Projeto Ponto de Cultura / Museu Aberto
Depoimento de Ady Lúcia Addor Gilioli
Entrevistada por Ana Carolina Aguiar e Cláudia Leonor
São Paulo, 27/11/2007
Realização: Museu da Pessoa
PC_MA_HV088_ AdyAddor
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Paulo Ricardo Gomides Abe
P/...Continuar leitura
Projeto Ponto de Cultura / Museu Aberto
Depoimento de Ady Lúcia Addor Gilioli
Entrevistada por Ana Carolina Aguiar e Cláudia Leonor
São Paulo, 27/11/2007
Realização: Museu da Pessoa
PC_MA_HV088_ AdyAddor
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Paulo Ricardo Gomides Abe
P/1 – Então pra começar a entrevista, eu vou pedir pra você repetir o seu nome completo, o local e a data de nascimento?
R – Certo. Meu nome é Ady Lúcia Addor Gilioli, mas esse nome enorme eu não uso, eu só uso Ady Addor, eu nasci no Rio de Janeiro no dia 01 de dezembro de 1935.
P/1 – Qual é o nome dos seus pais Ady e o que eles faziam?
R – Meu pai é Arnaldo Augusto Addor, ele era químico agrícola e minha mãe era dona de casa e costurava pra fora também, era uma excelente costureira.
P/1 – Você era filha única? Ou tinha outros irmãos?
R- Dois irmãos, eu sou a caçula, o mais velho já falecido era Alberto Pereira Addor e o outro, Arnaldo Augusto Addor Filho e eu. Os dois são casados, os dois têm filhos, eu tenho três filhas, já sou separada.
P/1 – E me fala uma coisa, você estava falando da origem do sobrenome. Addor é...
R – A história que meu pai conta, porque eu achava meu nome muito feio, formava um cacófano muito feio, Ady Addor. E eu menina na escola o pessoal... Você sabe que criança não perdoa. Era um sarro só. Aviador, adjetivo, eu chegava chorando pra trocar o nome, porque meu nome de batismo realmente na certidão é Ady Addor.
Eu chorei muito, pedi pra meu pai trocar o nome e ele disse que o nome... Eu perguntava de onde tinha sdo esse nome. E ele o Ady ele não explicou nunca, porque segundo ele em Mato Grosso parece que tem muita Ady, eu não sei, eu conheço poucas. E o Addor é de uma família suíça/francesa de Genebra que seria Ador, a de ouro, mas a família parece que se desentendeu e se separaram e passaram a escrever com dois ds e juntaram o nome tanto que quando eu tive dançando na Suíça em Genebra tem uma Avenida muito importante lá chamada Gustavo Addor e Addor como se escreve o meu nome é igualzinho. Dizem que é parente. Eu olhei no catálogo telefônico e lá tem muito Addor mesmo, o sobrenome eu acho que é Silva (risos).
P/1 – Que ótimo, na Suíça.
R – É tem bastante.
P/1 – E Giliolli é de origem italiana?
R - Italiana é do meu marido, é o nome do meu ex-marido que eu não tirei, já devia ter tirado faz tempo, mas é que quando eu me separei as minhas filhas eram pequenas ainda e eu como fui muito gozada na escola por causa do meu nome, não queria que minhas filhas tivessem discriminação, porque na época mãe separada, desquitada, divorciada, não era muito legal.
P/1 – Era diferente?
R – Então eu deixei, fui me acomodando, fui deixando e fui deixando. E está lá.
P/1 – Conta um pouco pra gente como é que foi sua infância? Dois irmãos e você menina, como é que você cresceu no Rio de Janeiro? Qual era o cenário?
R – Olha, eu morava no Largo do Machado em cima do cinema Politheama, ao lado do Cine São Luís que foi muito famoso. Gente da minha geração sabe muito bem onde é e conheceu. Ele chamava-se Edifício Rosa, foi um dos primeiros edifícios, arranhas céus que foram construídos. E era exatamente em frente ao Largo do Machado que tinha numa ponta o ponto final de bonde e na outra ponta tinha a Igreja da Glória, não é Igreja da Glória é Nossa Senhora da Glória e não aquela do Outeiro da Glória. E do lado da praça tinha o colégio que eu estudei que chamava José de Alencar e na frente do José de Alencar do outro lado da praça o edifício. Foi uma infância muito gostosa, porque o Largo do Machado era o jardim da minha casa, era o quintal da minha casa e brincava de pega-pega, ia andar de bicicleta, de esconde-esconde, de casinha e de Tarzan e Jane, era tudo que a gente brincava ali. E eu tinha duas primas que moravam no mesmo prédio fora as amigas do prédio que a gente fazia no edifício lá. Eu morava no primeiro andar e uma das primas morava no terceiro e a outra no quarto e ali era a nossa... Como se diz as luluzinhas ali do edifício e meus irmãos eu me lembro que a gente conviveu pouco, porque eles estudaram. A gente brincava muito quando era pequeno, segundo minha mãe conta quando eu era menina bem pequenininha mesmo eu queria brincar com eles e eles não queriam brincar comigo, porque eu era chata, porque eu era garota, porque eu era mimada e eu queria. Até chuteira eu usei pra brincar com eles e era assim: “Lá vem ela, para tudo.” (risos)
P/1 – Eles não deixavam?
R – Mas ainda assim a gente tinha uma infância legal e isso é coisa de irmão mesmo, eu tinha minhas amigas, então eu não fazia muita questão. Depois eu comecei a estudar, eu tinha dez anos de idade e comecei a estudar balé,
eu já fazia muitas aulas. Eu tinha dez anos, eu entrei na escola de bailado de Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Eu fazia aula de manhã cedo e o colégio à tarde, com 12 ou 13 anos, eu até mostrei o programa pra você. Com 13 anos mais ou menos eu entrei no Balé da Juventude que era da Sede da União Nacional dos Estudantes na Praia do Flamengo, então eu entrei menina ainda, então eu já fazia o balé da Escola de Teatro e à tarde eu fazia na União Nacional dos Estudantes que era do Balé da Juventude. Isso porque na verdade eu estudei três anos de balé, meio empurrada.
P/1 – Não queria?
R – Eu queria, mas eu não queria acordar cedo, o meu professor era muito bravo, muito mal humorado, muito complicado. Eu tinha medo dele, mas depois que eu ia, eu gostava. E a minha mãe, a teoria dela era a seguinte: começou vai até o fim do ano, pelo menos, no meio do ano não para. Então eu estudei e fui pra... Segundo a minha mãe, acho que ela me levou duas vezes pra entrar na escola de dança lá, porque uma amiga dela falou que era de graça e eu tinha jeito, eu vivia dançando, eu vivia me fazendo de borboleta, eu não me lembro de nada disso. Mas enfim, que eu vivia de borboleta e que meu sonho era ser bailarina, então ela me levou e não me aceitaram porque eu não tinha idade ainda. Quando eu fiz dez anos, a idade certa era sete anos e quando me levaram acho que eu devia ter uns cinco, eu não me lembro. Passou todo esse tempo e me levaram quando eu tinha dez anos, eu passei e entrei, eu fiz uns meses e gostei e depois eu não gostei mais. A aula era cedo e o professor era bravo, eu tinha preguiça e aquela coisa, mas vai. Ela foi a primeira semana comigo, me ensinou o caminho, depois ela botava o passe na minha mão e me botava pra fora: “Vai”. E nessa época uma das minhas primas entrou comigo também, mas ela era fanática, ela adorava, ela passava pra me pegar de manhã e falava: “Vamos, vamos fazer aula”. Eu digo: “Eu hoje não vou, hoje estou doente”. Ela dizia assim: “Tchau, Aurélia, Manzinha não vai...”. Manzinha sou eu, é um apelido que meus irmãos me deram que era irmãzinha, mas eles me chamavam de Manzinha, então no Rio a minha família me conhece como Manzinha. “Manzinha não vai”. “Vai sim, espera”. Me botava o passe na mão e falava: “Fora.” E lá ia eu. Isso foram quase três anos, porque quando chegava no fim do ano eu falava: “Eu não quero ir mais”. Quando começavam as matrículas a minha mãe me chamava e falava: “Abriram as matrículas, você vai querer continuar ou vai parar? Porque se começar vai até o fim do ano.”
Eu gostava e falava: “Está bom, eu quero”. “Pensa bem se começar, não quero choramingação, você vai até o fim”. Eu fui. Então eu comecei em 45 e em 48, 49 eu estava no Balé da Juventude.
P/1 – Agora no Teatro Municipal qual era o método das aulas? Descreve pra gente como que era?
R – Era assim, era aula três vezes por semana a minha. Uma hora de aula de manhã às oito e meia da manhã e tinha um professor que se chamava Yuco Lindberg, ele era iugoslavo, eu não me lembro mais, era um homem muito bonito, mas era muito bravo, eu achava na época vai ver que nem era. Eu encontrei umas colegas da época e elas falaram: “Ele era ótimo, ele não era bravo”. Pra mim ele era muito bravo. E tinha aula todo dia de manhã, essas três vezes por semana e o método que eles davam, eu não sei te dizer que método era, eu sei que a gente aprendia bem. Então foram três anos com esse professor e
ele morreu, ele era meio esverdeado (risos), não sei se era de mau humor, ele era muito bonito, eu não sei se é alguma coisa de fígado, eu sei que ele morreu e eu passei pra uma professora chamada Gertrudes Wolf que não era considerada uma excelente professora, mas era uma pessoa dócil, gostosa, querida. E ela começou a me fazer gostar tanto que eu te mostrei a foto lá da aluna número um que ela botou no jornal sem me avisar, ela pegou uma foto minha, porque você vê as que estão do meu lado, uma é do colégio Pedro II e outro é do colégio Militar e a minha é da escola de dança, aluno número um. Que a nossa escola famosa Pedro II e colégio Militar eram de ensino bom. Eu fiquei toda orgulhosa, foi que eu comecei a gostar e foi que eu entrei no Balé da Juventude com uma das professoras da escola que era a Maryla Gremo. Eu já fazia aula de manhã, estudava de tarde e depois do colégio eu ia direto pro Balé da Juventude e depois eu ia pra casa pra fazer lição, porque tinha que fazer. E meus irmãos entraram no colégio Militar, então dessa fase a gente se via bem pouco. A gente saía, festinha de carnaval, bailinho no Clube Militar e essas coisas todas de adolescente da minha época eu fiz com muito gosto todos os bailes de piscina. Eu fui nadadora do Fluminense também, do clube lá de Laranjeiras, eu era nadadora e então domingo tinha festinha de baile na piscina com disco, aquele disco de 78 rotações, o baile na piscina que era uma delícia. E a gente dançava. Depois tinha festa de carnaval que era assim. Eu entrei na escola de bailado que são oito anos pra se formar e eu com 16 anos já passei pro Corpo de Baile, então eu já virei profissional com 16 anos, eu não cheguei a terminar os oito anos e já era profissional. Mas antes de entrar no Corpo de Baile do Rio de Janeiro, eu de menininha participava muito de óperas. Então eu dancei os Negrinhos, que bate os coquinhos, eu fazia co-passarinha, sabe o que é co-passarinha? São essas pessoas que fazem número em cena, por exemplo, nós éramos dez crianças. Ela dizia: “Você corre lá ajoelha e sai” e a gente entrava, ajoelhava, corria e saía. Você corre e fica olhando com a mãozinha pra cima, a gente fazia isso e isso tinha cachê, a gente ganhava cachê, eu estava na escola de dança lá e assistia as óperas com isso. Então eu vi Tebaldi, vi Dilly, vi grandes cantores, tinha uma cabinezinha que ficava em cima do palco, que radiava as óperas e era um único microfone pendurado lá de cima no meio do palco assim e o rapaz que controlava lá o som. A gente entrava na cabine dele pra ver lá de cima, então a gente via de cima as óperas. Então eu vi muita coisa lá de cima, teve companhia de dança que desde menina que eu vejo. Porque eu era da escola e o camarim era lá em cima do palco e quando tinha ensaio dessas companhias que vinham, a gente ficava olhando lá de cima. Então eu ficava vendo como amarrava o sapato, como ela vestia aquela roupa, o cabelo como ela amarrava e a gente queria fazer tudo igual. Tinham aquelas roupas que traspassavam e a gente comprava blusa e traspassava assim, mas tinha uniforme na escola não podia usar qualquer coisa, tinha o uniforme que tinha que usar.
P/1 – Como que era o uniforme?
R – Era de meia rosa e tunicazinha preta com o nome da escola e como a nossa sala ficava num anexo, o camarim era no teatro, mas a escola era em um prédio anexo e a gente atravessava a rua e subia. Então pra atravessar a rua tinha uma capinha. Então cada ano tinha uma novidade, era uma touca para o cabelo não sei o que lá, era uma rede para o cabelo não sair. A touca era horrível, você botava uma touca até aqui, amarrada até aqui em baixo, a gente olhava no espelho e falava: “Que coisa mais horrível.” Até a história do coque com a rendinha demorou. Tinha uma capa e nos últimos anos já não era capa tipo pelerine, era uma capinha com um botãozinho, a primeira era branca e depois a outra era azul. Eu passei para o Corpo de Baile, e no Corpo de Baile eu comecei a fazer aula todo dia e vinha a história. Tinha espetáculo à noite,
eu passei a estudar à noite pra terminar o ginasial à noite, eu tinha 16 anos e
tinha espetáculo eu não ia, tinha prova à noite eu não ia porque tinha espetáculo, resolvi parar. Quer dizer resolvi... Meu pai ficou horrorizado, eu vim pro Balé do IV Centenário, eu tinha acho que 18 anos, eu saí de lá e foi um crítico de dança que foi à minha casa com a ficha de inscrição falar com meus pais, eu já tinha dançado bastante solo, já tinha feito bastante coisa e tinha críticas bastante boas. E ele era uma das pessoas que sempre faziam crítica boa pra mim e levou a ficha de inscrição pra falar com meus pais porque eles deviam me incentivar a vir pra São Paulo que ia ser uma companhia muito boa, muito importante, um coreógrafo muito bom e que eu devia vir. Meu pai ficou meio... Ele disse: “Olha, ela vai largar um lugar...”. Porque eu era funcionária pública já. “Vai largar um lugar seguro para ir para um lugar completamente assim, onde está a segurança dela, onde estão as coisas?”. Ele falou: “Ela é funcionária? Ela pede licença lá. É Prefeitura também, faz um acordo de Prefeitura com Prefeitura e ela não perde o lugar dela, porque lá é para os festejos só do IV Centenário.” Isso foi feito, foi pedido, mas eu tinha que vir se a minha mãe viesse junto, porque uma menina de família não sai de casa sozinha, isso com 18 anos. Fui morar na casa de um tio, de um tio não, de um primo dele que eu chamava de tio Emanuel e que tinha duas filhas também que era na Lapa. Eu vim morar em São Paulo e achei um horror essa cidade, um horror que cidade horrorosa, que coisa horrível ninguém falava com ninguém na rua, não podia usar calça comprida, tinha que usar aquela meia que tinha risquinho atrás com salto alto de luvinha, coisa horrível. E a gente queria comer fora e menina não entrava sozinha em restaurante, então eu comia às vezes na Salada Paulista ali que tinha na... Não sei se é Ipiranga...
P/1 – Avenida Ipiranga, perto da Praça da República ali.
R – A gente tomava o ônibus quatros estações para ir para Florêncio de Abreu, então ali era o meio do caminho e a gente tinha hora de almoço...
P/1 – A Florêncio era onde vocês ensaiavam?
R – Onde tinha um estúdio maravilhoso.
P/1 – Deixa eu retomar só uma coisa Ady que eu fiquei curiosa entre os 16 e 18 anos. Você já estava definida que queria ser profissional da dança? Como que isso ficou...
R –
Eu já estava apaixonada, porque depois de três anos que eu entrei no Balé da Juventude eu comecei a gostar muito, eu queria fazer só balé o dia inteiro, só falava em balé, quantos passeios eu perdi, quantos churrascos e viagens e coisas de colegas que não eram do balé faziam, eu não podia ir porque tinha ensaio, porque tinha aula, porque tinha espetáculo. Eu gostei muito, eu já queria ser... Tanto que depois que eu voltei do Balé do IV Centenário, eu resolvi que ia viajar, porque na época tinham aqueles discos em 78 rotações que eram verdes e tinha os selos vermelhos que eram os discos importados que eram mais caros. E eu disse que queria pelo menos ir buscar o meu selo vermelho, porque se você estivesse estudado fora as pessoas te viam diferente. Então quando terminou o Centenário, eu voltei pro Rio e do Rio eu fui pra Nova York.
P/1 – Mas tinha assim alguma bailarina que te inspirava? Que você gostava?
R – Tinha, tinha bailarina, assim brasileira? Tinha, eu gostava muito da Beatriz Consuelo que era muito linda e eu sempre a vi dançar e Bertha Rosanova que não tinha um físico bonito, mas era uma excelente bailarina, em minha opinião ela dançava e tinha a garra da Tatiana Leskova que eu invejava aquela força, aquela coisa que ela tinha. E das bailarinas de fora tinha a Yvette Chauviré que eu gostava muito, tinha uma que a gente viu que era a Nora Key que também era uma bailarina que não era bonita, mas ela era uma grande atriz com uma técnica muito invejável. E uma que era muito linda de físico e se ouviu falar pouco dela se chamava Mariele Morian era uma bailarina americana muito bonita. E tinham aqueles filmes que a gente via. Da Moira Shearer que era o Sapatinho Vermelho, aquelas coisas que a gente via muito no cinema na época e os musicais todos que a gente tinha a Vera Helen. Eu não perdia um musical, então eu gostava muito, Sete Noivas pra Sete Irmãos que tem uma coreografia linda.
P/1 – Maravilhoso, o Fred Aster, Judy Rogers.
R – Mas eu era mais Jerome Robbins que era a coreografia de Amor Sublime Amor que é a West Side Story que é muito lindo. Então eu via todos esses filmes e fora as companhias que a gente via, que vinham Ópera de Paris que era Ivete Giviê, vinha o American Buriti, o Marques de Cuevas vinha muito com a Marjore Talichief que era uma bailarina boa também. Então... O Sergio D’farc vinha com a companhia, então eu acho que hoje o pessoal que faz dança clássica está muito prejudicado.
P/1 – Não tem acesso.
R – Não tem, tem vídeo que a gente agora não tinha na época e tem agora a facilidade de você ver grandes estrelas, mas não é o mesmo que você ver ao vivo e a cores ali com orquestra tocando. É muito gostoso, muito lindo. Então esse privilégio eu tive, aliás, eu estava comentando essa semana ainda com uma aluna minha: “Eu estou paga, estou no lucro, porque realmente não tenho que me queixar de coisa nenhuma, nada”. Mesmo o meu casamento que foi desfeito depois de 20 anos, os 20 anos foram ótimos. De repente não deu mais, eu sou muito amiga dele e hoje inclusive da atual mulher dele também, eu me dou muito bem com ela, é gente fina e minhas filhas educadas, crescidas, a minha casa, minha profissão que até hoje eu vivo. Com ela, eu não vivo dela só, mas vivi durante um tempo, hoje é porque eu diminuí muito o ritmo de aula, dou bem menos aula, mas a minha carreira foi muito curta, porque eu entrei em 51 no Corpo de Baile e parei em 61, quer dizer eu voltei do American Ballet Theatre em 61, eu encerrei. Então foram dez anos. É muito curta a carreira.
P/1 – Mas com muitas vivências.
R – Mas é uma coisa assim indescritível, é uma felicidade assim... Então as pessoas que se queixam da profissão, eu desse lado eu não vi, eu acho que só vi os... Eu só conheci o lado bom mesmo, eu sempre fui muito bem recebida em todos os lugares que eu dancei pelos colegas, pelos professores, pelos coreógrafos, pelo público, pela crítica. Não estou dizendo que nunca tive crítica ruim, já tive, eu não sou também aquela coisa que não erra nunca e não teve crítica, eu tive crítica até no meu álbum tem crítica ruim mesmo. Mas, contudo eu estive na Dinamarca e eu dancei Rodeio que é um balé americano, é bem típica, eu fiz uma cowgirl e a crítica foi assim uma coisa, fizeram um jantar em minha homenagem, porque eu era bailarina e atriz e eu sentei lá muito sem graça. Eu digo: “Falar aqui, eu não estudei arte dramática”. Eu fiquei meio... Mas foi lindo, tudo isso foi muito bonito: as recepções, a diretora da companhia que eu gostava muito, o Milloss mesmo gostava muito de mim também me dava muito carinho. Porque a gente era meio criançola, mesmo com 18 anos a gente ainda era muito criança mesmo. Muito carinho, muito respeito, então foi... Já a Tatiana Leskova também me tratou muito bem sempre, muita gente se queixa dela, mas eu não tenho queixa nenhuma dela.
P/1 – Ela era muito rígida?
R – Ela era rígida, ela era muito agressiva e no tempo que as pessoas ficavam meio humilhadas, era aquela coisa desagradável.
P/1 – Era aquela coisa da época também.
R – Da época.
P/1 – A gente ouve falar muito de outras grandes professoras.
R – Então era assim, você tinha que ser forte. Eles pisoteavam mesmo: “Você quer, vai ter que pastar”. Aguenta. Então esse lado também eu não conheci, porque as pessoas me trataram muito bem sempre, eu acho que se tivesse feito esse tipo de teste comigo, eu ia sair, porque eu não tinha essa... Eu me lembro de uma colega minha que dizia assim: “Quanto mais querem que eu quebre a perna, melhor eu danço”. Eu falei: “Se falarem isso pra mim, eu sou capaz de quebrar a perna” (risos). Deus me livre.
P/1 – Vamos voltar a tua chegada aqui em São Paulo, porque você disse que detestou a cidade.
R – A cidade era horrível, a cidade era péssima, onde eu morava, eu achava longe demais e em todo fim de semana nos primeiros anos eu ia pro Rio. Eu pegava o Pássaro Marrom, que era o ônibus, e eu e minha mãe íamos para o Rio ou então a gente ia de trem.
P/1 – Sua mãe veio com você?
R – Ah veio, ela ficou aqui deixou meu pai e meus irmãos lá porque meu pai impôs: “Se você for, sua mãe vai junto”. Ela veio, de vez em quando ela ficava um tempinho no Rio, mas ficou a maior parte do tempo aqui.
P/1 – E ela te acompanhava no seu cotidiano? Como que era isso?
R – Não, eu ia sozinha, era só pra constar que eu chegava cedo em casa e que não fazia nada de errado. Eu não tinha nem tempo de fazer nada errado. Eu chegava em casa exausta, morta, parecia que tinha passado um trator em cima do meu corpo e um rolo compressor em cima do meu pé de tanta dor que dava tudo. E tinha mais ainda assim, a gente tinha um horário, eram dois horários. De manhã e à tarde, tinha a hora de almoço que às vezes eu ia almoçar em casa e às vezes não. E, quando eu ia almoçar em casa, eu pegava o ônibus apinhado de gente e a gente usava aquela frasqueirinha quadradinha que era um inferno no ônibus. Você passava e a frasqueira ficava e todo mundo pisoteando no meu pé e você já tinha tirado aquele sapato de ponta e o pé já estava todo amassado e todo mundo pisando. Era pra ir e pra voltar esse sacrifício. A gente acabava resolvendo ficar por lá que era uma beleza que a gente ria muito e a gente sentava naquela sala de espera, porque tinha um barzinho e a gente ria muito. A gente foi muito companheiro mesmo, muito colega, mas aos poucos eu fui gostando,
eu fui diminuindo a ida pro Rio, eu já não ia mais pro Rio, eu já ficava mais calma aqui, eu já tinha feito amizade com o pessoal aqui. Eu estranhei muito porque eu tinha saído de uma companhia profissional com bailarinos muito bons dançando. E aqui eram todos estudantes ainda, o adiantamento não era profissional ainda, era tudo meio amador. Então eu estranhei um pouco no começo e falei: “Isso não vai dar certo”. Eu pensava: “Isso não vai dar certo. Esse pessoal é muito fraco”. Mas eu não tinha nada, eu olhava, pensava e falava: “Agora eu já estou aqui, agora vou até o fim”. A minha mãe já dizia isso: “Começou vai até o fim”. Quando a gente estreou, eu já estava respeitando muito minhas colegas porque... O Milloss também foi muito inteligente. Ele não fez nada que ninguém não pudesse fazer. Então ele fez as coreografias de acordo com as pessoas, ele tirou o máximo das pessoas, então isso foi bonito também. O progresso do pessoal, nós trabalhávamos muito. Foram dois anos de ensaio, eu chegava em casa moída, todo mundo chegava em casa acabado. Mas chegava no domingo a gente ficava agoniada porque não tinha ensaio. O que ia fazer no domingo? Sábado e domingo era horrível. Eu gosto muito de São Paulo, eu acabei me apaixonando por São Paulo também, cada vez que eu vou pro Rio eu fico uma semana lá e já quero mudar pra lá outra vez, eu falo: “Eu vou voltar.” Eu tenho um irmão que mora lá ainda. Tenho primos, tenho parentes lá, mas eu vou pouco porque esse negócio de ficar dando aula, trabalhando ainda pra ir de avião todo fim de semana não dá e pra ir de ônibus eu não vou mais. É uma longa viagem. E eu sempre só posso ir... Eu tenho que ir sexta após a minha aula e voltar domingo, porque tem aula de manhã segunda-feira e sexta eu dou aula até sete e meia da noite. Então não vale a pena. É bate e volta chegar lá sábado e voltar no domingo, então não está valendo muito a pena, mas de vez em quando eu vou visitar meu irmão às vezes, meus sobrinhos também. Eu tenho dois sobrinhos que moram em Recife e outro mora em Porto Alegre. Então fica uma mistura de sotaques que é o nortista, que é o tchê, sou eu que agora já sou paulista e meu irmão que é carioca. Então fica muito engraçado, a conversa fica muito engraçada. Eu tenho uma prima muito querida também que mora lá, mas eu vejo pouco, eu telefono bastante, mas eu já não vou tanto ao Rio, eu já estou paulista como vocês dizem lá vem ela “setenta, noventa”. Eu estranho agora o chiado dos cariocas. É muito engraçado.
P/1 – E, Ady, como foi o seu teste de seleção? Você já veio com essa indicação do crítico. Que ele te levou a ficha e tudo foi acordado lá entre seus pais que você viria e ter essa possibilidade de ser dispensada, mas continuar prestando serviço. Mas como foi seu teste?
R – Meu teste foi assim, eu escolhi uma avaliação que foi Prelúdio de Silves que não tem nada de brilhante de impacto. Muito suave que eu gosto muito até hoje, eu gostei muito de dançar e gosto de ver hoje ainda. Teve essa audição que foi a coreografia escolhida, teve uma improvisação e teve uma aula. Foram três dias e assisti algumas audições de algumas colegas lá no dia que eu fiz. E foi tranquilo quando terminou a audição, ele me chamou e disse que tinha gostado muito de mim e que eu era muito talentosa e que ele me daria um contrato de solista pra começar. Eu fiquei felicíssima porque no Rio eu era do Corpo de Baile ainda, embora eu fizesse solos o meu cargo era de corpo de baile e aqui eu já seria solista. Então segundo aquele crítico, o Osvald eu já teria dado um passo acima, eu achei bom e antes de estrear eu já tinha sido promovida a primeira bailarina e quando eu voltei pro Rio, eu já voltei como primeira bailarina. Então eu já dei dois passos acima. Aqui era uma companhia que era praticamente amadora eu já era primeira bailarina lá que seria como profissional eu já... Foi quando o Mancini voltou, o Leonide Mancini, ele já me chamou como primeira bailarina. Eu fiquei... Terminou aqui em 55 e eu fiquei 56 e em 57 eu fui buscar meu selo vermelho.
P/1 – A gente vai perguntar sobre isso. Como era o cotidiano dos ensaios aqui?
R – A aula era todos os dias, era uma aula puxadíssima de manhã.
P/1 – Quem dava? O Milloss?
R – A Maria de Lara e a Edith Pudel a maior parte das vezes.
P/1 – Era puxada a aula?
R – Puxadíssima, pesada inclusive. E um ensaio muito exaustivo também, porque era aquele famoso outra vez, outra vez e a perna já estava estourando e ela dizia: “Vocês estão bem cansadas? Então outra vez”. E teve um balé que eu dançava que era: As Quatro Estações que eu me lembro que era muito cansativo, eu ficava muito cansada, eu tinha câimbra nas pernas e nos pés, era muito cansativo, eu dançava muitos minutos seguidos. E eu ficava cheia de placas no rosto, no corpo, placas vermelhas de tanto esforço. E olhava no espelho e falava: “Gente, está muito”. Teve um dia que a placa não sumiu, eu já tinha esfriado, já tinha passado, já tinha descansado e as placas continuaram. Essas placas eram rubéola, eu estranhei muito deles não irem embora, porque todo dia eu ficava manchada de suor, de calor, de esforço, eu ficava cheia de placa vermelha no corpo e no rosto. Mas esfriava, passava. E esse dia não passou, eu fui expulsa: “Vai pra casa, desaparece e não vem mais aqui até sarar tudo isso”. Porque imagina se eu passo rubéola pra companhia inteira.
Foi um inferno, porque
eu não podia... Porque rubéola você não sente nada e tive que ficar em casa de castigo e querendo que passasse rápido pra poder voltar. Mas não adianta, tem aquele tempo e você tem que esperar. Eu telefonava pras pessoas pra saber e as pessoas me telefonavam pra contar. Mas esse balé era muito puxado e tinham algumas que eu gostava muito de dançar, o Vale da Inocência e Indiscrições que era Noiva de Branco, esse balé eu gostei muito de dançar. E eu fui muito feliz também no Balé do IV Centenário, foi muito bom, foi um aprendizado e tanto.
P/1 – O que o Milloss trouxe... A experiência dele da Europa, da Itália, da Hungria pra cá? Pro Balé do IV Centenário?
R – Pra mim o que trouxe foi o seguinte, como ele fazia... Porque no Rio quando a gente dançava, quando eu era pequena, eles montavam a coreografia ou remontava a coreografia e não te falava absolutamente nada. Você não ficava sabendo o porquê daquilo lá, porque pra mim era assim pra eu dançar gostoso eu tinha que estar contando alguma história. Então quando as pessoas falavam de George Balanchini as coreografias que eu conhecia dele, eu não gostava porque era muita técnica, era como eu o via e não é assim, ele tem O Filho Pródigo, que é maravilhoso. Ele tem algumas coreografias que não são só técnicas, mas as coreografias que eu conhecia dele eram só muita técnica e muito difícil, eu gostava mesmo do American Ballet Theatre que tinha histórias contando, então eu inventava a minha história. Então o Milloss quando veio, ele botava música pra gente ouvir, ele contava qual era a ideia dele, ele contava se aquele corpo de balé já tinha sido feito por alguém e qual teria sido a concepção daquele coreógrafo, qual era a dele com respeito a essa música e o trabalho que ele queria fazer. E então tinha história pra contar e tinha respeito de explicar para o bailarino o que ele ia fazer. E a parte teatral também, tinha o Mandarim Maravilhoso, aquelas coisas fortes e foi um trabalho muito de grupo também que a gente sentia como bailarino clássico que era tudo muito individual, era tudo muito: “Eu tenho que estar legal, eu que faço, eu sou a primeira bailarina, eu sou a estrela.” Então esse negócio também me incomodava muito, eu sei que tem hierarquia, gosto da hierarquia, respeito a hierarquia, mas tem horas que você fala: “Não está sozinho.” Uma primeira bailarina na frente sem o corpo de baile é bem diferente.
P/1 – Não é nada.
R – Não é nada.
P/1 – Bom, então a gente estava falando do cotidiano dos ensaios do que o Milloss trouxe.
R – Isso, ele trouxe tudo aquilo que eu falei. Aquele respeito, aquela seriedade, aquele trabalho de interpretação, de coreografias diferentes que não eram clássicas puras, o balé clássico puro que ele fez aqui foi o Vale da Inocência.
P/1 – É o mais clássico.
R – Foi o mais clássico dele, o mais assim reconhecido se bem que todos eram clássicos, porque Indiscrições era clássico, Quatro Estações era clássico, mas tinha outro caminho, a maneira como ele fazia as coreografias também. Eu lembro que ele queria que fizesse em Quatro Estações um passinho impossível que é possível, mas arriscar fazer em cena foi o Te Em Dedan, ele ficou louco, eu acho que ele nunca fez isso pra saber a dificuldade que é nas pontas, eu até tentei uns quatro e falei: “Não vai dar, não”. E ele mudou. Ele respeitava, ele dizia: “Eu quero que faça assim, vê se é possível”. E às vezes a gente dizia que estava muito difícil e ele dizia: “Mas é possível, então isso fica.” E aquele passinho lá eu falei: “Isso não vai dar”. Ele viu a dificuldade. Nem ensaiando muito aquilo ia me dar certa segurança em cena, ele falou: “Então não precisa.”
P/1 – E essa parte que ele dava a liberdade do balé de criar, dessas improvisações como era isso?
R – Eu sei como ele fez comigo, eu não sei como ele fez com os outros bailarinos lá. Pra mim era estranho, porque pra mim lá era tudo mastigado, era aquilo que você tinha que fazer porque a coreografia era assim, assado. Tiveram coreografias montadas também. Mas já eram feitas por outra companhia que ele remontou aqui, então ela tinha que ser aquilo e o Milloss ele estava buscando ainda o que as pessoas podiam fazer, o que as pessoas... Isso foi comigo, eu não sei como foi com as outras bailarinas, porque nós éramos quatro primeiras bailarinas. Comigo foi assim, ele mostrava a coisa, pedia e via se era possível, se dava pra fazer, às vezes a gente dizia: “Está muito difícil”. E ele dizia: “Mas é possível, então faz”. E foi tudo possível, nada do que ele fez foi impossível. Então ele contribuiu não só com os bailarinos, com todos nós que passamos pela mão dele e temos uma lembrança muito boa, mas com o público também. Que viu coisas diferentes, que viu... Olha, eu nem sei como te descrever o negócio, porque eu sei que quando eu estava no American Ballet Theatre, eu contei pra uma diretora em uma das viagens que a gente estava de avião, eu sentei do lado dela, sobre a estrutura que tinha no Balé IV Centenário e ela falou: “E isso acabou? Esse é o meu sonho, como vocês conseguiram isso e não deram continuidade?”. Eu falei: “Não sei te explicar, mas acabou”. “Vocês tinham tudo ali num lugar só?”. Porque tinha sapateiro, peruqueiro, costureiras, camarim, sala de aula, sala de ensaio, tinha tudo.
P/1 – Lá no prédio da Florêncio de Abreu?
R – No prédio da Florêncio de Abreu. Então você ia provar a roupa e voltava pro ensaio, você ia provar a bota que ia fazer e estava lá o Navarro fazendo. A máscara que ia usar estava lá fazendo, então era tudo muito... Foi uma estrutura muito bem feita, muito bem organizada.
P/1 – E, Ady, em 1953 o ano vai passando, vai passando, quer dizer 54. O ano passando, passando e a estreia? O Teatro Municipal que a reforma nunca acabava como é que foi ficando o clima assim com vocês? Como é que vocês foram pensando?
R – Foi ficando angustiante mesmo e a gente chegou... Eu cheguei a achar que não ia dar, não ia ter, não tinha teatro e ele fez um negócio muito grande, era pra muita gente.
P/1 – Era pro Municipal.
R – Era pro Municipal, não cabia em qualquer teatro, ele resolveu... A gente foi pro Rio primeiro.
P/1 – A estreia foi no Rio mesmo?
R – Foi no Rio mesmo, a gente teve o Pacaembu que foi uma transformação que você olhava... Quando a gente entrou falou: “Que loucura dançar aqui, como pode?”. E de repente a gente voltou, lá tinha um teatro montado. Foi inacreditável o que ele fez.
P/1 – Descreve que aconteceu?
R – Olha, era um teatro num estádio de basquete, eu sei lá o que era aquilo lá com cortina, com pano, com poltrona, com carpete, com palco, com tudo. E era um palco grande. Olha, foi bonito lá, eu tenho muita pena de não ter...
P/1 – Ninguém dizia que era um ginásio de esportes?
R – Não, como funcionou o ingresso, o lugar isso eu não sei. Eu sei que eu dancei num teatro, era um teatro aquilo lá, foi impressionante a transformação e foi lá que a gente fez o ensaio de luz que durou a madrugada inteira. Ele mandou a gente vestir as roupas e ficar de pé no palco pra ele ver a iluminação, às cinco horas da manhã a gente estava lá ainda, aquilo foi maldade, aquilo foi pura maldade, você não podia sentar porque não podia sujar a roupa, não podia amassar a roupa e tinha que ficar: “Anda pra cá, anda para lá.”
P/1 – Fazia a marcação toda?
R – Pois é. Tinha uma hora que a gente falava: “Está apertado isso aqui”. A gente não aguentava mais, os pais desesperados porque os filhos não chegavam em casa. Saía pro ensaio e às cinco horas da manhã não estavam em casa ainda. Não sei aquilo foi um massacre, mas ninguém reclamou, pergunta se alguém reclamou alguma coisa? A gente ficou cansada, mas não tinha rebelião. Como a gente está aqui desde as seis horas da tarde e são cinco horas da manhã e a gente está aqui ainda, ninguém reclamou nada. Eu nem lembro o que a gente comeu, se a gente comeu, eu nem lembro mais, a gente bebia água, porque não tinha nada pra comer, eu nem me lembro o que a gente comeu, acho que a gente não comeu mesmo. Ficamos lá de pé mesmo.
P/1 – E, Ady, e a estreia vocês dançaram três ou quatro coreografias.
R – Ele fez um balé especial que foi Ilha Eterna que foi lindo, eu fazia a Diana e depois tiveram outros balés que pra te dizer a verdade eu não me lembro mais dos outros, eu nem me lembro mais. Eu me lembro de Ilha Eterna que ele fez umas estátuas gregas no fundo e a gente ficava toda pintada de branco com uma peruca de gesso branca e os camponeses dançavam na frente e a gente ficava atrás, os Deuses lá. Eu era a última a sair, eu ficava até com câimbra formigando, imagina você sair pra dançar com aquilo lá, eu era a última a dançar. Mas foi bonito, eu saía dura e me sentia a estátua quebrando pra dançar, porque eu ficava imóvel, a gente nem piscava. Tanto que quando a primeira começou a mexer que eu acho que foi a Edith o povo fez assim: “Ah”, porque eles acharam que era cenário mesmo. Então quando a primeira começou a mexer foi um: “OH” do público,
depois eles sabiam que as outras vinham, mas eu era a última dura segurando aquele arco da Diana com a flecha. Dava câimbra de ficar parada, o pé formigava, mas foi um balé bonito, bem bonito só dançou também no Pacaembu e depois não dançou mais.
P/1 – E a recepção do público?
R – Nossa! A mais maravilhosa possível, muito bem recebida, aplausos, bravos. Foi uma surpresa pra nós também que ficamos até assustadas com o sucesso. Bom, eu também era assim, aquele aplauso, o teatro apinhado de gente e fila do lado de fora pra comprar ingresso, o negócio... Você já leu alguma crítica, não leu?
R – Todas. As críticas foram muito boas também.
R – Muito boas, de crítica escrita e de público foi um negócio assim que a gente se sentiu muito importante, muito gratificada, porque foi um trabalho duro. A gente até merecia esse sucesso todo que foi um trabalho bem duro. É que já faz bastante tempo as coisas vão... Por isso que eu acho o trabalho de vocês muito importante. Porque cada um vai lembrar um pedacinho, vai juntar as pecinhas e você vai ver o negócio realmente como foi, porque muita coisa eu já esqueci mesmo, já diluiu mesmo. É só aquela lembrança do trabalho que fica, porque foi muito marcante o dia-a-dia, mas o resto vai diluindo mesmo. São muitos anos, então a coisa vai. Eu sei que teve uma temporada que eu gostei muito que foi no Teatro Santana, que a gente também dançou muito todas as coreografias ali. O teatro era muito lindinho, até hoje eu não entendo porque derrubaram aquele teatro. É aquela coisa de memória. Quer botar o prédio ali e tira aquela porcaria de teatro velho dali que está atrapalhando, tira da frente. Mas foi uma temporada muito gostosa.
P/1 – Na temporada do Teatro Santana, o Milloss já tinha ido embora.
R – Já tinha ido embora, mas foi muito boa aquela temporada.
P/1 – O Milloss não renovou o contrato? O que você acha que aconteceu?
R – Na verdade, eu não sei o que houve, ele ficou desgostoso com alguma coisa que aconteceu que eu acho que foi interrupção mesmo. Porque ele viu que ia acontecer e que não ia dar continuidade, eu realmente não sei o que aconteceu.
P/1 – Mas vocês foram se despedir dele? Acompanhá-lo em Santos.
R – Fomos.
P/1 – É uma curiosidade minha até, como que ele estava? Como ele via a saída dele? Ele chegou a falar? Conversar com vocês?
R – Não, a saída dele... Ele sentiu que a missão dele tinha sido cumprida. Eu sei que a gente tinha contrato pra dançar em Nova York, pra dançar na Argentina e ele acho que deve ter ficado muito magoado com tudo isso também. Então como era para os festejos do IV Centenário, ele fez e não quiseram dar continuidade. “Não tenho mais o que fazer.” Então: “Eu fiz o que tinha que ser feito”. E feito e foi embora. A gente achou até que ele ia voltar, mas não deu retorno, não. Não voltou, não.
A Lia Dell’Ara assumiu durante um tempo e eu voltei pro Rio.
P/1 – Você também achou que era o momento de voltar? Ou o tempo de disponibilidade estava acabando?
R – Já estava acabando a companhia, já tinha mesmo acabado. Eu voltei pro Rio, então foi... Eu acho que ele foi se sentindo com a missão cumprida. “O meu papel foi feito e daqui pra frente não querem mais mesmo”. Então ele foi embora, mas ele foi bem, ele estava bem.
P/1 – Não tinha mágoa?
R – Ele era bastante vaidoso também, ele viu todo mundo lá se despedindo, bajulando ele e aquela coisa, ele foi bem. Eu acho que ele foi bem, eu não consigo lembrar se ele falou... Pra mim ele não falou nada, não. Ele só disse que ia embora e que a missão dele estava cumprida e a gente foi se despedir dele lá.
P/1 – Agora falando mais da personalidade dele, quando ele chegou aqui no Brasil, como ele se comunicava com vocês? Como é que...
R – Ele falava italiano e contava os balés todos em francês, isso foi muito engraçado, porque depois do primeiro mês, estava todo mundo contando a música em francês, até oito todo mundo sabia contar. Eu me lembro de Passacalha que foi o primeiro balé que ele montou e era rápido e todo mundo contando em francês alto ainda pra entrar a música e eu achei muito engraçado, o pessoal aprendeu a contar música em francês e ele falava italiano com a gente. A gente se entendia muito bem, porque a Dell’Ara também era italiana. Então tinha ela que era italiana, ele era húngaro, mas falava italiano e falava francês também, tinha a Edith Pudelko que era brasileira, o Ismael era argentino, o Raul era uruguaio, eu era estrangeira também, porque eu era carioca, tinha sotaque. E a gente se comunicava... Olha, pensando bem agora, era engraçado, porque era italiano mesmo que ele falava com a gente.
P/1 – E ele se fazia entender?
R – Completamente.
P/1 – Tinha algum momento que ele ficava nervoso e que ele...
R – Ah, nervoso ele ficava muito, qualquer coisinha ele ficava nervoso. Ele sentava de cócoras, ele não sentava na cadeira assim igual a gente, ele botava os dois pés em cima da cadeira e sentava de cócoras em cima da cadeira e fumando, aquela piteira no canto da boca e quando ele ficava bravo até espumava, mas ele era... Eu não sei, eu o vi ficar bravo mesmo, acho que umas duas vezes: uma vez foi a roupa que ele achou que a costureira fez mal, ele brigou, eu nem entendi o que ele falou, brigou, brigou, pegou a roupa e rasgou na frente dela, o tecido importado.
P/1 – Era o que tinha na época.
R – Era tudo importado e aquela costureira que tinha vindo também da Itália. E ele rasga uma roupa dessas assim na maior, mas ninguém falava um “A”. A gente só se olhava assim pelo canto do olho, o negócio está bravo. E uma vez que eu também não sei por que, era a tal história do cinzeiro, eu não sei o que foi que ele viu ali que ele tacou o cinzeiro, era pesado, um cinzeiro de ferro e jogou lá... Eu me lembro, eu vi que naquela reunião que a gente teve. Alguém contou diferente, mas na minha cabeça foi assim, quando a gente viu que o cinzeiro vinha vindo, a gente abriu espaço. O cinzeiro passou e a gente fechou outra vez a linha, não pegou em ninguém, mas ele jogou pra pegar mesmo se a gente não fica esperta. Então foram as duas vezes que eu me lembrava, ele era muito simpático comigo. Ele me falou uma vez um negócio que me chamou na sala dele... Eu lembro assim: faltar ensaio não ocorria a ninguém só se estivesse morto ou proibido de ir, como foi o caso da rubéola que eu tive, o meu pai ficou doente e a minha mãe foi pra lá e meu irmão ligou: “Papai está muito mal. É bom você vir.” Eu não peguei a malinha e saí não, eu fui falar com ele, eu falei: “Olha, eu recebi um telefonema que meu pai não está bem e eu preciso ir pro Rio”. Ele falou: “De jeito nenhum, seu pai não deve estar tão mal e se for mais grave, eles vão te avisar.” Quer dizer, se ele morrer. Porque grave já tinham me dito que estava. Me pergunta se eu fui? Não fui, quer dizer, era de uma dedicação louca. Se meu pai morre, eu mato ele, então era tudo muito... Ele me chamou na sala e me falou: “Olha, você tem um talento muito especial, você tem uma dádiva. Deus te deu esse talento e você por isso tem um compromisso com ele. Você não pode parar de dançar, você não pode recusar uma dádiva de Deus, então continue dançando sempre, não pare porque você tem que retribuir”. Ele quis dizer Deus deu e você não vai fazer nada com isso. Quando eu parei de dançar, me deu uma culpa e eu falei: “Gente, será que...” Porque eu parei muito cedo. Eu parei com 24 anos, eu parei bem no auge mesmo. Eu pensei: “Será que eu vou ser castigada? Será que papai do céu vai ficar bravo comigo porque eu vou parar?”. Pesou. Ele falou muito sério: “Meu Deus, ele tinha que ter falado isso pra mim, podia ter ficado com ele isso.” Quando eu parei, eu cheguei a ficar com medo, eu falei: “Eu acho que vou ser castigada.”
P/1 – Era uma responsabilidade. Te deu uma responsabilidade.
R – É. E estava muito cedo pra eu parar de dançar ainda, eu acho que vou ser castigada. Eu fiquei com medo, não fui castigada felizmente, acho que papai do céu entendeu, mas ele me botou um peso mesmo, um compromisso só com Deus. Então eu fiquei meio assustadinha, mas ele era malandro mesmo, ele sabia pegar as coisas, viu? Então é isso.
P/1 – E da experiência sua aqui em São Paulo que você leva pro Rio, o que você acha que... Como você chega ao Rio?
R – Eu amadureci muito com o trabalho aqui. Eu cheguei ao Rio, mas eu fiquei pouco. Estava o Willian Dolly lá, não espera um pouquinho o Willian Dolly foi depois de Nova York. Eu fiz a temporada do Mancini e depois eu viajei, eu fiquei pouco tempo.
P/1 –
Você já foi para os Estados Unidos?
R – Eu já fui para os Estados Unidos. Eu fiquei acho que nem um ano. 56 teve aquela coisa que a companhia parava e eu fui para os Estados Unidos. Eu fui pra ficar quatro meses, de três a quatro meses com o dinheiro contado pra aula, hotel, comida.
P/1 – Você foi fazer um curso lá?
R – Fui fazer um curso, mas três dias depois me convidaram pra fazer uma audição.
P/1 – Já fazendo as aulas?
R – Eu paguei as aulas, porque pra você fazer aula lá na época, você tinha que pagar um mínimo de dez aulas em cada academia. Eu fui pra saber qual academia eu queria ficar, eu paguei as dez aulas em quatro academias que eu fui. E o Ballet Theatre eu tinha conhecido no Brasil. O Mikel Lens que era o net, que era um bailarino americano que tinha dançado como convidado no Rio, ele falava português um pouquinho. Wuando ele me viu, ele falou: “Mulher, o que você está fazendo aqui?”. Eu falei: “Eu vim fazer aula”. Ele falou: “Que bom, porque eu acho que estão precisando de bailarina aqui”. Eu falei: “Tudo bem.” Eu fiz as aulas e a professora, aquela que me botou no meio que me recebeu muito bem, era uma russa. “I like you”, ela disse na primeira aula que eu fiz e eu acho que ela falou com a diretora e a diretora me convidou pra fazer o trabalho. Eu, o Regicer, que era o Dimitri Romanov, a Lúcia Chase, a pianista e ela, era Teresa Adken o nome dela. Fiz aquela audição, fiz um pedacinho de Pássaro Azul que eu já tinha dançado no Rio muitas vezes. Ela interrompeu, puxou um papel enorme de dentro da bolsa e falou: “Você assina aqui.” Eu falei: “Eu não assino nada, eu não sei o que está escrito”. Eu mal falava inglês,
foi aquela transação toda, ela telefonava de manhã, à tarde e à noite. “Você não vai assinar o contrato?”. Eu tinha que esperar a resposta do meu noivo, eu fui pra ficar quatro meses e ia ficar um ano? Do meu pai e do teatro, o meu noivo respondeu: “Parabéns, assine o contrato”. Meu pai respondeu: “Parabéns, assine o contrato”. E o teatro eu estou esperando até hoje, não responderam. Eu falei: “Ah o teatro eu não vou esperar, não”. Assinei o contrato. Era um contrato normal, aliás, quem leu o contrato até pra mim na época que estava lá era Dalal Oscar, ela disse: “Pode assinar, o contrato é padrão. É igual pra todo o mundo, não tem... Você vai ganhar tanto, o contrato é de um ano e você começa a partir de agora.”
P/1 – Como primeira bailarina?
R – Não, como solista. Quando eu falei que não queira assinar, ela falou: “Mas é solista, não é corpo de baile”. Eu falei: “Eu sei”. E o meu coração batia na boca, porque eu queria assinar, imagina como solista daquela companhia que era a minha paixão: “Ai, meu Deus, eu preciso assinar esse contrato, mas eu estou com medo, eu não sei como é que eu faço”. E o Mikel Lens, que o apelido dele era Net, ele falava: “Mulher, você é louca. Está assim de gente querendo esse contrato, você não vai assinar”? Eu digo: “Eu vou, você fala pra ela que eu vou assinar, mas ela tem que esperar um pouquinho”, porque não tinha internet. Eu não tinha dinheiro pra pagar telefonema, tinha que ser telegrama, carta, mas eu acabei ligando. E telegrama pra cá, telegrama pra lá pronto, acabei assinando. E ela foi assim muito querida. Bom, eu assinei contrato e ela me agradecia. O contrato era assim: 100 dólares por semana, hoje você fala: “Nossa, que merreca”. Eu achei que estava milionária. “Ah, eu fiquei rica, 100 dólares, meu Deus”. Então era 400 dólares por mês. Saí gastando, comprei maquiagem, comprei sapato, tirei foto e na hora de pagar hotel, porque você acertava semanalmente, eu não tinha dinheiro pro hotel. Por quê? Porque quando chegou o primeiro salário dos 100 dólares semanais, 30 era imposto, que eu vi: “Mas que imposto é esse?”. Em contrato você tem que pagar, ela me viu caminhando na sala e falou: “You happy day?”. Eu falei: “No happy”. Ela disse: “Por que você não está feliz?”. Eu disse: “Porque o dinheiro que a senhora está me pagando não dá pra pagar o hotel”. Eu não sei nem que língua eu falei. Porque eu não falava inglês, naquela época eu não falava inglês. Eu sei que ela me entendeu e falou: “Então nós vamos fazer o seguinte, deixa que esse imposto nós pagamos pra você.” Então eu recebi os 100 dólares limpos. Começou a dar legal, a gente trabalhava muita hora extra, então o envelope vinha gordo de dólar, porque o salário era pequeno, mas hora extra que você fazia aquilo... Eu nem sabia que ganhava hora extra. Porque no Rio de Janeiro e mesmo aqui a gente trabalhava e eu fiquei de seis horas da tarde até as cinco da manhã e não ganhei nada extra. No Rio de Janeiro você ficava também horas e não ganhava nada, eu nem sabia que se pagava extra. Quando veio aquele envelope, eu falei: “Eu acho que está errado, vocês me aumentaram o salário?”. “Não, você não fez hora extra?”. Eu falei: “Não sei, fiz?”. “Fez tantas horas extras e é tanto que você recebe.” Então foi aquela surpresa de hora extra e o salário ficou enorme, eu ganhava muito bem lá.
P/1 – Da sua passagem aqui em São Paulo no Balé do IV Centenário, teve alguma coisa que você levou, aproveitou lá nos Estados Unidos?
R – Não, eu aproveitei foi a minha técnica que melhorou muito. Porque eu dancei em muitos balés diferentes e bons, tecnicamente difíceis, então minha técnica melhorou, a minha compreensão da dança melhorou também.
P/1 – O amadurecimento como solista.
R – Tudo, como solista, como artista, como interpretação, como... Tinha outra coisa muito engraçada no Milloss que... A gente era magra. E bailarina, menina não tinha nada e ele dizia assim: “Mas tem que ser mulher”. E mandou botar enchimento em todas as roupas pra gente ficar com seios fartos, com peito de mulher. Porque bailarina não tinha nada e aquilo foi uma humilhação horrorosa que a gente sentiu. “Que coisa horrível ter que botar enchimento dentro da roupa pra gente dançar.” Mas ficou bonitinha a roupa, vestiu melhor mesmo a roupa essa foi uma das coisas que eu achei chato quando ele fez. Mas assim... E a organização que também tinha aqui, as suas roupas na hora prontas, limpas, arrumadas. Isso lá no American Ballet Theatre foi uma coisa que me impressionou muito também, a organização lá, porque a gente viaja muito. Era mais viagem do que... Parava em nova York no máximo uma semana, o resto a gente estava dançando pelos Estados Unidos ou pela Europa, que era o que o Milloss pretendia fazer aqui também. Levar a gente pra circular. Agora ele tinha certa razão. Ele dizia: “Eu não entendo por que não vão continuar, porque os gastos maiores já foram feitos, os direitos autorais estão pagos, as roupas estão feitas, os cenários estão prontos, o que tinha que gastar já gastou, agora é o retorno e na hora de ter o retorno, vocês não querem? Na hora que é só pra receber agora, vocês interrompem?”. Não era bem assim, porque você viajar com aquela companhia, por exemplo, você falou pro Rio 200 caixas pro Rio, imagina você fazer uma viagem pra Argentina, pros Estados Unidos o que de caro ia ser. Mas ele teria o retorno, eu acho, começaria agora a se pagar. Também dizem que começaram a roubar muito, eu não sei o que aconteceu, alguma coisa errada deu ali. Então a minha técnica melhorou muito, a minha interpretação melhorou muito, a minha compreensão da dança melhorou muito também. Então isso tudo contribuiu para o meu sucesso no exterior também.
P/1 – Ady, você como bailarina tem algum passo, algum tipo de sequência que você gosta? Que você adorava fazer? Piruetas, dehors? Sabe aquela coisa que você faz bem pra caramba? Tinha alguma preferência?
R – Você sabe que essa foi uma das perguntas que quando eu fui fazer audição pro American Ballet Theatre a professora antes de entrar, ela perguntou: “O que você quer que eu dê?”. Porque ela queria que eu passasse. Na minha cabeça passou rápido: pirueta? Equilíbrio? Não, foi supetão, mas foi assim rápido, eu falei: “Qualquer coisa”. E ainda esnobei sem querer. Como quem diz: “Pode dar qualquer coisa que eu faço”. Não era bem assim, porque eu acho que eu não tinha uma coisa que eu gostasse de fazer. Eu gostava de dançar, era o tudo junto. Quer dizer, se eu fosse pra fazer 32 fouetté, eu não queria fazer, eu não achava graça em fazer só técnica, eu gostava do dançar, do junto, do ligar uma coisa a outra, do interpretar o que aquilo, aquele espaço estava me dizendo que eu poderia dizer pras pessoas. Então não tem um passo que eu dissesse o que eu... Adágio? Adágio se fosse um balé que estivesse contando alguma coisa, eu gostaria de fazer, um allegro? Se fosse um balé que eu estivesse dançando junto, eu gostava de fazer, agora tem alguns balés que eu gostava mais ou menos de dançar ou porque dizia pouco, ou porque as combinações de passo não estavam muito de acordo comigo, mas em geral não tinha um passo. Um balé que eu gostasse esse eu posso te dizer, eu falei que era Prelúdio, esse eu gostava muito, gostei muito de dançar o Jardão Olilá. Então são balés que marcaram muito a minha carreira, então são balés que eu gostava uns mais e outros menos, mas em geral eu gostava de todos, porque quando eu entrava pra fazer, eu entrava pra valer.
P/1 – Você tem fotos lindas, do Pássaro Azul.
R – Então quando eu entrava pra fazer...
P/1 – A Fada Açucarada.
R – Então essas coisas eu gostava, então pra mim era o todo. Quando era só técnica, aquela coisa eu não gostava muito, quer dizer eu lembro que na minha época as bailarinas se engalfinhavam pra dançar Cisne Negro, porque tinha 32 fouetté e aquelas coisa dificílimas. Eu queria fazer o segundo ato que é o Cisne Branco, aquele pas de deux lindo. Agora eu gosto de ver Cisne Negro e na época eu achava que era só técnica, porque só tinha... A gente só dançava o segundo ato ou só o pas de deux de Cisne Negro. Então pra mim na época que elas se engalfinhavam pra dançar aquilo, era só o pas de deux de técnica, era o virtuosismo que eles queriam mostrar e não era isso que eu queria mostrar. Se fosse o balé inteiro, os quatro atos, eu encarava o Cisne Negro, mas só pra fazer aquele pas de deux pra mim era solto, uma técnica que era bonita pra eu ver, mas eu não tinha vontade de fazer não. Então o Cisne Negro estava... Se fosse pra dançar os quatro atos, sim tinha um significado aquela técnica toda.
P/1 – De ser justamente oposição. Entre uma e outra.
R – Aquela coisa romântica ali por uma coisa forte provocativa. Agora quando se dança ele sozinho, nem interpretam. Porque não tem o bruxo, porque não tem o cenário, então fica a técnica pela técnica, mas se fosse pra dançar os quatro, eu até encarava um Cisne Negro.
P/1 – Você quer fazer uma pergunta, Aninha?
P/2 – Eu queria voltar um pouco ainda no Balé do IV Centenário, eu queria perguntar sobre a temporada do Rio?
R – Nossa, eu era carioca, então dançar com o Balé do IV Centenário no Rio foi a glória e eu acho que também pros cariocas o fato de eu estar dançando lá também foi muito... Eu lembro que dançamos As quatro estações lá no Rio. O teatro estava apinhado e eu estava sendo aplaudida. Eu tinha fouttés pra fazer, não eram 32, eram só 24 e eu estava sendo aplaudida já no meio e eu pensei: “Gente, como eu estou ótima hoje”. Sabe quando você sente que está no eixo, as coisas estão saindo... Está ótimo, mas eu pensei pouco tempo, eu mal acabei de pensar, eu estava no chão, eu caí e pra sair dali, levantar dali. Bom, o teatro veio abaixo de aplausos. Tipo: me dando força, foi um acidente, você estava ótima, sabe aquela coisa, mas não tem conserto, quando você cai, cai. Não tem conserto, o que as pessoas lembram? Isso é o que eu falo com as minhas alunas hoje: “Olha, a terminação de um passo quando você está fazendo, executando um passo ou uma sequência, o final da sequência é muito importante, porque é o que registra é o que fica. Pro público o que fica? Como você terminou, porque você faz uma variação maravilhosa e ajoelha e põe a mão no chão, o que o público sai comentando? “Que pena, você viu? Ela caiu, botou a mão no chão.” O rapaz faz aquela variação maravilhosa e na hora que ele ajoelha bota a mão no chão, o que fica? “Ah, caiu”. Você fez uma variação dificílima, terminou deu uma titubeada, deu um passinho a mais... Bom, a crítica comentou que aquilo que aconteceu foi um acidente que eu estava ótima que eu não devia me preocupar, o teatro veio abaixo e eu ouvi o corpo de baile dizendo: “Ady caiu”. O corpo de baile dançando em volta de mim e eu fazendo fouetté, quando me viram no chão, eu até me lembro da coreografia, porque eles faziam uns cabriolli assim e falavam baixinho: “A Ady caiu.” A minha mãe que estava na plateia quase morre.
P/1 – Nossa! Por quê?
R – No dia seguinte era o mesmo espetáculo que tinha o mesmo balé, ela não entrou pra ver, ela ficava num canto perguntando: “Ela já caiu?”. Eu falei: “Mãe, eu não vou cair todos os dias, não faz parte da coreografia, para de ficar me agourando.” Isso porque os colegas vinham me contar: “Sua mãe está lá no corredor perguntando se você já caiu”. Eu falei: “Não, eu não vou cair outra vez, isso foi um acidente, acontece.” Mas nunca mais eu me achei maravilhosa em cena, não dá pra pensar, sabe o que aconteceu. Eu me desconcentrei, no momento que eu comecei a pensar que eu estava ótima, eu desconcentrei. Passou rasteira. Isso tudo eu passo pras minhas alunas: “Não se desconcentrem”. Deixa sair até o final...
P/1 – Porque tem um grau de dificuldade, você manter a técnica, a emoção do papel e conter a emoção que o público...
P/1 – Então eu acho que é interessante registrar. Você acabou não ficando hospedada no hotel lá no Rio.
R – Quando nós fomos pro Rio, eu, como era do Rio, fui pra casa dos meus pais e a companhia toda foi pro hotel e isso hoje é aquela mágoa que eu tenho de não ter ficado com meu grupo, porque era agora o meu grupo, não eram mais os cariocas, agora eram eles o meu grupo e eu vejo às vezes eles comentando as coisas que aconteciam no hotel, as brincadeiras, as farras, das saídas e eu fico triste de não ter estado lá com eles naquele hotel, foi uma pena mesmo.
P/1 – Ady, dessa época do Rio uma das críticas que eu li, a que mais falou bem foi a do Bolero, o que o Bolero tinha de especial?
R – Era muito bom, eu não sei o que o Bolero tinha de espacial, ele conseguiu fazer de uma maneira que ia crescendo... Porque a música começa com poucos instrumentos e vão sendo acrescentados instrumentos e o negócio vai ficando... Ele fez assim, ele começou com dois bailarinos, depois aumentou pra quatro bailarinos e depois tipo progressão geométrica, ele foi aumentando, aumentando. Então de acordo com os instrumentos que iam entrando na música, ele ia iluminando uma faixa do palco e aquilo ia tendo um acréscimo, gente! Não tem Bolero de Ravel mais bonito, não existe, eu desafio é uma pena a gente não ter filme, viu? Mas realmente a gente vê os... Eu até vi no depoimento da Vera, ela falando que fica um redondo é do Bejar esse bolero, Maurrice Bejar que é muito famoso e muito conhecido. Eu quando vi, eu não me atrevi a falar mal do Bejar, Maurrice Bejar, eu vou dizer que não gosto, mas eu só dizia assim: “Que pena que não era do balé do IV Centenário”, porque era muito lindo e ele repetiu muitos movimentos de acordo com a música também, repete o mesmo tema.
P/1 – Ela é repetitiva.
R – Mas só tem aquele acréscimo de volume que vai crescendo e ele fez isso com os bailarinos junto com os instrumentos que iam entrando, porque ele lia partitura e entendia de música. Então ele fez exatamente... Conforme vão entrando os instrumentos, ele foi colocando os bailarinos e tem um crescimento tão grande que realmente o Bolero de Ravel foi o top, foi o máximo da criação dele em minha opinião. Ele teve O Mandarim Maravilhoso que foi muito bonito, esses balés brasileiros que ele fez eu tinha minhas dúvidas, porque ele não conhecia mesmo, então ficava tudo meio esquisito, meio caricato, meio esquisito, mas O Mandarim Maravilhoso... Bolero pra mim também foi o top, foi Bolero mesmo, porque o Bejar também repete os movimentos, mas é um bailarino dançando o tempo inteiro e o resto em volta daquele tablado ali. Então não é... Em minha opinião... Eu tenho saudade, eu tenho pena de quem não viu, realmente.
P/1 – A gente fica na vontade. E, Ady, então você retorna dos Estados Unidos e
você casa.
R – Eu caso já lá mesmo.
P/1 – Nos Estados Unidos? Ah que lindo.
R – Eu casei na Venezuela, porque eu estava noiva e fui fazer essa viagem e dessa viagem de quatro meses eu acabei ficando um ano e como eu tinha ido pra voltar em quatro meses, eu levei passagem de ida e volta. Então como eu deixei meu noivo aqui e ele queria muito trabalhar fora do Brasil também, eu mandei passagem pra ele ir pra Caracas, a minha passagem de volta eu passei pra ele. Ele foi pra Caracas, foi trabalhar como arquiteto, porque ele é arquiteto e de lá, ele me telefonou que era pra eu ir casar, casar com ele que ele estava com saudade que era pra casar e eu estava com meu contrato de um ano e isso tinha sido o quê? Quatro meses depois, eu falei pra ele que eu não ia casar, porque eu interromper o meu contrato e como ele mesmo tinha me dado força pra assinar esse contrato e era meu primeiro contrato, eu não queria queimar, interromper o contrato, eu tinha que ficar até terminar esse contrato. Ele falou: “Não faz mal, você vem, a gente casa e depois você volta, você fica uma semana ou quanto tempo te derem de licença lá e
você volta e termina seu contrato.” Então eu casei nesse meio tempo e eu fiquei realmente uma semana em lua de mel e voltei pra cumprir o contrato, quando terminou esse contrato, eu voltei pra Caracas e fiquei nesses três anos dos Estados Unidos, eu fiquei quase um ano na Venezuela. Passou o Balé de Cuba e ela disse: “Como você não dança? O que está acontecendo? Esse talento não pode ficar perdido”. Eu falei: “Não, não posso, porque eu casei, porque meu marido...” Ela falou: “Onde está seu marido? Eu vou lá falar com ele”, era a Alice Alonso.
P/1 – A Alice Alonso que falou isso pra você?
R – E ela foi à minha casa com o Fernando Alonso, que era o marido dela ,que era o diretor da companhia, dizer que ele não podia fazer isso com ela. “Mas eu não estou fazendo nada com ela, ela que resolveu”. Eu disse: “Bom, então...”. Isso foi em 59, a Linha de La Liberacion, Fidel Castro tinha assumido lá e ela disse: “Nós estamos precisando de arquitetos, engenheiros, bailarinos e de preferência sul-americanos. Se você quiser, nós temos emprego pra você de arquiteto lá.” Ele disse: “Não, se ela quiser, ela pode ir, mas eu fico aqui”. Eu olhei pra ele e disse: “Tem certeza que eu posso ir?”. “Você é que sabe.” E eu fui. Entrei no Balé de Cuba, mas nesse translado de Caracas que eu ia encontrar com a companhia no Rio, enquanto eu voava meu pai morreu, ele teve um infarto fulminante e morreu. quando eu cheguei no aeroporto, meu pai não estava, eu achei muito estranho, porque meu pai até quando eu ia à padaria ele esperava na janela pra dar tchau e ele queria muito que eu voltasse a dançar, ele ficou com muita pena porque eu parei. Ele morreu e
eu não quis continuar dançando, eu falei: “Ah, não quero mais”. A Alice Alonso me chamou e falou: “Olha, tem uma cláusula no seu contrato que você tem que pagar uma multa, mas nós não vamos cobrar nada se você quiser parar, você para e a gente para por aqui, mas eu acho que seu pai vai ficar mais triste se você parar e, depois, se você parar, seu pai não vai voltar.” Ela foi uma mãe pra mim, a Alice Alonso foi realmente assim... Os dois. Mas ela foi muito: “Você está livre pra decidir o que você quiser”. E eles iam pra Argentina, eu chorei muito, pensei muito: “Realmente ele estava tão feliz que eu voltasse a dançar”. Tinha recorte meu no bolso que eu ia voltar a dançar que encontraram no bolso dele, ele caiu na rua mesmo andando. Então eu cheguei do aeroporto direto pro cemitério, foi muito ruim mesmo. Eu resolvi continuar, mas eu já não dancei igual, eu estava muito triste. Quando eu entrei no Balé de Cuba, a Lúcia Chase do American Ballet viu que eu tinha voltado a dançar e
mandou uma carta dizendo que queria que eu voltasse e que dessa vez eu seria a primeira bailarina e eu dançaria tais e tais papéis e que era pra eu voltar. Eu interrompi contrato com o Balé de Cuba e fui pra Nova York, então foi assim que eu voltei a ser primeira bailarina, mas eu já estava dançando meio infeliz. Porque a impressão que tinha era de que eu já dançava só pra ele. Mas não era, só que na minha cabeça... É que eu tive uma tia que me disse uma frase tipo aquela do Milloss muito infeliz: “Ah, você matou seu pai de tanta alegria”. Não foi uma frase infeliz essa? Quer dizer, eu matei meu pai ainda, podia ter coisa pra carregar pior do que isso? Então foi outra frase que ficou na minha cabeça muito tempo, eu fiquei meio mal mesmo, mas meu pai era muito querido mesmo. Então essa fase foi meio difícil de superar, eu já estava casada, com essa turnê a gente foi pra União Soviética. Dancei na Rússia na época que era a União Soviética e era o Khrushchov que era o bam bam bam lá. Teve um espetáculo especial pra ele lá, foi bom. Eu só não consegui dançar Rodeio na Rússia porque foi uma exigência do consulado que balé que era americano tinha que ser dançado por americano. Ela propôs que eu me naturalizasse americana pra poder dançar Rodeio lá, eu falei: “Eu não, pois o meu grande orgulho é eu ser brasileira e estar dançando Rodeio, vou virar americana, qual é a graça?”. Foi uma americana só pra dançar Rodeio e era um balé que eu gostava de dançar, mas na Rússia não deu. Mas foi... Olha, de tudo, de tudo eu só tenho boas lembranças mesmo, no frigir dos ovos mesmo com aquele tombo fenomenal no Rio foi tudo muito bom. Mas uma coisa que marcou muito a minha carreira foi o Balé do IV Centenário mesmo, porque eu saí de corpo de baile bem cruazinha ainda pra ser solista e o pessoal todo da companhia me achando “a bailarina”, porque naquele tempo eram todos meio estudantes e meio alunos e eu já era profissional, nem o Ismael que chegou, que era o Ismael, que era profissional, o Raul Severo, entendeu? Eu era uma estrangeira também chegando do Rio pra cá, mas marcou muito. E depois uma carreira muito curta no American Ballet Theatre, mas foi também muito boa. Eu comecei a dar aulas também lá em Caracas, porque agora eu sou professora, eu dei aula no Balé da Cidade durante dez anos seguidos pra profissionais, dei algumas poucas aulas no Cisne Negro, dei aula no Rio de Janeiro pro Corpo de Baile, dei aula pra escola do Rio de Janeiro e fui diretora da escola de Bailados aqui e dei aulas em Campinas durante muito tempo, lá eu montei Lago dos Cisnes, Dom Quixote, Silfis. Eu fiz muitas coreografias pra Campinas, eu tive meu grupo chamado Ady Addor Companhia de Dança onde eu fiz coreografia, mas achei muito difícil ter um grupo aqui. Então eu não consegui nada de patrocínio de ninguém, não consegui nada de nada, então trabalhamos quatro anos de graça eu e as meninas, as bailarinas, fizemos alguns espetáculos no interior de São Paulo, mas eu não consegui levar, terminei o grupo, mas foi também um período muito feliz que eu trabalhei feito um cão, mas foi muito bom também. Só que eu achei que não estava justo nem comigo e nem com as meninas, porque a gente acabava pagando pra dançar, a gente fazia viagem pra Piracicaba cada um pega seu carro, gasta sua gasolina, paga seu almoço, paga sua comida, paga sua sapatilha e volta sem ganhar nada? Porque todo dinheiro que ganhava de bilheteira era pro iluminador, então eu não ganhei um tostão, um nada e nem as meninas. O tecido pra fazer as roupas a gente ganhava, porque tinha uma das bailarinas que o pai tinha uma loja de tecido, então ele dava o tecido, a confecção era da mãe de uma das bailarinas que também confeccionava as roupas de graça e ninguém ganhou nada, só muita experiência e muito prazer, porque a companhia era pequenina, mas era gostosa também.
P/1 – Ady, e você como professora? Porque eu sempre ouvi falar que você é uma super professora.
R – Eu gosto muito de dar aula, gosto muito e eu cheguei a virar professora assim: já que eu não danço mais, tudo que eu aprendi a gente tem que passar pra alguém, passar pra pessoa não é guardar pra mim: “Ah quando eu dançava...”, sabe? É passar essa experiência e isso me fez virar boa professora, porque eu faço com amor, eu faço dando mesmo, então eu não tenho recalque nenhum, não quero judiar de aluno nenhum, eu quero que eles aprendam calmamente, eu dou o tempo pras pessoas pensarem, sou exigente porque eu quero que aprendam. Eu quero que aprendam bem. Então eu acho que sou mesmo uma boa professora, eu faço com muito amor e não sou de massacrar o aluno, de humilhar o aluno. Eu acho que o aluno tem que ter um tempo, porque quando eu tive... Eu tive uma escola muito grande chamada Balé Teatro. Era eu e duas sócias que era a Marisa Magalhães e a Iara Van linden. Nós éramos três sócias e pra fazer essa escola, eu fiz um curso de Psicodrama Pedagógico, eu fiz alguns trabalhos de Pedagogia e de ensino mesmo. E lá que eu aprendi que a gente tem que dar um tempo pras pessoas pensarem, não dá pra você deixar a pessoa :“Vai, vai, faz”, espera, a minha cabeça entendeu, agora eu tenho que passar pro meu corpo entender e
eu posso executar. E isso tem um tempo, então a gente fez esse tipo de trabalho e
tinham meninas que a gente dava aula de prezinho, nós chamamos uma psicóloga pra dar orientação, ela chegou e disse: “Eu não tenho que orientar nada, vocês estão fazendo perfeito, pra criança está ótimo. É isso aí mesmo.” Mas a escola também durou quatro anos, porque também não ganhamos nada.
P/1 – É muito difícil.
R – Porque a gente fez assim: eu quis dar... Eu e as minhas sócias. Aula de dança clássica e a gente montou com essa escola um atelier de Artes Plásticas e um curso de teatro e libertação pra criança, isso tudo incluído na mensalidade, mas não era todo mundo que gostava, as mães falavam: “Mas isso ela já faz na escola”. E você fica pensando: “Gente, eu estou dando pérola para quem não quer”. Mas não ganhamos nada, nem eu e nem minhas sócias, a gente tirava um pro labore daqueles que não pagavam, nem a moça que trabalhava em casa, porque era só pra constar. E trabalhamos muito, eu fazia toda a programação, eu fazia os temas do espetáculo e era 24 horas direto fazendo programação que a cada três meses mudava e foi muito boa, porque as mães que puseram as crianças na escola até hoje, elas me agradecem, dizem: “Que pena que não continuou.” E as meninas que fizeram também mesmo as que não viraram profissionais também têm lembranças maravilhosas, porque o espetáculo do... Porque eu queria participação dos alunos. O espetáculo que a gente fez primeiro... Nós fizemos Reinações de Narizinho, então eu peguei o pedaço que ela ia pro fundo do mar...
P/1 – No reino encantado?
R – No reino encantado e fiz tipo Bodas de Aurora, sabe? E do livro de Monteiro Lobato que as meninas leram com a professora do atelier lá, nós fomos puxando personagens a mais que Monteiro Lobato não pôs, o tufo de raio de sol, tinha um tufo de raio de sol, o fundo do mar, o que tem no fundo do mar? Ela ia puxando, a professora ia puxando e de lá iam saindo personagens. Então tinha sardinha, tinha polvo, tinha tudo que... Então ali era o grupo de turmas que saiam dali e eles confeccionaram no atelier os adereços todos. No outro ano nós fizemos Impressionismo, então fomos ao Museu de Arte Moderna que foi fechado só pra nós, as alunas que foram, o Fábio Magalhães deu as aulas ali pras meninas do que era o impressionismo, como que era. Sabe foi um negócio muito lindo, muito lindo. E quando foi no primeiro espetáculo que foi a Emília que engole pílula falante, eu mandei acelerar o disco e a música ficou toda acelerada e ela dançava naquela música e Narizinho dançava pas de deux com o príncipe lá. Tinham sardinhas que limpavam o salão muito bonito. E do Impressionismo, eu fiz dois atos, porque esse da Narizinho eu fiz... O primeiro ato era teatro, era falado e o segundo ato era quando ela vai ao reino encantado. E do Impressionismo, nós fizemos Monet, todos os impressionistas e no segundo ato era Degas que foi o que se dedicou a pintar mais e retratar as bailarinas. E foi muito, muito bonito e acabou a escola, porque eu tive uma mãe que virou pra mim e falou assim: “Olha, eu vou tirar minha filha da escola...”. Eram três filhas, eu falei: “Por que? Elas não gostaram do espetáculo?”. “Adoraram”. “E a senhora não gostou do espetáculo?”. “Amei”. “Mas vai tirar as meninas da escola por quê?”. “Ah, porque a senhora está tolhendo a criatividade das minhas filhas.” Eu perguntei: “E a senhora queria o quê?”. “Elas tinham que criar alguma coisa”. Eu falei: “A senhora bota 150 crianças dançando e vê se é possível elas criarem a coreografia ou improvisem uma coreografia, tem entrada, saída, tem meninas que dançam de um lado, meninas que dançam de outro, não dá.” “Não, mas eu vou tirar”. E com elas saíram as primas, as amigas. Mas foi difícil banir aquela escola pra mim, porque era boa demais e não era cara. Enfim, foi uma experiência boa, mas eu acabei parando, eu falei: “Gente, eu estou fora.”
P/1 – Ady, você chegou a participar dos festivais? Encontro Nacional de Dança na década de 80? O Joinville como jurada? Levando seus alunos?
R – Fiz... Não, nunca levei meus alunos, porque eu acho que... Eu não gosto de concorrência. Você não pode julgar alunos mais adiantados um melhor que o outro, um tem uma coisa, o outro tem outra, um dança bem isso, outro dança bem aquilo, eu era contra. Então eu fui jurada mais de uma vez lá em Joinville, mas eu ficava com muita pena dos alunos. Porque o professor às vezes escolhia mal a coreografia que fazia a menina lá, mas a menina não tem culpa, a professora dava uma coisa muito difícil que ela não conseguia fazer, então ela ia mal. Se ele escolhesse alguma coisa mais adequada a menina talvez fosse bem, então a nota é ruim, porque a menina estava ruim,
eu só anotava: “A culpa não é da menina, o professor escolheu mal o repertório.” Então eu era contra, então não sei... Hoje está na moda festival, tem muito festival. Eu faço até jurada bastante de alguns festivais, não gosto muito, porque às vezes a menina é muito boa, tem muita técnica, então levanta as pernas lá em cima, vira pirueta igual louca, mas pra mim não é dançar isso. Vai: “Fazer pirueta não é saber dançar”. Vai: “Levantar as pernas não é saber dançar”. Isso não é saber dançar, então eu acho que os professores não estão ensinando a dançar, técnica tem que ter pra você ter a liberdade de fazer... De dançar você tem que ter técnica, eu sempre dou exemplo de um aqualouco. Se o cara não souber saltar do trampolim direitinho, aquelas palhaçadas que ele faz, ele se mata lá embaixo. Então ele tem que ter técnica, ele tem que saber como é que ele cai lá dentro e que horas ele vai cair lá dentro senão ele se mata. É igual cair no asfalto se você não souber cair. Então técnica você tem que ter pra você ter liberdade de seus movimentos e da sua interpretação se você não tem técnica fica tudo truncado. Então eu era meio... Então nunca levei aluno meu, não. Eu até teria pra levar, mas não levei. Hoje eu até me arrependo, porque eu acho que teria sido um incentivo talvez pras meninas que talvez concordassem comigo, os pais gostam. O pior disso é que os pais gostam da competição e ficam bravos quando não são classificados. Eu vi coisas em Joinville que você não acredita.
P/1 – Ruins?
R – Não, coisas excelentes. Como tem muita gente boa, às vezes gente boa não passa, não cabe todo mundo, tem um limite. E pai bota advogado, professora grita, agride o jurado, agride o professor, fica aquele ambiente horrível, porque os pais ficam alucinados com os filhos que não são classificados. Então esse é o lado ruim, eu sempre digo: “Entrou é pra ganhar ou perder e se perder fica quieto, porque perdeu”. Não é que sempre vai ganhar, tem sempre alguém melhor que você, pode ter sempre alguém melhor que você. Então você tem que saber o seu lugar também, ver porque tem isso as pessoas veem que a menina é melhor, mas não aceitam.
P/1 – Tem o bairrismo.
R – Tem bairrismo, tem aquela coisa de competição de ganhar.
P/1 – Os festivais de dança têm muito isso.
R – Tem muito. E eu não achava saudável, eu não achava bom tanto que nunca botei minhas meninas, não. Eu fui do Conselho de Joinville e a gente instituiu algumas coisas. Porque você botava a sua opinião, a sua nota e depois o porquê você daquela nota e as pessoas ficavam às vezes sem saber também qual o critério que foi usado pra dar aquela nota e nem sempre você pode botar muito, porque a variação clássica não tem nem um minuto. Às vezes você abaixou a cabeça e quando levantou já acabou. Então você anota pouco pra não perder o que está acontecendo lá, então na nossa gestão lá, nós fizemos que o jurado no dia seguinte ao espetáculo vai conversar com os participantes e explicar o que não estava bom, o que pode melhorar, porque foi aquela nota, porque aconteceu aquilo. Então é melhor, porque o professor sai sabendo o que ele precisa melhorar, porque você só dizer: “Está ruim, não foi bom, mas onde eu posso melhorar? Onde foi que eu errei?”. Então essa foi uma das coisas que a gente instituiu e foi muito bom, dá muito trabalho pros jurados, porque agora eles trabalham na hora e depois vão pro hotel acabar de escrever o relatório e no dia seguinte levanta cedo pra falar com os grupos. Mas eu percebi também que muito grupo nem vai, se sente injustiçado e não vai, mas tem uns que vão e aprendem, porque vai o Brasil inteiro e o norte, nordeste é muito carente de informação, então é muito bom o jurado falar e explicar o que não foi bem e o porquê daquela nota. Eu acho que isso foi um grande avanço lá pra Joinville. Eu como professora também sou realizada, também sou feliz, então é aquilo que eu falei, eu estou no lucro.
P/1 – Você tem mais alguma pergunta?
P/2 – Então eu queria sair um pouco agora da professora de balé e perguntar sobre suas filhas, quando nasceram?
R – Olha, a última vez que eu dancei foi no aniversário do American Ballet Theatre, foi em 61 tem o programa lá, mas acho que foi em 61 ou 60 e a minha primeira filha nasceu em novembro de 1961,
a segunda nasceu em abril de 63 e a minha terceira filha nasceu em julho de 64.
P/2 – Nenhuma delas seguiu a carreira...
R – Todas estudaram balé, a mais velha que era a mais caxias de todas, a mais dedicada chegou a dançar bem bonitinho, eu até tinha uma amiga que falava assim: “Olha, se você não se cuidar, sua filha vai ser melhor do que você era.” Eu falei: “Tomara”, mas ela não quis ser bailarina, eu falei: “Filha, se você quiser...” Eu dava aula na época no Balé da Cidade, eu falei: “Eu consigo...”. Não vou te botar lá dentro, tem que fazer audição pra entrar, tem o Cisne Negro que eu conheço também a diretora, tem o Balé da Cidade que eu conheço o diretor, dou aula lá, tem algumas companhias que eu posso te preparar. “Eu não gosto nenhuma delas pra dançar”. O repertório ela não gostava, ela chegou a dar aula também. A caçulinha chegou pra mim uma vez e falou: “Mãe, fala a verdade, eu não tenho jeito.” Eu falei: “Jeito você tem, agora trabalhar pra suar você não quer, então...”. Ela gostava de dançar, mas fazer aula, ter hora, aquele negócio ela não queria fazer. E a do meio das três, era a que dizia nos trabalhos de colégio que queria ser bailarina, mas acabou também não sendo. Ela é hoje trapezista de circo e mora na França, em Estrasburgo, tem duas filhinhas, eu tenho duas netinhas que são francesas. A mais velha, ela se formou em Ciências Sociais e hoje ela trabalha com Marketing, hoje ela não está trabalhando, porque ela parou, ela teve um filho que morreu de câncer. Então ela parou de trabalhar pra cuidar do menino, hoje tem quatro anos que ele morreu e ela está voltando a trabalhar agora com Marketing. A caçula é formada em Psicologia, mas trabalha com terapia corporal. É muito boa no que ela faz, todas três são muito boas no que fazem, coruja, mas consciente.
P/1 – Como que elas chamam?
R – A mais velha é Graziela, a do meio é Renata e a última Ana Maria. Então as três se formaram. A caçula Psicologia na PUC, a outra fez Letras na USP, a do meio que é trapezista e a mais velha fez Ciências Sociais na PUC. A mais velha teve dois filhos, Alexandre e Marcelo, o Alexandre foi o que faleceu, a Renata tem a Juliana e a Mariana, são duas meninas que também já fazem estripulias no circo, quer dizer o pai é malabarista francês, ele faz monociclo e a caçulinha vai no ombro dele com a mãozinha lá em cima, se achando lá em cima. A mais velha está aprendendo a fazer trapézio também agora, tem uma foto no blog dela. E a caçula é solteira, não mora comigo, mora sozinha no Pacaembu e eu moro no Morumbi. O pai delas é arquiteto casado hoje com uma psicóloga e a gente se dá muito bem.
P/1 – Então a última pergunta. Depois de... Você já deve ter dado milhares de entrevistas sobre o Balé do IV Centenário e essa trajetória toda, mas assim olhando como um todo que a gente passou aqui a tarde, você contando a sua história desde criança, adolescente até os dias de hoje, como você viu a sua história? E o que você achou de ter deixado esse registro com a gente?
R – Olha, eu acho o trabalho de vocês maravilhoso, em off eu já tinha te falado isso, a gente... O brasileiro é visto como quem não tem memória, então o resgatar disso tudo, eu achei muito agradável inclusive conversar com vocês, eu estou muito à vontade, achei muito legal e esse resgate que vocês estão tendo não só comigo, mas com todos os elementos do Balé do IV Centenário e outras pessoas que não são do balé também. Eu acho que esse é um resgate da memória muito bonito, muito importante também, porque a gente percebe que... Eu morei lá um tempo que o americano faz questão de segurar suas memórias, seus artistas, seus físicos, seus cientistas, quer dizer então eles dão muito valor ao que é deles e a gente parece que vai passando assim aos trancos e barrancos e vai... Então eu acho que esse resgate... Eu agradeço muito a vocês e eu espero que vocês continuem não só com dança, mas com música, com atores, com cidadão comum. Alguém tem uma história... Tem agora um livro que foi lançado desse jornalista de São Paulo antigo, como é que chama? O Barbeiro.
P/1 – Ah, o Eraldo Barbeiro.
R – Ele lançou o livro agora e ele falou de coisas que eu me lembro, aqueles cinemas da Ipiranga que não tem mais, aqueles barrocos que era um cinema lindo, as praças que agora estão todas desgastadas. Mas tem que dar uma relembrada nisso, isso existiu, a minha filha quando era pequeninha e eu dizia: “No meu tempo...”. Um dia ela olhou pra mim e disse assim: “Mãe, no seu tempo já tinha luz elétrica?”. Eu falei: “No meu tempo já tinha luz elétrica.” Então eu acho que o jovem que acha: “Que saco ficar no meu tempo, no meu tempo.” Mas eles vão chegar lá também e vão ver que no tempo deles também tem coisa pra serem lembradas, pra serem fixadas e registradas. Então parabéns a vocês e obrigada a vocês.
P/1 – Nós é que te agradecemos por ter ficado aqui com a gente e ter deixado a sua história registrada.Recolher