Projeto Memória dos Brasileiros – Módulo Maués – Saberes e Fazeres
Depoimento de Carlos Roberto Fonseca Sarquis
Entrevistado por André Machado
Maués, Amazonas, 24/01/2007
Realização: Museu da Pessoa
MBMaues_HV012_Carlos Roberto Fonseca Sarquis
Revisado por Paulo Ricardo Gomides Abe
P/1 – Para começar, gostaria que você dissesse para gente o seu nome completo, a data e local de nascimento.
R – Meu nome é Carlos Roberto Fonseca Sarquis. Eu nasci em Maués, em 5 de janeiro de 1971.
P/1 – E você sabe qual é a origem dos seus pais?
R – Meus pais são de Maués mesmo, acredito que seja.
P/1 – E qual era o nome deles?
R – O meu pai se chama Raimundo Sarquis e a minha mãe Conceição Sarquis.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Meu pai trabalhava no pau-rosa, tirando o pau-rosa no interior, nas matas, aqui em Maués. Depois que terminou o pau-rosa, foi ficando difícil e ele passou a trabalhar com guaraná. A comercialização do guaraná cresceu muito naquela época e ele passou a trabalhar com guaraná. Foi dono de várias propriedades, de muitas terras. Meu pai tinha muitas terras em que plantava o guaraná, guaranazais muito grandes. Depois ele passou a morar na cidade e comercializava. Tinha um barco, pegava mercadoria, visitava os guaranazais e tinha muitos trabalhadores. Ele negociava as mercadorias com os próprios trabalhadores para não sair dos guaranazais. Minha mãe era doméstica, acompanhava-o com aquele trabalho todo de doméstica: lavar a roupa, fazer comida, tratava os peixes. E andava com ele no barco. Depois ele comprou uma casa na cidade. Ele não tinha comércio na cidade, comercializava no interior. Nas propriedades dele, negociava as próprias mercadorias. Então, o meu pai criou a gente trabalhando com os guaranazais, com o pessoal. Meu pai tinha um gado também, depois que caiu um pouco a comercialização do guaraná. Meu pai investiu num pasto junto com os guaranazais e começou a trabalhar com gado, nessas propriedades que eram mais apropriadas para trabalhar com gado. Infelizmente, faleceu e ficou a gente. A gente ainda era pequeno e eu comecei a trabalhar com a minha mãe. A minha mãe deu sequência um pouco e nós, que éramos sete irmãos. São dois homens, eu e outro, e são cinco mulheres. As mulheres foram embora, o rapaz também. Ficou só eu. Depois de grandes, eles voltaram porque a minha mãe vive com a gente até hoje.
Eu estou continuando um trabalho que aprendi com o meu pai e, independentemente dos estudos que eu fiz, eu estou aqui porque eu gosto. Foi uma coisa que eu aprendi mesmo, de natureza, com os meus pais. Eu aprendi a amar o trabalho que ele fazia. Eu me sinto feliz trabalhando com guaraná. Infelizmente com o gado não é possível porque não tenho as terras que ele teve na época. Ele vendeu tudo, minha mãe vendeu tudo. Estou começando tudo de novo, mas estou feliz porque sei trabalhar. Desde pequeno eu trabalhava com ele.
P/1 – E seus irmãos? Que profissões seguiram?
R – A mais velha mora no Rio de Janeiro. Ela é bióloga, trabalha na Fundação Oswaldo Cruz. Eu tenho outra irmã que trabalha também em Manaus. Três irmãs moram em Manaus e trabalham no distrito industrial, lá no polo industrial de Manaus. Uma trabalha no banco. Uma trabalha de professora aqui em Maués e outra irmã trabalha num comércio que monta festa de aniversário, essas coisas todas.
P/1 – Aqui em Maués?
R – Aqui em Maués. E o outro meu irmão, ele mora na grande Vitória, lá no Espírito Santo. Ele trabalha com óculos, em um laboratório que fabrica as lentes de óculos.
P/1 – Você foi o único a continuar com o guaraná?
R – Eu fui o único que fiquei com o guaraná. Eu não me intimido perto deles não porque eu batalho, batalho para dar o conforto dos meus filhos. Tenho três filhos, dois meninos e uma menina. Trabalho para dar o conforto deles, o estudos deles e seja o que Deus quiser. A gente batalha para isso.
P/1 – Conta para mim como era a casa da sua infância.
R – A primeira casa era o barco do meu pai porque a gente morava no interior. A gente morava nessas casas de palha, nessas casas de palafita. E a gente mudava, não tinha uma casa fixa de dizer assim: “Eu vou montar, eu vou fazer essa casa aqui. A gente vai montar essa casa e vai ser a nossa casa.” Não, as nossas casas eram feitas de palha que dava para montar e desmontar. Porque a gente passava seis meses na terra firme e seis meses na várzea. A gente ia para a terra firme e a casa da várzea ia para o fundo. Tinha que tirar todas as coisas porque inundava tudo. Mesmo na terra firme não dava para fazer uma coisa estabilizada porque era só com o guaranazal e o gado mesmo. Com seis meses a gente voltava de novo para a várzea, abandonava a casa da terra firme para ir para a várzea. Por causa do gado, a gente acompanhava o gado e os guaranazais também que ficavam nas partes mais altas. Depois que nós mudamos para a cidade, nós moramos na casa do meu avô. Depois o meu pai, quando nós fomos estudar, quando todos os filhos já estavam para ir para a escola, ele fez uma casa para a gente que era de madeira mesmo. Com o tempo a minha mãe montou a de alvenaria, com as propriedades que ela vendeu. Montou uma casa mais ou menos, confortável um pouco.
P/1 – E como que era a cidade nessa época?
R – A cidade era bem pequena, bem pacata. Eu lembro - eu também não sou tão velho assim - que o pessoal usava muito as bicicletas. Só as ruas da frente eram pavimentadas. Não era asfalto, era cimento mesmo. As ruas de trás lá eram tudo no chão mesmo e tinha pouco movimento. O movimento maior que a cidade tinha era do mês de dezembro em diante. Era que chegavam os compradores de guaraná de fora e a cidade ficava movimentada. Vinha o período também da festa de guaraná e o pessoal ficava mais animado. Eu me lembro muito bem desse período. Depois passava aquilo e a cidade ficava calma. Quando começava a chegar o fabrico do guaraná, começava o movimento. Era gente chegando, era gente saindo, era gente comprando. Um dava o preço mais alto, o outro, aquele negócio todo. Até agora a gente ainda sente um pouquinho desse movimento, porque a cidade cresceu e os compradores também cresceram. Então muitas vezes o pessoal já fecha: “Olha, a minha produção já vai direto para fulano!” Aquele negócio todo. A gente ainda vê vários compradores lá pelo porto: a gente encosta o rabeta e já vão em cima da gente lá, não querem nem saber. Eles já vão pegando: “Quantos quilos tem?” Já vão levando. Essa cidade então era assim. Só um comentário: só tinha esse movimento na época do guaraná mesmo, quando chegava a época do guaraná.
P/1 – Roberto, até onde você estudou? Até que ano?
R – Eu estudei em Maués mesmo, na Escola Adventista, porque na época o meu pai tinha condições de pagar a escola particular para a gente. Eu estudei na Escola Adventista, depois fui para escola pública mesmo, que foi o São Pedro. Então eu estudei na Escola Técnica.
P/1 – Em Maués também?
R – Não, foi na capital. A Escola Técnica Federal. Eu fazia o agrotécnico, técnico-agrícola, porque o meu pai trabalhava com gado, com guaraná. Então, eu quis estudar mesmo porque meu pai ia precisar mais tarde de alguém. Eu sempre tive uma visão meio de campo, sabe, de roça, de plantação. Mas depois que meu pai faleceu, eu abandonei a Escola Técnica. Eu me dediquei à administração. Depois da administração veio o curso de Pedagogia aqui para Maués, da UFAM. Eu me inscrevi, fiz a prova, passei no vestibular e entrei na UFAM para Pedagogia. Já conclui, já terminei. Sou Licenciado em Pedagogia.
P/1 – E você exerceu a profissão?
R – Ainda não.
P/1 – E você gostaria?
R – É muito difícil dizer que eu vou seguir a carreira em Pedagogia e deixar uma que para mim é uma relíquia, o que o meu pai deixou. Eu estou vivendo muito bem em cima disso. Eu não sei se vou precisar usar a Pedagogia como uma profissão. Mas, de repente se pintar alguma coisa, a gente aceita. Até porque foi um estudo, um sacrifício. Foi um sonho meu fazer uma faculdade, estar numa universidade do tipo da UFAM. Era o meu sonho: ”Um dia eu vou fazer uma faculdade!” Eu fiz, mas foi para Pedagogia. Vou tentar conciliar uma coisa com a outra. Se vier a pintar assim um trabalho legal mesmo, não sei como eu vou me virar. Mas isso aqui eu não abandono, não. Meus guaranazais eu não abandono, não, porque é de onde eu tiro o meu sustento, onde eu gosto de trabalhar. É uma coisa que eu gosto de fazer. A Pedagogia é o meu segundo plano. A profissão de pedagogo, sabe, eu queria tentar para ver se é realmente aquilo. Para ver se eu tinha feito o negócio certo. Até por que aqui em Maués, foi a primeira faculdade que veio e ofereceu esse curso para a gente com a ajuda também da Prefeitura. A gente tem que abraçar logo o primeiro que veio.
P/1 – O que você fazia na juventude?
R – A minha juventude foi meio badalada. Não de festa, negócio de festa, sair, coisas assim, mas de participar de eventos, de movimentos estudantis principalmente. Eu sempre gostei de reivindicar as coisas. Em Maués mesmo eu cheguei a ser presidente da UESM que era União Secundarista dos Estudantes de Maués e sempre estive a frente de associações, de estar no meio de movimentos sindicais e político-partidários. Sempre eu gostei. A minha juventude foi assim, eu nunca gostei de estar em festas, mas eu gostei de estar em movimentos para reivindicar alguma coisa que eu achava que não estava certo. Na minha época de estudante de segundo grau, de primeiro grau mesmo, eu já tinha aquele espírito de querer uma coisa melhor para a gente. E também a minha juventude foi de ajudar o meu pai no campo, no gado, torrar guaraná. Eu torrei muito quando era criança, assim jovem. Quando eu tinha uns dez anos em diante eu já me lembro que torrava bem guaraná, ralava bem guaraná e ajudava os meus pais. Meu pai tinha orgulho de mim porque eu trabalhava com ele e gostava muito da escola. Eu não gostava muito de festas, essas coisas de rock. Nunca fui muito chegado, não.
P/1 – Você falou essa coisa de que você participou de vários movimentos de reivindicação. Poderia contar aquele que você acha mais importante?
R – Uma época que marcou mesmo foi quando nós formamos um grupo forte de jovens e nós fomos para Manaus para reivindicar junto ao Governador a biblioteca de Maués junto à Casa de Cultura que deu espaço para os jovens e também para o grêmio estudantil. Porque aqui em Maués as escolas não queriam adotar o grêmio estudantil. Era muito difícil a gente convencer os professores de que as escolas teriam os grêmios estudantis. E a gente queria apoio, não conseguimos em Maués e fomos para Manaus. Chegamos lá em Manaus e falamos com o Secretário da Educação do Estado, aquela coisa toda. Isso marcou minha vida. Nós conseguimos, quando nós voltamos, colocar o grêmio estudantil nas duas maiores escolas de Maués. Depois, fundamos a sede do nosso movimento, da nossa entidade, a UESM, montamos lá um escritório. Para a gente isso foi uma vitória, um começo muito grande de luta, de movimento. Inclusive, até o ex-Prefeito de Maués, o Sidney Leite, participou desse muito desse movimento. Ele sempre ele lembra dos movimentos que nós tivemos.
P/1 – Você já se candidatou a cargos políticos?
R – Já fui candidato a cargos políticos, mas não aqui em Maués!
P/1 – Onde?
R – Em Boa Vista do Ramos. Eu exerci o cargo de vereador em Boa Vista do Ramos. Na verdade eu fui suplente. O rapaz lá ficou dois anos, saiu e eu era o primeiro suplente. Eu assumi por dois anos a câmara de Boa Vista do Ramos.
P/1 – E como foi a experiência?
R – Foi boa, valeu a pena. Por isso eu sempre digo que tudo a gente tem que tentar um pouquinho para a gente saber o que é bom. Não segui carreira, não gostei. Não discrimino a classe dos vereadores, mas é uma coisa que não cabe, não bate muito com a personalidade da gente. Todo mundo diz: “Ah, eu queria ser vereador!” Mas muitas vezes você está lá, não sabe o que faz, o que você realmente está fazendo ali, porque a política é boa e ao mesmo tempo muito traiçoeira. Se você não sabe o que está fazendo, você perde o controle, você perde o seu caráter, você perde a sua personalidade, sua dignidade, do dia para a noite. Eu não queria arriscar isso e por isso que eu digo que eu tentei a faculdade, estou fazendo e, se pintar, eu aceito, para ter uma experiência, para ver se realmente aquilo eu conseguiria seguir carreira, tirar algum aproveito. Até porque a pedagogia está em todo o lugar. Assim como a política, a pedagogia está em todo o lugar. Se você está fazendo um trabalho, se eu estou fazendo um trabalho legal, se eu estou acompanhando os meus garanazais é legal, estou fazendo uma boa atividade, tudo certinho, então, quer dizer, eu já estou exercendo a minha pedagogia e estou exercendo a minha política também. Essa experiência política-partidária que eu passei foi muito boa, não me arrependo do que eu fiz.
P/1 – E como é morar aqui na Comunidade Vera Cruz?
R – Aqui é um paraíso para mim. Eu sou apaixonado por essa terra. Seria muito difícil eu abandonar a Vera Cruz. Porque você veio aqui e olha só isso. Isso aqui é a paixão de muita gente. Muita gente vem para cá e o pessoal diz: “Ah, vai embora transformar isso daqui!” E eu digo: “ Não, mas está bom aqui!” Não é se acomodar, não. Vamos melhorar, vamos preservar, mas preservar não é se acomodar, não é só porque a gente está. O pessoal tem olhos de fazer indústria, de beneficiar aquilo, mas eu luto muito por essa comunidade, luto mesmo por essa comunidade. Estou aqui até não sei quando, até eu ter força suficiente para eu morar aqui. Só Deus mesmo sabe porque é muito difícil. Poxa, a gente olha para o rio, para as praias, esse vento todo, essa paz, tudo isso envolve a vida da gente. Eu me acostumei, já estou acostumado. Seria muito difícil eu trocar isso daqui por outro lugar.
P/1 – Mas boa parte dos guaranazeiros têm propriedades no interior e moram no centro urbano de Maués. Você não faria essa troca?
R – Não faria essa troca, eu nunca fiz essa troca. Até quando eu fui vereador em Boa Vista eu não troquei isso daqui. Eu fui para lá, passei um tempo para lá, porque causa da fazenda que era lá. Boa Vista do Ramos pertencia a Maués, tudo isso aqui, era tudo Maués. Depois desmembraram, Maués, Boa Vista do Ramos e nós ficamos com nossas terras em Boa Vista. Então a gente passava seis meses para cá, seis meses para ali, e foi a época que eu fui votar pela primeira vez, tirei o meu título e não por Maués, por Boa Vista já, e fui candidato. Eu fiquei por lá ainda. Quando eu vinha, ia de deslizador, trabalhava em Boa Vista e vim morar aqui em Vera Cruz. Quando deixei a carreira política, eu morava aqui e trabalhava em Maués. Eu trabalhei em Maués, mas atravessava, assim como os estudantes. Meus filhos todos moram aqui comigo, mas estudam na cidade. Eu levo todos os dias. Vou ali no barco, quando não tem barco levo na minha rabeta. Todo o dia eles vão e voltam.
P/1 – O que é uma rabeta?
R – A rabeta é um motorzinho, uma canoa grande, com o motorzinho lá no final, na popa. Coloca lá na popa e vai guiando.
P/1 – Ela demora mais que a voadeira?
R – Demora.
P/1 – Quanto tempo para chegar no centro urbano?
R – Meia hora.
P/1 – E com a voadeira?
R - Com a voadeira é 15, 20 minutos, quase a metade. A gente leva meia hora e a voadeira leva 15.
P/1 – E antigamente, quando você era criança, demorava mais ou menos para chegar no centro urbano?
R – Demorava mais porque a gente não tinha condições, muitas das vezes a gente tinha que ir remando para atravessar.
P/1 – Você tem uma ideia de quanto tempo demorava para chegar até lá?
R – A gente ia em uma hora, uns 45 minutos. Uma hora, ao certo uma hora. Porque a gente ia e descansava também. Rema, rema, rema um pouco e descansa. Se tiver com um vento desse aqui, a gente ia passar duas horas para atravessar. Porque a canoa pula lá em cima contra o vento. Quando a gente vinha de lá, já colocava um negócio no meio da canoa, já fazia uma vela, o vento empurrava e a canoa já ia, saía já guiando, não precisava muito de motorzinho, não. Agora todo mundo já tem suas rabetas, o transporte escolar, mesmo. Já tem outros barcos também que atravessam. Ficou mais fácil para gente!
P/1 – A Vera Cruz hoje já tem energia elétrica, tem água também, as pessoas usam celular, mas nem sempre foi assim, não é?
R – Não, foi desses tempos para cá que teve essa água encanada, todas as casas têm água encanada.
P/1 – De onde vem essa água?
R – Vem lá da vila, lá do poço artesiano, da caixa grande lá que tem. Lá tem duas caixas grandonas. Eles enchem a caixa à noite e fica dando água. Quando for no outro dia, à noite, eles tornam a encher de novo.
P/1 – Mas como foi essa luta para conseguir água, luz? Vocês se mobilizaram para conseguir isso?
R – Na verdade foi uma luta muito grande. Até que a água não, porque foi uma pessoa aqui de Vera Cruz. O senhor Luiz Canindé, que é a última casa aí, foi prefeito aqui de Maués e quando ele foi prefeito, a primeira coisa que ele fez aqui para Vera Cruz foi colocar o poço artesiano e colocar água em todas as casas. Até porque ele conhece a gente, mora praticamente aqui, a fazenda dele é aqui ao lado. Foi um presente que ele deu para Vera Cruz, uma obra muito grande. E também a luz, até tinha luz, só que para cá a energia chegava muito fraca. Ele também colocou um motor muito grande aqui em Vera Cruz, um motor de força para jogar energia para toda a vila. Só que a vila é muito grande, a ilha é grande demais e só chegava uma certa parte de energia boa. A outra parte, para cá, para nós, não chegava. Daqui para minha casa mais 20, 25 famílias que tem agora, não chegava energia. Quando foi um tempo que eu vim de Boa Vista para cá, eu disse: “É muito difícil a gente passar o Natal no escuro! Ano Novo no escuro, tudo no escuro! Essa luz, meu Deus do céu!” Foi que teve numa noite uma revolução, colocaram outro motor de luz lá. Fizeram uma indústria de farinha e colocaram o motor lá e eu disse: “Pô, mas já tem motor para lá! Outro motor para lá! Mais outro motor para lá!” Já eram três motores para lá e para nós aqui? O que adianta Vera Cruz ter três motores de luz e a energia e 20 e poucas famílias ficam no escuro? Então eu comecei a fazer um movimento muito grande. Eu dava aula aqui na Vera Cruz, lutei por uma vaga e dava aula para Educação Infantil na Vera Cruz. Eu comecei a fazer uma revolução com os moradores, pegamos umas 20 famílias: “Vamos lutar!” Não fomos atendidos e eu encabecei uma revolta muito grande aqui na Vera Cruz para conseguir. Fomos lá e trouxemos o motor de luz na marra. Carregamos e trouxemos para cá para o nosso lado. Colocamos, ligamos e tudo. Ficou uma maravilha, sabe? Então o Prefeito manda levar o motor de volta.
P/1 – Que Prefeito que era esse?
R – Era o Sidney Leite. Ele mandou levar e a gente: “Ninguém vai levar, não!” Nós fizemos uma comissão de uns 30 homens, mais ou menos, fomos lá com o Prefeito que mandou chamar a gente, que era para a gente devolver o motor, porque era da indústria de farinha, da casa de farinha mecanizada que tem. O pessoal queria fazer farinha e não tinha farinha porque a gente tinha roubado o motor de luz. Nós fomos para lá. Eu não fui porque naquela época eu tinha conseguido uma vaga aqui na Vera Cruz e foi até ameaçado o meu cargo, já eu estava contra o prefeito, aquele negócio todo. Nós fomos para lá, fizemos uma grande revolução lá com ele, entramos e falamos para ele que a gente não devolvia. Até no outro dia discutimos com ele. Foi aquela bagunça toda lá na Prefeitura conosco. Não teve polícia no meio, só foi bate-boca feio com o Prefeito. Quando foi uma semana ele mandou trazer um motor zerado para a gente, esse que está funcionando e nós devolvemos o outro lá da casa de farinha mecanizada. Nós devolvemos porque chegou o outro. Se não tivesse chegado, nós não iríamos devolver! Então, para a gente foi uma luta muito grande. E também a associação, para a gente conseguir um barco. A gente não tinha barco, então eu: “Vamos fazer uma associação dos agricultores da Vera Cruz!” Na época, ninguém queria me ajudar, e eu fui conseguindo um, dois, e já eram cinco. Dos cinco foi multiplicando para dez, de dez para 15 e chegamos a 20: “Agora já dá para fundar! Vamos embora, fundar”. Fomos pedir ajuda e também não quiseram dar porque já tinha outra associação ali da outra comunidade e mandaram a gente se associar tudo lá. Eu disse: “Mas a gente precisa do barco lá! Eles não vendem para cá!” Ele disse: “Não tem condições!” Então nós criamos associação nossa mesmo, da ilha mesmo, uma associação só dos agricultores da ilha, e foi uma peleja. Eu sei que ninguém queria ajudar, a gente ia com um, com outro e nada. Todo o mês a gente deposita cinco reais no cofre: “Embora fazer isso?” Fomos. Com dois anos, nós pagamos toda a documentação, fundamos a associação, pagamos a documentação, pagamos advogado e tudo e fundamos a associação. E hoje, o Governador viu que nós estávamos organizados com a nossa associação. Ele pegou e mandou um barco para gente, que é esse barco que está aí na beirada. Ele está servindo todo mundo e agora todo mundo já quer ser sócio da associação. Hoje nós somos 60 sócios. Todos pagam direitinho, pagam as suas contribuições. Por isso que é gostoso morar na Vera Cruz.
P/1 – Como é que chama a associação?
R – AVEC, Associação dos Agricultores de Vera Cruz.
P/1 – E afora o barco, o que mais vocês conseguiram com a associação? Ou o que pelo menos vocês planejam ter com a associação?
R – Nós conseguimos financiamentos, porque a gente não tinha acesso, de 15 mil reais para dez agricultores, inclusive eu. Também através da associação nós conseguimos um trator. Nós temos um trator, já temos um barco, já temos financiamento, já temos mais dez financiados que são do PRONAF e dos pequenos agricultores, daqueles que trabalham só com a roça, mesmo. Porque para guaraná sai mais, para gente que trabalha com guaraná sai mais e para roça menos. Então, já tem mais dez financiados para a roça, para trabalhar com a farinha. Porque a Vera Cruz se destaca não só no guaraná, mas ela se destaca como a melhor produtora de farinha. É considerada a melhor farinha da região, a da Vera Cruz. Por isso que a farinha da Vera Cruz é mais cara, inclusive, do que a das outras farinhas, porque ela é feita artesanalmente mesmo, ela é bem amarelinha. O pessoal adora, a gente tem freguesia própria, chega lá: “Ah, é da Vera Cruz?” E compram mesmo. É como o guaraná: “Ah, é da Vera Cruz esse Guaraná?” E sabem que o trabalho que a gente faz é bem feito, é bem aceito no mercado, aí em Maués. Não só em Maués, como o pessoal das cidades vizinhas, de Manaus mesmo, a gente já tem tradição de trabalhar bem com farinha e com guaraná.
P/1 – Foi você que me disse que a associação estava pensando em comprar uma máquina para moer o guaraná?
R – Nós estávamos querendo beneficiar o guaraná moído porque a gente paga um real para moer o Guaraná. Numa tonelada a gente vai pagar 1000 reais. Eu acho que 1000 reais meu com 500 de um, mais um do outro, dependendo da produção, a gente compra uma máquina e mói o guaraná porque a nossa máquina vai ficar para vários anos. Mas fora disso, nós estamos lutando também para fazer um assentamento, porque tem várias pessoas, vários jovens aqui na frente que já não tem mais espaço para trabalhar. Então, nós estamos querendo abrir uma estrada grande, um ramal grande para fazer um assentamento de lote de terra. Só que está um pouco difícil ainda porque tudo depende de uma política. Se eles aceitarem, sim, se eles não aceitarem a gente vai fazer do mesmo jeito, porque com eles lá, os políticos, prefeitos, vereadores, governador, fica mais fácil, porque eles mandam a máquina rapidinho. Mas se nada, nada, a gente vai meter a cara porque nós somos assim. Acho que tem que ser uma associação, se estiver organizado, a gente sente a dificuldade, mas eu acredito que a gente tem um ideal para ser realizado. Se a gente lutar juntos, não demora muito para a gente chegar no nosso objetivo.
P/1 – Vocês tentaram parceria com o SEBRAE, também?
R – Nós ainda não temos uma parceria diretamente com o SEBRAE porque nós estamos nos organizando melhor já que a associação não tem tantos anos, não. Ela está com cinco, seis anos de luta, mesmo, para a gente organizar as coisas. Depois, eu acredito, de muitas lutas vencidas, eu acredito que sim, vai ficar mais fácil da gente procurar as parcerias; o pessoal ver que nós não estamos começando do nada, que nós temos onde meter a mão, como fazer, então acredito que vai ficar mais fácil as parcerias assim; eles vendo primeiro o trabalho da gente, o empenho, a organização, para poderem firmar um convênio, ou sei lá, uma parceria mais segura para eles.
P/1 – Você aprendeu com o seu pai a plantar e beneficiar o guaraná?
R – Eu aprendi com o meu pai.
P/1 – Então conta para a gente quais são os passos para se ter um guaraná de qualidade!
R – Com o tempo, houve uma modificação muito grande, a tecnologia avançou muito nos guaranazais. Na época em que eu trabalhava com o meu pai, ele colhia as melhores mudas nos guaranazais mesmo, porque cai, passarinho leva, joga e vai nascendo por aí. Geralmente, a gente saía atrás: “Vamos tirar as mudas do guaraná, vamos replantar, vamos fazer outro roçado!” Fazia o roçado geralmente na mata virgem e preparava a terra toda, o roçado. Quer dizer, sem adubação, sem adubo químico, sem nada. A gente tirava as plantinhas, as melhores filhas e levava para o roçado. Não tinha muita técnica, não tinha, como eu chamo, muita frescura, não, de estar medindo as covas, esse negócio todo. Era meio cavar, meter as mudas lá, cobrir bem coberto e esperar que nascesse. As mudas eram bem fortes, saudáveis. Passavam três, quatro anos para elas começarem a produzir, mas geralmente eram cinco anos. Guaranazais nativos mesmo, aqueles feitos com as nossas técnicas mesmo, com o meu pai, eu me lembro muito bem, eram cinco anos. Em cinco anos começava a dar fruto. Mas agora, na minha época, já é diferente. Eu acho que tem uma dificuldade muito grande pelas mudas morrerem. Naquela época, as mudas quase não morriam e agora não. Porque os guaranazais, as mudas, já vêm no saquinho, já vem com adubo, já tem que medir o buraco, já tem que cavar, jogar o adubo, passar não sei quantos meses para poder plantar a plantinha lá. Muitas vezes o pé já vem na época errada de plantar e, por isso, que muitas das vezes, acredito, morrem as mudas que vêm agora. Elas estão morrendo porque, apesar delas serem mudas que já vêm adubadas, que já vem com o adubo químico, essa coisa toda, ela vem fora de época para plantar. Na nossa época, não tinha esse negócio de distribuição de mudas, a gente ia nos guaranazais, colhia as melhores mudas, tirava e já plantava na época boa mesmo, da chuva. Agora não, a gente espera as mudas virem. A muda vem e eu vou esperar ainda o adubo da terra lá da cova ficar bom para poder plantar e quando vou plantar já era, já está no verão. Então as mudas morrem, por mais que sejam cobertas. O verão amazônico, aqui de Maués, é forte por mais que a gente faça uma cobertura boa. Eu acredito que a técnica dos antigos ainda, sabe? Agora demora mais para dar: dá cinco anos e essa aí não. Essa muda também, plantando na época certa, fazendo a adubação certa, cobrindo certo, o rendimento é maior porque elas começam a dar fruta mais cedo. Com dois anos, no mínimo com dois anos, a planta já está florando, já está dando fruta. Talvez isso que chame a atenção da maioria dos agricultores de Maués. Essas mudas clonadas. Clona isso, clona aquilo. Eu estou plantando, eu tenho o meu plantio. Eu tenho o meu guaranazal nativo e é de onde eu estou colhendo, onde eu faço a minha despesa nele e meus trabalhos em cima dele. Não tem muito negócio de estar adubando, não. Eu acredito que daqui mais dois anos eu vou adubar para ver o que vai dar. Porque o pessoal diz: “Ah, tem que adubar , tem que adubar, tem que adubar porque a terra está ficando fraca!” Então tudo bem, eu acredito. Mas eu acredito que a árvore é igual a gente. O guaranazeiro tem seu limite de produzir. Eu acredito que se deve plantar outras mudas porque aquela terra é muito fértil. Há recuperação, a própria natureza recupera, ainda mais a terra aqui do Amazonas, a própria terra recupera a fertilidade do solo. E também quando a gente limpa os guaranasaes. Eu não limpo muito, não. Tem gente que limpa demais, que fica assim bem, sabe? Eu não limpo muito, não. Eu só dou uma limpeza e aquilo fica embaixo mesmo. Eu não fiz podação. Agora também estou lutando com duas quadras do clonado. Eu estou plantando e estou pelejando com eles. Já volta os três anos e nada. Eu fui adubar e morreu a metade. Eu não sei, falta um acompanhamento, um técnico. Acho que está faltando bastante técnico mesmo aqui. Eu não manjo muito bem de guaraná, não, desse negócio, desses adubos que estão vindo agora. Porque é tanto adubo químico que está vindo diferente, que a gente se embaralha todo. É difícil.
P/1 – A maior parte da tua plantação é clonada ou o tradicional, nativo?
R – O tradicional, nativo. Não, é metade, metade. O que eu tenho de nativo, eu tenho de clonado também.
P/1 – Esses nativos que você fala são aqueles que você tirou do meio da floresta?
R – É, foi do meio da floresta, que eu plantei no meio da floresta mesmo, foi de um roçado da mata mesmo. Esse outro não. E eu estou tendo mais prejuízo com esse outro do que com o próprio nativo! Porque morre, morre, morre. É muito delicado, tem que ter uma certa paciência.
P/1 – Agora explica para gente como é que funciona essa coisa dos polos em que eles dividiram Maués?
R – Maués foi dividido em vários povos porque, eu acredito que é assim, essa região é de vale, essa de terra firme. É uma mata mais virgem o outro mais... Maués-açu é um polo. Aqui, onde a gente vive é um polo. A gente pertence aqui ao polo do Rio Maués-açu. Mas eu acredito que em termos de desenvolvimento, de acompanhamento, não influenciou nada. Porque é muito grande, a terra de Maués é muito grande. Então, tinha que ter várias pessoas para acompanhar o seu desenvolvimento. É longe demais, tem que é longe. Geralmente dizem: “Vera Cruz tão perto porque tem esse problema todo, tem que enfrentar isso para conseguir?” Porque, geralmente, as atenções estão mais voltadas às comunidades mais longínquas, mais distantes mesmo. E a Vera Cruz está perto, só dar um pulo, 15, 20 minutos! Tem comunidade que são 15 horas para você chegar em Maués e, por isso, a atenção é maior para lá e muitas vezes esquecem da gente aqui perto.
P/1 – Tinham dito para a gente que nessa coisa dos polos, tem um centro do polo para várias comunidades, com um técnico, um acompanhamento para as produções e tem mais isso, mais aquilo. Você podia explicar, em detalhes, como é que funciona essa coisa do polo?
R – Olha só: ele foi dividido nos polos e desses polos eles centralizaram em uma comunidade. Quer dizer, o polo aqui, pega a comunidade que fica praticamente no meio do polo.
P/1 – No caso é qual?
R – Lá eles têm o técnico agrícola que acompanha, que dá assistência toda à região daquele polo lá e fica à disposição, tem rádio, tem uma tecnologia bem legal, lá no posto onde fica a comunidade. Só que a comunidade polo fica longe daqui.
P/1 – Quanto tempo, mais ou menos?
R – Uma hora e meia para chegar lá. A gente olha assim, é logo atrás daquela ponta. Mas se você olha atrás daquela ponta, olha o rio para você enfrentar. Então, a gente fica mais assim. É uma coisa legal, as comunidades ficam mais perto e para a comunidade polo é legal porque o técnico acompanha, aquele negócio todo e eles vêm visitar Vera Cruz. Mas, muitas vezes, vem uma vez por mês. Quando eles chegam a gente vai para cá, vem para ali, às vezes chamam, mas um dia, dois dias é pouco para eles, porque tem que receber chamada, voltam. Dificulta para dar assistência nos nossos guaranazais. Fica difícil mesmo, mas como a gente fica perto, de vez em quando a gente está fazendo curso. Fazendo curso não, participando de treinamento para ajudar, ajuda muito isso. A AmBev dá essa assistência para a gente de treinamento, de podamento, de adubação.
P/1 – Você falou que foi mudando a forma de plantar o guaraná. Você tem uma lembrança de quando começou essa mudança, de quando você percebeu isso?
R – De uns dez anos para trás aconteceu essa mudança exagerada do plantio do guaraná. O pessoal já vinha, depois do nativo, já avançava um pouco. Mas eu acredito que de uns dez anos para cá houve aquele avanço exagerado de clonagem disso, daquilo. Primeiro, era só adubação: “Vamos adubar! Colocar o adubo”. Agora já vieram os clones, já veio o plantio de estaca, o plantio de não sei o que mais. Então, é um avanço muito rápido e eu acredito que o produtor não estava preparado, e não está preparado. Eu que fico prestando atenção, participo daqueles treinamentos, fico pensando naquelas outras pessoas, naqueles senhores mesmo que vêm lá não sei de onde, aquelas senhoras. Será que eles estão entendendo? O produtor não está preparado. Eu não estou preparado para essa transformação. Eu acredito que o produtor não acompanhou essa evolução do plantio do guaraná porque se ele acompanhasse ia estourar mesmo. Eu estou com três anos e o meu, agora talvez esse ano, comece a dar fruta. O clonado, esse com adubo químico. Mas tem o meu nativo lá, aquele eu preservo mesmo e vou continuar plantando. A gente faz uma reunião e o pessoal diz: “Vamos plantar o nativo mesmo.” Eu acredito que dá uma esperança no nativo muito grande, esse guaraná nativo que a gente planta na mata virgem, que tem esses traços, que a gente torra no forno de barro. O pessoal estava deixando até de torrar no forno de barro. Agora estão exigindo que a gente torre no forno de barro.
P/1 – Quem é que está exigindo?
R – Os comércios, as próprias organizações que compram o guaraná. Ah, tem que plantar no forno de barro!”
P/1 – Por quê?
R – Porque é um guaraná. No forno de barro ele é mais, como se diz, ele é mais duradouro. Geralmente, quando a gente torra no forno de ferro, o guaraná às vezes queima, não torra bem, porque esquenta muito o forno e é uma torragem rápida. No forno de barro, não. No forno de barro você mexe, deixa lá, você pode até tirar o fogo de baixo e deixar só a quentura do forno do barro. Ele seca o guaraná e fica torradinho. É um guaraná que você olha e vê a diferença! Há uma diferença muito clara, muito visível mesmo do Guaraná que é torrado no forno de ferro e o guaraná que é torrado artesanalmente. É bem visível mesmo a diferença, não tem como se confundir. Quer dizer, há uma exigência porque ele dura mais, acho que é mais resistente.
P/1 – Eu vou perguntar alguns detalhes de como você planta o guaraná para a gente aprender um pouquinho. Qual é a melhor época para plantar?
R - A melhor época agora é janeiro.
P/1 – Por quê?
R – Porque está num período chuvoso e isso facilita para as mudas porque a gente vem trazendo as mudas, a gente vem carregando as mudas, muitas vezes de longe.
P/1 – Como você carrega as mudas?
R – A gente carrega num saquinho. Os nativos a gente carrega no saquinho. Os clonados também vêm no saquinho. Nessa época é melhor porque a terra fica mais solta e chove direto. Todo o dia quase chove. Se não chove de dia, chove de noite. É um período bom para plantar o guaraná. Passou de fevereiro para lá, para março, até fevereiro, dezembro, janeiro, fevereiro, essa época. Essa época eu planto meus guaranás.
P/1 – E tem um terreno certo para plantar o guaraná?
R – Tem!
P/1 – E qual que é?
R – O terreno certo para plantar guaraná, assim que eu vejo desde a época do meu pai, é onde tem barro. Tem gente que diz assim: “Ah não!” Mas meu pai sempre disse: “Olha, onde você ver um terreno que tenha barro, barro vermelho mesmo, barro amarelo, é bom do guaraná plantar, nascer!” Aquele negócio todo. Só que eu plantei na terra de mata mesmo, mas também não deixa de ser uma terra de barro e ele dá bem fruta.
P/1 – E você deixa um espaço certo entre uma planta e outra?
R – De quatro a cinco metros.
P/1 – Desde quando você deixa esse espaço? Você sempre deixou esse espaço ou depois você foi fazer isso?
R – Foi sempre deixado esse espaço, desde a época do meu pai já se deixava esse espaço de cinco a seis metros. Os Guaranás nativos a gente deixa cinco metros porque eles crescem e ficam grandes mesmo, aquelas árvores grandes. O Guaraná clonado não cresce muito e eu deixo quatro metros para economizar terreno. Então leva umas mudas porque eles não crescem muito.
P/1 – E você costuma usar adubo?
R – No nativo, não. No nativo, o adubo que a gente diz - e não deixa de ser adubo – são os paus, as folhas secas, lá roça mesmo, da limpeza mesmo. Já fica lá guaranazal. Agora o outro não, no clonado a gente já usa o adubo, a ureia, o super fosfato, esses adubos químicos que a gente usa. Mas também uso bem pouco, assim, com medo. Ainda tem aquele medo todo de usar. A gente coloca, tem uns que a gente não coloca.
P/1 – Qual é o medo de usar?
R – O medo de usar é que muita vezes na terra não foi feita uma análise de solo. Eles dizem: “Não, tem que usar o adubo!” Mas eu acredito que, na minha época, eu passei pela escola e a gente tinha que fazer uma análise de solo para ver se aquele solo podia aceitar aquele tipo de adubo. Eles mandam a ureia, o super fosfato, o zinco, mandam tudo para tudo quanto é lado para você, de modo que todas as terras são iguais. E as terras não são iguais, o solo não é igual. Isso que é um dos erros muito graves, que eu acho, que eu vejo na secretaria de produção. A mesma quantidade de adubo que eles mandam para um, eles mandam para toda a região. E o mesmo tanto é para todos e muitas das vezes, aquele solo nem requer aquele adubo. Quando eu fui adubar, adubei uma parte da terra e uma parte está muito desenvolvida e a outra parte não está. Por quê? Porque não requeria aquele adubo. Ela já tinha o adubo orgânico, então eu perdi um terço do guaraná. Eu já estou até replantando. Eu trouxe até as mudas aí, você viu as mudas para replantar.
P/1 – Quando você planta, quanto tempo demora para dar os primeiros frutos.
P/1 – Os nativos em cinco anos começam a produzir bem. Os clonados com dois anos já começam a dar e com três anos já estão dando bem frutos.
R – E quanto tempo dura um guaranazal?
P/1 – Meu pai dizia que - porque eu ainda não tenho essa experiência de quanto dura – que em dez anos tinha que reformular o guaranazal. Refazer de novo, plantando no vão daqueles. Como outro vai dar daqui cinco anos, então são praticamente 15 anos com um guaranazal produzindo bem. Mas tem guaranazais também que, dependendo do trato, duram bem mais do que 15 anos.
P/1 – E qual que é o período para colher?
R – A colheita a gente faz entre novembro, dezembro e janeiro. O forte mesmo é dezembro. Os guaranás no verão, no sol, abrem mais rápido. Quando começa o inverno, quando começa a chover já direto, já em dezembro, já está quase acabando a colheita. Mas tem, dá para a gente colher, para ele abrir. Por que os guaranazais pegam mais força e a casca fica mais dura. Eles ficam mais resistentes para abrir porque não tem tanto sol. E quando o sol está forte mesmo, eles abrem mais porque a capa do guaraná fica mole. Eles abrem com mais facilidade no sol.
P/1 – Descreve para a gente o que é esse abrir? O que é esse fruto, quando você sabe que está no ponto para colher? Descreve o que é esse abrir? Para quem nunca viu um guaraná!
R – O guaraná é tipo um botão. Quando ele está fechado, você olha e ele é tipo um botão. Ele fica amarelo, vai ficando vermelho, fica bem vermelhinho, e abre. Eu acredito que o calor faz com que solte as pétalas. Abre e está o baguinho lá dentro. Segura num material branco que parece um olho. É o mesmo que você estar com o olho fechado e abre assim. Tem umas que são verdes. Só não tem guaraná azul! Mas verde tem. Você abre e parece um olho. Tem aqueles verdes, tem os marrons. O marrons escuros, o marrom claro, tem os pretinhos, pretinhos mesmo. Você olha esse monte de olhinhos te olhando lá e você vai lá e olha também e eles ficam te olhando. A gente colhe, leva a tesoura, corta o cacho e coloca num paneiro.
P/1 – Aqui ainda funciona sistema de mutirão?
R – Funciona.
P/1 – Como funciona o teu sistema de mutirão aqui?
R – Mas não é para a colheita, não.
P/1 – É para que então?
R – O mutirão é para limpeza do guaranazal, até para preparar o roçado. Depois da colheita, limpa. Agora o do meu guaranazal já acabou. Agora, ainda esse mês, eu vou partir para a limpeza dele, eu vou limpar, cortar aqueles galhos que estão no chão, tirar tudo e deixar lá. Quando for em setembro, a gente faz, agosto, a gente faz mais uma limpeza, mas bem mais devagar, com calma porque já começa a florar e já tem que ter o cuidado com as flores. E pronto, é só esperar para eles crescerem.
P/1 – Mas conta como é o sistema de mutirão. Você paga as pessoas para te ajudar?
R – Não, as pessoas se ajudam. A gente faz um cronograma de atividades e pega o nome das pessoas que estão interessadas em participar do mutirão. Aqui na Vera Cruz tem vários tipos de mutirão: tem um só das mulheres, tem o das mulheres misturas com os homens, tem só o dos homens, tem só o dos rapazes, tem só dos meninos. Porque, às vezes, os meninos fazem lá o processo deles de se ajudarem também.
P/1 – Mas explica direito isso aí, como é cada mutirão?
R – Por exemplo: o mutirão só de homens é geralmente só para derrubada ou para onde o guaraná está muito alto. Mas a gente faz o cronograma, pega o nome das pessoas, vamos dizer, 15 pessoas vão participar desse mutirão, pega o nome de cada um e qual a atividade que ele vai fazer. Se é roçar, se é capinar. Porque capinar é um jeito, roçar é outro, então se é de plantar, se é de cavar, tem que descrever a atividade que eles vão fazer, pegar o nome e a atividade que eles vão fazer e a data na qual eles vão fazer. É combinado tudo e a gente já sabe. Cada um fica com um papel e a gente se comunica para aqueles que a gente passou um papel e coloca lá tudo. Já sabem: “Amanhã é do fulano!” Muitas vezes a gente leva farinha para ajudar eles.
P/1 – Eu queria que você explicasse de novo para mim como é que é esse mutirão das mulheres?
R – Eles pegam as senhoras que tem, suas roças, suas pequenas propriedades que tem umas verduras ou a roça mesmo, capim, aqueles trabalhos mais leves, que são aqueles trabalhos que eles fazem de mutirão das mulheres. Só mulher mesmo participa, é o trabalho mais leve. Esse é o mutirão das mulheres. E tem também mulher que trabalha na reunião dos homens. São aquelas mulheres que gostam mais do trabalho mais pesado. Porque tem aquelas mulheres que gostam do trabalho mais pesado, que enfrentam. Uma, duas sempre participam. E tem também a cozinheira da reunião dos homens. É só homem, mas tem a cozinheira. Onde a reunião for, o mutirão for, aquela cozinheira é para aquele mutirão todo. Eles têm a cozinheira própria deles, o dono do trabalho, o dono do mutirão não se preocupa com a cozinheira, só se preocupa em comprar comida, coloca lá para o pessoal e a cozinheira vai lá, vai certo para fazer a atividade dela. E no final é o trabalho da cozinheira que vai ser feito, a cozinheira não é paga. É o trabalho dela que vai ser feito como se fosse uma participante da reunião dos homens, como se fosse um homem.
P/1 – E como é que funciona o mutirão das crianças?
R – O mutirão das crianças é geralmente para fazer uma atividade mais de terreiro, de quintal, para apanhar uma fruta. Por exemplo, aqui tem muito açaí. Até para catar o guaraná mesmo. Às vezes se reúne e: “Vamos catar o do fulano!” Se reúnem, catam o guaraná do fulano, do seu sicrano. Não são exatamente crianças, são meninos, adolescentes, já de dez, 12 anos. Porque eles ajudam sabe, vêm da escola.
P/1 – Então para participar desse mutirão das crianças tem que ser de dez a 12 anos?
R – É, de dez a 12 anos.
P/1 – Mais de 12 anos já...
R – Já participa de outras reuniões.
P/1 – Aí ele já entra como o dos homens?
R – É, como o dos homens.
P/1 – Você vende o guaraná em semente ou em pó?
R – Eu vendo só em grão e em pó. Em bastão eu não vendo porque eu não tenho os materiais para produzir o bastão.
P/1 – Que materiais?
R – E também não tenho tempo, não tenho mão-de-obra para fazer esse trabalho, porque ele dá mais trabalho.
P/1 – Que materiais precisa para fazer bastão?
R – É o pilão, primeiramente, e o fumeiro. E a técnica. Eu não me adequei à técnica do ponto. Eu não sei o ponto certo, nunca. Porque o meu pai só vendia em grão mesmo, em grão e em pó. Em bastão, não.
P/1 – E quem compra o guaraná dos produtores hoje?
R – Olha, esse ano, os outros anos, a AmBev é que compra o guaraná. Só que entram outras empresas, outras firmas vem também aí por trás, no caso, a Coca-Cola. Esse ano eu vendi todo o meu produto para a Coca-Cola. Só que a preferência é para a AmBev porque ela está ajudando a cidade, aquele negócio todo. Eu vendi fora de época, vendi para a AmBev também um pouco, só que a metade foi para o pessoal ali da Coca-Cola que estava comprando.
P/1 – Eles estavam pagando melhor?
R – Eles estavam pagando melhor. Porque a AmBev só estava pagando sete e 50 reais, oito, e a Coca-Cola paga nove. Em 50 quilos são 50 reais a mais.
P/1 – E você conhece a história do plantio do guaraná aqui em Maués? Quais foram os primeiros que plantaram depois dos índios? Quem começou a comercializar?
R – A história que vem dos índios, dos Sateré-Mawé mesmo. Eles plantavam para uma bebida que os fortificava. Eles tinham para uma coisa de digestão, para uma doença intestinal. Mas também o guaraná os ajudava a trabalharem mais, a comerem menos, para não ficar muito gordos. Porque o guaraná tira um pouco do apetite da gente, do sono. Os índios foram os primeiros a plantar e até hoje tem aquelas tradições deles de ralar o guaraná na pedra. Na época, do meu pai o tradicional mesmo já era na língua do pirarucu, na língua do peixe. Ralava na língua do peixe. Porque não tinha aquele negócio de moer, na época do meu pai . Isso aí era luxo mesmo, guaraná em pó, moído. O tradicional era mesmo na língua do pirarucu. Meu pai acordava a gente quatro horas da madrugada para ralar o guaraná. Lá ia eu ralar com sono para todo mundo tomar! E todo mundo tomava.
E os índios conservam isso até hoje. Só que eles ralam naquelas pedras, outros tipos de pedra, porque o peixe ficou difícil. Pirarucu já está em extinção e eles ralam na pedra mesmo. E é essa história. Eles conservam até hoje essa história os índios Sateré-Mawé, o pessoal do Marau.
P/1 – E de que forma você toma o guaraná?
R – Tem o guaraná que é só ele puro. Tem gente que gosta do amargo mesmo, só ralar e tomar, não muito ralo. Tem gente que gosta dele grosso. Esses antigos que aguentam mesmo o baque, tomam bem grosso e amargo. Eu já fui acostumado a tomar doce, um pouco mais ralo e doce. E outros já fazem aquela mistura toda, colocam amendoim, outros já colocam com um pouco de ovos para os músculos ficarem mais fortes, aquele negócio todo. Então, existem várias formas para tomar o guaraná.
P/1 – Mas como que você toma? Eu queria que você falasse como se fosse uma receita: põe tanto de água, põe tanto de guaraná. Que horas você toma?
R – O meu gosto mesmo é um copo desses assim, não daqueles pequenos, um copo médio. Eu coloco só uma colher daquelas de chá e um pouco de açúcar, porque eu não gosto de tomar com adoçante, não. Outras coisas eu tomo com adoçante, mas guaraná eu não tomo com adoçante. É uma das únicas bebidas que eu não tomo com adoçante.
P/1 – Você toma todos os dias?
R – Todo o dia eu tomo um pouco, mas eu só tomo de manhã também. Eu coloco uma colher daquela de chá e uma colher dessa de sopa de açúcar no copo cheio. Aí ele não fica nem muito grosso e nem muito ralo. É o meu ponto de tomar o guaraná. Agora tem outros que não, dependendo da pessoa, do trabalho da pessoa, por exemplo, se eu for fazer um trabalho pesado, que eu ...
R – De estar lá com a sua garota, nos prazeres da vida, então dá conta de tudo. É como estar no roçado, trabalhar, tem que dar conta do dia todo trabalhando. Por isso que a gente diz que o guaraná é afrodisíaco, é energético, esse negócio todo.
P/1 – E o uso do guaraná pode fazer mal?
R – Faz. Pelos conhecimentos de estudo, que a gente houve as pessoas falarem, até em revista mesmo, nessas entrevistas que o pessoal dão muitas vezes, que ele não faz muito bem para o coração. Eu acredito que seja porque ele dá um impulso mais, o seu coração deve acelerar mais. Para quem tem problema de coração, eu acredito, não é aconselhável tomar o guaraná. Como afrodisíaco, para trabalho, para uma coisa, eu acredito que não. Não é muito recomendável, não.
P/1 – Você conhece alguma história de alguém que passou mal?
R – Aqui em casa várias pessoas passaram mal porque a gente recebe muitas visitas. O pessoal de fora que não está acostumado a tomar e quer tomar. A gente fala para ele: “Não, toma só um pouquinho!” “Não, vou tomar tudo porque eu quero só ver”. Então começa a tremer, a vomitar, sobe a pressão, baixa a pressão e aquele negócio todo. Agora de ir para médico, para hospital, eu não conheço nenhum caso, não. Só esses casos aqui que passam mal, que a gente abana. É que se for para você tomar o guaraná e ficar sentado ou para você deitar numa rede, não vale a pena. Tem que tomar o guaraná para fazer alguma atividade. Alguma atividade que vá requerer energia, para ele poder fazer efeito em você. Porque senão o efeito que ele vai fazer em você se for deitar numa rede, se embalar lá, ficar tranquilo, é passar mal, tremer, você vai ficar doente: “Eu nunca mais quero tomar esse negócio aí!” Você tem que tomar o guaraná para fazer alguma atividade.
P/1 – Conta para mim do Festival Folclórico de vocês.
R – O Festival Folclórico acontece no meio de junho, só que o dia do Festival mesmo é no final de junho. A gente começa a trabalhar em maio. No meio de junho ele pega uma força muito grande, quando vêm as pessoas de fora, vários artistas de outras cidade, da cidade mesmo, de outros municípios que vem aqui para a ilha. Porque é o festival cultural do interior, onde várias comunidades do interior vêm apresentar suas culturas, suas danças, suas lendas, sua forma de identificar sua comunidade. Eu fui uma das pessoas que criei o primeiro festival daqui. Fiz um pequeno projeto e, graças a Deus, a Secretária de Cultura e Turismo aceitou e o pessoal da comunidade aceitou também. Foi aceito de primeira logo e deu certo. No primeiro ano, eu convidei várias comunidades. Agora já houve comissões, já está indo para o sexto ano. Começou em 2000 e está indo para o sexto ano e vem crescendo muito. A Prefeitura vem ajudando. De primeiro, era só a comunidade que se envolvia, só era o recurso daqui mesmo, o pessoal daqui mesmo. Mas do terceiro ano do festival para cá, a Prefeitura já investe, já manda uma quantia para as brincadeiras, uma quantia para as comunidades, para o Festival. A estrutura ficou grande, com arquibancada, com aqueles palcos imensos, jogo de luz, refletor para tudo quanto é lado. Uma estrutura muito grande mesmo, parece até que a gente não está mais na ilha de Vera Cruz, parece que a gente está numa cidade praiana, aquela estrutura toda de sonorização. O crescimento foi muito rápido. O pessoal de outros municípios vem ver, vem participar, vem trabalhar mesmo no Festival. No meio de maio começa o movimento. No começo de junho, o pessoal começa a chegar. Se mudam para a ilha mesmo, o pessoal arma a barraca na praia. São três dias de Festival, vem pessoas de outras comunidades e ficam os três dias. A ilha toda fica toda movimentada, toda enfeitada e tem também a disputa dos três bois. Lá em Parintins são só dois bois e aqui são três. E olha que é uma comunidade rural, hein! São os três bois: o Malhado, o Brilhante e o Garantido que é o ponto alto da festa, das três comunidades: de lá, daqui e da outra comunidade. Eles vêm concorrer, tem uma premiação para eles, tem os títulos, os troféus. Então o pessoal simpatiza. Na última noite, é só dos bois, só para apresentação dos bois. É uma hora e meia para cada boi se apresentar e o pessoal faz a festa, é muito legal. O pessoal participa aos montes mesmo. O pessoal atravessa tudo, vem de balsa, vem de barco, freta um barco, faz qualquer coisa para estar aqui com a gente porque é muito divertido. Tem as toadas, tem os tambores, muitos tambores. É legal para caramba!
P/1 – A gente está colecionando um pouco causos da região, aquelas histórias que todo mundo conhece, que são coisas de Maués. A gente está pedindo para as pessoas que sabem, contar um pouco dessas histórias.
R – Para um tipo de cultura, uma certa sociedade, culturalmente mesmo, existe um pouquinho para cada coisa. Existe para o guaraná, existe para a mandioca. Do guaraná, eu me lembro porque existe duas versões. Tem a lenda que é apresentada na festa do guaraná mesmo, que é em novembro que acontece. O Festival do Guaraná dura três noites também, com várias atrações e no qual o ponto alto é a lenda do guaraná que se apresenta com vários figurinos, em volta de muita gente, em volta da cidade toda. Toma conta da praia da Maresia. Esse ano foi muito bonito porque eles chegaram numa balsa, tudo nas canoas, remando. Mas a lenda conta que a índia se apaixonou pelo guerreiro de outra tribo, a princesa Cereçaporanga, que era a índia mais bela da tribo dos Sateré-Mawé. Ela se apaixonou pelo índio Mundurucu, que também habitava a região de Maués. Os irmãos dela não permitiram que ela se casasse, a tribo não queria que ela se casasse, que ela se envolvesse com nenhum índio, com nenhum guerreiro. Ela era uma deusa para eles, ela era a índia mais bela, eles a adoravam demais porque ela era muito linda. Então veio um índio Mundurucu e conquistou a Cereçaporanga e daí saiu um romance bonito, aquele negócio todo. Quando a família, os irmãos, a tribo descobriu, passaram a caçar esse índio. E numa certa noite de luar, aquela história toda, acharam os dois dormindo na praia. Eles pegaram e mataram os dois. A família levou a índia para lá, para a tribo, e enterraram no meio da aldeia. De lá nasceu, depois, lá do túmulo onde ela foi enterrada, nasceu uma planta que chamaram guaraná. Então deram a ênfase na história, o guaraná com olho.
E já tem a história do mito que é do Curumim. A gente chama de Curumim o menino pequeno, até 12 anos, 13 anos, a gente chama de Curumim. Ele morreu também, e a mãe, para preservar os restos mortais, tirou o olho dele e enterrou. Dos olhos dele nasceu a planta que é parecida com o guaraná. Eu não tenho muita afinidade com esse mito, mas é parecido assim. Eles começaram a apresentar agora, nesses tempos. De uma época para cá eles começaram. Mas a lenda foi desde quando eu me entendi.
P/1 – E tem alguma lenda aqui da região que você acredita, que fala assim: “Não, isso não é história, isso é de verdade!”
R – Tem a lenda do Anselmo que o pessoal fala que é verdade.
P/1 – E qual que é a lenda do Anselmo?
R – A lenda do Anselmo é que ele era um rapaz que também morava em Maués e era muito cobiçado. O pessoal fala que o conheceu, até meus pais. Tem até um senhor que mora ali que conheceu bem o Anselmo, falou com o Anselmo. Ele era um rapaz muito cobiçado em Maués, filho de Maués e pescador. Teve um dia que ele saiu para pescar aqui na ilha, nessa que a gente chama de a Ilha das Conversas, em frente a cidade. Ele pescava ali, atrás da ilha num temporal que deu numa tarde. A cidade era bem um vila e todo mundo se conhecia. Ele saiu para pescar. Deu um temporal à tarde quando ele vinha atravessando e o temporal o jogou para cá, para essa praia, para essa ponta grande aqui. Essa ponta de praia, ponta da Maresia, que ela fica lá no meio do rio mesmo. Então o temporal o jogou para lá, foi um temporal muito forte, aquele temporal horrível que dá. O pessoal viu quando ele vinha atravessando e depois, quando passou o temporal, ele não chegou, não conseguiu atravessar. O pessoal o procurou e acharam só a canoa dele. Não o acharam mais, não acharam o corpo dele. Quando foi um certo temporal que deu, no dia seguinte, o pessoal viu o rastro de uma grande cobra na praia, subindo a praia. E a mãe dele conta que ele a visitou e que levou vários peixes para ela. Ela mostrou e, por isso, fica aí. É lenda, é história, um grande mistério. Porque morava só ele e a mãe dele. Só moravam os dois e ela foi lá. Ela disse que saiu de manhã cedo, fez o maior escândalo, o pessoal conta que ela saiu gritando na rua. Foi ela que falou que o filho tinha levado o peixe. Diz que só peixe bonito, só Tucunaré, lindo mesmo. Assim que o pessoal conta. Que viram os peixes e os peixes de primeira classe. Peixe que ela gostava. E pelos rastros que apareceu naquela noite, do temporal, que apareceu, atravessando a praia, cortando no meio, o pessoal deduziu que era uma cobra. Ou seja, que ele se encantou, se transformou numa cobra, alguma coisa assim, que subiu e que foi visitar a mãe dele. Tem a lenda do Anselmo, que é a cobra da ponta da Maresia. Porque só existe em Maués, não tem outra cidade que possa contar essa história. O pessoal tem um pouco de receio para atravessar o rio, às vezes. Vários acidentes já aconteceram que também não acharam: “Ah, o Anselmo levou!” No carnaval, tem as escolas de samba aqui que também fazem homenagens ao Anselmo. Tem outras festas que fazem em homenagem a ele, ao Anselmo. O pessoal acredita muito nessa lenda, acha uma lenda bonita.
P/1 – Por fim, eu gostaria que você dissesse o que achou de contar essa história da sua vida?
R – Para mim é um prazer. É uma sensação muito diferente falar da vida da gente, falar do cotidiano, de valores que nós temos, que eu aprendi e que eu estou convivendo, que eu vivi, que eu vou viver. É um prazer muito grande, a gente contar, preservar isso dentro e passar para os filhos, passar para vocês que vêm de tão longe. E com certeza vocês vão levar coisas muito boas daqui. Para gente, é só esse prazer. Acredito que se eu tivesse na sua pele, eu talvez estaria pensando: “Puxa, é tão bonita a história”. Porque eu acho bonito. Eu acho bonito, porque se eu não achar bonito, quem vai achar bonito? Eu acho bonito porque é uma vivência que a gente gosta. Talvez só se eu não gostasse de viver aqui na Vera Cruz. Talvez se eu não gostasse de viver aqui na Vera Cruz eu contasse uma coisa totalmente diferente. Mas, como eu gosto, eu amo, eu adoro a vida que eu estou levando, que eu estou vivendo, para mim é uma coisa gratificante vocês estarem ouvindo a história da minha vida, a história da minha família, a história da minha cidade, a história de Vera Cruz. Esse prazer me deixa alegre, essa paciência de vocês estarem ouvindo isso, a atenção de vocês. Isso é gratificante demais para gente, isso é o maior valor que eu posso receber neste momento. Vocês virem aqui e documentar essa história para a gente, para o Brasil todo. Essa emoção eu quero compartilhar com vocês e, com certeza, vocês vão levar algo de bom.
P/1 – A gente agradece muito, Roberto, pela entrevista.
R – O agradecimento é todo nosso.
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