Projeto Memórias do Comércio São José do Rio Preto 2020/2021
Entrevista de João Dias
Entrevistado por Luís Paulo Domingues e Daiana Terra
São José do Rio Preto, 30 de abril de 2021
MC_HV066
Transcrito por Selma Paiva
Conferida por Daiana da Costa Terra
(02:40) P1 – ‘Seu’ João, pra começar, eu gostaria de saber do senhor, que o senhor falasse seu nome completo, a data de nascimento e o local que o senhor nasceu.
R1 – Eu nasci dia 2 do nove de 1949, em General Salgado, é bem próximo daqui, cento e dez quilômetros daqui.
(03:02) P1 – Sim. E o seu nome completo é João Dias ou tem um nome no meio?
R1 – João Manoel Dias.
P1 – João Manoel Dias.
R1 - É, eu sempre usei assim… o meu nome na profissão, João Dias Alfaiate.
(03:21) - P1 – João Dias. Perfeito. E qual que é o nome do seu pai e da sua mãe?
R1 – Meu pai, Osvaldo Manoel Dias; minha mãe, Maria Umbelina Dias.
(03:34) P1 – Certo. E o senhor chegou a conhecer os seus avós?
R1 – Da parte da minha mãe eu conheci o avô e a avó. Da parte do meu pai eu conheci só a avó. Eu não me lembro do meu avô.
P1 - Sim.
R1 - Eu era muito pequeno e não me lembro dele.
(03:54) P1 – O senhor sabe o nome deles, pra falar? O senhor se recorda o nome dos quatro?
R1 – Sei. Do meu avô, pai do meu pai, Joaquim Manoel Dias e minha vó Ana Maria de Jesus.
(04:10) P1 – Sim. E da mãe?
R1 – Da mãe, José Pedro Rocha, o pai e a mãe, Ana também, Ana Rocha.
(04:25) P1 – Sim. Muito bom, ‘seu’ João. E o senhor teve irmãos? Tem irmãos ainda?
R1 – (risos) Nós somos apenas em 13… 13 irmãos, é...
P1 - Vixi...
R - 11 vivos… 11 vivos. (risos)
(04:41) P1 – Onze vivos. Que legal!
R1 - Onze, é.
P1 - E, por acaso, o senhor sabe a origem da sua família? Eles vieram, lá pra trás, vieram de Portugal ou estavam em Minas Gerais ou por aí, mesmo, perto? Como que eles chegaram aí, na cidade que o senhor nasceu, que o senhor falou agora?
R1 – É… O meu avô, pai do meu pai, era baiano.
P1 - Baiano.
R1 – Baiano. A esposa dele, mineira.
P1 - Mineira.
R1 - Mineira. O meu avô, pai da minha mãe, também baiano e a avó, também mineira.
P1 - Também mineira.
R1 - Uma mistura de raça, né?
P1 - Certo. Olha que...
R1 - Cobra com jacaré.
(05:34) P1 – (risos) Sim. Pegou uma boa parte do Brasil, assim, bem dentro do Brasil. E, ‘seu’ João, como era o nome da cidade? João Saldanha? João Salgado?
R1 – Não, General Salgado.
(05:50) P1 – General Salgado. O senhor sabe como é que eles foram morar lá, como é que eles pararam lá?
R1 – Quem morou lá foi o pai e a mãe do meu pai.
P1 - Ah, sim.
R1 - É, ele trabalhava aqui em Neves Paulista, ele formou uma lavoura de café ali, de cinquenta mil pés de café.
P1 - Olha.
R1 - Aí, teve um ano que teve uma geada, que acabou com a lavoura dele, aí ele ia embora pra Presidente Venceslau...
P1 - Sim.
R1 - ... de mudança, que lá tinha o irmão dele e, chegando em General Salgado - eles estavam mudando de carroça e seis burros.
P1 - Sim.
R1 - Em General Salgado – à noitinha pousaram na casa de um compadre, aí o compadre falou assim: “Eu tenho uma fazendinha aqui vendendo”. Aí ele falou: “Vamos ver”. Aí, chegou lá na fazendinha, cento e vinte alqueires, cento e oitenta mil réis.
P1 - Olha.
R1 - Em 1932… Aí… é... (risos)
P1 - Muito bom
R1 - Esse dinheiro ele tinha na boiaca. Comprou a fazendinha à vista e ficaram por lá.
(07:15) P1 – Ai, que legal! Depois disso, o senhor sabe como é que seu pai conheceu sua mãe? Foi lá?
R1 – (risos) O meu avô… O meu avô, pai do meu pai, morava ali em Neves Paulista, tocava café lá, conforme eu te disse.
P1 - Sim
R1 - E meu avô, pai da minha mãe, morava também na redondeza, Nipoã, Vila União…
P1 - Sei.
R1 - ... e, no domingo que eles... cada um foi numa igreja lá, e ali os dois baianos disse, ó: “Cria essa menina”. Não, o baiano pai da minha mãe: “Cria esse moleque, pra casar com a minha filha”.
P1 - Sei.
R1 - Aí, na época, que estava pronto pro casamento: “Ó, está pronto o casamento aqui”. Aí casaram. (risos)
(08:09) P1 – Casaram.
R1 – É e nós somos em 13 irmãos, eles viveram juntos 36 anos, desquitaram porque não combinavam. (risos)
(08:26) P1 – (risos) Olha! Muito bom! Ô, ‘seu’ João, e por acas… e eles continuaram no ramo do café, na lavoura, seu pai e sua mãe? O que que eles faziam?
R1 – Não. Aí o meu avô, já em General Salgado, na fazendinha dele, ele mexia com lavoura: milho, arroz e assim, na época, eles tinham monjolo. Você já ouviu falar nisso?
(08:58) P1 – Já, eu já vi. Aquela roda d’água.
R1 – Então… Isso, isso, isso. Ele tinha isso na fazenda. E ali beneficiava o arroz, fazia o fubá e trazia pra Monte Aprazível, de carroça, com seis burros.
P1 - Sim.
R1 - E ali trocava a troco de açúcar, querosene, sal e levava pra ele e os vizinhos, sitiantes também.
P1 - Certo.
R1 - Assim era a vida deles, é.
P1 - Olha.
R1 - E o meu avô… o meu avô, pai da minha mãe, já morava em Estrela D’Oeste e mexia com rapadura, tijolo baiano. (risos)
(09:46) P1 – Sim. Que era _______ (09:50)?
R1 – Isso. É. E depois que meu avô, pai do meu pai, faleceu, meu pai era o filho caçula e ele ficou com a fazenda, foi comprando a parte dos irmãos…
P1 - Sim.
R1 - ... de um, de outro e chegou ao ponto que ele ficou sozinho na fazenda. Um irmão foi pra Votuporanga e o outro foi pra Urânia, os dois últimos também, que estavam na época, né? E ele ficou em General Salgado, depois vendeu parte da fazenda pra pagar os irmãos e ele ficou com cinquenta alqueires, né?
P1 - Certo.
R1 - E ficou lá até morrer, em 2000.
(10:41) P1 – Nossa!
R1 – É. Mexendo também com gado de leite, meu pai.
(10:49) P1 – Muito bom. ‘Seu’ João, e quando o senhor nasceu, o senhor nasceu na fazenda ou na cidade?
R1 – Na fazenda… Na fazenda. Na beira do córrego. (risos)
(10:59) P1 – Na beira do córrego. (risos) E o que que o senhor lembra… E o que que o senhor lembra de quando o senhor era criança, lá na fazenda? O que o senhor fazia lá? Como é que era o ambiente? O senhor lembra?
R1 – Ó, eu fui uma criança feliz. É, tudo que eu tive na infância, essa molecada de hoje nem pensa em ter.
P1- Sim.
R1 - Eu… Nós somos em 13 irmãos, conforme eu te disse e eu tinha um irmão mais velho do que eu dois anos, né, e nós crescemos juntos… É, crescemos juntos... Então, nós trabalhávamos na fazenda, acompanhava retireiro, quem trabalhava ali, né? E, por fim, eu e esse meu irmão que assumimos o sítio lá.
P1 - O sítio.
R1 - É, já que depois meu pai tinha vendido parte da fazenda, pra pagar os irmãos. Ficou com cinquenta alqueires, né? Aí eu e meu, a gente ficou no comando. Nós era… nós tiráva leite, roçáva pasto, e tudo… tudo nós fazía ali.
(12:10) P1 – E o senhor se divertiu muito na infância, na fazenda? Porque podia nadar no rio, podia andar a cavalo...
(12:19) P2 –É.. Eu ia perguntar, ‘seu’ João, quais as brincadeiras que o senhor tinha, assim, quando era criança.
R1 – Era isso aí: era nadar nos córregos; andar a cavalo; roubar melancia nos sítios dos vizinhos, sendo que nós tínhamos tudo isso no nosso sítio, né, mas a do vizinho era mais gostosa. (risos) Jogava bola. O sítio, lá, era uma bênção. Todas as ruas da cidade terminavam em sítio.
(12:55) P1 – Ah, é?
R1 – Então… É. Aí, na parte da manhã eu e meu irmão tirava leite e, após isso, eu ia pra cidade, aprender a profissão de alfaiate.
(13:09) P1 – Ah, o senhor já ia aprender a ser alfaiate, é?
R1 – Isso, na cidade. Eu fui aprender, né, de garoto.
P2 - Que legal!
R1 - Com 12, 13 anos que eu comecei.
(13:22) P1 – Sim… ‘Seu’ João, pode explicar como foi.
R1 – A gente, de criança, que entra numa alfaiataria, começa a aprender a arrematar calça, fazer bolso de calça e vai indo, até que começa a fazer calça. Aí, daí pra cima.
P1 - Sim.
R1 - Eu dei muita sorte… Pode falar, pode falar.
(13:55) P1 – Desculpa eu te cortar, porque às vezes a gente num… certinho… Existe uma hierarquia, né, no alfaiate: primeiro é aprendiz, depois oficial. Como é que é?
R1 – É, primeiro é gancho, arrematador de calça. Gancho, é. Depois começa a aprender a fazer calça, é aprendiz. Depois já parte pra paletó, é oficial de paletó. E eu dei sorte. Eu, com 17 anos, eu já era oficial de paletó.
P1 - Olha!
(14:24) P2 – Sim. ‘Seu’ João, já tinha alguém na família do senhor, com essa profissão de alfaiate?
R1 - Não.
P2 - De onde surgiu o senhor querer ir pra cidade, pra ser alfaiate?
R1 – Na cidade, era pequena, então a molecada, uns partiam, vamos supor, aprendiz de padaria; outros, mecânicos. Tinha lá a Nestlé também, né? Sapateiro. Então, eu queria ser, mesmo, na época, mecânico. Eu tive chance de ser torneiro mecânico. Aí minha mãe falou: “Não, suja muito a roupa”. Aí eu fui pra alfaiataria, que era um serviço limpo, muito importante.
(15:15) P2 – Ótima escolha!
R1 – É. Aí, em 1971 eu fui pra São Paulo. Janeiro… janeiro de 1971 fui pra São Paulo, já era casado nessa época, deixei a esposa aqui em General Salgado, que nós já tínhamos a primeira filha e fui pra São Caetano do Sul, bairro Fundação.
P2 - Conheço.
R1 - Aí trabalhei lá um mês, assim, experiência, gostei e vim buscar a família e ficamos até 1984, até 20 de maio de 1984.
P1 - Sim.
R1 - Aí viemos embora pra São José do Rio Preto.
(16:08) P1 – Certo. Ô ‘seu’ João, quando o senhor era criança, então o senhor já aprendeu o ofício de alfaiate em General Salgado, mas e a escola? O senhor não ia na escola também?
R1 – Ia também. Ia.
(16:24) P1 – Dava pra ir a pé, do sítio? Dava pra ir apé?
R1 – Era três, quatro quadras a escola. Ia a pé. É. Ia pra escola e até nisso, enquanto a gente não tirou diploma de grupo, o que a gente fazia no sítio, a gente ajudava os retireiros, que trabalhavam, na época. Depois é que nós passamos, já esse meu irmão, eu tinha acho que 14 anos, ele 16, aí que nós assumimos direto o sítio.
(17:08) P1 – Ah, certo. E a profissão, e pra aprender ser alfaiate, foi com quantos anos que o senhor começou aí na cidade, aprender?
R1 – Doze anos. Doze pra treze anos.
P1 - Doze pra treze anos.
R1 - É. E aí nós só tirava o leite de manhã… é… e a escola estudava… é. Tirava o leite, ia pra escola, voltava, aí ia pra cidade, aprender a profissão.
P2 - Nossa, o… Pode falar. Desculpa, ‘seu João’, depois eu falo, pode falar.
R1 - É, duas horas da tarde ia apartar a vaca, pra prender os bezerros, pro outro dia cedo, de novo, tirar leite. E, nesse meio de tempo, né...? Aí meu irmão, que.. que ele era fixo no sítio, né, então ele que ia... essa parte era dele. E eu, só de manhã, o ajudava a tirar leite, só.
(18:05) P1 – Certo.
(18:11) P2 - Nossa então o senhor tipo… Desculpa Luís, só pra... O senhor, jovem, então, já tinha toda essa rotina? tipo: acordar cedo, tirar leite da vaca, depois ir pra escola, depois aprender a profissão, depois voltar pro sítio e essas brincadeiras que o senhor comentou ficavam mais, então, pra final de semana? Porque o senhor já tinha uma rotina de gente grande, (risos) né?
R1 - Tinha.
P2 - Com 12, 13 anos.
R1 – É. A gente num… a gente vê essa molecada de hoje, igual eu tenho neto com 22 anos. Então, nessa idade, já era pai. E o neto, hoje, não está nem aí pra cor da chita. E, apesar que eu só tenho grau primário, os estudos hoje, de grau primário, é muito fraco, da minha época. Muito fraco, muito fraco.
(19:17) P1 – Sim, é verdade. Ô ‘seu’ João, nessa época que o senhor aprendeu a profissão, em General Salgado, existia muito cliente pro alfaiate, assim? Dava pra ganhar...
R1 – Dava. Mas lá dependia de lavoura… lavoura de milho, lavoura de algodão, então… É, principalmente de algodão, que era uma terra lá de... né? então, nessa época, a gente trabalhava muito. Muito, muito, muito.
(19:57) P1 – Sim. Mas numa cidade tão pequenininha, tinha um alfaiate com clientela? Porque isso...
R1 – Não tinha um alfaiate. Tinha três.
P1 - Tinha três?
R1 - Três alfaiatarias. É. Três. Só que eu dei sorte… eu trabalhava e aprendi com o melhor, que era um italiano velho...
P1 - Sim.
R1 - ...que era de Ariranha.
P1 - Sim.
R1 - Eu dei muita sorte. (risos)
(20:25) P1 – Olha, que bom! Mas então não tinha loja de roupa pronta? Todo mundo tinha que fazer no alfaiate?
R1 – Tinha a Pernambucanas, mas não tinha igual hoje: terno, em loja. Não tinha, né? Então, aqueles fazendeirão, né, vinha lá fazer roupa, terno de linho, que era o auge, né, o linho.
(20:51) P1 – Sim. E, ‘seu’ João...
R1 – Casamento… casamento... a gente fazia muita roupa. Noivos, padrinhos. Era desse tamanho aí.
(21:03) P1 – É que hoje em dia é raro, né, ter alfaiataria. Naquela época era popular, né? Todo mundo tinha que ir, né?
R1 – Isso, isso. Aí, igual pra nós, depois, agora, de um certo tempo, o que começou a atrapalhar nós, foi as alugadora de roupa, que derrubou o alfaiate. Porque hoje, no caso, você vai numa alugadora, digamos com trezentos, quatrocentos reais, você sai prontinho de lá pra ir prum casamento.
(21:38) P1 – Sim.
(21:39) P2 – Às vezes até menos, né, ‘seu’ João?
R1 – Até menos. Até menos. Depende a loja, é.
P2 - A loja.
R1 - É. E, no entanto - eu trabalho ainda – no entanto, eu cobro hoje, pra fazer um terno, oitocentos reais. Não tenho muito, mas tenho uma clientela à altura.
P2 - Sim.
R1 -Eu faço roupa pra juiz, pra médico, pra advogado, pastor de igreja. Igual agora, agora, ultimamente, do ano passado pra cá, está ruim com essa pandemia aí, né? Então, agora, ultimamente agora, eu estou vivendo (risos) nas custas da minha filha. (risos) Da Kely, é. Mas… Igual ela está aqui do lado e ela falou que ela está retribuindo o que a gente fez pra ela.
(22:37) P1 – Ah, mas claro!
R1 – É.
(22:40) P1 – Ô ‘seu’ João…
R1 - Oi.
P1 - Como é que o senhor conheceu a sua esposa? Que época que foi, lá em João… General Salgado?
R1 – Lá em General Salgado. Época de festa de igreja. É… Correio Elegante. Eu fui levar um Correio Elegante pra ela, de um colega meu de escola: (risos) “Acha eu quero alguma coisa daquele traste?” Aí, né... “E se fosse meu?” “Ah, se fosse seu, eu queria”. Aí começou.
(23:15) (risos) P2 - Olha, que bom! (risos)
R1 – É. Em 1967, por aí.
P2 - Uhum.
R1 - É. Fim de 1966… fim de 1966, começo de 1967. Festa de igreja, mês de setembro, que era data de aniversário da cidade.
P2 - Uhum.
(23:39) P1 – Certo. E aí deu certo? Deu certo… Conheceram, como que começou a namorar, assim?
R1 – Que a gente trabalhava, assim, também, vizinhos. Ela era empregada doméstica na casa de um ricaço lá e eu trabalhava ao lado. Então, a gente estava sempre vendo, né? A hora que eu chegava no serviço ela estava por ali. A hora que eu saía. E assim. E faz apenas 52 anos.
(24:13) P1 – Certo. Que bom! Legal.
R1 – E estamos juntos e misturados, ainda. (risos)
(24:20) P1 – Ótimo! Que legal! ‘Seu’ João, e como é que foi a parte que o senhor foi pra São Paulo? Em São Paulo, como é que foi, chegar numa cidade tão grande? O que que o senhor sentiu, assim?
R1 – Olha, o impacto foi grande. O lugar, a cidade ‘mais grande’ que eu conhecia, na época, era aqui, São José do Rio Preto. Então, esse convite pra ir pra São Paulo, eu estive lá em Salgado: uma pessoa foi lá procurar a gente, pra levar pra São Paulo.
(24:55) P1 – Sim.
R1 – E tinha ido, um ano antes, um colega meu. Aí, quando esse rapaz voltou pra Fernandópolis, pra se casar, eu fui substituir ele. Aí ficamos lá.
(25:11) P1 – E era o quê? Uma fábrica de terno ou era uma alfaiataria?
R1 – Alfaiataria. Calça, terno e o cara, o dono da alfaiataria, não era alfaiate, ele era curioso. Ele trabalhava na General Motors.
(25:29) P2 – Que legal!
R1 – E comprava… E montou a alfaiataria, que antes ele vendia roupa feita, sapato, cinto, na portaria. Aí deu um tic nele de montar a alfaiataria e pôr gente pra trabalhar.
(25:43) P2 - Então ele meio que quis montar o próprio negócio e foi buscar gente especializada nisso, já que ele não era.
R1 – Isso. Ele não era, é.
(25:53) P2 – Que interessante!
R1 – É interessante.
(25:56) P1 – E onde é, o seu trabalho?
R1 – Hoje ou quando eu fui pra São Paulo?
(26:03) P1 – Não, lá em São Paulo.
R1 – No bairro Fundação, em São Caetano do Sul. Aquelas enchentes que davam lá em Mauá, que vinham levando tudo embora, passavam em frente a alfaiataria.
(26:21) P2 – Nossa!
R1 - Eu via lancha do Corpo de Bombeiros passando na rua, socorrendo as coisas. (risos)
(26:30) P1 – Sim. Aí o senhor foi buscar a sua família, que o senhor já tinha uma filha, né?
R1 – Sim.
(26:39) P1 – O senhor… Foram morar tudo lá em São Caetano do Sul?
R1 – Aí fui morar na Vila Alpina, próximo ali também, próximo. É, Vila Alpina.
P1 - Sim.
R1 - E pegava essas enchentes tudo também. Nós morávamos num lugar baixo. É. E outra coisa: levamos uma filha e quando essa filha fez um ano, no mesmo dia nasceu o segundo filho.
P1 - Olha.
R1 - No mesmo… é… No dia 25 de maio de 1970 é a filha e 25 de maio de 1971 o filho.
(27:21) P1 – (risos) Faz aniversário no mesmo dia, os dois?
R1 – No mesmo dia, é. Naquele tempo funcionava a raiz quadrada. (risos)
(27:32) P1 – Era calculado.
(27:39) P2 – Ô ‘seu’ João…
P1 - Fala, pode falar…
P2 - Obrigada, Luís. ‘Seu’ João, e como foi pra o senhor se acostumar a São Paulo? O senhor falou que a cidade maior era Ribeirão Preto, vai.
R1 – São José do Rio Preto.
(27:48) P2 – Naquela época devia ter menos do que tem hoje, setecentos mil habitantes. São Paulo já é uma megalópole. Como o senhor se adaptou?
R1 – Aqui, São José do Rio Preto. Aí eu fui pra lá, foi aquele impacto grande, a gente ficou assim, né? Mas depois fomos acostumando, muito serviço, ganhava bem, não era igual hoje, que as mulheres precisa trabalhar pra ajudar o marido. Naquele tempo não precisava, eu dava conta do recado. (risos) E era assim, né?
P1 - E lá o senhor… Pode falar, desculpe. Pode falar.
R1 - Em São Caetano, com essa pessoa que eu fui pra lá, eu trabalhei com ele acho que quatro pra cinco anos. Depois eu fui trabalhar na Vila Carioca, ali na Vemag, com outro alfaiate, um costureiro chique, um costureiro da alta, ali, Toninho Pestana.
(28:47) P1 – Olha!
R1 – É. Aí ele fez mil e uma promessas pra me levar de lá onde eu estava, né, aí também foi um ano e pouco. Aí tive uma outra oferta de serviço em São Caetano. Aí fui pra lá e fiquei em São Caetano, aí logo em seguida fui trabalhar por conta também e ficamos lá até 1984.
P1 - Certo.
R1 - E não ficamos mais por causa desse infeliz desse ex-presidente de vocês aí, esse infeliz desse Lula. Em 1984 ele acabou com o ABC pelas greves, desemprego. Ele era presidente do sindicato.
P1 - Sei.
R1 - Aí foi quando ninguém tinha serviço. E eu estava ali no miolo, ali no ABC, aí viemos embora pra São José do Rio Preto.
(29:46) P1 – Olha! Foi uma crise econômica que deu, né? Crise?
R1 – Foi. Então, essa crise que nós estamos passando agora, nós tivemos lá, em 1984, no ABC.
P1 - Sim. Ô ‘seu’ João…
R1 - São Paulo… São Paulo não era muito, assim, não atingia muito, porque era outro nível de coisa, né? Agora, o ABC eram as grandes indústrias, fábricas de carro, né, GM, Ford, Mercedes, tudo era ali no ABC. São Caetano, São Bernardo, Santo André, né?
(30:28) P1 – E ‘seu’ João, aí, em São Paulo, o senhor atingiu o posto de alfaiate principal, né? Porque antes o senhor era oficial.
R1 – É. Isso, eu trabalhava pra outras pessoas. Aí eu comecei a trabalhar por conta, em São Caetano, no bairro Nova Gerti. Fui trabalhar em casa, na sala de casa.
P1 - Certo.
R1 - E ali, dali, dessa sala de casa, passou-se uns tempos, aí eu aluguei salão, abri salão em dois lugares, depois voltamos pra Rua Iguassu, chegando no Rudge Ramos. Ali era uma casa grande, que eu ocupei a sala da frente, uma janela de vidro muito grande e os ônibus que ia pra Mercedes, pra Ford, pra Volks, passavam todos ali em frente. E eu trabalhava muito. Seis horas da manhã minhas lâmpadas já estavam acesas.
P1 - Certo.
R1 - E dez, onze horas, meia-noite é que eu estava indo descansar. Então, o povo que passava e me via ali trabalhando pensavam: “Esse cara é bom, né?” (risos)
(31:50) P1 – E, ‘seu’, João, como é que o senhor conseguia os clientes? O senhor tinha que fazer propaganda ou as pessoas passava ali mesmo?
R1 – Não. Boca a boca. Quando eu comecei… Quando eu comecei, eu fazia as calças daqueles uns, aqueles primeiros clientes e deixava a barra da calça pra terminar a hora que ele chegava. Ele chegava: “Ô, tô terminando”. E ali tinha uma mesinha com cigarro, com cerveja. (risos)
P1 - Certo.
R1- Então, eles pensou que o alfaiate era tonto, mas ele trazia os amigos depois.
(32:36) P1 – É. Sim.
R1 - Aí eu peguei uma grande clientela, na Vila Bela. O povo que trabalhava na algodoeira. Aqueles cearenses, aqueles nortistas que trabalhava na algodoeira vinha tudo fazer roupa comigo.
P1 - Sim.
R1 - Então, ali… É, então a gente trabalhou muito, muito mesmo.
(33:00) P1 – Ô ‘seu’ João, nessa época todo mundo usava terno?
R1 – Usava. A maior parte.
(33:10) P1 – Até pra passear… Até pra passear, pra sair?
R1 – É. Até pra ir no cinema usava terno, nessa época. Você mora em São Paulo?
(33:20) P1 – Não. Eu já morei. Agora eu moro em Bauru.
R1 – Ah, Bauru. Certo.
(33:26) P1 – Mas eu já morei em São Paulo, cinco anos.
R1 – Ah! Quando eu comecei a trabalhar por conta, eu comprava tecido numa loja de turco. Loja Bussab. É ali no… perto do Mercadão, aquele larguinho no Parque Dom Pedro, ali.
P1 - Sei.
R1 - Dali já parti pro Caseli, turco também. Depois, Ronaldo Silva Santos.
P1 - Sim.
R1 - Aí, reto e direto. Agora, depois que eu vim embora, eu ainda compro lá, na Avenida Paes de Barros, numa loja grande que chama Markbel.
P1 - Sim.
R1 - Eu peço o tecido hoje, antes do almoço, amanhã, nove horas, dez horas, está na minha porta.
(34:26) P1 – Olha, que legal!
R1 – É. Aí, dentro da caixa, vem o boleto do banco, aí eu pego, vou no banco, pago. Azar o meu se eu não pagar! Senão, eles me cortam o crédito. (risos)
(34:43) P1 – Pois é. (risos)
R1 – Faz uns trinta anos que eu compro nessa loja agora, essa Markbel. É a principal.
(34:53) P1 – E tem algum segredo pra escolher os panos, né, a qualidade dos panos? Vem de outro país ou é feito no Brasil? Como que é?
R1 – A gente tem mostruário. Um minutinho só, Luís.
(35:12) P1 – Tá, tudo bem.
R1 – Oi! Ela me chamou, pra falar, a Miriam, foi bem lembrado. Em 1984, quando a gente veio embora pra cá, pra São José do Rio Preto, igual, aqui, eu soltei mil cartões na cidade...
P1 - Sim.
R1 - … Não veio um cliente.
P1 - Sério?
R1 - Depois fiz anúncio no jornal, veio um. Então, aquela clientela boa, minha, de São Paulo, eu ia lá, atendia eles, voltava, fazia, ia levar, até eu engrenar aqui. Aí, aqui eu conheci um colega bom também, na profissão, né, famoso e nós começamos a trabalhar juntos. Aí resolveu o problema. (risos) E estamos juntos até hoje.
(36:26) P1 – Sim, sim. É… viu, ô ‘seu’ João...
R1 – Nós estávamos falando dos tecidos.
(36:35) P1 – É, dos tecidos. Como que o senhor escolhe o seu material, o seu tecido?
R1 – A loja fabrica mostruário. Muito chique! E manda pra gente as cartelas, mas muito chiques. Aí os clientes chega, a gente apresenta aquilo lá pra eles, tem a ordem do tecido, tem o número, né? E a gente compra por ali. E hoje a gente trabalha com... o forte é tecido da Classic, da Paramount.
P1 - Sim.
R1 - Classic. Agora, hoje, acima deles tem um tecido também muito importante, do Peru.
P1 - Ah, do Peru?
R1 - Muito chique. É. O Super 120, pra terno, pra calça. E pra camisa a tricoline 100% algodão, fio 120. É o melhor que tem. É do Peru. Fora, depois, os outros, italianos, né? Esses uns aí, é muito caros.
(37:43) P1 – Então, e existe ainda pessoas que pedem isso? Tecido da Itália, aqueles tweeds da Inglaterra, né? Tem da Inglaterra, também?
R1 – Existe. Existe. Só que não tanto quanto a gente vendia em São Paulo. Porque aqui, uma pequena parte da clientela não importa preço. Agora, a maior parte já quer preço e não quer qualidade.
(38:16) P1 – Sim. E faz muita diferença mesmo? Um tecido italiano é muito diferente desse aqui?
R1 – Ó, faz, faz diferença. Mas esse Classic não deixa a desejar pros outros, não.
(38:34) P1 – É mesmo?
R1 – É. É muito bom.
(38:37) P1 – Ô ‘seu’ João, legal. E quando o senhor veio pra Rio Preto, como é que foi? O senhor … quando o senhor veio pra Rio Preto o senhor disse que foi muito difícil o começo, né?
R1 – Foi muito difícil.
(38:54) P1 - Aí, como é que o senhor se arrumou? O senhor abriu uma loja, trabalhou em casa? Como foi?
R1 – Trabalhei em casa uma temporada, até abrir a alfaiataria. A minha alfaiataria, que eu abri, foi dia 20 de agosto de 1987. Já num bairro da cidade, do Centro.
P1 - Sim.
R1 - E estou ali até hoje. Nessa… O primeiro salão que eu aluguei pra pôr a alfaiataria, eu fiquei nele 11 anos.
P1 - Sim.
R1 - É. Depois dele, aí já tinha aquela clientela: “Ô, você precisa melhorar isso aqui, né, arruma um lugar um pouco melhor, mais bonitinho”. E realmente ele era feinho, mesmo. (risos) É. A aparência era feia, mas tinha serviço.
(39:52) P1 – Serviço bom, né?
R1 – Bom, bom.
(39:55) P1 – Onde que era?
R1 – No Bairro Boa Vista, onde eu estou até hoje, perto da Santa Casa. É uma quadra pra cima de uma das avenidas principais, da Bady Bassitt.
(40:10) P1 – Sim, conheço a Bady Bassitt. É lugar bom, hein!
R1 – Então. Você conheceu, ali, na Rua Siqueira Campos, antigamente, onde era aquela escola famosa, o Anglo?
(40:23) P1 – Eu passei ali na frente quando eu estava fazendo a pesquisa, sim, na Siqueira Campos.
R1 – Isso. Ali, na metade do quarteirão da Bady pra cima, do lado esquerdo, depois do Anglo, foi Seta, hoje é o SEB COC.
P1 - Sim.
R1 - Ele está no meio da quadra, subindo, da Bady pra cima e eu estou na esquina, do lado direito.
(41:25) P1 – Sim. ‘Seu’ João, e aí, como que os clientes... o senhor conseguiu, o senhor e o seu sócio conseguiram bastante clientes em Rio Preto?
R1 – Conseguimos, bastante. Na época ainda de lojas famosas de tecidos, que tinha também, na cidade. Lojas em shopping, né, que tinha também. Agora, a maior parte de loja de tecido da cidade, hoje só existe três loja, de tecido na cidade. Uma é boa, uma é boa e duas são médias. Mas é… Mas o forte, meu, dos tecidos que eu compro, é tudo em São Paulo, aqui eu compro muito pouco.
(42:20) P1 – Ah, tá certo. ‘Seu’ João, e quem são seus clientes, hoje em dia? Quem é que busca um alfaiate, pra fazer um terno bonito?
R1 – Eu tenho, digamos, juiz de Direito que faz roupa comigo; eu tenho promotor; vários advogados; vários médicos que a gente faz roupa e também as pessoas que passam na rua, que veem e aqueles uns informam outros e vai indo, vai indo. Há um certo tempo atrás… Há um certo tempo atrás, eu não pegava conserto de roupa pra fazer. Agora, hoje, com essa crise danada, hoje bem dizer a gente está vivendo de conserto de roupa. O forte, hoje, é conserto.
(43:19) P1 – É, por que pra fazer o terno é muito caro ou por que as pessoas não têm como pagar e elas preferem consertar a calça?
R1 – Não. A calça, no caso, não é tão cara. Agora, o terno é caro.
P1 - Sim.
R1 - Hoje uma média - que a gente só trabalha com tecido de médio pra melhor. Tecido inferior não vale a pena, não paga o feitio.
P1 - Sim.
R1 - Eu cobro oitocentos reais pra fazer o terno e vendo o meu tecido por mil e duzentos, mil e trezentos, daí pra cima.
P1 - Sim.
R1- Então, é por aí.
(44:10) P1 – E, ‘seu’ João, eu, que não conheço, porque quando eu fui crescendo, já não tinham tantos alfaiates, né, faz diferença mesmo um terno feito sob medida no alfaiate, ou aquele comprado na loja, já, pronto, que você tem que escolher o número?
R1 – (risos) Tem…
P1 - E como é…
R1 - 80% de diferença.
P1 - Sim.
R1 - É. Agora, assim, uma confecção assim, média, dá diferença do nosso serviço de 70 a 80%, o nosso serviço superior. Mas hoje já tem também muita confecção boa.
P1 - Certo.
R1 - Muito, muito, muito boa. E… Só que essas confecções boas são vendidas no shopping, numa Brooksfield. Uma confecção boa dessa, um terno custa três mil reais. Daí pra lá. E eu vendo o mesmo tecido deles, que eles cobram três, eu vendo por mil e oitocentos, dois.
P1 - Sim.Sim. Ô ‘seu’...
R1 - Ali no shopping eles não compram roupa, eles compram etiqueta.
(45:46) P1 – Ah, eles compram etiqueta, né? (risos) É verdade. É a marca.
R1 – É.
(45:53) P1 – Mas então dá pra ver, né, na pessoa, que o terno feito pelo alfaiate, ele veste muito melhor, né?
R1 – As roupas… As roupas que as pessoas compram na loja, traz pra gente fazer ajustes. Então, você vê eles durinha na rua, bonitinha, certinha, foi reformado no alfaiate.
(46:19) P1 – No alfaiate.
R1 – É, a roupa feita, é feito pelo peito e pela cintura. Agora, nós, não. Eu, pra fazer um blazer, eu tiro 12 medida. E depois ainda tem prova.
P1 - Sim.
R1 - Então, é tudo no seu lugar, tudo certinho.
(46:45) P1 – Foi bom o senhor contar isso aí. Como que é o processo? O cliente. Se eu for na sua casa e pedir pro senhor fazer o terno, primeiro o senhor tira a medida, como é que é?
R1 – Tiro a medida, aí eu peço o tecido, vem, eu corto, ponho em prova, ele vem e eu provo. Depois de provado, eu o desmancho ele todinho, é que eu vou recortar e começar a fazer. Eu trabalho um dia, pra depois começar a fazer a roupa dele. Um dia eu perco em prova. É assim.
(47:31) P1 – ‘Seu’ João, e qual é o mais difícil de vestir? A pessoa mais magra, mais gorda, o alto, o baixo...
R1 – O gordo. O gordo.
(47:44) P1 – O gordo é mais difícil?
R1 – O gordo é mais difícil. É.
(47:48) P1 – Por quê? O que que o senhor tem que fazer?
R1 – O gordo vai lá e pede uma calça no umbigo. Só que ele não usa no umbigo. Ele usa pra baixo da barriga. (risos)
P1 - Sim. (risos)
R1 - Então, você precisa ter a técnica de rebaixar a frente da calça dele ali, pra chegar ali onde ele quer.
P1 - Sim.
R1 - É assim. É.
P1 - Olha!
R1 - Agora, o magro não tem problema, o magro é beleza pra fazer a roupa dele.
P1 - Sim.
R1 - Ainda mais hoje, hoje com essas roupas aí slim, os caras praticando física aí, nessas… né, tudo tem o corpo bom. A não ser aqueles uns também, que ficam bombados, aqueles lá também é difícil. Aquele lá a gente fala ele de ‘estragadinho’. (risos)
(48:39) P1 – Sei, sei, sei. Ô ‘seu’ João, e o senhor faz propaganda, hoje em dia? O senhor anuncia no jornal? Ou senão, manda folhetinho, alguma coisa?
R1 – Já fiz muito isso aí, hoje não. Hoje não. Hoje a gente faz alguma propagandinha na internet aí, o Google, essas coisas, mas muito pouquinho. A gente já é conhecido no pedaço. A pessoa vai numa loja, no caso, comprar um tecido e pergunta: “Onde tem um alfaiate?” Eles já indicam a gente. Aqui teve muitos alfaiates, muito bons, muitos, mas ficaram velhos, a maior parte morreram, né? Eu estou aí, eu tô a caminho, com 71. (risos) Meu colega, setenta. Meu colega setenta, é. Mas eu, pela minha idade, estou muito bem ainda, viu? Eu estou tranquilo, sossegado.
(49:42) P1 – Sim. Outra coisa, ‘seu’ João: numa cidade tão quente como São José do Rio Preto, tem algum tecido especial, pra que fique mais fresco o terno?
R1 – A sarja, pra calça.
P1 - Hum.
R1 - A sarja, pra calça. Tricoline 100% algodão pra camisa e, pro terno de advogado, desse povo, é o Super 120, Super 150, que já é uma roupa cara.
P1 - Sim.
R1 - Isso aí é pra juiz, pra advogado, pra médico.
(50:26) P1 – Sim, legal. E, ‘seu’ João, como é que o senhor vive seu dia a dia, assim? De manhã o senhor já tem cliente pra receber? O senhor abre como se fosse uma loja, assim e atende… é… O senhor abre a loja, né? E fica lá esperando, só vai quando tem cliente, como que é?
R1 – Não. Eu, oito horas, nem está escuro, eu já estou lá no meu plantão de serviço. (risos)
(51:01) P1 – (risos) Sei, sei.
R1 – É. E aquelas pessoas que não podem ir até a mim, eu vou até eles. E eu não cobro custo pra ir visitar eles na casa deles.
P1 - Sim.
R1 - Não cobro. É. Então, tem aquelas pessoas que depois já ficam folgados, né? Só ligam: “Senhor João, apareça aqui”. E a gente já está indo.
P1 - Certo.
R1 - É assim. E ali também, no caso, né, porta... é loja térrea, né, salão térreo, porta pra rua e aí tem uns… aquelas pessoas que passam, aquelas pessoas que os filhos estudam ali na escola também, sempre estão levando alguma coisa pra gente fazer.
(51:48) P1 – Ah, que legal! O senhor usa vitrine? O senhor põe terno na vitrine, assim?
R1 – Não. Não. Eu tenho uma vitrine lá só pra guardar tecido e aviamento.
P1 - Ah sim.
R1 - A minha vitrine é a minha propaganda na parede: João Dias, alfaiate. (risos)
(52:13) P1 – Todo mundo já conhece, né, o senhor?
R1 – É. Então, é na Rua Boa Vista, a pessoa que passa ali está vendo ali e quem sobe também a Siqueira, que eu tô na... no cruzamento ali.
P1 - Sim.
R1 - Estou num ponto muito bom ali. Muito bom.
(52:29) P1 – Ótimo! Ô ‘seu’ João, o senhor pegou a época da caderneta? Todo comércio, no passado, tinha caderneta, né?
R1 - Certo.
P1 - Hoje a gente já paga no cartão de crédito. Naquela época tinha que ser no dinheiro ou marcava na caderneta. O senhor teve isso?
R1 – Tinha aquelas pessoas que vinham, assim, mais aquela amizade que tinha, né: “Olha, eu vou dar tanto hoje, tal dia eu venho pagar”. Então, a gente fazia, porque naquele tal dia que ele vinha pagar o resto, sempre encomendava mais alguma coisa. É. Agora, hoje, o que funciona é o cartão, né? Mas tem muita gente que não mexe com cartão. Muita, muita. Alguns ainda com cheque e outras dinheiro, mesmo.
(53:20) P1 – Dinheiro vivo, né?
R1 – Dinheiro vivo.
(53:23) P1 – Certo. E, ‘seu’ João, o ano passado começou a pandemia, né?
R1 – É, em fevereiro começou, né? Fevereiro, março, por aí.
(53:37) P1 – É, eu estava aí em Rio Preto. Eu estava fazendo a pesquisa, quando fechou tudo, né? E como é que o senhor viu isso? Como que o senhor... teve que fechar sua loja, como que foi?
R1 – Três meses fechado. De repente você passou por lá, não me viu, porque estava fechado.
P1 - Tava fechado.
R1 - É. A minha filha, essa caçula, a Kely, é enfermeira.
P1 - Sim.
R1 - É enfermeira formada na Famerp, aqui no Hospital de Base, é. Então, ela: “Pai, não põe nem o nariz pra fora do portão”. Ficamos dentro de casa aqui, três meses. E mesmo hoje… mesmo hoje eu e minha esposa já tomamos a segunda dose, ainda estão no nosso pé, ali, ó.
(54:33) P1 – Está certo, é perigoso. Mas aí, como é que o senhor se virou? O senhor fez alguma coisa por encomenda, pra entregar, ou não, ficou parado?
R1 – Não, nada. Paradinho, paradinho. Ela nos manteve nós aqui em casa. (risos) Manteve nós e ainda pagou alguma coisa da alfaiataria ainda: “Não, não vai lá, não, que está aqui. “É dinheiro o que o senhor precisa? Está aqui, toma”. (risos)
(55:00) P1 – Certo. Ô ‘seu’ João, e o que o senhor gosta de fazer, quando o senhor não está trabalhando? Rio Preto é uma cidade grande, tem bastante coisa pra fazer, né, o senhor gosta de ir onde?
R1 – Olha, rapaz, é uma pergunta boa! Mas a gente não sai.
(55:22) P1 – Não, hoje, por causa do vírus, né? Mas e quando não tem vírus?
R1 – É o seguinte, ó: a minha filha mais velha, em 2011, ela foi pra uma cirurgia, um tumor na cabeça e fez a cirurgia no Hospital de Base, era uma cirurgia de grande risco. Graças a Deus ela foi e voltou.
(56:00) P1 – Que bom!
R1 – É, mas ficou na cadeira de rodas nove anos…. na cadeira de rodas. Três anos. três anos foi uma tragédia. Ela teve quatro paralisias faciais, entortou a boca, ressaltou o olho.
P1 - Sei.
R1 - E três anos nós ali, ó, toda semana com ela no hospital, tratamento, tratamento, tratamento. Eu já trabalhava, no caso, 40%... 40%, 50% do meu tempo é que eu podia trabalhar, o resto era ajudar em casa, a cuidar dela.
P1 - Sim.
R1 - É. Infelizmente, agora em julho passado, 2020, 30 de julho, ela faleceu. Embolia pulmonar cardíaca. Água no pulmão.
(56:52) P1 – Ai, que tristeza!
R1 – É, muito triste. Muito. Ela nos deixou um filho. Hoje esse filho tem 22 anos.
P1 - Sei.
R1 - Mas, na realidade, ele tem 12. Ele é especial.
(57:13) P1 – Ah, ele é especial! Entendi.
R1 – É. E nós que cuidamos dele desde novinho, também.
(57:21) P1 – Então, o senhor acaba não passeando muito aí, porque o senhor acaba cuidando...
R1 – Não, não, não. O nosso tempo é limitado. Essa minha filha Kely, a caçula, também tem uma filha. E nós que cuidamos também. Minha esposa que cuida, bem dizer, né?
P1 - Sim.
R1 - Então, a vida nossa é 90% aqui em casa. Lá, de vez em quando, que a gente vai dar um passeio lá em General Salgado, que ainda eu tenho irmão lá, e ela tem a madrasta, tem o irmão lá também, né? Então, é assim.
P1 - Sim.
R1 - Quando essa minha filha era viva, a gente passeava mais. Mesmo ela cadeirante, só que era uma pessoa hiperinteligente. Ela era formada em Gestão Financeira. Ela era formada e praticava o serviço. E ela tinha, sempre teve bons carros, né, e eu era o motorista particular dela. (risos)
(58:30) P1 – Ah, é? (risos)
R1 – É. _________ (58:32). Então, a gente viajava, ia pra São Paulo, Londrina, nós fomos pro Sul: Canelas, Gramado. Então, a gente passeava mais, também. Mesmo ela cadeirante.
P1 - Sim.
R1 - Mas depois que ela faleceu, o choque foi muito grande. Muito, muito, muito, muito.
(58:57) P1 - Eu imagino. Sinto muito.
R1 – Hoje eu estou assim, um pouco mais fortalecido. Agora, a coitada da minha esposa está quebrada. Não acostuma com a ideia. Não acostuma.
(59:11) P1 – Eu imagino.
R1 – E é assim a nossa vida. Eu agradeço hoje… eu agradeço hoje por estar em pé, com a saúde que eu tenho, pra ajudar a cuidar do neto, da neta..
P1 - Sim.
R1 - ... e é assim.
(59:29) P1 – Mas, ‘seu’ João, sinto muito até pelo acontecimento, mas quando acabar a pandemia, o senhor não pensa em ir num rancho, num sítio? Eu sei que aí em Rio Preto todo mundo vai pro rancho, né, quando é o final de semana.
R1 – Muito. Muito. É, tem muito. (risos)
(59:48) P1 – O senhor não tem essa...
R1 – Eu não sou… Eu não sou aposentado ainda, mas eu penso. Já dei entrada na aposentadoria e estou aguardando.
P1 - Sim.
R1 - Assim que vim, eu vou limitar meu tempo: vou trabalhar menos do que eu trabalho e passear mais com meu neto, que ele precisa.
(01:00:13) P1 – É verdade.
R1 – É. Então, é assim a coisa.
(01:00:19) P1 – Isso. Deixa eu só perguntar pra minha colega aqui: Daiana, você gostaria de fazer alguma pergunta também?
R1 – Aí, agora ela apareceu na tela. Agora, aí, que chique, ó. A minha neta, a minha neta… tem o... É Daiana?
P1 - Daiana.
R1 - A minha neta tem o cabelo igualzinho o seu.
(01:00:42) P2 – De cachinhos?
R1 – Isso. Chique no ‘úrtimo’. (risos)
(01:00:46) P2 – Bonito, né?
R1 – Daqui um pouco eu vou chamá-la, pra vocês ver ela.
(01:00:51) P1 – Tá bom.
R1 – Tem nove anos. Mas a inteligência é demais também, viu? Que essas crianças de hoje já nascem com um computador na cabeça, né? (risos)
(01:01:03) P1 – É verdade.
(01:01:04) P2 – É verdade. Eu gostei muito da fala do senhor e eu acho que a gente perguntou tudo. Eu ia até, né, antecipar, não sei se o Luís quer saber, se ele vai perguntar, mas se a gente esqueceu de perguntar algo pro senhor, que o senhor gostaria de ter contado, algo que a gente não perguntou.
(01:01:30) P1 – É, porque às vezes a gente esquece de perguntar alguma coisa que o senhor...
(01:01:33) P2 – Muita coisa, né?
(01:01:35) P1 – Tem alguma coisa?
R1 – Eu acho que a gente falou tudo. Agora, o que eu vou acrescentar é: eu sou muito feliz na minha profissão...
P1 - Sim.
R1 - ... e gosto muito. Então, eu faço aquilo… eu faço a coisa muito bem-feita, porque eu gosto muito do que eu faço.
(01:02:00) P1 – Excelente!
R1 – O cliente, a hora que ele vai vestir minha roupa, ele não precisa ir no espelho ver se ele acha alguma coisa, porque, se eu ver primeiro que ele, ele não leva a roupa, enquanto não está do jeito que ele precisa.
(01:02:17) P1 – É profissionalismo, isso, né?
R1 – É. Eu amo o que eu faço.
(01:02:25) P1 – Que bom! E o senhor acha, ‘seu’ João, que, no futuro, o pessoal vai voltar a usar bastante terno, como era antes e virar um costume?
R1 – Olha, a minha esperança é que sim, mas eu acho daqui, digamos, é… mais uns dez anos, vai existir minoria de alfaiate. Esses que sobreviver vai ganhar dinheiro.
P1 - Ah, é.
R1 - Vai ganhar.
(01:03:02) P1 – É. Só vai ter eles. Que bom!
R1 – Eu tenho colega que trabalha na Brooksfield, que faz conserto de roupa lá. Ele ganha três mil por mês fazendo conserto.
(01:03:26) P1 – Imagina fazendo, né? O alfaiate.
R1 – É. Aí, digamos, o dia de amanhã ninguém está aprendendo, então tem esse salão de mulheres que fazem conserto, mas não é menosprezando a nossa amiga aí, não, só sabem fazer porcaria, não sabem fazer nada que presta. As pessoas… aqueles uns que não conhecem a gente leva nelas, aí elas acabam de estragar, depois trazem pra gente arrumar. É assim.
(01:04:04) P1 – Mas não são alfaiates, né? Elas não são alfaiates.
P2 - São costureiras.
R1 – Não, não são costureiras. Costureiras que fazem reformas de roupa, sabe? Mas não entendem nada. (risos)
(01:04:16) P1 – Certo. E, última pergunta, ‘seu’ João: existe escola de alfaiate? Escola de Alfaiate igual daqueles antigos, assim, clássico. Existe?
R1 – Igual, igual, uhm uhm, porque antigamente não existia escola, a não ser no Rio de Janeiro que tinha e São Paulo diz que tem, tem ainda. Mas não assim, pra pessoa chegar totalmente leigo pra começar. Não.
P1 - Sim.
R1 - Então, no caso, se eu achar que eu preciso fazer um aperfeiçoamento, então eu vou em São Paulo, fico um mês e aprendo tudo de novo.
P1 - Sim.
R1 - Quando eu morava em São Caetano, eu fiz um aperfeiçoamento lá e dali a gente vai, né, a gente mesmo, aperfeiçoando dia-a-dia.
P1 - Sim. Sim.
R1 - Porque cada corpo é um corpo.
P1 - É.
R1 - Então, é por isso que a roupa feita não tem total sucesso. Porque eles te fazem uma roupa pelo seu peito e pela sua cintura. E você leva aquilo lá e o que você quiser ajustar pra slim, aí você vai no alfaiate pra fazer.
P1 - Sim.
R1 - Porque você não acha pronto.
P1 - Sim.
R1 - É assim.
(01:05:45) P1 – Mas todos esses grandes alfaiates que existem e que existiram, eles aprenderam sozinhos, né? Aprenderam na raça mesmo? Aprenderam… ou com outro...
R1 – Aprenderam, aprenderam com outro alfaiate.
P1 - Com outro alfaiate.
R1 - Eles também entrou… Eles também entrou de jovem em alfaiataria, também pra aprender.
P1 - Ah...
(01:06:08) P2 – E o senhor nunca pensou em ter um aprendiz? Em ter… em dar aulas?
R1 – Hoje é difícil a gente ter um aprendiz.
(01:06:22) P2 – Nossa!
R1 – Quando eu aprendia, a gente começava a ganhar quando começava a fazer calça. E esse tempo todo pra trás não ganhava nada. A gente está ali pra aprender. Agora hoje você põe um aprendiz pra trabalhar com a gente, um ano, se ele está ali só varrendo o salão, ali, ele já te leva na Justiça, pra pegar o dele. (risos)
(01:06:53) P1 – Sei. Entendi.
R1 – É assim. Quando eu aprendi, a gente fazia roupa pra aquelas pessoas da roça, um levava uma dúzia de ovo, o outro levava um frango e era assim. (risos) E a gente, aquele colega que já sabia fazer e que estava ensinando a gente, o que a gente ia fazendo, no final de semana ele dava uma gorjeta pra gente ir no cinema e tomar uma Vaca Preta com a namorada, Coca-Cola com sorvete. Era assim.
(01:07:29) P1 – Sei. (risos) Mas aí ia crescendo, né? O oficial já ganhava bem, né? O oficial já ganha...
R1 – É, o oficial ganha por peça que faz. Por peça.
P1 - Já é uma…
R1 - É. Hoje… Hoje nosso serviço da alfaiataria, eu e esse colega, a gente faz tudo. Agora, quando a gente... nós mexe com uniforme também – aí quando a gente pega uniforme, que é bastante peça, aí a gente pega alguns colega bom também e divide. E também paga por peça pro colega.
P1 - Sim.
R1 - É assim.
(01:08:10) P1 – Legal. ‘Seu’ João, eu queria agradecer muito o senhor pela entrevista, foi muito legal, é muito interessante uma profissão que é tão clássica, né, todo mundo usou alfaiate, hoje tem menos, mas é o que o senhor falou, né? Se você quiser algo perfeito pro seu corpo, tem que ser um alfaiate, né?
R1 – Isso. Isso. Agora, no caso, o que a gente acha hoje, no caso aí, mesmo a gente tendo grandes clientes: juiz, advogado, promotor, médico, a gente não é bem remunerado. A gente não pode cobrar aquilo que a gente gostaria de ganhar, por causa da concorrência. Se a gente for cobrar mais, aí eles já preferem comprar na loja no shopping e pagar o conserto depois, que lá eles compram em dez parcelas sem juros.
P1 - Sim.
R1 - Então, é assim, né?
P1 - Pois é.
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