Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Carmen Bascarán Collantes
Entrevistado por Cláudia Leonor e Winny Choe
Açailândia, 30/10/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MB_HV_071
Transcrito por Luany Promenzio
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 24/09/2008
P1 – Eu vou pedir para você falar de novo seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Carmen Bascarán Collantes, nasci em Oviedo, Astúrias, Espanha, em 19 de setembro de 1944.
P1 – E o nome dos seus pais? O que eles faziam, Carmen?
R – Meu pai é António, era médico oftalmólogo, e a minha mãe, Carmen, morreu com 32 anos e cinco filhos.
P1 – Fala o nome dos seus irmãos e o que eles faziam?
R – O meu irmão maior é José Ramón, estudou Medicina e depois se fez padre, na Igreja Católica. António é oftalmólogo, ele trabalha como oftalmólogo lá em Espanha. Carlos é missionário comboniano, ele está aqui no Brasil faz 38 anos, está em Tupirama neste momento. E Manoel fez Direito e tem negócio. E depois tem eu, que estudei várias coisas. Iniciei os estudos em várias coisas, mas em seguida me casei, tive quatro filhos. Depois, fiz técnica de Enfermagem, trabalhava com oftalmologia com minha outra irmã. Minha outra irmã, Maria Teresa, é médica também, psiquiatra. E o último, Juan, também é oftalmólogo, trabalha na clínica.
P1 – E, Carmen, como foi a sua infância em Oviedo?
R – Foi uma infância de uma menina de classe média profissional, fui a colégio. Como eu tinha muitos irmãos, eu passava muito bem, brincava muito, era muito extrovertida sempre. Uma infância normal. Sempre ficou em cima de mim o fato de minha mãe morrer quando eu tinha dois anos, mas, depois, meu pai se casou outra vez, com uma mulher que se tornou a minha mãe atual. Está viva. Tivemos outros dois irmãos, a coisa foi muito normal, com uma adolescência muito viva porque normalmente eu era muito viva, sempre estava fazendo brincadeiras.
P1 – Quais eram as brincadeiras da época?
R – As brincadeiras da época eram com o que se chamava cascalho, não sei como se chama aqui. Um jogo que se pinta no chão e, com uma pedra, salta. E jogava bola com meus irmãos, estava na equipe de vôlei da minha região. Fazer teatro, tudo o que uma criança faz, subir nas árvores, correr, brincar.
P1 – Brincava na rua?
R – Na rua, pouco. Em uma cidade, não tem muita oportunidade de ficar na rua. Então era mais na escola, que era onde eu podia exercer todas minhas funções até o ponto que eu lembro que as freiras... As freiras, como era difícil de aguentar a vitalidade que eu tinha. Mandava, me escapava do colégio para ir à praia. Então, eu saía do colégio, ia correr pela praia e depois voltava à escola, tranquila, bem (risos). Então era um pouco assim.
P1 – Em uma família tão grande, com tantos irmãos, tinha diferença da educação dos meninos para a educação das meninas?
R – Claro, claro. Imagina, faz tanto tempo e meu pai era muito severo. Meninos com meninos e meninas com meninas, e como dizia ele: “ Entre santa e santo deve ter parede em cada canto.” Os meninos tinham que estar em um canto, e as meninas tinham que estar em outro canto. Aí, eu ficava brava, ficava muito brava porque meus irmãos podiam fazer uma série de coisas que eu não podia fazer. Então, eu tive que contestar essa educação. Eu sempre discutia muito com meu pai e sempre acreditei que o fato de ele ser muito firme conformou minha personalidade também. Porque eu acho que um pai tem que ser uma referência, tanto para ser contestada quando para ser apoiada. Mas foi uma referência, uma referência de ser consequente com o que ele acreditava. Eu ter que conquistar os espaços que eu... Isso foi uma característica muito forte da minha infância e adolescência.
P1 – E, quando você era criança, o que você queria conquistar ali, o que você questionava?
R – Eu questionava tudo. Eu questionava por que eu não podia jogar a bola, por exemplo, e meus irmãos sim? Por que eu não podia sair sozinha na rua, e meus irmãos sim? Por que eu não podia ir à piscina, e meus irmãos sim? Porque toda aquela educação antiga estava descrito o que tinha que ser para as mulheres, e que não podia ser feito pelos homens, e todo o que os homens faziam que as mulheres não podiam fazer. Então, era uma contestação contínua, eu tinha fama de rebelde. Até que meu pai, em uma ocasião, falou que eu era a ovelha preta da família. Só que, ao mesmo tempo que dizia isso, por outro lado, ele se sentia orgulhoso de que eu fosse assim.
P1 – E, Carmen, descreve para a gente como era Oviedo, as ruas, a praia. Do que você se recorda?
R – Oviedo era uma cidade pacata, pacata mesmo. Uma cidade conservadora, muito conservadora mesmo, mas muito bonita. O ambiente de Oviedo era um ambiente que conservava a velha forma de funcionamento. Eu lembro, de pequena, que em passeio em minha cidade os homens passavam por um lado, as mulheres passavam pelo outro, e se saudavam com um chapéu. Era toda uma parafernália em torno daquela convivência. Mas era uma cidade muito acolhedora, muito acolhedora. Depois, a região de Astúrias era uma região abençoada pela natureza, é uma região em que tu podes poder passar de 2.700 metros de altitude, lá na montanha bonita de Astúrias, com neve, com veados correndo. É bonito. E em uma hora está no mar. E acho que eu gostava muito de “fazer” montanha, de caminhar pelos montes, de escalar. E essa imagem te acerca de todo o melhor, de todo o melhor que um ser humano pode sentir. Isso é fantástico.
P1 – E, Carmen, a sua formação, como foram seus estudos? Você falou do colégio, e como você foi caminhando para fazer os cursos?
R – Eu passei a ir a colégio normal como todas as crianças. Terminei o primeiro grau, terminei o segundo grau. Fiz o que é equivalente aqui ao vestibular e entrei na faculdade. Eu comecei Medicina, isso é uma história. Começava a fazer Medicina, estive um ano e meio fazendo Medicina, e por um problema de saúde tive que deixar. Então, comecei a fazer História, na minha cidade. A Medicina fiz em Santiago de Compostela, depois fui para minha cidade fazer História. Comecei a fazer História, continuei fazendo História também dois anos e me enamorei. O normal é que, quando vais a casar, poder deixar os estudos, porque vai ser uma mãe de casa, e naquele ambiente que eu me movia. Deixei de estudar e me casei e passei a ter filhos. Tive um, tive dois, tive três e, por acidente, tive quatro. E, aí, deixei de ter filho. Então, me dediquei mais ao trabalho de atender a quatro filhos pequenininhos e que foram crescendo, mas a esse tipo de trabalho e sempre com um certo compromisso com questões sociais, porque sempre essa coisa ficou em mim. E, quando os filhos passaram a crescer, eu prestei curso de Direito. E, quando levava dois anos fazendo Direito, meu irmão me chamou para trabalhar na clínica com ele, para organizar parte da clínica que era bastante grande – tem, não sei se 20 pessoas trabalhando lá –, para levar toda a administração. Então, deixei Direito e me pus a trabalhar na clínica. Dentro da clínica, foi quando eu fiz técnico de Enfermagem porque comecei a trabalhar também em questão de contatologia. Essa é minha profissão, especialista em generalidades. Sei um pouco daqui, outro pouco daqui, outro pouco daqui.
P1 – E, Carmen, seu pai influenciou para que vocês escolhessem esse ramo da saúde, da Medicina?
R – Sim. Essa era característica de mi padre. Meu pai era muito duro, era muito rígido, mas depois respeitava a liberdade de cada um dos filhos, a um limite. Sobretudo naquele tempo, e o fato de eu dizer que ia fazer Medicina e fora da cidade, em outra cidade, chocava em um ambiente na minha família, porém ele aceitou. Não cortava as asas, cortava em certa medida, mas no fim compreendia e deixava. Então foi uma luta, uma conquista, mas ele me ensinou.
P1 – E você falou do seu movimento com as causas sociais. Como é que começou isso?
R – Se me perguntam, isso não me é muito bem, não sei muito bem como começou. Eu sei que havia coisas que não me “coincidiam”, não me “coincidiam”, o ambiente era muito religioso na minha família. Eu não me “coincidia” com algumas coisas que escutava de evangelho, com o que eu vivia depois. Aí, eu comecei a ter uma certa inquietação. Não me ia muito bem ver as senhoras cheias de pompa, bonitonas, e depois sair na rua e ver toda a gente pedindo esmola. E aquelas coisas me machucavam desde muito pequena. Depois, um fato que aí me marcou de uma forma que eu sempre conto. No colégio onde eu estudava, um colégio de burguesia mesmo, alta burguesia, e houve um momento, que foi quando o Concílio Vaticano II começou, que as freiras se abriram bastante, começaram a trabalhar nos bairros da periferia e nos levavam, as meninas das famílias, aos bairros da periferia, e eu comecei a ser amiga da gente da periferia. E amiga mesmo. E, numa ocasião, as freiras que continuaram esse trabalho nos levaram a fazer um retiro, uns exercícios, em outra cidade vizinha, Salamanca, e nos misturaram às meninas da periferia, com as meninas bonitinhas. E, da minha cidade a Salamanca, íamos em um trem, um trem de madeira cheio de gente. E o pessoal que vinha nesse trem eram os emigrantes espanhóis que estavam em Suíça, em França, em Alemanha e vinham de férias. Como estava cheio de gente, eu não aguentava dentro do quartinho do trem e saía ao corredor. E comecei a falar com um e com outro, comecei a falar com um senhor. A cara desse senhor eu a tenho guardada, um senhor com uma cara muito pálida, com uns 38 anos, mais ou menos, loiro, meio loiro, quase careca, e começou a me contar a sua vida. Ele levava três anos na Suíça, dormindo na boca do metrô, não tinha onde dormir, porque tudo que ganhava queria trazer para sua família. Levava três anos sem ver os filhos e a mulher, e ele vinha tão emocionado que contando para mim, que tinha 16 anos, 17, por aí, ele chorava. E a história daquele senhor me marcou tanto, tanto, tanto, que foi o momento onde eu tomei a decisão de dedicar a vida a essas coisas. E foi 1996 , onde eu vivi, eu senti, eu percebi a tragédia dos emigrantes espanhóis. Eu sempre falo que não entendo como agora se esquecem a Europa e Espanha da tragédia dos espanhóis, sendo os escravos de Suíça, de Inglaterra, de Alemanha, de França, e tratam os africanos, quando chegam agora, do jeito que eles tratam. Para mim, isso é muito duro e me produz uma revolta muito forte. Depois, sendo consequente com aquelas coisas, eu sempre estive metida com movimentos da Igreja Católica, de comunidades de base. Tínhamos uma comunidade na minha casa, que se reunia na minha casa, onde eram estudantes jovens, cheios de paixão, justamente em momento da transição Espanha, de terminar com a ditadura de Franco e começar com a democracia. Aquilo era um inferninho, eram todos os dias manifestações na rua, e eu ia com eles. E, depois, eu me casei também com uma pessoa, um professor de História Contemporânea, membro do Partido Comunista e naquele tempo muito idealista, muito comprometido com as causas populares. E sempre estou comprometida nesse ambiente, um pouco impulsionada por querer ser consequente com aquilo que eu lia no evangelho, da igualdade, da fraternidade, da justiça no mundo, no amor. Não dá para entender, se acreditas no Evangelho, te conformar com o mundo como está. Para mim, não tem cabimento.
P1 – E, Carmen, você pode falar um pouquinho como você conheceu seu marido, o nome dele?
R – Conheci o meu marido, meu ex-marido... Não tenho marido, sou solteira, que tenho casamento anulado (risos). Coisas inconcebíveis, mas é assim mesmo. Eu conheci em uma festa popular, em uma aldeinha perto de minha terra. Eu ia com uma outra menina, que era aluna dele. “Ah, esse professor, que gatão!”, eu falei. Não é para tanto, e eu tive quatro filhos com ele (risos). Foi assim. E, então, ele era professor de História Contemporânea, e depois fez oposição, o concurso na Universidade, e os caminhos se separaram. Ele continua pelo seu, e eu pelo meu.
P2 – E antes? E os outros namorinhos de antes, de quando você era mais nova?
R – Tu quer saber muito (risos).
P1 – Mas era rígido? Mas como era na Espanha, porque aqui no Brasil, antigamente, era muito rígido. Não podia sair, tinha que sempre ter o irmão mais novo. Como era isso na Espanha?
R – Imagina, eu me casei com meu ex-marido e sempre namorei, com meu pequeno irmãozinho ao meu lado. E ele dizia: “Vai comprar cigarros. Dá uma volta por lá, toma um real.”
P1 – Um sorvete.
R – Um sorvete, para fazer alguma coisa, porque não tinha jeito. Não, era muito rígido. A época onde eu vivi esse tema mais normal foi o tempo que eu estudei Medicina em Santiago de Compostela. Porque lá não tinha o pai perto, então, a coisa era diferente. Tu podia fazer o que bem quiser. E eu com 16 anos, 17, 18 anos era bonitinha, tinha aquilo (risos). Então, pelos meninos da faculdade, você vai a cantar a ronda, quando estava em um colégio maior, não sei como se chama aquilo, uma residência universitária. E fazia ronda e cantava aquilo. Coisas assim. Naquele tempo e depois se dava um jeito, só que com melhor liberdade, claro, e muito mais reprimida também nos sentimentos. Tinha que ter mais cuidado por que, senão, éramos castigados. Mas em Santiago. Depois, quando eu fui estudar, foi quando eu me enamorei do pai de meus filhos, e foi tudo mais formal, mais direitinho.
P1 – E, Carmen, quando vocês se separaram, como é que você redirecionou sua vida? Você estava trabalhando na clínica?
R – Eu estava trabalhando na clínica, meus filhos tinham nove, dez, 11, 12 anos. Eu estava trabalhando na clínica, tivemos uma separação, como se diz, civilizada, na qual eu nunca concebi, por exemplo, um fim de semana com o pai e fim de semana com a mãe, fim de semana com os dois. Não, na separação nossa, ele podia vir quando quiser à casa, e saíamos juntos no fim de semana. Então, a situação com os filhos foi bastante normalizada, dentro do que significa que os filhos sentem a separação dos pais. Mas foi bastante normal. Só que havia que sacar os filhos adiante, porque, com essa idade, em plena adolescência, em plena cultura da permissividade em Espanha, a situação não era fácil, sobretudo com o maior. Sabia que tinha dificuldade, e ele agora terminou a carreira de Sociologia e Política, está trabalhando em Colômbia, e ele às vezes, quando vê a carteira de escolaridade, ele fica olhando assim para mim e diz: “Mas como tu conseguistes que eu terminasse uma carreira superior?” Porque nem ele mesmo acredita (risos). Foram tempos muito duros. Eu me dediquei praticamente a atirar para frente o filho, atirar para a frente o filho, trabalhar, e em tempo livre eu trabalhava lá na Espanha em uma organização que se chamava a Casa dos Desamparados, seria a casa dos desempregados, de gente que não tinha trabalho. E começamos a procurar alternativas para esse pessoal, depois fazíamos formação, até que conseguimos criar uma cooperativa. E a minha vida se mexia nessas duas frentes: trabalhos, filhos, e trabalho social dentro dessa organização. E pelas noites, foi quando eu conheci todos os lugares de perdição (risos). Mas dava para fazer tudo, dava para fazer tudo, e foi uma época duríssima, duríssima. Às vezes, eu digo: “Rapaz, se tivesse que repetir aquilo, eu acho que não teria força.” Mas deu para fazer tudo. E nessa época também foi um momento que, na Espanha, vivemos o referendo de opinião para entrar na Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), e minha casa se converteu em um quartel geral do movimento anti-imperialista. Então, era uma coisa muito bonita porque eu nunca sabia quem estava em casa. Eu ia e: “Tu quem eres?” “Sou amigo de tuas filhas, não sei de onde, este é tio da prima.” “Tá bom, bem-vindo em minha casa”. Era uma vida tremendamente bonita e tremendamente forte e emocionante e empolgante. Lutamos e vimos como a Espanha se vendia mesmo. O referendo da Otan foi uma mentira, e dias antes do referendo, um dirigente do então Partido Comunista nos comunicou que o referendo já estava perdido em muitos números de votos.
P1 – Foi votado?
R – Antes. Foi apanhado antes. Então, você imagina, com toda a ilusão, o trabalho que nós fizemos para arrecadar dinheiro, fazíamos festa pela noite, fechávamos e ficávamos dançando para que arrecadasse, para arrecadar dinheiro, ficamos das quatro às cinco da manhã. No dia seguinte, nós levantávamos para levar os panfletos não sei onde, e num dia antes te dizem que o referendo está perdido porque houve acordo político. Foi um momento de desilusão, de desesperança tremenda, e muita gente naquele momento, muita gente se desenganchou da luta popular. Muita gente ficou desiludida, viu como se manipulavam as classes populares, e muita gente ficou desiludida.
P1 – No grupo em que vocês se mobilizavam, entrar para a Otan significaria o quê, e não entrar significaria o quê?
R – Entrar na Otan significaria entrar em bloco europeu, e não entrar na Otan seria fortalecer os laços com a América Latina e o Caribe. E criar o bloco, seria bloco de América do Sul, criar esses laços com os chamados países emergentes ou países em via de desenvolvimento.
P3 – Carmen, que ano era isso?
R – Setenta e oito seria? Setenta e nove, não mais, que seria em 80, 82, por aí. Foi uma luta muito forte, mas estava escrito no que ia resultar, não ia permitir um desmembramento, porque, ao se desmembrar, a Espanha trazia a Itália e traria outros países da Europa, e o projeto que estava por cima não vemos. Todos os grupos que estão controlando o mundo. Lula não governo, governa quem manda no mundo. Não é ele, ele é uma ilusão, como não é Zapatero que governa a Espanha. Os governos são de outros parâmetros. E isso foi um aprendizado duríssimo para mim, duríssimo. Isso foi um aprendizado duríssimo. O que eu vejo é que eu, de alguma maneira, eu tenho, acho que outras pessoas também têm, é uma visão diferente do mundo, da luta popular. Eu acredito muito na luta popular de fora, eu sempre digo que o Centro de Defesa está no fio, no fio. Aqui está o institucional, o institucional e aquilo que está controlado, desde entidades de proporções gigantescas, e aqui estão o povo e o marginal, o que está por fora não os interessa. E nós estamos no meio, estamos aqui no meio-fio, no meio-fio. Podemos ser marginais ou cair e ser engolidos pelo sistema, se não tivermos muito cuidado. E temos que estar sempre muito acordados, para estarmos continuamente corrigindo a forma de caminhar.
P2 – Você falou que viu muito da ditadura na Espanha, você era muito nova. Da ditadura da Espanha até Otan, todos os movimentos sociais, você podia contar um pouco como é que você foi acompanhando essa efervescência na Espanha?
R – Do que me lembro, eu já falei, que no colégio eu acordei para uma realidade através das atividades de religiosas, que me ajudaram, porque eu fui sempre muito inquieta, muito procurando, muito olhando. Na Espanha, então, havia os partidários da ditadura, o Partido Comunista e a gente, que estava em torno do Partido Comunista, sem ser do Partido Comunista por questão... Porque a única força organizada que ficou depois da ditadura da Espanha foi o Partido Comunista. O que era uma contestação ao sistema era através do Partido Comunista. Eu tenho amigos dentro do Partido Comunista, nunca fui militante de carteirinha do Partido Comunista, mas sempre tive muita relação com ele. E nós tínhamos, por exemplo, na minha região, e na região mineira, de minério do carvão, as minas subterrâneas. Os mineiros eram gente muito forte, muito lutadora, muito de vanguarda. Aí, foi quando se criou a Revolução de Outubro e, em 34, foi o primeiro susto. E isso foi todo através da mineração. Nós tínhamos um clube cultural em Mieres. Mieres era um núcleo onde a mineração de carvão atuava. E começamos com formação, palestras de formação, sobre a história, tirando o pessoal em torno, ao que era cultura de alguma maneira. E aí nasceu uma forma das mais fortes da contestação ao sistema de 68, se paralisou toda a região. Depois, em 75, sempre a mineração, a vanguarda. E nós estamos perto, em torno, como eles diziam, éramos companheiros da viagem. Isso eram eles. Depois, a direita dizia que éramos tontos, fúteis. Bom, prefiro ser tonta útil, do que tonta inútil, sempre pensei isso. De ser tonta sempre vai ser tonta, tonta útil é melhor que tonta inútil. Então, trabalhamos nisso. E lembro, por exemplo, de um movimento de solidariedade para poder manter as greves, porque eram muito duras, duríssimas, quatro meses na boca da mina sem trabalhar, sem receber, duro mesmo. Então, tínhamos uma organização, que era um fundo de solidariedade, e nos íamos pedindo dinheiro pelas casas para fazer esse fundo, comprar arroz, comprar... É uma história que se repete depois aqui (risos). Por isso, muitas vezes eu penso que é como uma segunda vida o que eu estou vivendo aqui, porque muitas coisas que eu vivi quando eu tinha 20, 22 anos, 25, estou vivendo agora aqui com 62, 63. É bonito, é muito bonito. E foi um momento de muita atividade. Depois, as mulheres dos mineiros também são mulheres muito fortes, são lutadoras também. Então, procuramos sempre o apoio da igreja, tomávamos os locais da igreja. Nós chamávamos as pessoas que estavam de apoio para levar a elas comida, levar a elas compressas, levar a elas aspirinas, levar a elas o que necessitavam. O que fazemos é a retaguarda e os que mantinham a comunicação com o bispo para a união, para as negociações. Essa foi uma atividade muito forte. Depois, com as feministas, estudei algum tempo, só que eu, com as feministas, tive um certo problema, porque eu gosto dos homens. É meu problema para ser feminista, gosto dos homens. O radicalismo das feministas, que não é de defesa da mulher, a mim me fez afastar um pouco delas por essa razão, porque claro que eu quero que os homens mudem, claro que eu quero que me respeitem, mas eu não sou igual a um homem, não. Quero que me respeitem como mulher. Eu quero respeitar o homem como homem, e juntar-nos. Tivemos um certo problema por causa deste tema. Por pouco tempo. Depois, foi muito ativo o momento da transição em Espanha, pela ditadura democrática. Porque na Espanha é o anticlericalismo, é culpa da Igreja e culpa de Partido Comunista, que é muito anticlerical, às vezes na forma abstrata também. E fazia temer, fazia temer um reconhecimento de todos os demônios da Guerra Civil. Então, havia um grupo em torno do Partido Comunista e um grupo em torno das comunidades de base da Igreja Católica, que trabalharam muito para uma coisa que se chamava cristianismo, para o socialismo juntar o melhor de um e o melhor de outro de tal maneira que, quando se fizesse a transição, tanto em um canto como no outro. E se fizesse uma transição que não as diferenças, mas que se procurasse aquilo que realmente havia de melhor em um campo e no outro. Foi uma atividade muito bonita, que nos deu resultados muito bons, que, em Espanha, desgraçadamente, parece que se está esquecendo. Nesse momento, está aparecendo essa polarização de uma Igreja conservadora com o pior de uma Igreja conservadora, e um partido socialista com o pior do anticlericalismo, que em Espanha tomou consequências de muito sofrimento, muita morte. Mas, naquele momento, surgiu uma esperança fantástica. Havia gente como Alfonso Carlos Comín, havia personagens fantásticos dentro desse movimento, e se conseguiu essa transição que foi algum modelo para o mundo todo. E aí estou eu aqui também.
P1 – Já estava aqui?
R – Não, estava lá, estava justamente promovendo esses encontros entre a Igreja e esse movimento social e político da transição. Vir aqui foi mais tarde, quando meus filhos terminaram todos os estudos. Terminou Política e Sociologia, Maria terminou Veterinária, Juan terminou Turismo e Ana fez Enfermagem, com uma especialização em Medicina Tropical. E, então, antes de eu ter síndrome do ninho vazio, eu falei: “Meus filhos, sou eu que vou voar agora. Vocês ficam no ninho, e eu vou.” Era alguma coisa que eu já vinha trabalhando muito, muito. Não foi uma coisa assim... E, nessa comunidade de base em que nós trabalhávamos, em casa, o que tínhamos em casa, sempre se falou nessa possibilidade. Em um momento determinado, tomaram posturas mais radicais, mais radicais. E eu sempre falei para os meus filhos: “Quando vocês tiverem idade, eu vou voar.” Eu acho que eles pensavam que era brincadeira. Até que deixou de ser brincadeira. Eu tinha um irmão aqui, Carlos.
P1 – No Brasil?
R – Sim, que é missionário comboniano, eu falei para vocês que está aqui há 38 anos, e ele estava morando aqui, em Açailândia.
P1 – Vamos retomar mais, Carmen. Você estava falando que seu irmão estava aqui no Brasil, e da sua vinda para cá, do voo, de sair do ninho.
R – Meu irmão estava em Salvador, então, eu vinha vê-lo. Quando eu vinha vê-lo, digo: “Aqui vai ser meu lugar da saída do ninho.” Só que, depois, ele veio aqui para Açailândia. Então, naquele momento, os missionários combonianos, por um lado, estavam pensando em vir. E os missionários combonianos, naquele momento, criaram uma oportunidade: que a gente normal, não padre nem freiras, a gente podia vir nas missões. Então, eu vim para cá, ver como era Açailândia, e pedi para vir: “Olha, eu quero vir para Açailândia trabalhar.” Eu falei aos meus filhos, e eles: “Como assim?” “Não sei, eu vou.” E falei para meu irmão, porque estava trabalhando com ele, médico: “Olha, dentro desses meses, me vou para o Brasil.” O irmão teve uma reação terrível, terrível. Ficou quatro meses praticamente sem me falar, sem me falar, e eu fazendo, eu trabalhava, era o braço direito, esquerdo, as pernas e a cabeça dele. E então me fez a vida impossível nesses quatro meses, até que, de pronto, aceitou. Ele disse: “Olha, me deixe aproveitar o tempo que fica.” Começou a coisa bem, e me ajudou e me apoiou. Viemos para cá, viemos eu e outra espanhola. Chegamos a Açailândia, e chegamos a São Luís no dia 24 de julho de 95. Chegamos a São Luís à uma da manhã, de meio-dia. As duas havíamos tomado banho e havíamos comido alguma coisa, e às oito da noite estávamos em Açailândia. E, quando chegamos a Açailândia, meu irmão falou: “Se virem meninas, o que vocês vão fazer?” Não sabíamos nenhuma palavra de português, nada, nada. Começamos a conhecer a realidade de Açailândia e, imagina, sem falar uma palavra de português. Aquilo foi uma tragédia, uma tragédia. E eu tenho muita facilidade, falo muito, mas sou tímida, mesmo que não pareça. Falar com a gente sem poder falar foi um desastre, um desastre. Eu passei, durante os primeiros meses, chorando todos os dias, meia hora. Também não me permiti chorar muito mais, mas, em um momento, eu fiz um horário para chorar, e o resto de tempo para me virar, a ver o que podíamos fazer. Essa foi a chegada aqui a Açailândia. Vir de uma cidade como Oviedo, toda direitinha, toda bem feitinha, toda medida, pesada, contada. Tu saías às oito da manhã de casa e ias trabalhar, tudo, tudo, tudo marcado. A chegada a Açailândia foi um choque brutal, brutal. Só que a gente de Açailândia em seguida se abriu, mesmo que não soubéssemos nada, não entendêssemos nada do que estava acontecendo aqui. A gente, em seguida, abriu a porta de suas casas, nos acolheram. Entrávamos para tomar café em qualquer canto, copo d’água, vem almoçar. Os meninos riam de nós. Eu sempre lembro e conto. Quando eu achava que falava português... Não falo português hoje, então imagina como falava. Era uma reunião com meninos, com criancinhas pequenas. Eu achando, olhando para a menina: “Me entenderam todinho.” Fui para minha casa, para Carlos, meu irmão: “Carlos, tivemos uma reunião, e os meninos escutaram tudo, entenderam tudinho.” E nisso chegou um menino: “Pai Carlos, Pai Carlos, essa mulher quer falar japonês.” Aí, caiu tudo (risos). E assim foi a entrada em Açailândia.
P1 – Mas o seu irmão já trabalhava aqui no centro? Como era isso?
R – Não, não. Quando cheguei, não havia nada em Açailândia. Açailândia era uma cidade onde eles trabalhavam há quatro anos, como combonianos. E eles tinham informação das alianças, com a Pastoral da Juventude. Eles estavam bem, no começo. Açailândia era uma cidade que tinha uma fama de ser cidade dos pistoleiros. Aqui, a “pistolagem” era muito forte. E não havia nada. Havia corrupção, corrupção por todo canto. Aqui, tinha começado uma associação de mulheres viúvas e das moças. Tudo o que existia somente estava atrelado a um vereador, ou a um grupo de poder. Era tudo corrupção, era uma coisa terrível, terrível. E Carlos: “Olha, que podem fazer?” Então, aqui, naquela época, começou o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). O MST começou. Foi nos anos onde o MST fez mais movimentação, foram uns dois ou três anos, 96, 97, 98, onde o MST pegou pesado aqui. E nós ajudamos o MST, também paralelo com a Fusoa (Fundo da Sociedade Obreira), aquela entidade de apoio. Nós não éramos a entidade de apoio, era pessoalmente. Nós, da comunidade católica, ajudávamos a procurar sacos de feijão, sacos de farinha para as ocupações. Ajudávamos a levá-los ao médico, quando estavam doentes. E foi um pouco a retaguarda dos movimentos sociais do MST. E Carlos, meu irmão, quando levamos aqui quatro, cinco meses, se deu conta de que não íamos aprender nunca português estando juntas. Então, nos separou. Uma, mandou para um canto, e, a mim, me mandou morar em um bairro daqui da periferia, me mandou morar com duas mulheres que estavam engajadas na luta popular, também nas comunidades de base. E começamos a falar da necessidade de montar alguma coisa que a gente tivesse como referência. Não que fizemos muita coisa, mas aquilo que fizemos, fizemos bem. Começamos a falar. Os padres combonianos, por outro lado, também eles estavam falando nas comunidades, com outra gente, e juntamos aquela vontade de um grupinho, éramos 12 pessoas. E começamos a fazer reuniões em casa de um, em casa de outro: “O que fazemos?” “O que não fazemos?” E surgiu o tema dos direitos humanos. “Rapaz, aquilo que falam são os direitos humanos, não se respeita a vida, não se respeita nada, e por que não fazemos uma associação dos direitos humanos?” E começamos. Começamos pelo grupo de 12 pessoas, fizemos uma feijoada, não tínhamos onde cair mortos. Fizemos uma feijoada para 250 pessoas, e foi a primeira feijoada que fizemos, porque, depois, virou tradição. E arrecadamos 1.200 reais, e, com aqueles 1.200 reais, nos legalizamos, fizemos a legalização do Centro de Defesa. Uma amiga nos deixou um quartinho na rua, e aí tínhamos nossa oficina. Nossa oficina, que consistia num banco, que era uma caixa de fruta, de madeira, de fruta, que nós havíamos roubado de um mercado. Havíamos pintado de cor laranja. E aí tínhamos nossos livros, nossas coisas, tudo ordenadinho. Depois, precisávamos de uma casa. Aquela casa de lá pertencia a uma associação de donas de casa que estava desativada, não funcionava. Então, falaram: “Oh, por que não ocupam aquela casa, porque não está funcionando, podem ocupar.” E ocupamos. Aquela casa não é nossa, é da antiga associação, e tu não via nada que tu está vendo aqui. Isso que está tão bonito, isso era o banheiro, era onde estava a privada. Havia uma casa de madeira, um barracão, quatro paus com uma lona, estava aqui. E nós metíamos, tínhamos essa mesa, que vai ficar de relíquia. Essa mesa era de antigo tempo, aquela cadeira era de antigo tempo, e eram os seus pertences. E começou o Centro de Defesa. E começamos, fizemos a primeira assembleia, e na primeira assembleia elegeram quatro prioridades para serem trabalhadas. Uma era trabalho escravo, que nós não sabíamos o que era muito bem. Havíamos escutado que havia trabalho escravo, mas não sabíamos muito bem do que se tratava. Outro era a mulher, porque, entre as coisas que nós sabíamos, estávamos observando, eram os maus tratos às mulheres aqui em Açailândia. Não sei em outras partes, mas aqui era brutal mesmo. É brutal. E outro tema era a conscientização, formar a consciência das pessoas. E outro tema era a campanha de registro, porque nos demos conta de que em Açailândia, e achamos que em todo Brasil também, as estatísticas em todo Brasil são mentiras. Desde o fato de que mais de 30% dos brasileiros não existem, não têm registro de nascimento, não têm carteira, não têm documentação, não são gente. E aqui isso aqui era muito evidente. Não podem ir à escola, e achamos que aquilo era a primeira pedra para poder pensar em fazer qualquer outra coisa. E fizemos uma campanha de registro. Então, essas foram as prioridades de primeiro ano, já quando havíamos começado a morar aqui, a trabalhar nesta casa. Isso foi em novembro de 96, novembro de 1996. Quatro dias depois de vir aqui, chamaram à porta, um senhor que se chamava, um rapaz que se chamava Francisco, e começou a contar uma história de uma carvoaria, da qual ele vinha com uma ferida aqui na cabeça, havia caído uma tora. O gerente, o rato da carvoaria, o havia largado e o havia deixado ferido. Passou a contar uma história que nos deixou de queixo caído. “Rapaz, é trabalho escravo”, estávamos pensando. Só que, dois dias depois, chegaram quatro, três: Senhor Antônio, Deusdete e Francisco. E começaram a contar uma história de uma fazenda de pecuária Resende, até hoje esse processo está aberto. Até hoje, esse processo nós estamos seguindo. E não foi determinada a pena. Então, trabalho escravo veio a nós, e não nós ao trabalho escravo.
P1 – Como essas pessoas souberam do Centro e chegaram ao Centro?
R – É uma boa pergunta. Não sabemos.
P1 – Interessante, né?
R – O Senhor Antônio acho que foi porque foi ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais não podia fazer nada e o largaram para cá, e diziam: “Oh, parece uma coisa que se chama ‘direitos humanos’, vai para lá!” E ele veio. O outro, Francisco, da carvoaria, não sabemos como chegou aqui. Ele chegou. Então, o que fizemos foi: Antônio Filho, que trabalha aqui no Centro, Ivonete, eu – e às vezes nos acompanhavam alguma outra pessoa – pegamos o carro dos combonianos, quando nos deixavam o carro, e nós íamos para o mundo. Pegávamos uma garrafa com água, uma linguiça, pão, queijo e nos mandávamos pelo mundo com uma filmadora na mão. Assim, chegamos e nos encontramos com a carvoaria. Ninguém falava que trabalho escravo existia na carvoaria, e nós começamos a viver com a gente, ficamos lá, e a coisa era assim: eu, uma estrangeira doida, que tinha curiosidade por carvoarias, porque não sabia que se fazia carvão assim e queria filmar. Então, eles dois, faz dez anos, tinham 19, 20 anos, eram dois meninos que me acompanhavam. Eles ficavam falando com os trabalhadores, e eu filmando. Ninguém suspeitava nada, porque ninguém havia feito nenhuma coisa nesse tema. E nós fomos fazendo isso durante seis meses. Aos seis meses, nós montamos um filme com todo esse material. Por esse tempo, você sabe, a equipe móvel cresceu em 95, estou falando de 96, início de 97.
P1 – A equipe móvel do Ministério do Trabalho?
R – Sim, do Ministério do Trabalho. Chegou aqui e veio perguntando se alguém fazia algo. Eu lembro que veio a Doutora Cláudia, e era um jogo de desconfiança. Ela desconfiava de nós, e nós desconfiávamos dela. Nós estávamos acostumados que, qualquer coisa que cheirasse a instituição, havia corrupção por trás. Era uma estrangeira doida que estava aqui, que estava querendo o quê? Então, foi um jogo, até que a confiança foi se estabelecendo, e pudemos fazer um trabalho fantástico com ela. Aos seis meses de fazer esse trabalho, nós criamos a primeira semana dos direitos humanos, junho de 97, e convidamos ela a vir. E, quando ela estava aqui, colocamos a fita de vídeo com a situação das carvoarias. Foi um escândalo, um autêntico escândalo, um choque mesmo, porque ninguém havia tocado nunca em siderúrgicas no pais, era a pedra sagrada, continua sendo, mas, então, muito mais. Nessa semana que veio muita gente e eu fui apresentada publicamente, a Doutora Cláudia assumiu o compromisso de fazer uma fiscalização nas carvoarias. Veio, 15 dias depois, e fechou 19 carvoarias. As 19 que havíamos denunciado, uma por uma, pan, pan, pan, fechou. As siderúrgicas ficaram bravas e tentaram colocar a população contra a nossa luta aqui, insultando a gente, e falaram que iam fechar todas as siderúrgicas e que nós íamos levar a miséria ao povo e que iam atrair carvão da China. Esse era sempre motivo, concorrência com o carvão da China. Então, a gente aqui não vai poder comer. Foi uma época meio doida. Nós ficamos calados e preparamos a resposta. A resposta foi em dezembro, Dia dos Direitos Humanos, nós escrevemos a todas as entidades nacionais e internacionais que conhecíamos e pedimos o apoio. Então, começaram a chegar aqui mensagens de apoio do Greenpeace, da Anistia Internacional, passando pela Comunidade Econômica Europeia, universidades e organizações de todo o mundo. Começaram a chegar apoios por carta e por e-mail. E, no dia 10 de dezembro, fizemos uma festa popular, a primeira festa da vida, lá fora. Colocamos barraquinhas, fizemos uma peça de teatro com o tema do trabalho escravo nas carvoarias, e, quando já havia chegado a imprensa, quando havia chegado, já estava bem de gente, lemos um comunicado com o apoio de toda as entidades que estavam detrás de nós. Isso foi um golpe total, porque a partir daí deram um passo atrás e pararam de ameaçar diretamente e começaram a buscar alguma forma de arrumação. No início, a arrumação foi a que se dá culturalmente, se isso é cultura, corromper. Que fizeram? Compraram o juiz trabalhista, antigamente havia juiz trabalhista, juiz da patronal e juiz do trabalho. Então, foi comprado o juiz trabalhista. Não deu certo, porque a luta era para o outro lado. Então, o jeito foi criar umas cooperativas de carvoeiros, onde quiseram controlar todo o movimento contra o trabalho escravo através disso. Só que o fizeram muito mal, muito mal mesmo, porque eu falo muitas vezes para o pessoal das siderúrgicas: “Até para ser capitalista, hei que ser inteligente, não pode ser burro.” Não podes criar cooperativas que, quando nós mexemos um pouco, estão na ilegalidade, ilegais. Denunciamos ao Ministério do Trabalho e a outras séries de pessoas denunciaram ao Ministério Público, e as carvoarias, então, foram fechadas porque eram ilegais. Depois, encontraram um outro caminho, a esse momento, que era criar a associação, a ONG Carvão Cidadão. Carvão Cidadão é uma ONG fechada pelas siderúrgicas, e a história foi assim: com uma denúncia muito forte, de que as siderúrgicas, os donos, não os que estão aqui, gerentes das siderúrgicas, não, os chefões que estão em Minas Gerais, em Recife, e por aí, deram uma ordem de que haviam de negociar porque não podiam continuar recebendo denúncias de trabalho escravo, porque isso estava afetando as exportações de ferro. Havia uma empresa americana que havia fechado o contrato, e as coisas estavam indo duras, porque nós sempre tivemos aqui uma sorte tremenda em contar com jornalistas que não sabemos bem através de quem conhecemos no Centro de Defesa. E vieram aqui e fizeram matérias fantásticas. Uma delas foi uma jornalista dos Estados Unidos que fez uma matéria e publicou em uma revista econômica de lá e, como consequência, cortaram o contrato com a siderúrgica. Então, eles vieram aqui e fizeram uma proposta ao Centro de Defesa, de que fizessem um intermediário. Desde quando a proposta está escrita, existe documento, a proposta era que nós, quando chegasse uma denúncia de trabalho escravo em carvoarias, que nós denunciássemos isso ao Ministério do Trabalho, mas que informássemos a siderúrgica para eles atuarem na carvoaria e regularizarem. Nós falamos que isso não era um papel do Centro de Direitos Humanos e que não acreditávamos nessa história. Então, como prova da boa fé deles, nós falamos que só acreditaríamos nessa história se à frente dessa organização que eles queriam montar estivesse ou a Doutora Virna, fiscal de trabalho, ou a Doutora Cláudia, fiscal de trabalho. A Doutora Cláudia, naquele momento, estava se aposentando e aceitou ser a Presidente de Carvão Cidadão. Aceitou com um pé atrás, com um pé adiante, e isso que está funcionando. Essa organização que faz fiscalizar os fornecedores de carvão, para que tenham as indústrias legalizadas e que tenham um tratamentos dos trabalhadores mais ou menos adequado, e se não, não comprar carvão nas siderúrgicas. Essa situação é nova, faz ano e meio, dois anos. De alguma maneira, suavizou a tragédia dos trabalhadores, enquanto que, se virem uma denúncia do trabalho escravo, nos avisam imediatamente e a nós à siderúrgica, e a siderúrgica para tudo. Só que perdemos para a luta que tanto os procuradores do trabalho, como Ministério de Trabalho, como nós tínhamos perdido mesmo. Perdemos porque a intenção era que, se o carvão é um elemento fundamental para a fabricação de ferro-gusa, os trabalhadores do carvão são trabalhadores das siderúrgicas. Eles conseguiram terceirizar, e, nessa terceirização, muitos casos fraudulentos e duríssimos. Aí perdemos. Não tivemos como. O Ministério Público, pela urgência de acabar com uma realidade criminosa que mantinha trabalhador em regime de escravidão, aceitou um convênio, o que se chama termo de ajuste de conduta, terrível, que está paralisando a transformação de uma estrutura.
P1 – As carvoarias têm dois grandes problemas. O outro é a questão da madeira que se usa para fazer o carvão. Eles entram nessa luta também? É que é uma coisa bem complicada.
R – Bem complicada. Essa é outra luta. Os convênios que têm siderúrgicas nacionais no acordo em 2012, me parece que serão autossustentáveis por uma madeira que eles próprios produzem. Bom, isso é um crime contra o meio ambiente, tão grave, tão grave, que algum dia se vai pagar feio. A quantidade de hectares plantadas com eucaliptos, dizendo que há reflorestamento nessa região, isso não tem graça. Primeiro, certificam a região, cortando a madeira e queimando. Bom, a madeira de lei vai para as serrarias, para exportação. A madeira de segundo corte para carvão. Por trás, colocam o selo para reflorestar, se refloresta com eucalipto. Todos sabemos o que é o eucalipto, o que significa para o chão, o que significa para a agricultura, o que significa para toda a região. Vai passar o quê nessa região, daqui a dez anos? Eles continuaram desmatando e fazem sempre o mesmo. Estão fazendo de forma ilegal, e aí o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) está atuando, nós achamos que muito timidamente, mas muito timidamente mesmo, por muito o que se agride pelas siderúrgicas. Muito timidamente. E estão desmatando o que estão desmatando. E isso é uma opinião pessoal minha, não sei quanto de verdade, não sei quando é verdade. Isso é a porta de entrada para que os Estados Unidos digam que governo brasileiro não tem capacidade de gerir a floresta nacional. E podem colocar coisas surreais, como estão fazendo nos textos de ensino, onde aparece que a Amazônia é território internacional gerido e dominado por eles.
P1 – Você já viu esses textos?
R – Eu vi. Eu vi, e não é nenhuma mentira. Isso está acontecendo já, e permitir continuar com o desmatamento, como está continuando, está dando a razão para que eles, que são os que estão se favorecendo com essa madeira. Porque são baratos os custos de ferro-gusa, que depois vai para lá e volta para cá em carro, transformado em carros. Isso está permitido, isso está permitido. Não sabemos até quando vai acontecer isso, e o que a sociedade civil pode fazer? Porque nós somos uma coisa pequenininha, nossa vocação é de piolho. Mas um piolho, nós somos um piolho. Mas é uma coisa que tem características de genocídio, não é uma brincadeira, tem características de genocídio. Estão acabando com as culturas indígenas, estão acabando com as culturas ribeirinhas, estão acabando com um monte de gente e o que vier atrás. O governo está preso pelo rabo para fazer alguma coisa mais contundente. Os jogos de poder econômicos, até onde vão determinar o futuro do Brasil e dos brasileiros? É algo muito sério, muito, muito sério.
P2 – Como se caracteriza esse trabalho escravo da carvoaria aqui de Açailândia?
R – Do mesmo jeito do trabalho escravo das fazendas. Quando nós começamos a ir, e a gente que levava trabalhando lá morando em barracões, nós bebíamos água que tinha pregos, tinha baratas, tinha ratos dentro. Bebíamos nós todos. Não são coisas que eu falo porque alguém me contou, são coisas que eu vivi. Nós vimos como não tinha como mandar a água potável, mas tinha como jogar a maconha, a droga e a pinga para que os trabalhadores estivessem bem drogados quando iam trabalhar. Isso está filmado, isso ninguém nos contou, nós vivemos isso. Eles não podiam sair de lá. Como iam sair? A diferença entre carvoarias e fazendas, a única diferença é que nas fazendas há capangas, nas carvoarias não existem capangas, mas é a mesma coisa. Como sair de lá? Imagina, por exemplo, as carvoarias no meio do que agora é uma grande plantação de eucalipto. Uma carvoaria, as carvoarias de Nova Descoberta, a 140 quilômetros da BR, mato adentro, onde não entra mais que quatro por quatro. Como sai o trabalhador de lá? Andando? Em caminhões madeireiros? Quantos morreram dentro de caminhões madeireiros, porque a tora soltou e caiu e matou? Quantos morreram assim? O caderno da dívida, nós temos fotografia do caderno da dívida, porque tinham que comprar na cantina e nós vimos como o leite que se dava nas escolas aqui em Açailândia, gratuito, amostra gratuita, proibida a venda, se vendia lá, em Nova Descoberta, a dois reais. Nós vimos isso. Todas as características do trabalho escravo em carvoaria, praticamente têm as mesmas características do trabalho escravo em fazenda, com um agravante: a insalubridade do próprio trabalho na carvoaria. Tu imaginas que tem que entrar dentro de forno quando está ainda aceso para tirar o carvão do forno, sem chinelas, sem máscaras, sem luvas, sem nada, a pele sem proteção. Essas pessoas chegam a estar a 60 graus de temperatura. Depois saem na poeira. Mas é um trabalho de doido. E as gaiolas de carvão, quando se carregam – agora em algumas carvoarias já sabemos que há transportadoras – as gaiolas a ombro, subindo por aquelas escadas de madeira descalço, com a gaiola, com o carvão. E não é de gente, não é trabalho de gente. Então, as características de carvoarias e das fazendas, em muitos casos, são praticamente as mesmas. As contratações também eram através de rato, do aliciador, era praticamente a mesma coisa.
P2 – E o tempo que eles ficavam lá?
R – A média é três meses, quatro, seis. Podiam ver algum que ficasse mais tempo, mas a média era essa.
P2 – Qual é o perfil do trabalhador, do cara que é escolhido, aliciado, levado para lá?
R – Normalmente, há dois tipos de trabalhadores: um é peão de trecho, que é aquele peão que há sete anos saiu de casa e não fica apenas em um lugar, rolando de fazenda a carvoaria, de carvoaria a fazenda, de fazenda a carvoaria, carvoaria a fazenda, não tem lugar fixo de moradia; e depois há os que são empurrados pela miséria. Maranhão é um dos primeiros no ranking de miséria no Brasil. Nós temos uma ditadura de quantos anos da família Sarney? E ainda continua. Eles foram responsáveis, os responsáveis do desastre que aconteceu no Maranhão. E, 40% de escravos são maranhenses, de escravos brasileiros, que são maranhenses. Eles são os responsáveis. É tremendo, porque parece que se está vivendo uma reversão. Não, não, eles têm que ser julgados por criminais, são os responsáveis de uma economia no Maranhão que leva 40% dos homens do Maranhão a ser escravos. Isso é muito sério, isso é muito sério. O perfil é de jovens, ou pela desestruturação familiar e pelo ambiente em que vivem de miséria, saem a procurar alguma coisa. Primeiro, venderam geladinho, depois foram engraxates, depois venderam pipoca, maçã na boca do ônibus, e depois vão trabalhar em uma fazenda, em uma carvoaria. E depois são pais de família, que quando têm um filho e estão em casa escutando chorar o dia inteiro, então se vão a buscar um meio de vida porque não aguentam ver aquilo e têm de sair para trabalhar. Esse é o perfil.
P2 – As fazendas também têm né? As fazendas que adotam o trabalho escravo.
R – Sim, o Maranhão tem o ranking de exportação de trabalhadores escravos, mas isso não quer dizer que no Maranhão não existam também fazendeiros com trabalho escravo. Nós temos, por exemplo, aqui, o Senhor Resende. O Senhor Resende é reincidente, por quatro, cinco vezes com trabalhadores escravos, e continua. E continua uma, duas vezes, três vezes e quatro vezes. E nós temos por aqui um prefeito que também tem uma fazenda que também tem trabalho escravo. Nós temos, ultimamente, há cerca de dois meses, um juiz de direito de que tem uma fazenda aqui que também tem trabalho escravo. Juiz de direito, juiz de direito! Porque uma coisa que nós sempre escutávamos era: “Nós não sabemos a legalidade.” Quando um prefeito, um juiz de direito são os donos da fazenda onde existe trabalho escravo, não dá muito para acreditar que não sabem que a gente tem que beber a água que tem de ser limpa, ter um lugar para dormir que seja decente e não onde dorme rato. Tudo isso que estou falando tenho como demonstrar. Não estou falando de teoria. Nós fizemos isso, é assim mesmo. Que não se podem estuprar meninos de 14, 15 anos e ficar impunes. O que pode ter uma criança de três anos, que não sabe ler nem escrever, e ter ela trabalhando de sol a sol sem comer? Então, são coisas que acontecem, e nós conhecemos a gente. Tem cara, tem sangue, acreditem no que eu acredito, são gente. Eu não estou falando de teoria, estou falando de gente, de gente que, depois de estar morando aqui conosco por uma semana, 15, 20 dias, chega o Ministério do Trabalho... Sai daqui e morou aqui conosco, e se comem arroz, comem arroz conosco, e se comem feijão, moram aqui conosco. E se tem que limpar aqui, pois limpam, e moram. Gente que mora conosco. E quando saem pela porta, pedem a bênção e dizem: “Nunca ninguém nos havia tratado como gente, é a primeira vez que nos sentimos gente.” Escutar isso parece uma novela, não é uma novela, não é uma novela. O que é isso? O Brasil não é um país pobre, não. De quem é a responsabilidade? O Brasil não é um país pobre, não, é rico pra caramba. É rico pra caramba. Os ladrões e os criminosos têm que pagar por isso, têm que pagar algum dia, têm que pagar isso algum dia. Não dá para aguentar mais assim. Ontem, eu falei lá na Assembleia Legislativa: “Olha, apurem, é urgente, porque, se não, não entendem que depois tenha violência. Porque, quando o povo deixar de acreditar nas instituições, não tem mais que a justiça pela própria mão, se vai levantar, né? Não vai aguentar que o matem assim.” Quem é responsável, quem é violento aqui? Quem está gerando a violência? O povo? É ele? Ou são os “Sarneys”, os sem-vergonhas do Senado, os sem-vergonhas do outro lado, da Câmara? Quem são aqueles sem-vergonhas, quem são os violentos? Isso é terrível para estar fazendo um trabalho honesto. E, por outro lado, é também o que te incentiva a passar tudo o que pode passar de informação, de consciência aos trabalhadores, para que eles assumam suas responsabilidades e sejam punidos. Chega de ficar calado, chega: “Ah, se Deus quiser!” Deus não quer, Deus não quer. Então, essa é um pouco a luta. Agora, vou ficar calada por quê?
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