Depoimento de Maria Augusta Alexandre
Entrevistada por Valéria Barbosa e Marina D'Andréa
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 26 de outubro de 1994
Transcrita por Teresa Furtado
P - Dona Maria Augusta, eu gostaria que a senhora falasse o nome completo da senhora, o local onde a senhora nasceu e a data de nascimento.
R - Maria José Lopes... Maria Augusta José Lopes Alexandre.
P - Aonde a senhora nasceu?
R - Na Ilha da Madeira, Funchal.
P - E em que data foi?
R - 1913.
P - O dia...
R - 4 de abril.
P - De 1913. E o nome dos pais da senhora, do pai e da mãe?
R - Manoel João Lopes.
P - E a mãe?
R - Hermínia Paula Lopes.
P - E onde eles nasceram?
R - Na Ilha da Madeira, Funchal.
P - E qual era a atividade do pai da senhora?
R - Era padeiro.
P - Era padeiro. Eu queria que a senhora falasse um pouquinho da infância, da família...
R - Eu não tive infância
P - Por quê?
R - Porque eu vim com nove anos, eu ia entrar na escola, fui um dia só na escola, no outro dia já vim para o Brasil E fui para fazenda, e lá não havia escolas, eu não tive infância Fui trabalhar junto com o meu pai
P - Certo, mas antes dos nove anos, a senhora brincava, como é que era lá no Funchal? Do que é que a senhora lembra?
R - Eu, até os nove anos, eu já bordava Lá, a gente vivia de bordados, e, de noite, sentada num banquinho com uma lamparina na frente, eu já ajudava a minha mãe e a minha avó a bordar, tá? Eu já bordava, assim.
P - E o que é que a senhora bordava?
R - Bordava assim, aqueles bordados que a gente fazia, ia buscar no sábado, no outro sábado entregava, trazia outros, né? Então, ali na Ilha da Madeira, todas as gente vivia dos bordados, não? Os bordados que iam para a França, iam para a Inglaterra, ia para os Estados Unidos, eram muito famosos, né? Então era isso que a gente fazia
P - Como é que era a casa da senhora, a senhora lembra da casa dos pais?
R - A casa em Portugal?
P - Isso, lá...
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Entrevistada por Valéria Barbosa e Marina D'Andréa
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 26 de outubro de 1994
Transcrita por Teresa Furtado
P - Dona Maria Augusta, eu gostaria que a senhora falasse o nome completo da senhora, o local onde a senhora nasceu e a data de nascimento.
R - Maria José Lopes... Maria Augusta José Lopes Alexandre.
P - Aonde a senhora nasceu?
R - Na Ilha da Madeira, Funchal.
P - E em que data foi?
R - 1913.
P - O dia...
R - 4 de abril.
P - De 1913. E o nome dos pais da senhora, do pai e da mãe?
R - Manoel João Lopes.
P - E a mãe?
R - Hermínia Paula Lopes.
P - E onde eles nasceram?
R - Na Ilha da Madeira, Funchal.
P - E qual era a atividade do pai da senhora?
R - Era padeiro.
P - Era padeiro. Eu queria que a senhora falasse um pouquinho da infância, da família...
R - Eu não tive infância
P - Por quê?
R - Porque eu vim com nove anos, eu ia entrar na escola, fui um dia só na escola, no outro dia já vim para o Brasil E fui para fazenda, e lá não havia escolas, eu não tive infância Fui trabalhar junto com o meu pai
P - Certo, mas antes dos nove anos, a senhora brincava, como é que era lá no Funchal? Do que é que a senhora lembra?
R - Eu, até os nove anos, eu já bordava Lá, a gente vivia de bordados, e, de noite, sentada num banquinho com uma lamparina na frente, eu já ajudava a minha mãe e a minha avó a bordar, tá? Eu já bordava, assim.
P - E o que é que a senhora bordava?
R - Bordava assim, aqueles bordados que a gente fazia, ia buscar no sábado, no outro sábado entregava, trazia outros, né? Então, ali na Ilha da Madeira, todas as gente vivia dos bordados, não? Os bordados que iam para a França, iam para a Inglaterra, ia para os Estados Unidos, eram muito famosos, né? Então era isso que a gente fazia
P - Como é que era a casa da senhora, a senhora lembra da casa dos pais?
R - A casa em Portugal?
P - Isso, lá na Ilha.
R - Lá na Ilha nós tínhamos casas boas, até palacetes, mas não nos deixaram tomar conta porque o meu pai quando nasceu, o pai dele morreu depois de quando ele tinha cinco anos e quer dizer que a família toda encobriu e nós ficamos assim, sem nada, sem saber Ele, ele morreu que ele nem soube quem foi o pai dele, ele não sabe nem como é que foi.
P - E como é que era a casa da senhora, na infância?
R - Eh... a minha casa era uma casa Uma casa assim... uma sala, dois quartos; tinha embaixo a casa do meu avô, né? E tinha mais casas, lá, mas, era um lugar com fartura, com vinhas, com verduras, era muito bom, lá
P - E as brincadeiras da infância...
R - Ah Brincadeiras de infância, na minha terra não tem, cada um fica na sua casa, cada um ficava na sua casa. As brincadeiras de infância era cada um na sua casa, meninada era todos cada um na sua casa, os que podiam já ajudar ajudavam; então, os encontros das pessoas, das famílias, dos primos, de famílias que a gente ou vizinhos era domingo quando a gente ia à igreja Que a gente se encontrava na igreja, ia na igreja, então conhecia outro, então ficavam conversando e depois cada um ia para sua casa
P - A família da senhora era religiosa?
R - Todos religiosos. O meu pai era muito religioso. O meu pai assentava na mesa, se benzia, se alentava se benzia, deitava, se benzia; estava sempre dando graças a Deus. Uma pessoa muito católica.
P - E a senhora tinha irmãos?
R - Eu? Lá em Portugal? Eu tinha essa irmã que tenho agora, ainda é viva, ela veio para cá com um ano e tinha um outro com seis anos, faleceu. Faleceu lá no interior.
P - E como era lá em Portugal, a brincadeira entre os irmãos, como se brincava?
R - Era uma brincadeirinha assim... boba, né? Eu não me lembro de brincadeira nenhuma. Uma vez eu me lembro da brincadeira que, a minha avó tinha uma galinha com uma porção de pintos. Então, eu não sabia, já estava com alguns quatro anos, assim, achei aquilo tão bonito, e fui pegando um por um e espremendo eles, sabe? (riso) Espremi Eu pegava assim, eu achava bonito, não sabia o que era aquilo Eu achava bonito pegar e espremê-los Até que eles morreram. Quando a minha avó veio... (riso)
P - Dona Maria, a senhora falou que a senhora veio para o Brasil a senhora tinha...
R - Nove anos.
P - E veio com o pai da senhora?
R - Não, meu pai já estava cá há um ano
P - Conta pra mim como é que foi essa história, por que é que o pai da senhora veio pro Brasil, quando ele veio?
R - O meu pai veio por causa que ele não teve meios da terra dele de pegar um pedaço de terra, de pegar uma propriedade, porque esconderam tudo o que era dele, não é? O meu pai foi... foi na África e... fazer o militar, quando ele voltou da África tinha feito militar e ele queria trabalhar, mas lá não tinha meios, então ele veio pro Brasil
P - Como que era o nome dele?
R - Manoel João Lopes.
P - Ele era o filho mais velho?
R - Ele não tem irmãos.
P - Ah, era filho único?
R - Era filho único. Ele num... não sei de nada da minha família, da família do meu pai, não tem irmãos, não tem tios, não tem ninguém.
P - E o pai da senhora veio pra cá contratado? Como é que era?
R - A gente comprava a passagem lá, se contratava, se alistava, não é, que nem fazer aqui uma excursão, não é. Pegava o navio, chegava aqui, os fazendeiros tinham os administradores, os fiscais, iam em Santos, escolhiam aquelas pessoas que precisavam e levavam para a fazenda Uns iam para um canto, outros iam para outro.
P - No caso do pai da senhora, pra onde ele foi?
R - Foi para a Fazenda dos Penteados.
P - Em qual região?
R - Em Vila Bonfim. É. região de Ribeirão Preto.
P - E a fazenda, era produção de que?
R - Café.
P - E tinha escolha, por exemplo, o migrante chegava de navio e podia escolher pra onde quisesse ir, ou não podia?
R - Não. É, os administradores iam lá, ia um de cada fazenda, né? Chegava lá, pegava tantos, queria dez famílias, levava dez famílias. O meu pai já estava nessa fazenda, então nós tínhamos que ir pra lá. É.
P - E quanto tempo depois que veio a família?
R - Nós chegamos depois de um ano. Levamos três meses de viagem.
P - A senhora lembra dessa viagem?
R - Oh Se lembro
P - Conte um pouco como é que é...
R - Eu subia nos mastros até lá em cima, os marinheiros iam lá até lá em cima, os marinheiros iam lá me buscar, uma hora eu estava dentro do navio, outra hora eu estava fora do navio...(riso) Porque o navio vai assim, né? Tinha horas que eu estava fora, estava em cima do mar, tinha horas que eu estava dentro do navio, outra hora estava fora, então... estava sempre andando, não tinha sossego porque não tinha para onde ir, né? E eu me perdi no navio. Me perdi e a... minha mãe andou perguntando se alguém tinha visto assim, assim e ninguém viu, né? Aí, me pegaram e levaram pra primeira classe. Tinha uma família de ingleses velhos, e eles queriam me levar pra a Inglaterra, pensavam que eu tinha subido no navio e que estava lá, assim, perdida. Eles queriam me levar pra a Inglaterra. Então eu fiquei na primeira classe, estava tão bom
P - Por que estava bom?
R - Estava bom porque eu estava com um casal de velhos, eles me deram um regador, um rastelo desses de rastelar folhas, assim, né? E um regador vermelho. Eu olhei para aquilo ali, não gostei muito, não. Eu era menina, porque é que eu queria aquilo lá? Se fosse uma boneca, outra coisa, né? Mas eu já estava interessada de viajar com eles, aí passou um marinheiro, me pegou na mão, deu voltas no navio inteiro: "Quem é que perdeu essa menina, quem é que perdeu essa menina?" Ninguém disse nada, não apareceu dono. A minha mãe, então, quando ela deu voltas, né?, descobriu onde eu estava, eu estava lá, com os ingleses. Aí os ingleses não queriam entregar-me para a minha mãe. Queriam me levar mesmo, era um casal de ingleses velhos, e eles estavam gostando de mim. Aí (riso) a minha mãe foi... teve que ir lá no, no comissário buscar os papéis e os documentos todos para eles me entregar, porque eles não entregavam não. Aí entregaram.
P - A senhora lembra que navio era esse?
R - Bagé era um navio, nós... nós vínhamos embaixo. Era tudo camas de boliche, né? Nós dormíamos tudo embaixo, mulheres, criançada, dormia tudo embaixo e os homens dormiam todos em cima. Às vezes os homens ficavam lá, aqueles velhos, bêbedos, bebendo até tarde, quando chegava pra subir em cima parecia que eles até entortavam o navio, sabe? (riso). Era Muito bonita a viagem. Aí, quando chegou, no, não sei se na Bahia, encostou, ele encalhou, o navio antes de chegar, ele encalhou, deu num... numa ponta de areia, ficou um bocado assim, encalhou. Aí veio um reboque e tirou ele, né? A hora que tirou, eu estava olhando assim, ele encostou assim e quando ele encostou que ele pôs a tábua assim, eu pumba Já saí para a terra, fugi. Fugi do navio. Aí quando chego na... lá, que eu estava andando, né? Aí tinha umas negronas, sabe, com aqueles balaião de coco, laranja, era um mercado. Eu estava passeando, olhando, admirando tudo, aí, daqui a pouco uma negrona fala assim: "Essa menina está perdida. Ela não é daqui. Ela deve ser do navio." Chamou a polícia, a polícia me pegou, me levou de volta (riso). Mas foi muito bom.
P - E aí a senhora veio até Santos.
R - Aí eu vim até Santos. Aí, quando chegamos em Santos, aí entramos na imigração. Aí a imigração... vai aquela gente toda das fazendas buscar as famílias, aqueles que vêm, vão com as famílias e os que não vão, que vêm sem famílias, eles levam para outros lugar. Então, eu já fui junto com a imigração da fazenda, que é onde estava meu pai, aí já fui encaminhada para a imigração, ali pro Brás, ali tem uma imigração muito grande até hoje, ali nós dormimos ali. Dali, nós passeamos na cidade, tinha uns conhecidos na Rua Maria Marcolina, nós fomos visitar esses conhecidos na Rua Maria Marcolina e aí eu andei no alicerce de Santo Antônio do Pari, estavam fazendo a igreja, Santo Antônio do Pari, o Tietê chegava até ao fundo da Maria Marcolina.
P - O Tietê?
R - O Tietê vinha de lá, vinha até o fundo da Maria Marcolina... estavam mudando ele para o outro lado, né? E andei assim, andei toda a Rua Maria Marcolina, e, assim, não tinha assim muito comércio, porque toda a gente que vinha da Europa, que sabia fazer uma costura, que sabia fazer um sapato, fazer um chapéu, fazer ternos, então vinha tudo para a Maria Marcolina. Eles morava na mesma casa. Se a casa era de dois cômodos e cozinha, a sala era pequenina, mas eles costuravam naquela sala. Era. Assim que começou São Paulo, sabe? Eles costuravam, quem era costureira fazia costura, quem sabia fazer bolsa fazia bolsa, quem sabia fazer cinto, fazia cinto, quem sabia fazer chapéu, fazia chapéu. Cada casa de família é que empregava os próprios filhos e ficavam ali, faziam a comida. Às vezes tinha uma casa com dois cômodos, eles e... viviam ali, comiam, dormiam e a salinha era uma casa de negócios. A gente ia fazer uma coisa qualquer ali dentro, fazia, mandar fazer uma coisa qualquer, era muito apertadinho, não é?, não tinha espaço
P - E essas pessoas eram portuguesas?
R - Eram portugueses, espanhóis, italianos. Então eles faziam tudo isso, né? De modos, a senhora queria fazer um sapato, queria ter um sapato, a senhora tinha que mandar fazer de encomenda Media o pé, fazia o sapato de encomenda, ternos de encomenda, era tudo de encomenda, a gente não comprava assim, né? O comércio era muito fraco naquele tempo. É...
P - A senhora lembra o ano que era, mais ou menos?
R - Ah esse ano era 1922, que eu vim, eu tinha nove anos, né?
P - A senhora ficou muito tempo em São Paulo antes de ir para a fazenda?
R - Ficamos uns dias, mas os dias que a gente ficou por aí a gente passeou, viu, né? Depois, quando eu vim da fazenda fui morar na Penha.
P - Antes de vir da fazenda eu queria que a senhora falasse um pouquinho da fazenda. Como é que era, quem trabalhava, se a senhora ajudava, como era o trabalho lá na fazenda?
R - Eu era obrigada a trabalhar com o meu pai, com a enxada O menino que tinha cinco pra seis anos, ele também tinha a parte dele Também ia junto Era tudo contratado na fazenda.
P - As crianças também?
R - As crianças também
P - E recebiam salário?
R - Não recebia nada, mas estava junto com o pai. Nós tínhamos que fazer tanto os dois, como o meu pai, né? Naquele tempo o cafezal era feito em ruas. Então aquela rua no meio do café, a gente ia numa e o meu pai ia noutra. De vez em quando ele vinha, ajudava a gente, né? Porque os dois pequenos com uma enxada na mão, o que é que fazia? Se ficasse em casa, o fiscal ia buscar.
P - E a mãe da senhora?
R - Minha mãe ficava em casa, pra fazer a comida, ir buscar água na fonte, e assim. Mas nós, os dois, já tínhamos que acompanhar o meu pai.
P - E a escola?
R - Escola não tinha. Escola não havia em lugar nenhum, lá. A gente aprendia assim, alguma coisa quando era na colheita do café, ajuntava a molecada, então vinha aqueles sacos tudo numerados pra ensacar o café. Então a gente olhava no saco e escrevia no chão. Escrevia no chão, marcava no chão, aprendi assim
P - Apesar de tanto trabalho, a senhora tem boas lembranças dessa época?
R - Eu tenho.
P - Foi boa, por quê?
R - Foi boa, foi saudável Foi muito boa.
P - Podia explicar por quê?
R - Porque eu trabalhei junto com o meu pai na fazenda, sempre, a gente... a distração da gente era trabalhar, era quando vinha pra casa, à noite, a gente ainda ia buscar uma... uma verdura, uma coisa qualquer pra levar pra criação que tinha em casa. E era vida assim Outro dia continuava de novo Não tinha nada Mas a gente tinha, quando tinha o milho verde, tinha feijão, tinha tudo Os patrões eram muito bons Se fizesse, que nem fizeram naquele tempo Naquele tempo nós tinha esta vida, né? Nós carpimos o café do patrão, ele nos dava 25, 25 mil réis por ano Pra nós tratar do café. Mas ele nos deixava, quando era no fim da, da colheita, nós colhia o café e ele dava um tanto pro saco ou pro alqueire, né? A gente, então, o saco ou o alqueire era uma medida, devia ser uns 50 centavos, mil réis, né? Mas depois aquilo lá eles marcavam tudo e ia pra fazenda. De limpar o café a gente recebia... 225, não era? Era 225, e depois a gente juntava mais com a colheita do café que a gente pegava, sempre dava pra pegar uns 600 cruzeiros, uma coisa assim por ano. Mas nós tínhamos a nossa casa, nós tínhamos luz, ele nos dava terreno pra plantar batata, pra plantar mandioca, pra plantar milho Nós tínhamos todo o conforto Não faltava nada para nós Os colonos vivia supercontentes, nós tínhamos a casa cheia Nós só comprávamos o sal e a farinha Só. O resto nós tínhamos tudo em casa. Nós colhíamos feijão, nós colhíamos arroz, colhíamos milho, nós criávamos porcos E o patrão nunca se incomodou com a gente
P - Como era o nome do patrão?
R - Era o... o... (riso)
P - O nome da fazenda a senhora lembra?
R - Era Fazenda Penteado.
P - E ainda existe?
R - Não sei se existe, agora, o patrão é esses, como é que chama?
P - Os Britos...
R - ...os Britos. O Brito, era genro do velho Penteado, casado com a filha do Penteado. Mas ficou com o nome de Penteado, Brito Penteado, porque a filha era do fazendeiro, que era dos Penteados, né?, era gente muito boa
P - Quanto tempo a senhora ficou na fazenda, dona Maria?
R - Nós ficamos aproximadamente mais de cinco anos. Nós saímos de lá por causa de acontecer essa coisa com o médico, né? Porque deu uma doença lá com as crianças, e muita gente, né? E o médico era contratado e quando veio essa epidemia, então o médico contratado era pro ano todo, pra alguém, se ficasse doente, se acontecesse de ficar ou não ficar, tinha o médico. Mas a questão que ele era registrado na fazenda e quando precisou o médico, ele era um médico falso, tinha roubado um documento de um médico no Rio de Janeiro e ele veio se... se empregar na fazenda. Então, ele matava todo o mundo, morreu muita gente Ele matou muita gente, lá Naquele fazenda
P - Que epidemia foi essa?
R - Foi gripe E de modos que numa casa morria dois, noutra casa morria três, assim. Então meu pai ficou desgostoso e saiu lá da fazenda, mas os patrões eram muito bons.
P - Foi aquela chamada gripe espanhola?
R - É mais ou menos isso, naquele tempo. Mas ele matou gente que era uma coisa demais. Ele não dava remédio nenhum; ele dava assim uma garrafa de água inglesa, parecia um licor, era só aquilo. Ele dava pra todo o mundo. E então meu pai não quis ficar lá mais. Ele tinha esse menino, já estava com 11 anos, o meu irmão, sabe o que é que o médico fez? Ele ficou (soltando?) o médico para fazer experiências, que ele não era médico, ele pegou uma ferradura, uma coisa de raspar cavalos, aquela raspadeira de cavalos, e ele pôs assim, e fez assim, atrás, nas costas do meu irmão, assim oh, em vivo, tá? Isso daí era médico? No lugar do pulmão atrás Ele fez isso daí O menino morreu, assim, envenenado, né?
P - Ele faleceu?
R - Faleceu. Ele quando, antes de falecer, que ele ficou envenenado, ele subia na cama, subia nas paredes, não tinha quem segurasse nele
P - E aí...
R - Desesperado pra morrer Aí meu pai ficou desesperado, os vizinhos, ficaram todos desesperados, queriam pegar o médico, né? Mas o médico foi vivo, que ele veio de carro, quando ele viu que a turma estava esperando ele, não apareceu mais.
P - E o pai da senhora, então, resolveu sair da fazenda?
R - Aí resolveu sair da fazenda por isso.
P - E o que é que ele foi fazer?
R - Ele foi trabalhar numa... numa descarga, numa estação, que naquele tempo vinha tudo de trem, né? Então, ele carregava e descarregava os trens com outras pessoas, lá tinha muita gente, né?
P - Aonde que era?
R - Em Vila Bonfim.
P - E quanto tempo ele ficou trabalhando nessa estação?
R - Olha, ele ficou trabalhando lá mais ou menos uns sete, oito meses, por aí. Depois viemos pra São Paulo. (tosse) Quando cheguei a São Paulo, aí, lá no interior falavam que era tudo dois mil réis. Chegou em São Paulo meu pai disse assim: "Olha, lá é tudo dois mil réis - ele estava com 200 mil réis -, a gente não precisa levar nada daqui, a gente compra tudo lá, porque 2 mil réis, a gente compra tudo, com 200 mil réis a gente compra uma porção de coisas" (pausa)
P - Bom, a senhora estava falando da propaganda dos dois, dois mil réis...
R - Dos dois mil réis. Então ele disse: "Nós temos 200 mil réis, vamos pra São Paulo e nós compramos tudo lá, né? Arranjo um serviço, com 200 mil réis a gente compra o que precisa" Aí nós viemos. Chegou aqui não arranjava emprego, não tinha emprego nenhum. E os dois mil réis não deu para nada, né? A gente não tinha onde ir buscar outro, foi comendo aquele, deu uma parte para pagar o aluguel, 30 mil réis, pro aluguel de cômodo e cozinha, né, aí nós passamos a dormir no chão, (riso) e sem nada Nós deixamos panelas, deixamos tudo lá Só trouxe uma máquina de pé, que o meu pai me comprou quando eu tinha 16 anos. Ele comprou essa máquina de pé pra mim, né? Ele falou: "Bom, a máquina de pé nós vamos levar" Aí trouxe a máquina, e nós não tínhamos nada mais, né Então ele pegou essa máquina e, sem emprego, sem nada, ele foi na casa de um senhor italiano que tinha um armazém, ele empenhou a máquina... não empenhou, ele deixou lá. Falou assim: "Olhe, eu vou deixar essa máquina aqui, seu Eusébio", e ele não queria, ele falava: "Não, seu Manoel, o senhor querendo pode levar, eu confio no senhor", era muito bom ele, né? Mas o meu pai disse: "Não, eu deixo a máquina, que a máquina é da minha filha, em fiança e eu vou... conforme eu vou ganhando eu vou fazendo as compras e vou pagando o senhor. Se eu chegar a um ponto que eu não tenho, o senhor me empresta mais e até...
P - ...uma garantia?
R - ... a garantia da máquina. Aquela máquina lá foi a garantia para nós comermos, né? Arrebentou a revolução de 30 e toda a gente ia na venda buscar, todo o mundo comprar isso, todo o mundo comprar aquilo e nós? Nós a ver navios. Não tinha dinheiro, não tinha nada. (riso) Nem emprego, nem nada, né? Aí o meu pai saiu daquela casa e arranjou uma outra casa e um terreno, onde ele foi fazer a chacrinha, né?
P - Onde era?
R - Era na Penha. Era lá na Penha mesmo. E... ele fez aquela chacrinha, ele plantou cebolinha, plantou couve, alface, flores, muito copo de leite, dálias, então ele saia na rua e vendia, né? Quando ele vendia já fazia cinco, seis mil réis, já dava pra comprar um feijão, um arroz, e assim, né?
P - Dona Maria, como que o pai da senhora vendia essas flores e essas verduras?
R - Era numa cesta.
P - Onde ele carregava...
R - Era numa cesta. Naquele tempo, toda a gente carregava cestas, sabe? Que... tudo o mundo carregava cestas Não havia feiras A feira da Penha começou mais ou menos em 1929, mas você ia na feira, só tinha as bancas, não tinha ninguém porque era muito longe as chácaras. E quem plantava tinha que carregar às costas, ou em sacos, ou na cabeça, de qualquer jeito Porque não havia condução Sabe que, naquele tempo, não havia. Só quem podia comprar um cavalo, ou ter uma carroça, assim, já tinha um meio melhor de vida, né? Então naquele tempo não havia isso Então toda a gente carregava nas costas A senhora se quisesse ir na feira, toda a gente ia na feira, tinha que carregar Senhoras, tinham que levar na sacola Era tudo assim Tudo na base do carrego
P - E o pai da senhora ia de casa em casa? Como era?
R - É, saía na rua, na rua. Ele ia, e batia nas portas, e a freguesia acostuma, né? Olha, tinha gente, portugueses aqui na Vila Maria, que criavam cabras Eles tinham sete, oito cabras, eles amarravam elas assim, faziam uma canga, e botavam as cabras na rua e iam pra aqui pro Brás, pra cidade, vender leite. Quem levava o leite era as cabras Chegava ali a senhora tinha um garoto, a senhora pagava aí uns 400 réis um litro... um... um copo de leite, ele parava a cabra, ele tirava o leite na frente da senhora, e a senhora pegava o leite. Era assim O outro tinha uma vaca, pegava a vaca, ficava aí num ponto qualquer da cidade, chegava lá já todo o mundo sabia que o vaqueiro estava lá com a vaca, né? Iam lá e ele já tirava o leite já dava para a senhora, né? O tanto que a senhora queria. Era todo dia assim. As cabras todo o dia passavam na cidade, aí no Brás, por aí afora, andavam as cabras a dar leite e depois... era assim o negócio, sabe? Não tinha mercados, não tinha nada Era tudo muito longe
P - A senhora ajudava o pai da senhora a vender as coisas?
R - Não, não ajudava, meu pai ia sozinho; ele ia lá, tinha a freguesia dele, quem passava na porta também comprava, né? Tinha gente que passava, era passagem. Tinha gente que também comprava
P - E a senhora ajudava ele a plantar?
R - Ajudava
P - Foi aí que a senhora começou a entender de plantação?
R - Não, eu sabia, sempre Pois já no interior eu já plantava Eu sei plantar tudo, sei colher tudo, sei como é que se faz uma fazenda, sei como é que se faz uma chácara, eu sei de tudo, aprendi tudo, né? Então daí, na chácara, eu comecei a lidar com flores, né? E eu peguei a manha das flores, as flores parece que gostavam de mim Que eu plantava flores, fazia viveiros, nascia tudo que era uma maravilha, né? Tudo me ajudava, parecia que eu tinha um... uma coisa com Deus, sabe? Eu tinha muita sorte, graças a Deus
P - E até quando a senhora ficou trabalhando na chácara com o pai da senhora?
R - Uai, eu me casei e vim trabalhar pra mim
P - Conte um pouquinho do casamento da senhora. Como que a senhora conheceu o marido da senhora?
R - Olha, foi no jogo do Pinhense. O Pinhense naquele tempo... é o Pinhense... como é que chama? É o Pinhense Trocaram ele... Palmeiras, né? Não era o Palmeira, é o Corínthians O Corínthians tinha uma... um jogo de várzea pertinho da minha casa, né? E algumas pessoas, assim, não ia assim muita gente pra ver o jogo, né? Ia mais pra passar o tempo, né? Então foi, fui nesse jogo, né?, e quando eu venho de volta, eu encontrei o meu marido, né? Mas eu nunca tinha falado com ele Então ele veio comigo do jogo, voltou pra trás, veio comigo e ele falou pra mim se eu queria namorar com ele, e mais isso, e mais aquilo, e mais não sei o que. Eu fiquei quieta, eu não falei nada Então eu fui pra casa e falei com o meu pai. E ele estava na rua, estava lá fora. Eu falei para o meu pai, porque ele era muito namorador, sabe? Ele lá na chácara dele não faltava mulheres. Então eu tinha medo, né?
P - Ele era vizinho da senhora?
R - Era vizinho. Então daí o meu pai, eu chamei o meu pai, falei: "Ele quer namorar comigo, mas só se for pra casar, porque eu pra namorar com ele não vou namorar, não" Ele namorava com uma, largava, namorava com outra, largava e eu estava nessa daí? Não Eu nunca tinha namorado com ninguém Então, eu combinei com o meu pai lá dentro: "O senhor chama ele e diz que se ele quiser namorar comigo tem que casar, porque namorar não vou namorar, não" Aí meu pai falou: "Pode deixar." Aí ele chegou lá: "Entre pra dentro." Entraram. "Pois é, acontece que o senhor quer namorar com a minha filha." Mas ele gostava muito do meu pai. E o meu pai gostava, porque eram vizinhos, né? "Então vamos fazer o casamento" Então meu marido falou: "Não, a gente espera aí uns seis, sete meses, eu não tenho isso, não tenho aquilo, não tenho dinheiro, e assim." "Não, não tem importância" Nós tínhamos lá umas cadeiras velhas. "Leva isto que está aqui, umas cadeiras, uns bancos, pode levar" "Não, mas a gente vai devagar." "Não senhor, tem que casar" Ficou nisso, né? Quando foi na segunda-feira, o meu pai, nós tínhamos uns porcos, lá, uns leitões bonitos, né? O meu pai pega dois leitões daqueles e vai na igreja da Penha e fala com o padre. Fala com o padre. "É, eu tenho uma filha, o rapaz é muito bom mas ele é muito namorador, e, assim, preciso que faça o casamento deles, e não sei o que, não sei o que." Ele levou dois leitões, o padre, mais que nada, falou: "Trás. Manda eles vir cá à noite." A senhora viu, que namoro? "Manda eles vim cá à noite." O meu pai pegou, mandou chamar ele, falou assim: "Vamos lá na igreja, vamos falar com o padre". Então chegou lá, falou com o padre. Eu, inocente, o padre olhou para a minha cara e falou assim: "Êh... vocês são malandrinhos, não? Sabe lá o que é que vocês andam fazendo por aí. Então, vamos casar, não é?" Aí ele ficou assim, sabe? (riso) Aí... "Não, mas não aconteceu nada, e eu queria demorar mais um tempo, e não sei o que, por que eu não tenho isto, não tenho aquilo." "Não faz mal. Casa-se, depois arranja; casa e depois se arruma." Então, e marcaram o casamento Então, e foi no dia dos meus anos, dia 4 de abril, e eu casei dia 12 de maio A senhora vê? Mas eu, que não tinha muita coisa assim, de pensar em amor, naquele tempo, nem nada, não é? Eu já pensava, a minha idéia é que eu ia me casar e ia ser uma esposa e eu ia ter filhos e eu ia ser dona de uma casa Eu não pensava em sexo, não pensava em nada disso aí Não sabia de nada, tá
P - Dona Maria, quando a senhora casou com o marido da senhora, ele já tinha a banca de flores?
R - Não.
P - Não?
R - Não. Ele veio alugar o terreno lá, e veio fazer de novo. Ele pôs empregados, ele mesmo cozinhava, os empregados também cozinhavam, e trabalhavam todos, assim, juntos, mas não tinha mulher nenhuma nem tinha banca de flores.
P - Quando que ele foi ter a primeira banca de flores?
R - A primeira banca de flores foi no... Teatro Municipal. Que... quando nós começamos a plantar, outros começaram também, né? Então, levavam ali tudo no Teatro Municipal. O Teatro Municipal ficava cheio, era um campo, era uma feira
P - Embaixo, assim, ou na escadaria?
R - Em cima. Em cima, tem uma escadaria, assim do lado. Então, e ali era a banca de flores. Ali era a... era a feira das flores. E a banquinha era cá do lado. Vinha a banca, vinha a feira, e depois a feira ia embora e a banquinha ficava, né? Aí, depois tiraram dali e acho que foi para fazer o viaduto, porque o viaduto era de madeira. Então, ali, aquilo estorvava aquela... aquelas flores, e banca, aquela coisa toda, aquilo foi... entrou em construção, o viaduto, né? Eu não sei se a senhora se lembra que era de madeira, o viaduto, né?
P - É, eu sei que era de madeira.
R - É, era de madeira e o... quando eu passava lá eu tinha medo, passava o bonde em cima, e quando passava o bonde fazia assim, né? E eu, então, parava, quando tivesse bonde passando eu não passava (riso) Tinha medo
P - Dona Maria, ainda lá na frente ao Teatro Municipal, como que as flores eram vendidas? Quem comprava?
R - Era as freguesas que ia no Teatro Municipal, ficou conhecido, né? Quem tinha carro era só quem tinha, quem era rico Porque quem era pobre não tinha, né Tinha que andar a pé, ou assim, né? Então lá, vendiam para as senhoras beatas, que levavam pra Santa Izildinha, outra levava pra Santo Antoninho, outro, assim, mas depois já começaram a levar também pro cemitério, e começou assim, né? Devagar, né? Mas muito devagar E... daí... depois, fui para a Praça da República, da Praça da República passou pro Largo do Arouche.
P - Bom, antes de ir pro Largo do Arouche, na Praça da República, ele chegou a ter uma banca muito grande, aquela da fotografia...
R - Era. Essa daí, que ele tinha grande, essa da fotografia, era uma banca grande, mas a outra era muito grande e era toda feita de vidro Era uma banca muito bonita
P - Qual era essa?
R - Não chegaram a tirar fotografia dela.
P - Qual era essa de vidro?
R - Era essa que a senhora está vendo agora, depois fizeram de vidro, né? Era muito bonita, mas depois passou pro Largo do Arouche e desmancharam. Então, no Largo do Arouche quem fez foi a prefeitura.
P - E quanto tempo ele ficou na... em frente ao teatro pra ir pra Praça da República?
R - Ele ficou... alguns três anos, no teatro, né? Depois dali foi pra Praça da República.
P - Em que ano mais ou menos, a senhora lembra?
R - Deve ser por aí por 37, 38, por aí.
P - Foi para a Praça da República?
R - Foi.
P - E quando foi pro Largo do Arouche?
R - Olha, pro Largo do Arouche foi por volta de 50. É, por volta de 50 que foi pro Largo do Arouche.
P - E o que é que a senhora acha que mudou nesse comércio das flores, desde o início, quando vendia na frente do Teatro Municipal, e, por exemplo, hoje. A senhora acha que mudou alguma coisa, que...?
R - Bom, daquele tempo que a gente foi, que mudou pra lá pra Praça da República, também era parado
P - Não vendia...
R - Não vendia nada Depois, quando começou a fazer assim um negociozinho assim, mais ou menos quando começou a Caetano de Campos, que vinham os alunos pra Caetano de Campos, então tinha a festinha das professoras, tinha essas coisinhas assim, então levavam uma florzinha pra professora, levavam uma florzinha pra casa, e assim, começou assim, um negociozinho assim, sabe?
P - Tem uns momentos que vende mais flores? Por exemplo, as datas... como é?
R - Agora? Agora tem o Dia das Mães, tem o Dia dos Namorados, naquele tempo não tinha nada Tem o Dia da Secretária, tem... Dia da Secretária, Dia das Mães, Santo Antônio, Dia dos Namorados...
P - ... Finados...
R - Finados não vende nada
P - Mas antigamente vendia bastante nos Finados?
R - Antigamente não, mas nas lojas quase que não vende nada. Só mais assim, quem vai para a porta do cemitério, pra esses lugares assim é que vende. Mas as lojas mesmo, nós, nos Finados, quase que fecha. Não vai ninguém nas lojas, vai nos mercados, vai nesses lugares assim, né? Aí do... do... do Teatro Municipal as flores foi logo espalhadas já pro, pro mercado grande, porque antigamente não tinha o mercado grande embaixo. O mercado de São Paulo era ali na General Carneiro, a gente sobe, ali que tem o Jardim Dom... Dom Pedro, né? Ali é que era o mercado, era um barracão, tinha porcos soltos, tinha galinhas, tinha cabras, tinha coelho, tudo ali naquele lugar, não é? Depois ali no mercado grande ainda não existia.
P - O pai da senhora vendia flores ali no mercado?
R - Não, nunca chegou a ir. Depois ali onde fizeram o mercado grande, o mercadão ali embaixo, não sei se a senhora sabe...
P - O Mercado Central...
R - Quando fizeram aquele mercado, o mercado era lá em cima, na General Carneiro, e uns barracões que a gente entrava assim na frente do mercado que fizeram, né? Tinha uns barracões muito feios, assim baixinhos, onde vendia chuchu, alface, escarola, couve, batata, ovos, esses que vendia ali, ali é que era o mercado.
P - E vendia flores ali, ou não?
R - Não. Aí, vinha, quem fornecia àquele mercado ali era os portugueses que moravam na, ali no Marengo. A senhora conheceu o Marengo?
P - De nome, tinha a tal da "Uva do Marengo"...
R - É. Do Marengo pra ali, como é que chama aquele bairro... é Quarta Parada. Ali na Quarta Parada havia muita chácara. E quando vinha, que não havia condução Sabe que saía dali da Quarta Parada os chacreiros, que eles tinham carro de bois Eles traziam a verdura, vinham a pé, guiando os bois até o mercadão, lá. E voltavam a pé. Traziam a verdura de lá, da Quarta Parada. Você já pensou? Em carro de bois Porque não havia carros, né? Os carros eram muito caros, quem tinha carro era só quem podia, né? Quem tinha um cavalo e uma carroça já era rico É
P - Dona Maria, existia um tipo de flor que era mais vendido, mais procurado, assim?
R - Não, as flores era tudo a mesma coisa, porque havia só flores baratas: rosas, não tinha, não tinha assim, assim muito pedido especial. Porque a gente colhia copo de leite, margaridão, tudo aquelas... rainha margarida, né?, tudo assim flores mais brutas, né? Não tinha assim flores como tem hoje, criadas em estufa, era tudo criado no sol. Cravos, a gente tinha muito cravo, eu tinha muito cravo, na chácara, né? Agora, hoje, tem flores mais finas porque são criadas em estufa, naquele tempo não havia estufas É isso.
P - E o que é que era mais, assim, por exemplo, as pessoas procuravam mais por rosas, mais por cravos?
R - Não, não tinha muita... assim. Hoje é mais é por causa que lançaram o Dia do Namorados, e aquela rosa, e dá uma rosa, e é o dia da rosa, e é rosa para a mãe, então a rosa pegou o nome, não é?
P - Mas a que a senhora deve, então, esse progresso seu, se era fraca a venda das rosas?
R - Era fraquinho mas a gente vivia, né? Porque... muita economia, dona A gente fazia muita economia A gente não passeava, não ia pra lugar nenhum, só trabalhando Então algum dinheirinho que ficava, a gente segurava É, mas a vida era difícil, não era fácil, não Agora, na minha chácara eu tinha leitão, se eu quisesse comer um leitão, eu tinha galinha, eu tinha cabrito, eu tinha tudo na chácara, né Na chácara era outra coisa, agora fora da chácara eu não tinha nada Muitas vezes o meu marido veio na feira, que ele vinha na feira, ou vinha pra cá, com os empregados, com cestas de flores, e ele levava tudo de volta, e às vezes não tinha dinheiro pra pagar o bonde, tá E o bonde era 200 réis. E não havia dinheiro pra pagar o bonde Então...
P - Dona Maria Augusta, naquela época as flores, elas... eram feitos arranjos igual hoje?
R - Não.
P - Como era?
R - Era maços Era tudo emaçado, assim A gente fazia aqueles maços e amarrava e era um maço de flores, maços
P - Vendia dúzia? Como era a quantidade?
R - Não, a gente contava, margaridão assim, a gente contava, as ervas contava, e outras flores. Então eram maços, mas eram maços grandes, né? Era bastante abundante, porque não vendia, né? Não tinha assim muito preço.
P - E o embrulho igual hoje, as pessoas faziam laço...
R - Não, era só um papel, só pra embrulhar e deixava, não era assim. Nos casamentos também lançaram... Este carro que eu tenho, esse carro aí, nós tínhamos ele, durante a semana o chofer fazia ponto, pra ganhar corrida. E quando tinha assim, um casamento, inventaram de enfeitar, de fazer os buquês e enfeitar o carro de volta com flores. Então nós já tínhamos o carro já para isso. (riso)
P - Por falar nisso, e os casamentos, não encomendavam flores, ou a igreja?
R - Não. Não encomendavam, só faziam o buquê e assim, também. Depois, já que foram passando mais modernos, fazendo tapete, fazendo mais isso, mais aquilo. Isso foi devagar Quem podia, né? A fazer assim as festas Mas a festa de casamento antes era uma mesa grande, leitão, cabrito, frango, era macarronada, era tudo isso Não tinha nem flores, não tinha nada
P - Mas depois...
R - É. Depois vai, foi indo, foi indo, foi indo que a turma se acostumou Aí todos acostumaram. Um compra, o outro compra, dá um presentinho porque um... um ramo de flores é muito mais barato que um presente Então, muita gente preferia de dar um ramo de flores do que comprar um presente, porque ficava muito caro
P - E nessa época, lojas, como se diz hoje, floricultura que fica ali, nem pensar, não tinha...
R - Não tinha
P - Quem queria flores ou ia nas bancas ou na feira?
R - Ou na feira, é. A senhora vê que não tinha condução Chegaram a vir da minha casa até a Penha, uns dois quilômetros para pegar o ônibus, o bonde, pra... chegava na Praça da Sé, e ia lá pra Três Rios Ou o Rio das Pedras, lá Com a cesta nas costas, sabe? Não havia condução. É. Era uma vida apertada
P - Da Praça da República depois foi... qual é a evolução do negócio?
P - Para o Largo do Arouche.
R - É, Largo do Arouche. A Praça...
P - Depois...
R - ... a Praça da República, dava medo de passar lá
P - Por quê?
R - Não tinha ninguém Não parava ninguém ali Não tinha ninguém e era pouca gente em São Paulo Aqui não tinha ninguém Ficavam ali, ali era uma passagem perigosa. A senhora sabe, a Clóvis, tinha cavalos, era um pasto A Praça Clóvis, aquela praça ali embaixo, tinha cavalos lá, burros lá dentro a pastar Até 1930, então
P - Dona Maria, no caso, a banca agora lá do Largo do Arouche, quer dizer, o mercado de flores, porque são várias bancas que tem ali, ela funciona 24 horas. O que é que a senhora acha desse horário? A senhora acha que melhorou, que piorou, enfim...
R - O horário é o mesmo: os que trabalham de dia trabalham de dia e os que trabalham de noite, trabalham de noite.
P - Tá, mas em termos do funcionamento da floricultura, da venda, do comércio, o que é que a senhora acha?
R - Hoje, hoje vende mais, porque hoje a população aumentou, né? Então namorados também têm muitos que presenteiam uma senhora, ou presenteiam namorada, ou assim, então evoluiu, né? Isso daí caiu assim, né? De modos que foi devagarinho, devagarinho até que se lançou (riso)
P - Se a senhora for comparar, por exemplo, o comércio de flores de hoje com o comércio de flores quando o pai da senhora vendia, o que é que tem de diferente?
R - Deus me livre Muita diferença Porque hoje o comércio é muito grande, o povo é muito Não é pra comparar o povo daquele tempo A senhora sabe que não tinha nenhum prédio na cidade A Rua Direita, era a Rua Direita Era tudo. O Brás era o Brás, né Não tinha nada, não evoluía nada, era muita falta de dinheiro Num ia nada pra frente, era muito difícil, era difícil a vida
P - Ali naquelas fotos nós vimos uma loja que era, que foi demolida pelo metrô, não é?
R - É.
P - Conta a história dessa loja.
R - É, essa loja foi uma loja boa que nós tivemos.
P - Como era o nome da loja?
R - Dora. Floricultura Dora.
P - E ela fechou, foi mudada de lugar?
R - Não, fechou. Tem lá na São Francisco, né?
P - E a da São Francisco? Como é que funciona?
R - Funciona bem, tem uma gerente lá que toca, uma senhora muito séria.
P - A senhora também tem aquela da Avenida São Luís, né?
R - É.
P - Ali que tinha os patos?
R - É.
P - Como é que começaram aqueles patos?
R - Olhe, o meu filho começou a loja assim com artigos pra fazenda, tem tudo de fazenda. Então ele pôs os patos ali, dava milho pros patos, e tratava, uma casa de cultura, né? Começou assim.
P - Atraiu cliente, aquilo?
R - Não. Até que nós tínhamos um senhor lá, que era o senhor Faustino, um senhor já de idade, nós tínhamos uma parte lá com rosas, e ele até que vendia muito bem flores lá. Ele pôs um pouco disso, um pouco daquilo pra poder manter a loja, né? É isso.
P - Dona Maria, atualmente a senhora continua trabalhando, o que é que a senhora tá fazendo?
R - O que é que eu faço?
P - Isso.
R - Eu faço tudo
P - Qual é o cotidiano da senhora?
R - Eu faço comida pra mim, eu vou no mercado, no supermercado, lavo a minha louça, limpo as paredes, faço tudo o serviço do meu apartamento, (riso) né?
P - A senhora continua cultivando as plantas, parou?
R - Não, eu parei, com o negócio de plantas eu parei
P - Até quando a senhora trabalhou, com as plantas?
R - Eu trabalhei mais ou menos até os 70, né? Sempre trabalhando E sempre me dei bem com esse esporte, sabe? (riso)
P - Se a senhora pudesse mudar alguma coisa na trajetória da vida da senhora, a senhora mudaria? E o que é que a senhora mudaria?
R - Eu não mudaria. Não mudaria. Olha, quando eu vim que eu vim trabalhar na cidade, você sabe que a minha vida... eu vinha, eu andava dois quilômetros a pé. Pagava o bonde, custava 200 réis. O camarão, era um bonde puxado pelo cama... pelo bonde, sabe? Então era mais barato, era um tostão. Eu pegava o bonde, eu vinha, eu trabalhava 8 horas por dia e eu, pra pegar esse bonde, pra pagar um tostão, eu pegava o serviço às sete horas, e eu vinha pegar o bonde, o camarão, 4 horas da manhã. Pra não pagar um tostão. Eu vinha de tamancos, da Penha até o Brás, sabe? Eu não tinha nenhuma roupa pra vestir. Andava assim, a gente, todo o mundo que trabalhava também não era rico, né? Mas lá uma me deu um vestido, uma blusa, às vezes me convidavam pra almoçar na casa delas... e assim... até que eram gente muito boa Mas a gente andava toda de tamanco Ninguém andava com chinelo, um chinelozinho bom, uma coisa que espantasse. Era todo o mundo de tamanco Cê vê como é que era? E eu pegava esse bonde, pegava um tostão, para poder comprar um tostão de banana, eu comprava um tostão de banana e um pãozinho de duzentos réis, eu passava o dia todo E quando era o outro dia, às quatro horas da manhã, eu já estava lá no ponto pra pegar o cara dura, lá. Tá? Para pagar um tostão. Pra ganhar um tostão.
P - Sacrifício...
R - É A senhora acha que isso foi vida? Mas se voltasse tudo, voltava com gosto Tá?
P - A senhora tem algum sonho, alguma coisa que a senhora queria realizar ainda?
R - Ih... Eu tenho tanta coisa pra realizar ainda
P - Conta um pouquinho, então, pra gente.
R - Ah, mas isso é segredo
P - Ah, é? (riso)
R - Isso é segredo
P - (riso) Tudo bem...
R - Mas eu tenho muita coisa Eu encho o Edison... Ih... Eu encho o Edison Eu falo: "Precisa fazer isso, precisa fazer aquilo, precisa fazer não sei o que, precisa mais não sei o que, você está ficando velho, os meninos estão crescendo" (riso)
P - A senhora fala com o filho da senhora, isso?
R - Falo Eu encho ele muito (riso)
P - Quantos netos a senhora tem?
R - Eu tenho sete netos. Todos homens.
P - Todos meninos?
R - Um mais bonito do que o outro
P - É só o seu filho Edison que trabalha com a senhora ou tem mais?
R - Tem o outro meu filho mais velho.
P - Também trabalha?
R - Tem três filhos, ele. Tem ... e o meu filho...
P - ... e a moça...
R - E o Edison tem dois filhos.
P - Mas todos trabalham com a senhora, no mesmo negócio?
R - Trabalham todos Trabalha um cunhado meu, trabalha duas, duas afilhadas, filhas do meu cunhado, trabalha, uma parte da família trabalha tudo na loja Precisa olhar, porque, senão Precisa ter gente, né É isso.
P - Bom, muito obrigada, dona Maria, foi muito bom...
R - Tudo bem...
P - Eu não sei se a senhora quer dizer mais alguma coisa?
R - Eu?
P - É.
R - Não. Tenho muita coisa pra dizer, mas eu vou deixar para o fim... uma história muito bonita...
P - Tá bom...
R - Eu quero fazer uma história muito bonita, eu vou descobrir... quando eu descobrir então eu venho e falo...
P - Tá certo, obrigada, dona Maria.
R - Obrigada a senhora, obrigada a todos, de me aturar,
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