado por conta disso, e o tempo que eu fiquei lá nove meses internado, eu soube quando eu saí, muitas pessoas tinha morrido por conta da AIDS, aí às vezes, eu penso que se eu tivesse na rua naquela época, talvez eu também teria me contaminado. Mas eu tento buscar a compreensão da minha mãe também a respeito de tudo isso, porque ela também talvez não estava nem um pouco preparada para lidar com uma situação dessa, e a situação dos sanatórios também a gente sabe que também na época, por isso que foi pedido o fim dos sanatórios, aquela coisa toda, e o pessoal saiu e está tudo na rua hoje.
P/1 - Saindo dessa parte, como é que foi o seu primeiro trabalho?
R - Primeiro trabalho?
P/1 - Sim, primeiro trabalho.
R - Eu tive o meu primeiro trabalho, se não me falhe a memória, na Aposentec para o Silvio Santos, no escritório lá em Pinheiros, eu trabalhei lá nesse escritório, fiquei pouco tempo lá também, e logo saí.
P/2 - E você gostava do que você fazia lá?
R - Não é que eu gostava, eu sei que eu estava lá porque eu tinha que trabalhar, não era meio assim, não era algo que eu gostava de fazer, ficava recebendo as pessoas para uns cursos de formação, dos vendedores, do caminho da Aposentec, e fiquei lá um tempo, e tinha muita falcatruagem, do meu chefe lá que estava comigo, ele aprontava muito lá. E aí por conta disso o escritório, resolveram fechar o escritório, porque ele aproveitava muito, tinha umas menininhas que iam lá, ele tirava foto das meninas, as meninas tiravam a roupa, subia em cima da mesa, ficava só de lingerie.
P/2 - A sua mãe fez essa internação, que idade você tinha, mais ou menos?
R - Eu acho que eu deveria ter acho que uns 14 ou 15 anos.
P/2 - Você lembra assim, de um momento assim, com o seu grupo, que você falou que faziam festas, você lembra assim dessas festas, para descrever assim um pouco o ambiente, uma cena assim, que você podia descrever para a gente dessa época?
R - Nessa época a gente andava caracteristicamente, na época dos roqueiros, era uma época que o AC/DC estava em alta, então a gente ouvia muito Led Zeppelin, (The Pooper) [00:24:00]. Então a gente andava característico a isso, esses grupos. E a gente colocava o som o mais alto possível, incomodava mesmo os vizinhos, tinha vizinho que não ligava, e tinha uns vizinhos que se incomodavam. E para nós na época era tudo divertido, e a gente tentava cantar junto com a música, e era só alegria. O pessoal, às vezes, ficava embriagado, depois no dia seguinte era muita risada, muita história para contar, acho que era coisa de adolescente mesmo.
P/2 - E teve alguma história dessas assim, que você lembra até hoje, que no dia seguinte vocês ficavam lembrando?
R - Eu lembro de uma fogueira que a gente fazia em uma viela, porque tem a via principal, aí aqui bem na esquina era a nossa escola, na época do ginásio, e aqui tinha do outro lado da rua, era todo o comércio, aí tinha umas casas, e depois entrava uma viela que descia, aí naquela viela perto da escola a gente costumava se reunir, ascendia uma fogueira, e a gente tomava vinho e conversava à noite inteira relembrando as letras, as músicas que a gente ouvia, contando as histórias que aconteciam, até das brigas, que a gente brigava. Então a gente tinha muito disso.
P/1 - Você falou das brigas, em algum momento você chegou a ser repreendido pela lei, pela polícia, ou não?
R - Naquela época a gente não poderia andar na rua qualquer lugar que a gente ia a gente era parado pela polícia, a gente estava em grupinho, ainda eram os militares. Então eles viam a gente em qualquer lugar eles paravam, revistavam, e era história para uma semana ou duas. Porque geralmente a gente sempre estava com um cigarro de maconha, e a gente escondia isso na roupa ou lugar, quando não dava para dispensar, ou quando eles achavam faziam a gente comer e era terrível.
P/1 - Você chegou a ser preso?
R - Uma vez tinha uma favela chamada buraco quente, nós estávamos nessa favela reunidos durante o dia, acho que não era nem meio dia ainda, e a gente estava fumando lá, conversando, e aí chegou a baratinha, não sei se vocês lembram da baratinha? Você não sabe? Era o carro da polícia que era o Fusca, era o Fusquinha, então a gente chamava de baratinha. E ela entrou, pegou a gente, e a gente nem percebeu que eles entraram, e aí eles levaram a gente para a prisão. Só que no meio do caminho a gente negociou com eles a nossa soltura: “quanto é que vocês querem aí para liberar a gente?”. Aí eu lembro que a gente na época deu 100 reais, 50 para cada um, só que era muito dinheiro na época, aí a gente saiu e tentou vender tênis, cada um tentou vender o que tinha, e eles ficaram com os nossos RGs, marcamos um ponto em frente à padaria, eles foram lá no horário marcado pontualmente, pegaram o dinheiro e devolveram o nosso RG.
P/1 - Você tem algum arrependimento dessa época?
R - Arrependimento, não. Eu tinha assim, me sentia muito culpado das coisas, porque a vida inteira tudo que a gente fazia a gente era errado, era culpado disso, culpado de várias coisas, e depois eu comecei a tipo assim, não aceitar mais isso, e achar que eu que sou o culpado de tudo, e aí eu comecei a buscar outras fontes assim de conhecimento, que falava ao contrário, aí eu comecei a ler muita coisa da Filosofia clássica, aí entrei na maneira clássica e comecei a enxergar um pouco das coisas que aconteceram e aceitar mais as coisas e não ficar me condenando o tempo todo, me criminalizando o tempo todo. E depois quando a gente foi se aproximando mais de algumas questões, a gente viu que na verdade, a gente era muito criminalizado o tempo todo, e a gente acaba acreditando naquilo, e você começa a achar que realmente você é culpado, que você é tudo aquilo mesmo. E eu não aceitava isso mais, aí foi quando eu comecei a me libertar um pouco, dessas culpas.
P/1 - Alguma coisa assim, do que você lê, tem alguma frase assim, alguma dessas leituras assim, que você tem na memória, pode falar assim?
R - Eu tenho uma hoje que eu guardo muito, diz assim: “Não há ninguém além dele”. Então se não há outro além dele, então tudo que acontece hoje não está sobre o domínio e controle dele. Então é difícil de aceitar isso, que você acreditar nisso com tanta barbaridade que a gente vê, porque a gente vê de tudo na vida, muita violência. E eu vejo que somos nós mesmo que fazemos tudo isso, acho que Deus é tão bom que não é ele que causa essas coisas, mas nós temos a oportunidade de nos armar ou de nos conhecermos, de contribuir um mundo natural, onde todos possam ter a oportunidade de desfrutar, porque eu vejo o mundo assim como uma mesa posta, um banquete, aonde estão todos os prazeres, e nós somos convidados e o Criador é o anfitrião, e o prazer dele é que nós desfrutemos de todos esses prazeres, só que nós queremos tanto esses prazeres para si mesmo, que às vezes, nós começamos a disputar esses prazeres entre nós mesmos, e acho que isso é para a gente aprender a dividir esses prazeres entre nós. Então eu carrego muito isso. Então eu acho que essa é a frase que eu carrego na vida.
P/2 - Você disse que começou a ler também dessa frase, dessa Filosofia, que é a tua marca, você lê outras coisas?
R - Sim, eu entrei muito em uma área espiritual, eu até comecei a ler. Teve uma época que eu me aproximei um pouco do protestantismo, dos neo pentecostais, mas aí eu acabei achando muito fundamentalista, muito moralista, e coloca uma carga muito grande em cima da pessoa, e aí eu não gostei muito disso, que isso fazia com que eu me sentisse cada vez mais culpado da situação. Aí eu comecei a ler um pouco, entrei na Nova Acrópole, fiz alguns meses lá, estudei um pouco de Filosofia, a maneira clássica. Então eu tive um pouco de contato com algumas coisas da maneira como os gregos viam o homem, um pouco daquela questão da tríade, e um pouco também da questão do budismo, e também um pouco de cada Filosofia assim dos continentes, do Oriente e os Ocidente, mas os antigos, mais voltado para a questão espiritualizada, a responsabilidade do ser humano em relação a tudo. E depois por fim, acabei também entrando no estudo da Cabala, numa Cabala autentica, Dr. Michael Laitman, inclusive até hoje eu ainda faço, tem um grupo na Paulista onde a gente se reúne.
P/1 - Hoje tudo para você então é órbita?
R - Olha, é uma necessidade que eu tenho, porque eu sou muito preguiçoso para estudar, eu estou querendo ser mais estudioso, mas eu sou muito preguiçoso, mas eu entrei em uma depressão tão profunda que eu perdi o significado da vida nessa época, e depois de ter perdido os vínculos com a sociedade, com a minha família, eu fiquei muito sozinho, me sentia muito sozinho, e aí tive um apego espiritual muito grande. Por conta disso eu comecei a ler e estudar tudo aquilo que está relacionado a isso, e acabou criando uma linha. Hoje na parte cristã, além de eu ter lido esses livros de Filosofia de uma maneira clássica, e ainda hoje estudo um pouco de Cabala, mas a minha fé mesmo, assim, a minha religião prática, ela é hoje o Cristianismo Ortodoxo.
P/2 - Da época que você ficou, Darci, qual era o nome mesmo do lugar que você ficou internado.
R - Era o Sanatório Sayão.
P/2 - tem alguma passagem assim, que você ache importante registrar, até como um momento assim, como era esse lugar? Até para a gente deixar registrado.
R - Nós éramos colocados em alas, eu vivia em uma ala aonde tinha mais pessoas com problemas de álcool e droga, e tinha uma ala que ficava do meu lado, que era uma ala que às vezes, me atrevia para ir lá e olhar o que tinha atrás daquela porta. Então tinha uma fresta na porta que eu conseguia enxergar alguma coisa, e as pessoas andavam nuas lá dentro, e aquilo me impressionava muito, e eu não sabia o que era aquele lugar, porque as pessoas andavam no pátio de um lado para o outro. Então eu tenho essa cena registrada. E tem uma outra ala que era feminina, só haviam mulheres, às vezes, reunia as alas dos homens, das mulheres, como tinha futebol. E outra coisa também, que entrava droga lá dentro também, entrava maconha lá dentro também, a gente comprava maconha a troco do maço de cigarro, lá dentro, do sanatório.
P/2 - Quem levava?
R - Era uma articulação que tinha lá entre os convivente, os enfermeiros e o tráfico lá do lado de fora. Então o tráfico entrava pela visita, era uma contravenção que era feita, quando estava chegando próximo da visita quem queria já comprava um maço, dois maços em troco de cigarro.
P/1 - E aí você comentou de visita, os seus pais iam te visitas lá no sanatório?
R - Meu pai quem mais ia, minha mãe não ia muito, porque eles diziam que a passagem era muito cara para ir os dois, ela ia, eu me lembro de ir duas vezes só, depois meu pai também não ia todo mês. E aí eu gostava até de ficar sozinho.
P/1 - Você chegou a ter alguém lá dentro, te ajudou a nortear, você tinha alguma confiança, você tinha alguém lá dentro?
R - Não, a gente passava o dia no pátio, e tinha a hora dos remédios, depois a hora do almoço, a hora da janta, de vez em quando você via o Psiquiatra, me fazia umas perguntas, nem me lembro o que ele perguntava.
P/2 - Tinha alguma atividade, ou só no pátio mesmo?
R - Era só no pátio, jogo de dominó, jogo de palitinho, bola, futebol, e tentava sobreviver lá dentro também, porque a violência lá dentro, entre os conviventes era grande.
P/1 - A saída de lá, por que se deu a saída do espaço?
R - Eu acho que cumpriu o tempo que eu tinha que ficar lá, que era nove meses, eu acho que eu não podia ficar mais do que isso, aí eles me soltaram e eu voltei para casa. E antes de eu ser internado eu lembro que eu tinha guardado uma bucha de maconha no armário, quando eu voltei aquilo já estava mofado, e eu tentei fumar aquilo, não deu em nada. A nossa questão hoje, a maioria das pessoas que são internadas hoje compulsoriamente, aí ficam nesse tratamento assim de abstinência, não funciona muito bem não. Eu realmente vim largar mesmo as drogas quando eu aderi o programa Redução de Danos.
P/1 - Ele foi depois que você saiu de lá?
R - Muitos anos depois.
P/2 - E o que você acha, você que viveu essa experiência, alguém dentro você fumava, continua fumando?
R - Sim.
P/2 - E por que você diz que não resolve esse tipo de internação, pela tua experiência?
R - Porque eu acho que não é um ato voluntário do sujeito, ele está sendo impedido de exercer a liberdade dele, e a primeira coisa que eu fiz quando eu saí de lá foi ir atrás, depois fui internado nas outras vezes, todas as vezes que eu fui internado foi de forma compulsória, a única vez que foi por vontade minha, que eu aceitei ir, eu fiquei acho que uma semana só, porque era evangélica a clínica, e eu disse lá no primeiro dia que eu era ateu. Ali eles acharam que não era bom eu ficar lá, porque eu era ateu, aí eles me mandaram embora para casa, e eu adorei isso.
P/2 - Darci, você podia contar um pouco as suas sensações, da sua relação com a vida, de você usar não sei se além da maconha outras substâncias, mas assim, contar um pouco essa experiência, que não é só usar, mas o que é a vida assim nesse sentido.
R - A vida ela é, digamos assim, porque eu não usei realmente só maconha, eu usei de tudo aquilo que tem acesso, droga barata, cocaína, craque, essas drogas baratas e que tem um efeito destrutivo, principalmente o craque, muito grande. Depois que eu comecei a usar o craque eu fui de vez mesmo para a rua, porque eu me tornei insuportável. Então eu acho que só condição de rua que poderia me aguentar. E aí a vida é assim, é como você tem dois pratos, como é que você equilibra, você sabe que na natureza tem coisas que você pode se matar, e tem coisas que podem te curar, então é o tempo todo você saber equilibrar isso, uma certa dose de veneno, por exemplo, pode te salvar, mas também em uma certa dose pode te matar. Então principalmente nesse mundo do tráfico, da droga, aquisição, vivendo nesse ambiente, um ambiente hostil, violento, você consegue encontrar algumas solidariedades, existe em todo o ambiente, por pior que ele seja ele tem aspectos bons, e você tem que saber identificar isso, quem está do teu lado, quem não está, quem está com você, com quem você pode fechar ou não, e tem aqueles lados de pessoas que são muito perigosas, porque são pessoas que você não pode bobear com elas, que a intenção delas realmente é te fazer mal, e tem que conviver com isso. Então todo tempo na vida você tem que trilhar um caminho de equilíbrio entre essas duas forças, negativas e positivas, que estão o tempo todo na natureza, essa dualidade. Então eu quando comecei a compreender um pouco do que eu sentia em relação ao que eu via ao meu redor, eu comecei a perceber de que essas realidades, a gente pode trabalhar, mudar ela de acordo com aquela decisão que eu tomo no momento. Então toda decisão que eu tomo ela vai ou me dar prazer, ou ela vai me dar sofrimento.
P/1 - Você falou que usou todos os tipos de drogas, o que você buscava, tinha alguma busca nessas drogas, ou não?
R - Um preenchimento, eu busquei um preenchimento, em um primeiro momento, quando a gente experimentou pela primeira vez, foi a curiosidade, depois aquilo se tornou uma dependência, e aí criou um vazio, e tive aquele momento de que eu fiquei completamente vazio, como um espaço, e não tinha nada para me preencher mais, aí eu comecei a passar por todas essas clínicas de internação, e aí aquela sensação de prazer que a droga me dava, ela me fazia me sentir aliviado por um tempo.
P/1 - E quando o efeito passava, como você se sentia?
R - Aí vinha o remorso, porque eu fiz isso, deveria não ter feito, deveria ter resistido. Mas às vezes, a carência é tão grande, e o meio onde você está é tão favorável a isso, que você não consegue viver aquela realidade se você não tiver drogado.
P/1 - E aí você comentou que você acabou indo para a rua, morar na rua por causa das drogas?
R - Eu tive que fazer isso, eu tive que tomar essa decisão, e de fato, porque a minha família já não me suportava mais, e eu também já não produzia mais, e a gente tem despesas em casa. Hoje eu acho que quando a assistência social, a saúde, tenta resgatar a pessoa que está em situação de rua por causa de drogas, outras coisas, e tentar aproximar essa pessoa da família, muitas vezes, não é a solução, porque a família não tem como arcar, e aí a pessoa que não produz, não colabora com nada, ela fica pesada às vezes, para a família. Então na minha situação, sem trabalho, sem emprego, sem renda, sem nada, foi difícil, foi meio que assim não tinha outra saída, eu tinha que ir para a rua, não tinha outra saída, eu não queria, mas tive que ir.
P/2 - Você lembra desse momento, assim?
R - Sim, lembro.
P/2 - Como foi a situação que acabou...?
R - Começou uma série de violências, por falta da compreensão pelo meu estado, primeiro, que causava todo aquele desiquilíbrio dentro da casa, e a violência também, da própria família, que fica também um estado de violência. E aí para a questão não piorar, eu resolvi realmente sair e não voltar mais. Aí eu fiquei de 2012, 2011, eu saí, e fiquei acho que uns três, perdi um pouco a noção, então acho que uns três, quatro anos.
P/1 - E você dormia na rua, então?
R - Eu fiquei uma época no albergue, depois fiquei na maloca, eu preferia ficar na maloca porque eu tinha liberdade de dormir na hora que eu achava que eu tinha que dormir.
P/1 - E as pessoas que transitavam nesse meio eram parecidas com você, como é que era a relação com as pessoas?
R - A gente buscava todo o respeito possível, porque nessas relações a gente tinha pessoas de todos os tipos envolvidas na rua, e é um ato de sobrevivência mesmo, você tem que tomar muito cuidado com quem você está se relacionando, você pode perder a vida, porque eu vi muitos que perderam a vida, muitas pessoas morreram na rua, e a gente não entende porque a violência é tanta desse jeito. Aí eu fiquei uma época assim, e eu tinha uns amigos, eu ficava mais em uma maloca onde as pessoas que ficavam lá elas eram alcoólatras. Então elas cuidavam de carro o dia inteiro, comprava umas garrafas de cachaça, e aí quando você está com uma garrafa de cachaça, os outros amigos bêbados tudo vem junto, bebem, vem, conversa, é teu amigo até enquanto tem a cachaça, acabou a cachaça começa a briga. E em um desses, aí uma vez ele tentou matar o outro amigo dele, o Paraná, o Paraná gostava muito de beber também, que saiu de casa por conta disso, veio do Paraná para São Paulo, não deu certo, caiu na rua, começou a beber, ficou alcoólatra. E todo dia ele cuidava de um ponto, ao lado do shopping de Osasco, e aí ele cuidava dos carros, comprava a bebida dele e era isso. E outro dia um outro amigo dele agrediu ele, tentou esfaqueá-lo, tentou quebrar ele na madeira.
P/1 - E você, como que você fazia para sobreviver?
R - Pois é, às vezes, eu fico me perguntando, o que foi que me garantiu durante todo esse tempo, entende, porque eu nunca tive um confronto, já tive alguns confrontos violentos na rua, e eu conseguia me relacionar com todos os lados, eu tinha uma certa diplomacia, e eu sempre me relacionei com todos eles. Então eu tinha assim uma certa consideração, um certo respeito, que eu sempre levei em conta, e aí por conta disso o pessoal tinha uma certa consideração, às vezes, eu tinha até uma certa proteção quando eu estava dormindo, que não sei como, mas tem sido assim.
P/2 - Quando você fala maloca, assim, como é?
R - A maloca? Pois é, a maloca, a maloca é praticamente aonde a gente dorme, onde a gente vive, com outras pessoas, e isso pode ser em uma casa velha que você acha na rua, ou pode ser uma marquise, ou de baixo de um viaduto, e aí você ficar por lá com aquelas pessoas comuns que geralmente são as mesmas todos os dias, quando muda é uma ou outra às vezes, que aparece, que você vê que ela pede licença para chegar, se pode, se não pode, tem tipo como se fosse a sua casa, aquele pedacinho ali. E aí tem sido assim o relacionamento familiar.
P/2 - Qual o lugar para entender melhor a relação, você vai criando uma relação com aquele lugar?
R - Você cria uma relação, porque você acaba conhecendo as pessoas no entorno, as pessoas começam a te conhecer, e aí você começa a fazer alguns trabalhinhos, as pessoas te levam doação, você começa a criar alguns vínculos no bairro. E aí quando chega gente nova no bairro às vezes, estranha, mas quem está há mais tempo no bairro você acaba criando um certo relacionamento comercial, às vezes, a pessoa precisa tirar alguma coisa de casa já chama aquela pessoa.
P/2 - E quando você tomou essa decisão, vou sair de casa, como é que aconteceu assim, a sua sensação, como que foi esse começo assim? Porque você não conhecia ainda. Como você falou, não podia se dar bem, vamos dizer assim.
R - O primeiro dia eu fiquei com muito medo, na verdade, eu confesso isso. A droga me deixava em um estado que a minha família perdia completamente o eixo de equilíbrio dentro de casa, eles ficavam completamente agressivos também. E aí quando eu vi que eu tinha que realmente ir para a rua, eu comecei a sair de casa sem nada, só com a roupa do corpo, e comecei a andar na rua, fui andando, à noite foi chegando, eu ficava vendo o que a rua tinha, que a gente tivesse um lugar para dormir, passava em frente de algumas malocas, via o pessoal dormindo em alguns lugares. Mas eu não me aproximava, só caminhava. Teve um lugar que dava atendimento à pessoas e situação de rua, o Centro POP, e estava fechado, lá no Piratininga, e já era à noite, tarde, eu não sabia que estava fechado, e cheguei lá, alcancei o lugar, mas não sabia ainda o que era, e fiquei por lá para esperar abrir, isso era à noite já, bem tarde, acabei dormindo e não indo. Aí no meio da noite uma pessoa me acorda e eu tomo o maior susto, e o cara com dois copos, estava com um copo de cerveja na mão e um drink, e outra com um drink na mão, e me acordando, me convidando para ir em umas festas lá na favela, uns sambas, uns negócios assim, eu falei: “Poxa, velho, não estou a fim não, eu estou legal”. Aí ele começou a contar que tinha acabado de tomar um quadro, estava com cinco papel de cocaína, teve que dispensar tudo, perdeu tudo, e ele já tinha cheirado, estava doidão, isso foi o primeiro contato que eu tive. E o tamanho do susto que eu tomei, aí eu perdi o medo completamente, aí foi a primeira pessoa com quem eu me comuniquei, aí ele seguiu o caminho dele, e aí eu fiquei lá até de manhã, eu sei que o POP não abriu, e aí eu não sabia o que estava acontecendo, aquela coisa toda, e voltei para o centro de Osasco. E aí comecei, as pessoas chegavam, começavam a conversar comigo, e aí eu conversava também, foi aí quando eu comecei a conhecer o pessoal que cuidava de carro, aí uma pessoa me convidava assim: “vamos lá para o maloca lá, dorme lá com a gente”, as pessoas começaram a oferecer, foram solidárias nessa parte, meio que eu fui assim tipo analisando onde é que eu poderia ficar, onde não era, aí tinham alguns lugares que eu falava assim: “Aquele pessoal ali é muito violento, isso e aquilo”. Então já comecei a entrar naquelas conversas, e aquilo foi usando como base para mim analisar onde eu deveria ir, onde eu não deveria. Então algumas coisas eu fui aprendendo é não falar de ninguém, mesmo que eu tivesse uma opinião própria, se eu tivesse que dizer alguma coisa teria que dizer para ela, e não falar dela para outro pessoa, e eu fui começando a pegar algumas coisas assim, porque eu via muito que de repente criava muita briga porque alguém falou, e ninguém sabe quem foi que disse, e aí criava muita briga por conta disso, e aí eu percebi que alguma das coisas já estava na hora de eu começar a aprender ali para eu poder me garantir.
P/1 - Nesse processo todo, os seus pais tentaram te trazer de volta?
R - Olha, eu não sei, porque na rua eu nunca vi a minha família, na rua.
P/1 - E a partir daí, como é que foi que se deu a tua entrada aí no movimento?
R - Então, o Centro POP, depois eu soube que ele foi fechado porque teve uma briga lá dentro, e eles quebraram tudo, e aí ficou 15 dias fechado, aí iria reabrir, aí quando reabriu eu fui no Centro POP, porque eles garantiam um café da manhã, um banho e um almoço. Então eu já sabia que em tal lugar eu teria isso, e aí todos os dias eu ia para lá. E aí tinha uma oficina, uma oficina de mosaico, eu comecei a participar dessa oficina de mosaico, e aí era o que me distraía, eu passava à tarde inteira dentro daquela oficina fazendo peças de vidro e mosaico, e comecei a fazer desenho na escola de artes em Osasco, e aí eu fazia desenho e passava o resto da tarde naquele lugar. Aí a Assistente Social começou a me acompanhar, aí tinha uma Psicóloga, e eu já estava entrando na época de redução de danos, eu já estava firme de parar com as drogas e tudo. Aí teve uma formação em Santos em 2013, Bertioga, no Movimento Nacional de População de Rua, ela me convidou, se eu gostaria de participar, aí eu falei, vamos, aí fui, participei lá três dias, e aí depois desse dia eu comecei a frequentar as reuniões do movimento, comecei a me informar a respeito, dos direitos da própria rua, de cidadania, aquela coisa toda. E achei legal isso, eu comecei a me interessar por isso, comecei a buscar, e hoje eu já estou no movimento já desde 2013, fui Coordenador Estadual do movimento, e hoje eu estou com uma coordenação estadual, e ainda é uma nova maneira de chegar, que a gente viu que é tudo uma questão social, e tudo que a minha mãe fez ela fez porque era a visão de América Latina na época, não era porque ela era ruim, nada disso, e que tudo isso pode ser mudado. Então hoje tudo que se tem hoje de política para a população em situação de rua, é um trabalho do movimento, da política nacional, Decreto nº 7053, foi conquistado com muita luta. A lei hoje, estadual, também, de São Paulo, pelo Carlos Bezerra, também foi uma conquista. O plano municipal também, que a gente construiu.
P/2 - Então, a gente já falou bastante do movimento, nesse período você disse que foram uns três anos, mais ou menos, quatro. Teve momentos assim, você contou como é o cotidiano, mas teve uma situação, um acontecimento assim marcante, provavelmente todos os dias eram marcantes, mas teve um especialmente assim que você lembra?
R - Então, uma coisa que eu tenho, dois marcantes, um positivo, que eu conheci uma menina que ela era muito minha amiga, ela fechava comigo em qualquer tempo, onde ela me via ela já me chamava, vamos ali, e tipo o dia que ela não tinha eu tinha, a gente era muito parceiro, eu e ela. E uma outra coisa também que me marcava muito, tinha um local atrás do mercadão municipal ali de Osasco, que sempre amanhecia alguém morto, alguém da rua morto, e várias pessoas amanheciam mortas, e a gente sabia do que era, era um mistério aquilo, porque ninguém sabia da onde que vinha, como é que acontecia, e aí a gente perdeu alguns amigos também. E era uma pessoa que tinha esse lado, sabe, esse lado dele era meio que a brisa dele, era essa, de violência em série. E a gente se conheceu, a gente mantinha, digamos assim, a nossa diplomacia, e isso marcou muito, você vê, perder muitas pessoas que estavam sofrendo ali, e morreram em situação de rua. Como uma amiga nossa também, recentemente também, uma mulher, levou 18 facadas de um Africano, assim que a pessoa se intitulava, Africano. Então isso marcou, são as duas coisas que eu tenho, essa amiga e esse lado que foi muito triste.
P/2 - Essa amiga você ainda encontra?
R - Nunca mais a vi, uma vez ela me levou até à casa dela, apresentou as filhas, que ela não vive com elas, mas de vez em quando ela vai, está com a mãe que cuida. E é uma pessoa bacana, sempre tenho boas memórias dela.
P/2 - E muitas pessoas, pelo o que você falou, é uma opção, porque ela vai, visita as filhas, volta. Como é que você chegou a passar alguma época do que se chama cracolândia hoje?
R - Eu visitei a craco. Quando eu conhecei a cracolândia, era não era o que é hoje, ela não era o que é hoje, ela estava ali perto da onde que é a Folha de São Paulo, ela ficava ali, porque ela não é só ali, existem várias cracolândias na cidade, é que essa dá mais visibilidade. Então eu estive lá já algumas vezes, conheci algumas pessoas, sempre tive excelente relacionamento com as pessoas lá. E uma vez eu cheguei lá, não conhecia ninguém, aí fiz amizade com um cara, o cara meio que se identificou comigo, a gente sentou junto para conversar, e ficamos usando, o cara meio que faz uma presença, trincou comigo a noite inteira no cachimbo, dividiu toda a droga que ele tinha, nós amanhecemos o dia trocando ideia, conversando, e eu estava duro, não tinha nada. E eu tive assim boas experiências, assim, um bom relacionamento, existe um lado muito humano, e existe esse lado também que é pesado, que eu acho que é aí aonde as pessoas pecam, sabe, esse lado violento da coisa.
P/2 - As pessoas pecam como assim?
R - Eu digo assim, por que as pessoas se agridem, se matam, às vezes, por pouca coisa. E tem um lado assim, que então às vezes, você encontra pessoas assim que fazem uso da droga, mas elas mostram o lado também fraterno, um lado assim de humildade, tem também isso.
P/1 - E quando você visita esse tipo de lugar, você procura mostrar alguma coisa para essas pessoas, você só vai como um neutro, ou você vai por tudo isso?
R - Eu vou vazio sem mostrar que eu sou algo ou alguém, eu me coloco diante dele como se ele fosse a pessoa mais importante, e de forma, eu nunca cheguei a ser maior do que ele, olhando de cima para baixo, eu sempre cheguei procurando entender o espaço que eu estou pisando, a gente segue o máximo cuidado de onde pisa, porque dependendo da forma que você chega, é muito perigoso.
P/1 - Mas como o movimento ajuda essas pessoas?
R - Assim, como a gente tem essa questão, essa vivência da rua, as pessoas já conhecem a gente praticamente, as que me conhecem, já só de olhar enxerga alguma identificação, passa uma energia já, e aí através disso a gente consegue tanto respeito como também ódio, porque tem gente que odeia também, mas a gente também consegue mostrar certo respeito também, porque o que a gente faz é uma luta por eles. A gente procura trazer um pouco da política pública, que consiga chegar até, não só a segurança pública, que vai lá para reprimir, ou a limpeza urbana que vai lá para tirar toda a sobrevivência. Porque o Estado é muito falho em relação, a pessoa hoje que perde o poder de compra, o poder aquisitivo, perde os vínculos com a sociedade, o Governo não consegue, porque não existe a política, existe a política, mas não existe à vontade, aí depende muito de quem está assumindo a gestão, se ele quer fazer ele faz, se ele não quer ele não faz. E aí a gente tenta fazer que não, acho que isso é um dever do Estado, e é um direito dele. Então a gente tenta garantir essa cidadania para ele, e eles percebem que a gente realmente briga por eles, porque na hora que eles perdem as coisas, a polícia vai lá, agride, sem o cara ter feito nada, sem ter dado nenhum motivo, não violou nenhuma lei. Então a gente também representa uma Defensoria Pública, o Ministério Público, e se ele também fizer alguma coisa, aí ele também vai sofrer as penalidades que a lei coloca. Se não for como o caso da menina que foi esterilizada, por exemplo, entrou várias ações, todos os movimentos de defesa dos direitos humanos entram no jogo, o CREMESP, o CRP, o Ministério. O carroceiro que levou um tiro porque estava com um pedaço de pau na mão, disse que se sentiu ameaçado, ele armado com dois. Isso daí a gente não aceita. A pessoa que está dando menino na rua, que não consegue emprego porque não tem endereço. Então esse tipo de coisa, a pessoa não consegue ter acesso à UBS porque ele está sujo, está cheirando mal, não quer atender, as enfermeiras ficam tudo se esquivando quando ele entra ali, que ninguém quer pôr a mão, ninguém quer chegar perto.
P/1 - Mas mudou alguma coisa da época que você foi para a rua, da época de agora, da rua?
R - Mudou bastante, o conceito, o que mais a gente tenta mudar é a maneira de pensar, então por isso que se cria muito seminário, muito congresso, livros, hoje as universidades estão envolvidas, muito TCC, doutorado, pós-doutorado, tudo em relação à pessoa em situação de rua justamente para mudar o conceito, não é mais aquele conceito do vagabundo que não quer trabalhar, não é mais o cara que é só porque ele é cachaceiro, o homem do saco. Então não justifica mais isso. E o cara que é, sei lá, bandido, não é mais isso, tem toda uma questão aí, um teste habitacional envolvido, um desemprego, aí vem toda uma história do desemprego, a história também de 13 de maio de 1988, que foram largados, eles foram alforriados, mas ninguém queria contratá-los para nada, e aí tem toda essa história que veio. Então a gente tem uma história aí de exclusão muito histórica, e aí a gente tenta mudar a mentalidade, porque a mentalidade que se criou de que era preguiçoso, vagabundo, não gosta de trabalhar, o brasileiro é preguiçoso. Então criou todo esse muito do brasileiro, a gente tem vergonha de ser brasileiro, e agora a gente está resgatando tudo isso, na verdade, não é.
P/2 - Você falou que a forma melhor para você, você sentiu que podia resolver o que você estava sentindo foi redução de danos. Fala um pouco como que você conseguiu, como que foi isso?
R - Como a gente fica viciado na droga, como a gente não a tem, a gente sente falta e quer. Então o que eu fiz? Quando eu sentia vontade eu usava até não aguentar mais, enquanto eu pudesse eu usava, depois dava aquele amortecimento no corpo, o corpo parava de pedir, ficava cansado, depois ficava uns dois, três dias, depois ficava uma semana sem usar, depois eu ficava um mês sem usar, e depois quando eu percebi eu não estava mais a fim de usar, aí simplesmente até hoje não sinto assim, aquela vontade de usar, toda vez que eu usava eu me sentia mal, porque é um retrocesso, retrocede tudo, quando você usa você vai muito, a gente cai muito. Mas eu tive as minhas recaídas, e as pessoas que me acompanhavam não me condenavam por isso, fazia parte do tratamento, não me sentia tão culpado como eu me sentia antes. E assim eu fiquei condicionado também, tipo assim, quando eu tenho dinheiro eu uso, quando eu não tenho eu não uso, fiquei um tempo assim, não podia pegar em dinheiro que dava vontade de usar, e usava, gastava tudo. Aí com o tempo eu simplesmente enjoei.
P/2 - Mas foi uma orientação do tratamento, como foi que você não quis?
R - Foi de mim mesmo, mas eu me identifiquei com esse conceito da redução dos danos, que você vai diminuindo o uso, sem traumas, eu fui me identificando com isso. Tanto é que eu não fiz isso pelo CAPS, eu fiz isso de mim mesmo através da ideia, do conceito, eu mesmo apliquei isso em mim e funcionou.
P/2 - E essa redução de danos é uma equipe, por exemplo, Psicólogo, Médico, que é envolvido, ou não?
R - No CAPS seria, se você está no CAPS, eu recusei o CAPS pelo fato de eles quererem me dar aqueles remédios, medicação eu não sei ter. Porque eu sempre questionei, por que o cara começa a babar quando ele começa a ir para o CAPS? Porque às vezes, o cara vai tentando acertar a dose, por isso que às vezes, você vai ficando com aquela cara de xarope, e aí eu olhava, via amigos meus que entraram, sabe, começaram a ficar com uma aparência horrível de doente mental, aquelas coisas assim, e aquilo me assustava. E aí como eu gostei do conceito, eu me recusei a ser tratado pelo CAPS por conta daqueles remédios, que eu não queria tomar aqui.
P/2 - Você anotou a Filosofia deles, porém, sem a medicação?
R - Sem a medicação.
P/2 - E você falou do mosaico, do desenho?
R - Do mosaico, eu fiquei no Centro POP.
P/2 - Essa parte da arte tem alguma história?
R - Então, eu comecei a fazer, comecei a desenhar, aquilo me ajudava um pouco na concentração, porque eu ainda sou um pouco disperso ainda, tenho dificuldade de foco ainda, o desenho me ajuda, o mosaico, todo tipo de trabalho que exige a concentração ajuda bastante.
P/1 - Você ainda pinta até hoje?
R - não, como eu fazia antes, no começo, não. Eu tenho vontade, mas ainda não faço. Esses dias eu até fiz alguma coisa, comecei a estudar leitura contemporânea, e não consegui entender o que é isso, porque você vai desenhando sem criar forma, você sai de todos os padrões, você pode até usar, mas é muito esquisito, eu não consigo ainda entender.
P/1 - Então assim, estou vendo você de um jeito diferente, quem é o Darci hoje? Falando assim de você assim, quem é você assim, você se definiria?
R - Fica difícil, eu estou tentando me conhecer ainda, saber da onde eu vim, o que eu sou e para onde eu vou, e o que eu estou fazendo aqui, ainda não consigo lhe dizer, responder essas perguntas.
P/1 - Mas você percebe que alguma coisa mudou do Darci de hoje, para o Darci que vivia na rua?
R - Mudou, eu acho que é justamente isso, é a conscientização, acho que é: “A verdade vários libertará”. Então quando você começa a ter consciência da situação, qual é a situação verdadeira, a gente tem mais condições de tomar uma decisão certa, quando se tem todos os elementos para isso, e eu tive, tenho hoje as minhas orientações, eu tenho pessoas com quem eu converso bastante, que me ajudam a tomar decisão, a última decisão é minha. Então eu diria que hoje o que eu faço? Eu hoje praticamente diria que sou um ativista, acho que seria isso.
P/2 - Vou voltar um pouquinho, a gente está falando de história de vida, a parte da escola, você falou que continha estudando, você fez o segundo grau também. Como foi essa trajetória, você foi direto, saiu e voltou?
R - Saí e voltei várias vezes, eu tenho muita dificuldade de concentração ainda. Então eu tenho dificuldade, eu entrei e saí várias vezes, não conseguia me concentrar, porque parece que eu fico ligado em tudo de uma vez só. E aí eu resolvi voltar agora, porque eu estou muito envolvido agora dentro da máquina pública, o nosso alvo hoje em dia é plural, e a gente tenta dessa forma a partidária, mas a gente não defende uma bandeira, posso até ter um pessoal, mas enquanto movimento a gente procura fazer com que a política aconteça, e isso a gente dialoga tanto com a rua como também com os governos, a gestão, o governo. E no controle social a gente tem que estar muito preparado, eu estou aprendendo muito dentro do controle social da questão do orçamento, das licitações, das percepções projetos do governo, das leis, essas coisas todas, e aí eu achei interessante se eu começasse a aprender alguma coisa de algo dentro da gestão pública, começasse a pegar informações. Aí foi através disso que eu achei que eu poderia. E aí eu comecei a buscar apoio, se eu for voltar a fazer vestibular, essas coisas todas, já estou velho, entrar em um cursinho, ficar um ano, dois anos. Então eu busquei um apoio, aí tem um pessoal que me apoia, que me ajuda a fazer isso, e daí eu acabei entrando dentro de uma universidade particular, só que não sou eu que pago, eu tenho um apoio que me banca dentro da universidade. E eu estou fazendo, esse é o meu primeiro semestre, depois de muito tempo. Então não está sendo fácil, você conciliar, e eu não consigo ficar dentro de uma sala de aula também. Então eu tenho que fazer isso por EAD, Ensino à Distância, pela internet, porque geralmente eu estou envolvido em algum lugar, quando eu não estou aqui eu estou em Brasília, eu sempre estou viajando o país. Aí por isso que eu escolhi essa opção de fazer, e aí eu estou buscando todas essas informações para que eu possa ter mais empoderamento do enfrentamento, porque o Governo é muito inteligente, ele maquia as coisas, ele é muito inteligente, sabe, se você não tiver os dados, se você não conhecer os dados você não tem argumentos mais contra eles. E enquanto Conselheiro, como eu faço parte de alguns Conselhos, a gente é muito responsável pelas políticas, principalmente o Conselho de Saúde, eu estou no Conselho de Saúde, então o que é aprovado no Conselho de Saúde a gente é responsável pela Política de Saúde do Município.
P/1 - A gente fez algumas pesquisas e viu o seu nome associado ao CISARTE. Como é que surgiu esse projeto?
R - Esse projeto surgiu logo depois que a gente conseguiu uma concessão do Viaduto Pedroso, o Viaduto Pedroso ele foi um albergue durante muito tempo, depois ele foi interditado pelo Ministério Público, o Ministério Público entendeu que o lugar era insalubre para as pessoas morarem, dormirem, e aí lá ficou sendo usado como um emergencial por algum tempo. E depois que a gente conseguiu a concessão, no governo do Haddad, a gente transformou aquilo na sede do movimento, só que a gente precisava dar uma função social no espaço, e aí a gente convidou um grupo de pessoas, a gente convidou a sociedade civil, convidamos as universidades, convidamos empresários, convidamos o Governo, e aí a gente propôs uma ideia de construir um projeto, no Centro de Inclusão, Integração pela Arte, Cultura, o Trabalho, Educação, aí nasceu a sigla CISARTE. E aí a gente até hoje, aí mudou o Governo, e a gente está lá hoje procurando se manter até aonde a gente é auto gestão, porque a gente faz, a gente não tem convênio com o Governo, mas o nosso primeiro ano de gestão foi muito difícil, mas agora a gente já conseguiu uma abertura com o Governo, um diálogo junto ao Governo, e a gente já está com alguns projetos acontecendo, aconteceram já vários projetos lá, e agora esse ano também, a gente está com um novo projeto, primeiro a gente começou com um projeto de economia solidária, e agora a gente está com um projeto de direitos humanos lá. E é aquela coisa, a gente passa a maior parte do tempo buscando recursos tanto humanos como financeiros para poder pagar as contas, manter tudo em ordem.
P/2 - Darci, conta para a gente assim, quando você foi convidado para ir em uma reunião lá do movimento, conta um pouco assim da sua sensação, assim, como que seria aquilo tudo. Como que você foi se engajando? De você mesmo, sabe, assim? Como você morava, como que foi que aconteceu.
R - Quando eu cheguei lá, primeiro foi na casa de umas freiras, que o espaço lá é uma casa de umas freiras que elas usam para locação de temporada, e elas liberavam gratuitamente para o movimento utilizar, e fazer a sua mansão. Então era uma casa muito bonita, sobradada, com varanda para o mar. Então aquilo ali já me fez bem, e dificilmente eu dormi em uma cama. Então só o fato de eu chegar em um lugar limpo, uma cama para dormir, um quarto só eu, e uma varanda para você sentar e ficar olhando o mar e pensando. Então era tudo distante assim para mim, eu entrava ali, mas aquilo parecia que estava muito longe, e depois nas reuniões a gente começou a conversar sobre a questão social, porque nós vivemos em situação de rua, porque estamos na rua, somos nós os culpados disso. E ou é uma questão social, uma questão que é imposta, luta de classes, aquela coisa toda. E isso daí eu comecei então a ver que a gente poderia mudar um pouco a situação, aí eu meio que assim, eu acho que eu achei alguma coisa para fazer, então vamos fazer isso. E o contato assim, fazia tempo que eu não ia perto do mar, e a gente estava com os técnicos também, a gente não ficava sozinho, a gente tem muita parceria que nos dão apoio, até a gente adquirir autonomia mesmo, até hoje tem muita gente que apoia. E aí eu comecei, lá não me senti mais só, falava assim: “Poxa, não estou sozinho mais, tem outras pessoas que estão com a gente”. E foi um encontro, acho que eu me encontrei assim com uma nova família, pessoas com ideias, não era violento, não uma ideia violenta, era mais uma ideia diplomática, claro que às vezes, a gente faz alguma expressão, mas é de muita pressão, uma pressão muito forte que é feita no Governo quando a gente precisa, mas a gente não tem o princípio de pegarem a arma, nada disso.
P/1 - Tem alguma história que te marcou, todos são dentro do movimento?
R - Dentro do movimento, nós fizemos um congresso agora, então a gente trabalha com população de rua. Uma coisa que ficou já registrado, a mediação de conflito, sabe, é muito difícil mediação de conflito, isso falando entre a própria população de rua, quase em todos os congressos que a gente fez, quando a gente reuniu o Brasil inteiro de população de rua, sempre há brigas internas, violência mesmo. Então uma coisa que eu percebo é que a gente tem ainda muito que aprender como lidar, mediar esses conflitos, tirar essa raiva e esse ódio que está na rua, isso é um grande desafio. Então eu percebo desde a primeira vez que isso é muito forte da pessoa em situação de rua, o ódio de tudo.
P/2 - O movimento, como que ele começou? A gente pode ver em outros lugares, mas da sua interpretação assim, sabe, o que você conheceu.
R - Ele começou a partir do massacre da Sé, ali foi naturalmente, a sociedade se rebelou naturalmente contra aquilo, foi como a queda do 01 de maio do prédio, do Paysandu, a sociedade se mobilizou naturalmente, começou a fazer bastante doações, foram tantas doações, que a Cruz Vermelha, a Prefeitura teve que dizer para parar, que ninguém conseguia mais guarda nada, porque era muita coisa, nossa, o espaço lá também chegou em um estado que um dia o caminhão de doação parou lá e queria descarregar, eu falei, não, aqui não cabe mais nada, só se a gente sair e vocês colocarem as doações. E como essa tragédia, com esse massacre, foi a mesma coisa, as pessoas se mobilizaram, São Paulo inteiro, isso foi a nível nacional, e aí o Anderson teve uma ideia, vamos criar um movimento, e aí criou o movimento relacionado à população de rua, primeiro era só aqui, São Paulo, passou para BH, vamos fazer o nacional, e aí o movimento está em 14 Estados, já está abrindo novas organizações, em vários outros Estados, estamos próximo de Amazônia, já estamos em Cuiabá, que a gente já está em todas as regiões, só a Norte que está começando um diálogo, na região Norte, mas a gente está em quase todos os países já.
P/1 - E quando teve o massacre da Sé você estava?
R - Não.
P/1 - Para você conhecer as pessoas?
R - As pessoas que estavam lá eu não conheço, conheço algumas hoje, que estavam, que viveram aquilo. Então o Anderson, o Sebastião, o Cain, todo esse pessoal da época.
P/2 - Eles eram moradores também?
R - Sim, todos, todos eles. Aí começou uma caçada, nem todos morreram ali, depois começou uma caçada, essas pessoas foram morrendo e eles foram morrendo, que essa Melissa caçou eles, quando eu encontrar vou matar, e aí isso hoje está sendo judicializado já em fóruns internacionais, porque não tem ainda ninguém nenhum culpado, não tem nada, São Paulo é blindado.
P/2 - E você falou que se encontrou como se fosse uma família assim?
R - Sim.
P/2 - Da tua vivência, esse movimento, ele tem bastante morador, pessoas que estão em situação de rua, ou que já estiveram, como é a sua sensação assim, desse movimento, de quem realmente participa, leva?
R - É a população de rua. O movimento é um regimento que ele diz que a coordenação do movimento, as pessoas têm que ter trajetória de rua ou em situação de rua, esse é a principal condição para ser da coordenação do movimento, e isso é muito difícil às vezes, de alguns apoiadores entenderem, porque eles vestem realmente a camisa do movimento, e fala, não, eu sou o movimento, e defendo o movimento, sou militante do movimento. E a gente se sente até lisonjeado com isso, mas criou-se esse princípio justamente para que a rua tivesse um protagonismo, tivesse uma voz, de não falar da rua sem a rua. E tem dado certo até agora, a gente tem os apoiadores, tem aquele apoiador que é só apoiar, ele não quer problema, ele quer saber o que a gente precisa, e tem aquele que quer participar, quer estar junto, quer discutir, pode também. Agora, ele não pode assumir uma cadeira no Conselho pelo movimento se ele não tiver a trajetória da rua, não, quando a gente faz as indicações, mas ele pode tranquilamente participar de uma associação com a gente, porque a gente precisa do elemento capital intelectual também, e às vezes, quem detém o capital intelectual nunca teve trajetória de rua.
P/2 - Mas tem também quem tem?
R - Tem também que tem. Tem que assim, cresceu praticamente com a gente, como no caso do Tomaz, o Tomaz nunca morou na rua, mas ele está com o movimento desde o começo, e o doutorado dele ele fez em cima da rua, e ele para da associação nacional do movimento também. Então tem gente que acompanha assim, conhece essa história assim profundamente, estuda.
P/1 - E hoje em dia você mora em que, apartamento, casa?
R - Então, hoje em dia a nossa principal bandeira é a moradia, nós estamos tentando trazer um novo conceito agora, de house first, esse conceito é moradia primeiro. Então existem vários tipos de modelos, de acesso às moradias, e house first é um desses modelos, é o que a gente acredita que é o mais viável por questão do brasileiro hoje. E aí a gente vai fazer um seminário agora em agosto para trazer esse tema, porque o que a gente quer é criar um nova cultura no poder público de como trabalhar com a própria rua, porque hoje a maioria tem dificuldade de entender que a necessidade da população de rua é justamente porque ela não tem moradia, eles entendem que é a questão da assistência social, é só uma assistência social que eles precisam, que a população de rua é uma coisa da pasta da assistência social. E a gente entende que é de todas, que é da saúde, que é da habitação, da educação, do trabalho, intersetorial. E a única maneira de a gente conseguir mudar isso é a gente começar a criar seminários, trazer informação, e começar a criar esse conceito, para que então consiga mudar a forma de pensamento. E deu muito certo, no Canadá, house first, em outros países.
P/2 - Um porquê para a gente deixar registrado.
R - É a moradia primeiro, depois que o sujeito tem, entrou na sua moradia, acho que todas as outras políticas podem ser então pensadas, mas é importante que quando eles saem de uma UGAS, de um CAPS, ou da saúde, ele tenha endereço para voltar, se ele está trabalhando ele tenha um endereço para voltar, para descansar, e não fica só dependente da questão do albergue, do Centro POP, porque o albergue hoje ele é difícil você hoje viver em um albergue, não dá mais, a situação hoje está represada. Então a gente tem 20 mil pessoas em situação de rua, e mais da metade disso está na rua e a outra metade está no albergue, então você tem vaga, em número está aumentando.
P/2 - No Brasil?
R - No Brasil, e todos eles vêm geralmente para São Paulo, e está vindo agora também imigrantes para São Paulo, e estão ocupando os mesmos espaços dos albergues da população em situação de rua. E não tem nenhum projeto de moradia. A Vila dos Artistas, o salário base que eles pedem, mil e 300 reais, a população de rua não tem mil e 300 reais para acessar um tipo de locação social como o da Vila dos Artistas, por exemplo. Então tem que se pensar em um novo modelo. Esse novo modelo do house first ele tem cinco princípios, que são as colunas do programa, então que identifica, não, esse é o house first por conta dos, não lembro todos agora, eu lembro o primeiro que é a primeira coisa que se oferece é a moradia para a pessoa, a partir daí você começa a pensar em outras políticas para ele.
P/2 - Assim, pensando na sua trajetória, você falou que tinha dependência da droga, mas tem outras pessoas em situação de rua que talvez não use. Fala um pouco assim da sua sensação, se você tivesse um lugar para morar, o que seria diferente ou não?
R - Eu fiquei dois anos morando lá no quarto da minha mãe, mas não é mais aquela mesma coisa, não me sinto muito bem à vontade ainda, talvez seja uma coisa que eu tenho que trabalhar muito em mim. Então hoje eu praticamente fico mais na casa da Rosiene, eu tenho um colchão de baixo da escada, e aí eu durmo lá. Ela fala para todo mundo que ela é minha namorada, e aí eu fico por lá. Por eu ter um lugar assim, como também na sede e no CISARTE, a gente acolhe algumas pessoas que ficam lá para tomar conta do espaço, para o espaço não ficar totalmente vazio, então eles cuidam do espaço à noite. E aí eu percebo que tanto eu como alguém que tem um lugarzinho assim para retornar, ele consegue se organizar melhor, e eu comecei a me organizar melhor também. Eu já comecei a me organizar quando eu fui para o albergue, quando eu estava no Centro POP, e no comecinho da minha trajetória no movimento eu já estava me organizando, mas você dormir na rua é muito ruim. Você às vezes, participa de alguns eventos, e esses eventos eles garantem a diária, aí você passa dois, três dias em um evento, dormindo no apartamento bancado pelo Governo, aí aquilo acaba e você volta para a rua, vai para a maloca, fica lá. Então você se desorganiza totalmente, e por experiência própria, hoje eu consigo ter uma organização melhor, porque hoje eu tenho esse amparo, hoje, por exemplo, tem lá um quarto que é lá na minha mãe, se eu quiser ir para lá eu tenho ele lá, e guardo umas coisas minhas lá, e na Rose também, eu sempre volto, eu sei que se eu precisar eu volto para lá, e tem vários outros lugares também, de amigas minhas, amigos meus, que é só eu falar, posso passar, vou ter algum evento, alguma coisa assim, estou indo para tal lugar, a pessoa já, não, você fica aqui. Então quando você tem esse retorno, é diferente de quem está só na rua, claro que está dormindo em uma calçada em um papelão, em cima de uns cobertores, e poder levantar cedo para trabalhar, primeiro a humilhação que você sente, aquele peso assim, porque é um peso assim que você sente, parece que você está com a cidade inteira em cima de você, é um peso muito grande. Então por isso a gente comprou essa bandeira, então é isso que a gente quer, moradia primeiro.
P/1 - E para onde você gostaria que o movimento crescesse assim, para onde você espera que ele vá nos próximos anos?
R - Bom, eu espero que um dia a gente não tenha mais necessidade de fazer movimento, é isso que a gente espera, que a gente não tenha mais a necessidade de fazer um movimento para garantir o direito, que não tenha mais pessoas em situação de rua.
P/1 - E me fala um sonho seu, assim, pessoal.
R - Um sonho pessoal?
P/1 - Sim.
R - Bom, acho que é esse que eu acabei de falar, que a gente consiga chegar um dia que não tenha mais população de rua, acho que o Brasil está na hora de ser um país, tem tudo para ser um país aonde todos tem o direito de morar.
P/2 - A gente sabe de você, quando você entrou no movimento, em sediar a nossa casa, e agora, conta um pouco assim como foi acontecendo, cada vez mais o movimento, como você chegou a ser Coordenador?
R - Sim. Então o Anderson ele foi Coordenador do movimento durante 13 anos, do movimento, aí o movimento foi crescendo, foi se organizando, criou carta de princípio, Regimento Interno, e por conta disso o Anderson meio que estava já me preparando para substituí-lo, ia passar o cajado para mim, e durante todo esse período participei de todas as formações, fui me inteirando nos assuntos, fui conhecendo a gestão. E aí ele me passou o cajado em 2016, essa aqui já é a minha segunda gestão já esse ano, são de dois em dois anos, só que agora nessa próxima gestão são três anos. Então daqui três anos a gente vai decidir quem que vai ser o próximo. E hoje a gente tem uma sede própria, apesar de que o prédio é público, mas a gente pretende ainda ter uma sede própria, a gente está construindo uma associação também. Estamos se dedicando muito em informação da rua, justamente pela questão da continuidade. E é isso que a gente está fazendo praticamente hoje. E a gente focou muito na assistência social durante todo esse tempo. Então a gente se sente muito responsável hoje, por toda a população de rua estar na assistência social, e agora a gente está focando mais fortemente na habitação, porque a assistência social ela está inchada, e não tem para onde mandar esse povo.
P/2 - Você lembra de um momento assim, nesses seminários, provações, que você teve alguma participação, que aconteceu alguma coisa? Sabe aquele momento assim que você nunca mais esquece?
R - Sim.
P/2 - Pode ter sido você ou outras pessoas, mas que foi assim marcante para você.
R - Então, a gente, deixa eu tentar lembrar aqui, o que eu estou lembrando agora é o teatro, tem o pessoal de Santa Catarina, de Alagoas, os Nordestinos são comediantes praticamente por natureza, principalmente Ceará, e aí esse pessoal resolveram fazer um teatro assim, improvisado, na hora, de como que é viver na rua, e transmitir um pouco disso através do teatro, como era tratado pelo poder público. E aí foi assim uma coisa assim inesperada, foi meio combinado assim na hora ali, porque o pessoal estava querendo saber como é que eles iam manguear as pessoas que estavam lá, e não saberia falar, vamos chegar lá e pedir dinheiro para o cara, você não vai fazer isso, poxa, que vergonha. Não, então vamos fazer o seguinte, a gente faz um teatrinho, e aí depois a gente passa o chapéu. Fechou. Aí fizeram o teatro, o pessoal bateu palma, aquela coisa toda, falei agora, passa o chapéu, aí o pessoal foi passando o chapéu, naquele dia a gente levantou quase 250 reais, e aí a gente fez um churrasquinho no final do evento.
P/2 - Como que acontece esse convite para outras pessoas assim, como que isso se dá para esse movimento realmente ser legítimo e crescer?
R - A gente tem alguns comitês pelo decreto, e a gente tem alguns fóruns também, com a participação do Governo e da sociedade civil, do movimento. E aí a gente constrói um seminário ou um congresso juntos, e quando é nacional aí a gente convida todos os Estados aonde a gente tem representação, e eles vêm tudo bancado pelo Governo, quando é aqui no Município a gente articula com a gestão, quando a gestão pula fora a gente articula com os Vereadores, empresas, sindicatos, sempre acontece assim o evento, porque é uma guerra o tempo todo, uma hora a gestão está do seu lado, outra hora está contra. E aí quando a gestão está contra, a gente tem o apoio do sindicato, quando a gestão está a favor a gente tem tanto do sindicato como da gestão, para poder fazer a discussão. E aí a gente convida pessoas, a gente convida muitas pessoas tanto da rua, que traz o depoimento, a vivência, como a gente convida também especialista da área, tanto para dar embasamento, a discussão, experiências também, para que a gente consiga criar mecanismo para poder subsídios para a política pública.
P/2 - Eu diria assim, as pessoas que ainda estão na situação de rua, como você faz com que elas se interessam, sabe, eles querendo realmente participar, você vai até à rua, alguém vai. Como se dá essa relação?
R - A gente não só vai na rua, que a gente conversa com eles, como a gente conversa com os equipamentos que dá atendimento, então a gente tem um relacionamento com todos eles, nós vamos fazer um evento tal dia, tudo isso bem antecipado, a gente procura envolver eles também, na construção, na participação. Dependendo se é muito distante, a gente procura ver se consegue uma condução, um ônibus, uma van, ou então talvez uma condução, para a passagem, para eles poderem participar. E em todos os eventos não pode faltar alimentação, é o primordial isso, para ele não ficar preocupado, que ele tem que almoçar, e tem que sair do evento para ir atrás de comida, atrás de café, essas coisas. Então a gente tem que ter garantido isso, é o principal atrativo. E aí através disso, quando a gente começa a discutir a questão do sujeito na rua, na calçada, sem trabalho, sem moradia, sem um atendimento adequado de saúde. Eles já falam, é isso mesmo, a gente não tem nada disso. Então como é que a gente vai garantir isso? O cara precisa ir no médico, como é que ele vai? Aí eles começam a trazer, quando chama a ambulância. Então a gente começa a falar de coisas que está no dia a dia, e isso prende a atenção dele ali naquele momento e aí a gente consegue fazer a discussão, e tipo, por que a rua precisa, o que a rua quer, o que pode ser feito.
P/2 - Tem muitas interações?
R - Surge, a maioria das ideias vem deles.
P/1 - Conta alguma coisa que talvez tenha partido dessas reuniões e foi implementado, assim?
R - A zeladoria, o decreto de zeladoria, os itens que não devem ser tirados da população de rua, pertences pessoais, documentos, cobertores, até papelão, que às vezes, o papelão, ele põe um papelão para evitar a friagem do chão. E não é para ser tirado nada dele que ele não indique que possa ser tirado, porque às vezes, para mim é lixo aquilo, mas para ele não é. Então um cobertor está velho, talvez, qualquer coisa, se ele disser que não é para tirar, que é dele, que ele vai pôr na carroça, vai levar, vai pôr na mochila, vai levar, não é para tirar. E isso foi construído junto com eles, mas mesmo assim a zeladoria ela respeita, quando ela vai ela vai e pega tudo e joga dentro do caminhão, e se levar algum pertence dele tem que lacrar e dar um protocolo, um lacrezinho para ele também, que as coisas dele foram lacradas, está indo para o depósito, e que ele pode ir lá retirar. Ela também não respeita isso, o decreto é uma coisa que foi criada junto com eles, isso é um exemplo.
P/1 - Vocês oferecem algum tipo de informação para essas pessoas, house first, também tem esse caminho para a pessoa buscar um estudo, alguma coisa assim?
R - Então, o house first ele dá primeiro o modelo de moradia para a pessoa, pensando depois em todas essas coisas que vou entrando, nós enquanto CISARTE, hoje a gente está oferecendo um curso de inclusão digital, a gente tem 14 computadores por classe, e um curso em direitos humanos lá, e economia solidária para geração de renda.
P/2 - A produção e economia solidária de geração de renda geralmente tem sido o quê?
R - O curso de economia solidária hoje, ele ainda não começou, ele vai começar mais ou menos em setembro ou outubro, o que nós já temos agora são algumas peças prontas, que são feitas em outro local, e a gente vai participar de algumas feiras culturais que vai começar pela cidade, a gente já está vendo uma proposta de uma banca ou na República ou na Praça da Sé, e talvez a gente consiga um prazo de um mês para a gente poder comercializar depois do evento. Então a gente está fazendo por enquanto, buscando essa alternativa.
P/2 - Peças que eles produzem?
R - Peças que eles produzem.
P/2 - Artesanais?
R - Artesanais. E aí tem bastante coisa, a gente não consegue ainda um campo assim para escoar isso, que a gente está vendo, tentando conseguir agora, e são peças de qualidades. Aquela bolsa que eu estou, não sei se vocês perceberam, é feita de retalhos de tecido, que seriam descartados, eles fazem bastante coisas, isso não tinha feito lá no CISARTE, é feito lá no Castelinho, mas são tudo feito por população de rua, são projetos parecidos, a gente foca muito na questão da geração de renda também.
P/2 - Por exemplo, você foi para a rua também no intuito de você não ter um propósito de vida, você acha que muitas pessoas que também estão em situação de rua, aconteceu esse momento de que foi para as drogas por não ter esse preenchimento, por não ter um propósito?
R - Sem futuro? Na rua também tem isso, a coisa de chamar ao outro sem futuro, dependendo do Estado em que ele se encontra, você já bate o martelo e fala, esse aí não tem mais jeito. Existe realmente essa baixa estima, a sua estima está lá no ralo, realmente você não vê perspectiva nenhuma, você já nasce em um ambiente sem perspectiva nenhuma, às vezes, você cria situações que te levam a ficar em um buraco sem saída. E encontrei alguma coisa para fazer a partir da rua, é com os catadores, que viram no lixo uma saída, até para São Paulo hoje, a reciclagem foi uma saída para São Paulo, e foi achada no lixo.
P/2 - Para as pessoas, em relação ao movimento, as pessoas que estão em situação de rua, quantos encontram uma atividade como na arte ou na educação, existe uma mudança no espírito delas também, em ter mais vontade de viver, e saber que ela pode mudar essa situação? Com apoio, claro, mas acho que tem uma coisa muito da pessoa?
R - Sim, ela começa a ter autoestima, ela se sente acolhida porque é feita com amor, você sente uma energia boa, produtiva. Há experiências que eu já ouvi de profissionais, que tem uma afinidade muito grande com a rua, de trabalhar artesanato com as pessoas e as pessoas sem memória, não lembra do que aconteceu, nem porque ela está na rua, e aquele trabalho de memória, e aquela conversa, ajuda as pessoas às vezes, ter flashs de memória, que ela vai construindo junto com aquele trabalho de artesanato, de concentração que ela está fazendo, e ela conseguir recuperar a memória dela. E traz toda uma esperança nova. O que demonstra bem claro, é que quando a gente se propõe a unir forças, a trabalharmos juntos, a gente consegue grandes realizações, do que quando a gente está sozinho, largado lá na rua sem perspectiva, gera muita violência, e quando a gente se propõe a buscar caminhos, os resultados são mais demorados, mas eles são mais produtivos, benéficos.
P/2 - Você acha que há necessidade do direcionamento, ou motivação?
R - Sim.
P/2 - De quem ou já saiu daquela situação ou quer ficar junto?
R - Sim. Quem passou por aquilo e está em uma situação de superação, ele é uma inspiração para quem está lá, e acha que não vai conseguir, mas é importante ele perceber que ele não está sozinho, que há construção de vínculo, uma construção de amor, uma construção de sentimentos ali. Quando ele consegue construir isso com uma equipe que quer dar suporte a ele, ele consegue se encontrar.
P/2 - Darci, a gente já está terminando, pelo tempo, porque a gente continuaria aqui bastante. Primeiro, você quer falar alguma coisa da tua vida, assim, da tua experiência, que a gente não perguntou, mas que você gostaria de contar? Da tua vida inteira, desde cria até hoje, alguma coisa assim que até veio na sua memória, mas a gente não te perguntou, e você gostaria de contar?
R - Agora assim eu não me lembro de nada, eu tenho um pouco de dificuldade, às vezes, também, de relembrar de algumas coisas, mas acho que não teria nesse momento.
P/2 - A gente já perguntou bastante.
P/1 - Como que foi essa experiência de contar um pouco da sua vida para a gente?
R - Foi interessante, porque eu acho que contando assim a minha vida, acho que foi a primeira vez que eu conto a minha vida sem que não seja dentro de um consultório de psicologia.
P/2 - Se você pudesse falar para a gente assim, uma pergunta que eu vou fazer que a gente não costuma fazer em história de vida, mas é um parêntese aqui, quando você falou que a pessoa, você, estamos ouvindo você, que você foi para a rua com eu tenho que ir, não dá mais para ficar aqui, eu tenho que ir. Aí você ficou e conseguiu depois buscar outra alternativa. Dá para você assim, traduzir um pouco isso, sabe, sintetizar esse movimento que você viveu, que muitas pessoas que estão em situação de rua têm essa trajetória, essa experiência, é difícil?
R - Isso daí faz parte também, dessa frase, que eu falei, não há outro além dele, quer dizer, tudo está no controle. O fato de eu ter descido aonde tive que descer, para mim parecia que era o fim de tudo, e não, eu acho que era o começo de tudo. Então eu tive que descer realmente, passar por onde eu tive que passar, eu acho que tudo que aconteceu com a minha família, com a minha vida, até as coisas que eu cheguei a ver, que eram as mais horríveis possíveis, isso fez parte de toda uma construção de uma realidade que eu tinha que viver. E o que eu aprendi nisso é que a nossa realidade é a gente juntos, nunca sozinho, você com pessoas você consegue mudá-la. Então eu percebi justamente isso, que a nossa vida é só uma vida de evolução, nós estamos aqui evoluindo, e dependente muito das nossas intenções, de trabalharmos. E as coisas estão muito conectadas, cada ação que a gente faz ela reflete uma outra reação, e é assim que a gente muda. Então eu baseio muito nisso, que hoje eu precisei de tudo isso para mim poder hoje estar aonde estou, para poder falar de experiência própria. E está sendo assim muito útil, porque muitas universidades procuram a gente, para criar pesquisas, e hoje até o relacionamento com as universidades mudou bastante, a gente não é mais assim, simplesmente uma questão de objeto de estudo, mas existe uma relação mesmo de construção, de participação, de contrapartida, e a gente fez até um pouco tempo uma experiência com a Universidade de Ohio, Mackenzie, o Mackenzie está abrindo bastante também, está difícil ainda de ter uma participação maior, porque Ohio geralmente quando eles vêm eles vêm com um pouco de recurso, dá uma contrapartida. As universidades brasileiras elas têm dificuldade disso ainda. E hoje eu fico até feliz de ver que a gente está começando a mudar um pouco esse modo de encarar a questão social, a universidade de enxergar um pouco não só como um objeto, mas o papel dela também, da questão social no meio da população.
P/2 - Fala o nome do movimento completo e a sigla, que a gente acabou não registrando.
R - Movimento Nacional de População de Rua, MNPR.
P/2 - E você quer fechar com mais alguma coisa? Que a gente vai encerrar agora.
R - Bom, agradecer a vocês todos, e a Deus, tudo.
P/1 - Uma pergunta que a Carol sempre faz, é como foi para você contar essa história?
R - Olha, é uma, digamos assim, uma oportunidade de retornar, acho que me ajudou também a retornar um pouco na minha própria história, então com certeza eu vou sair daqui com uma leitura diferente, a gente se enxerga um pouco, a gente começa a se olhar, se vê. E ver que é interessante, que o planeta está aqui, está girando, e a gente cria toda uma ilusão da vida, daquela coisa toda, e você ter uma oportunidade de fazer uma revisão assim do passado, é ver o quanto que a gente ainda tem para evoluir, a vida não para.
P/2 - Aquela ideia de equilibrar?
R - Sim.
P/2 - Que é o tempo todo.
R - O tempo todo, o nosso trabalho é esse é construir a linha do meio.
P/2 - Entre o quê?
R - Entre as duas energias, entre o que é bom e o que é mal, por isso não tem como ignorá-las, elas estão aí. Às vezes, o sofrimento e a dor, o bem e o mal, depende da nossa perspectiva, que eu achei que era ruim para mim, hoje eu vejo que eu tive que passar aqui, e aquilo tudo foi bom, talvez se eu tivesse ficado onde estava, talvez eu nunca teria encontrado uma saída, mas quando eu achei que eu perdi todas as saídas foi aonde eu encontrei uma. Então dependendo da perspectiva, foi bom ou foi ruim, depende de como a gente olha.
P/2 - Então está bom, obrigada, parabéns.
R - Valeu.
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