P/1 – Então eu gostaria que o senhor começasse me dizendo o seu nome completo.
R – Francisco Blanco Garcia.
P/1 – Onde o senhor nasceu?
R – Num pueblo chamado Segovia, na província de Leon.
P/1 – E a data que o senhor nasceu?
R – Olha, eu sou registrado no dia 4 de janeiro de 1928, eu nasci no dia três, conforme minha mãe me disse, só que meu avô, como papai não estava, tava ausente, ele me, meu avô, o pai dela me registrou meu nome com um dia de atraso, então registrado no dia quatro, mas isso não tem influência nenhuma. E a partir daí na vida, mais no mundo, e o que mais queria saber?
P/1 – Eu queria saber o nome dos seus pais.
R – Aquilino Blanco Sans, minha mãe Eládia Garcia Mendes.
P/1 – O que os seus pais faziam?
R – Lavoura, lavoura e cuidar de terras, pouco que tinham porque meus pais se casaram, nem de parte paterno nem materno, ambos não queriam o casamento, eles se casaram e foram, alugaram uma casa e papai sentava numa pedra (risos). E assim, e tiveram três filhos, tiveram o primeiro e de repente papai, teve a guerra de África e um tio meu chamado Angel, que eu não conheci, preparou para que meu pai não fosse para a guerra de África, preparou os documentos e o pôs e foi pra Cuba, na volta, que terminou a guerra e tal, quando ele voltou desembarcou em Vigo e ao desembarcar ele foi preso, como era desertor, tinha que ter servido o exército, não é, e estava e foi para um quartel a servir e mamãe foi, olha, foi a Vigo a ver-lo, e aí fizeram o segundo filho, Amaro, o primeiro Arcênio, o segundo Amaro. E depois mais o terceiro, Ramiro, que está vivo e Amaro também, só Arcênio que faleceu com 90 anos
P/1 – Arcênio?
R – Arcênio faleceu e depois ao embarcar ele se foi pra casa que comprou e embarcou para Guatemala, com destino, é claro, o primeiro desembarque foi em Cuba e depois ele se mudou pra Guatemala e claro, ele embarca em 1927 e eu nasci, isso foi em setembro de 27, ele embarcou, em janeiro de 28 eu nasci. Então você vê a coragem de, por exemplo, da minha mãe, três filhos e mais eu que nasci, quatro e ela se defendia, claro, papai mandava dinheiro, mas ainda assim ela comerciava, ela lutava com, só com o ovo da galinha dava pra comprar azeite, arroz e isso, não, em ver de comer os frangos vendia os pollos, né, que ali não são frangos, são pollos.
P/1 – Só pra entender um pouquinho, Seu Francisco, o que o seu pai foi fazer na Guatemala então?
R – Ele trabalhava, ele era formado em carpinteiro e trabalhava nesse ramo, né, da vida. A primeira viagem que foi a Cuba, ele a cortar cana de arroz.
P/1 – Como?
R – Cana de açúcar.
P/1 – Cana de açúcar?
R – É sim, um trabalhador, mas ele trabalhava muito bem em madeira e já na, estando em Guatemala ele tinha um sócio, faziam quadros, os moldes, as molduras e as vendiam para comer.
P/1 – E o senhor disse então que a sua mãe continuou trabalhando na lavoura?
R – Ah, sim, sim, sempre, sempre, depois quando papai voltou ampliou, eles receberam herança de parte de meu avô paterno, meu avô tinha poderes bastante, né, tinha bastante terras e, enfim, e de tudo, ele tinha um moinho, um moinho, um moinho na cidade, né. Eu me lembro dele, um homem, um santo, Antonio Blanco, andava sempre num cavalo cantando, feliz da vida, meu avô era diferente, a mulher um pouco bruta, mas, enfim, mas ele não, ele era carinhoso.
P/1 – Ele contava histórias pro senhor?
R – Não, não me lembro de que ele me contava histórias, não me lembro, a gente não teve muito tempo de conviver porque ele faleceu, papai já tinha retornado da América e faleceu numa pneumonia, não lembro, eu era pequeno toda via.
P/1 – Quer dizer, os seus pais então tiveram quantos filhos, quantos irmãos o senhor tem?
R – Nós fomos seis, cinco homens e uma mulher, o caçula faleceu infelizmente muito jovem e tenho outros dois irmãos ainda e minha irmã, ainda somos quatro.
P/1 – Como que era a casa onde o senhor cresceu?
R – Uma casa linda, uma casa, era a melhor casa da aldeia, de branco, não sei como se chama aqui, tinha forro, você não via as telhas, nem nada, aliás, não eram telhas, era piçarra, sabe o que é piçarra? É de pedra mesmo, a louça de pedra, era bonito, três quartos, três habitaciones, um corredor de ponta a ponta, você vai ver a fotografia, e na adega, duas adegas, uma embaixo, uma na quadra que tínhamos porcos ou vacas embaixo, e ao lado uma bodega onde se conservavam os presuntos, os chouriços, sabe, chouriço? Da Espanha, não é o de sangue, não, lá que também mamãe fazia morcillias maravilhosas, a morcillia de sangue, de sangue dos porcos e um monte de coisa mamãe fazia morcillia, né. E assim foi a vida, e então papai, a papai lhe tocaram duas vacas de parte do pai dele e começou a negociar, a comprar e vender vacas, porque ali tinha feiras de vender, feiras de vacas em três lugares, havia a feira do dia 11 em Benuza, no dia 21 em Bembibre e nos dias 24 e de pontes de domingo Flores, eram feiras, só que às vezes, não era sempre de vacas, tinha umas feiras, que era dia 19 de cada mês, de porcos.
P/1 – O senhor ia junto com ele?
R – Não, nunca fui com ele, não, agora queria dizer, quando começou a guerra teve, meus pais por onde quer que passavam tinham amizades e tinha uma família num pueblo chamado Las Vergas de La Rivera, que os jovens foram todos pra frente de batalha e ficaram as mulheres sozinhas, e me mandaram a mim para tirar as vacas do curral, papai, me mandaram a aquele pueblo, está lejos, está longe, e eu estive ali um tempo, naquele pueblo, e eu cuidava das vacas, as levava para os prados, pras pradarias e cuidava delas. E uma vez me lembro que tinha uma criança pequena e tinha uma empregada e tinha uma figueira e eu subi na figueira pra pegar os figos pra dar pra ela, mas falei pra ela, disse: “Olha, sai de baixo porque se eu cair te posso matar” e no fim estralou um galho daqueles e eu caí em cima de umas pedras (risos), aquela gente, me banharam o corpo de aguardente, com aguardente que é feita de vinho, acho, é fantástico, não? E ficou tudo bem, mas uma vez era outro lugar, outro tema, com as vacas deles num prados que tinha ali e de repente, eu sempre tive medo de pequeno de homens de cabelo branco e de repente apareceu, estávamos os dois com as vacas por ali e apareceu um homem com uma foice, vixi, Maria, quando, e eu corri e gritei e eu fiquei com tanto medo, que a dois ou três dias daquilo eu fui embora pra casa sozinho.
P/1 – Quantos anos o senhor tinha?
R – Ai, era plena guerra, eu tinha nove anos, por aí, nove, dez anos.
P/1 – Mas voltando um pouquinho só, antes do senhor entrar na guerra, voltando um pouquinho na época que o seu pai ainda tava na Guatemala, né, o senhor se lembra quando ele chegou na Espanha?
R – Lembro perfeitamente, era uma noite do mês de setembro com uma chuva tremenda e ele passou por Benuza e o local de Benuza, o prefeito, diríamos, lhe falou: “Não, tu não vás, que é perigoso de noite, tem lobos”, disse-lhe: “Não, eu tenho que chegar em casa” e o homem lhe deu um cavalo e uma pistola.
P/1 – O prefeito?
R – Sim, diz: “Toma o cavalo”, olha só, e a pistola e papai chega em casa e mamãe não abre a porta, e bate, bate na porta e mamãe não sabia quem era, não o esperava, até que meu tio Tibério se levantou e desceu ali e: “Abram a porta que está aqui Aquilino” (risos), olha só, pensa que momento, que, não havia nada.
P/1 – Ninguém esperava que ele voltasse?
R – Não, e eu lembro perfeitamente que ele me pegou nos braços, eu estava na cama com a minha mãe (pausa), foi muito bonito.
P/1 – E a sua mãe, como ficou?
R – Pode imaginar, papai sempre foi um amante dela, Nossa Senhora, como ele amava a minha mãe! (risos) Fantástico, fantástico, Nossa Senhora! Tanto é que, olha, eu tenho fotografias de mamãe quando, depois que eu já era um garotinho ela levou no San Pueblo pra tirar umas fotos pra mandar para o meu pai, ela e os quatro filhos, deve ta em algum lugar por aí.
P/1 – Quer dizer, o senhor conheceu o seu pai o senhor tinha...?
R – Ah, eu tinha oito anos.
P/1 – Quando o senhor viu o seu pai pela primeira vez?
R – Sim, sim.
P/1 – Qual foi a sua sensação de ver o seu pai pela primeira vez?
R – Ah, pois alegria, alegria, porque perguntava a mamãe: “Como é papai, como é papai?”, dizia: “O papai se parece com este”, e, mas foi, pois claro, já fui um pouco maior, eu completei a maioridade já em Madri porque com...
P/1 – Mas nesse período então, quando o senhor era criança, o seu pai voltou, né?
R – Sim.
P/1 – E ele começou a trabalhar então?
R – Nas terras e a negociar com vacas, compra e venda de vacas e bezerros, isso, não?
P/1 – O senhor gostava de brincar na época?
R – A gente brincava, mas era pouco, não tinha tempo, eu brincava com umas primas que viviam ao lado, mas não era muito, não muito, não havia tempo.
P/1 – Do que o senhor costumava brincar?
R – Eu, havia um jogo que saltava uma corda, aí pulava aquela corda e havia uns quadros riscados no chão, acho que aqui existe isso, jogávamos isso.
P/1 – Amarelinha.
R – Sim, dizia jogar a comba, comba, chamava comba.
P/1 – Como que é a comba?
R – Saltos que a gente dava nas cordas e não pisar na raia.
P/1 – Tinha alguma festa, tinha?
R – Ah, sim, tinha festa, festa de, há duas festas, há a Santa Marina, eu gostava, que é em julho, a Festa del Cristo, a maior de todos aqueles pueblos, era meupueblo porque sempre tínhamos, o pueblotinha orquestra, música, músicos, eram quatro e esses quatro sempre, e nos bailes aos domingos também era, os moços tinham que pagar, havia as cotas, quanto custa dividido entre tantos moços, sim, pagamos para as festas, era divertido.
P/1 – O senhor foi pra escola, senhor Francisco?
R – Eu pouco tempo só, eu aprendi a somar decimal por montes nas pedras, riscando nas pedras aprendi a somar, sim, porque não sabia e estava a multiplicar e sobretudo restar, era mais difícil, e depois já adulto com esse meu amigo, que éramos pastores os dois, que o rebanho se juntava e se separava quando chegava ao pueblo, contratamos um professor na casa onde ele se hospedava e vamos à noite a estudar um pouco, fizemos uns meses de estudo, mas isso é insignificante porque, olha, a escola foi pouco tempo porque quando começou a guerra os professores eram fuzilados.
P/1 – A Guerra Civil Espanhola?
R – Sim.
P/1 – Eram fuzilados?
R – Eu lembro agora, eu era pequeno, claro, e tinha uma letra que eu nunca lembrava, o ‘ñ’, sabe o que é ‘ñ’? Como se fosse ‘hn’, ou ‘nh’, só que lá a ‘ñ’ tem um til em cima, e uma individuo que chamava Diolindes começou a me falar: “Hoje o professor vai fazer lingüiça de você”, um monte de coisas me assustando e eu comecei a chorar (risos), aí o professor me chamou, ele percebeu, me chamou e, olha, a partir daquele dia eu nunca mais esqueci o ‘ñ’ porque (risos) o professor foi fantásticos. Enfim, era muito bom, mas a juventude nas festas, eu fui, eu tinha, sempre tinha namorada, a partir dos 12 ou 13 anos eu sempre tinha uma namorada, sempre a mais bonita, claro, (risos) e eu tive uma vários anos, os meus pais não gostavam dela por causa da família, havia esse empecilho, o pai dela tinha perseguido um familiar nosso durante a guerra. Ela chama, se chamava, não sei se está viva ou não, Isabel, muito bonita era, mas eu nunca pensei em casar-me com ela nem com nenhuma até que eu não tivesse uma forma de vida para sustentar-me sem depender de ninguém, porque sabe o que faziam nas aldeias? O cara se casa e quer, vai morar na casa do sogro e a trabalhar as terras do sogro, eu acho uma desgraça, eu pensava, digo: “Isso eu não vou fazer nunca” e não fazer filhos em ninguém porque se eu faço um filho numa mulher eu assumia, eu não poderia, no meu pensamento eu não poderia deixar uma criatura abandonada, destruindo a juventude dela, então evitar-lo, nada como evitar, e assim tive várias, duas em Madri, eu, quando vim pra aqui eu deixei duas, uma em Leon e outra em Madri.
P/1 – Namoradas?
R – Sim, a de Madri era linda, era muito bonita, a minha irmã costurou pra essa família lá em Madri, né, então foi através dela que conheci. Quando eu embarquei em Barcelona, tomei um navio, seguidamente uma italiana me viu, eu a reconheci, era napolitana, 18 anos, viemos juntos até Santos, ela ia pra Buenos Aires, vou te contar, foi a primeira vez na vida que eu pus os pés no mar, na água do mar, foi em Copacabana, porque como eu sou da parte interna da Espanha eu havia visto o mar nos filmes.
P/1 – Qual foi a sensação, o senhor lembra?
R – Fantástica, foi uma sensação, que veio uma onda, me deu uma bofetada aqui que eu sangrava que nem um porquinho (risos).
P/1 – Mas antes de o senhor chegar ao Brasil, o senhor vai me contar, mas vamos voltar um pouquinho.
R – Sim.
P/1 – O senhor tava falando então que o senhor sempre foi namorador.
R – Filha, antes de chegar ao Brasil eu com 17 anos incompletos, eu digo: “Tenho que buscar outra forma de vida”, na minha cidade, na Fiesta del Cristo tinha uma menina, se chamava Amélia e tinha um namorado que tinha comércio em Madri, uma pescaderia, peixaria, e ele veio na Fiesta del Cristo e eu aproveitei e os convidei, digo: “Olha, vamos a casa dos meus pais pra tomar um café”, na volta ele sacou um cartão, disse: “Se algum dia você for a Madri você me procura”, eu já estava, era o que eu buscava.
P/1 – O senhor queria sair de lá?
R – Sim, não, pra mim não era vida no pueblo, não era, impossível, eu não gostava, não, não, vendo o resto como viviam, não, e naquele mesmo ano, isso foi em setembro, em novembro eu fui pra Madri.
P/1 – É longe o pueblo de Madri?
R – Ô, sim, eu fui, mas eu nunca, olha, vou te dizer uma coisa, eu sou afortunado porque eu sempre fui muito querido onde quer que estive, e no pueblo tinha o ferreiro do pueblo e eu muitas vezes me perguntei porque este senhor tanto me estima, chegou a me emprestar dinheiro e eu era um crio, caramba, e me emprestava dinheiro pra mim comprar grano em outra região, pra Galícia. Eu procurava ganhar dinheiro para ter para uma festa, para ir pra o bar, jogar uma partida, tal e por duas vezes aquele senhor, Antonio Murano, o nome, ele era ferreiro e eu fazia carvão, o vendia a ele, guardando o ganhado, eu arrancava nos cepos com o enxadão e fazia uma fossa e fazia carvão e depois, no dia seguinte, eu recolhia o carvão e levava a ele e ele me pagava. Sempre tive uma maneira de ganhar dinheiro com decência, é claro, trabalho, na primavera, quando começa a primavera é a primeira coisa que dá, é essa cevada, que pronto chega e nos reunimos três ou quatro e dizem: “Vamos tal dia roçar, parte de inverno, a serrar cevada” e pegávamos oito ou 15 dias e, agora, ajustávamos quanto tínhamos que dormia num bar, te davam de comer, comida e tudo e pegava seu dinheirinho. E você tinha sempre um dinheiro no bolso, tanto é que quando eu fui pra Madri eu não precisei que meu pai me desse nenhum centavo, eu tinha dinheiro pra ir e pra chegar ia de trem, me lembro, ele me levou a mala com o cavalo até a estação do trem, longe, deve ser uns 60, 80 quilômetros, e aquele bilhete, 83 pesetas. foi o bilhete pra Madri. Chego a Madri, ao sair era um frio, em novembro, um frio, Madri estava branca de gelo na estação, e eu a esperar pra ver por onde saía todo mundo, porque era um paleto, sabe o que é um paleto? Um caipira, não?
P/1 – Foi a primeira vez que o senhor foi?
R – Sim, a primeira vez, e saio e, claro, eu vou a, tinha uns moços de estação, que são da Renfe, não, e tem uniforme, tal, eu fui em um: “Olha, eu preciso, quero ir a este lugar”, “Ah, sim”, então ele chamou outro, disse: “Acompanha esse menino até a Rua Tiruca e ele me pega a maleta e descemos pra pegar o metrô, olha, naquele tempo, metrô, ele sacou o bilhete dele e o meu e fomos em busca daquele senhor que tinha a peixaria. E chegamos ali na Rua Tiruca, era a pensão onde ele dormia, e aí era: “Ele está no mercado”, “E qual é o mercado?”, “O mercado San Antón” e o moço esse, aquele moço foi fantástico, me levou até ali, até a porta do mercado, não estava perto, tava um pouco longe e diz: “Bom”, digo: “Esse aqui é o mercado, quando lhe devo?”, “Vinte e cinco pesetas”, olha, foi dinheiro que eu dei com todo prazer do mundo porque foi muito correto. Me deu a maleta e eu subi, tinha que subir porque a peixaria estava em cima, procurando por José, José Carrera, não é o cantor, sabe, não é o cantor, mas é José Carrera que tinha, cheguei a peixaria, digo: “Aqui é José Carrera”, “Sim, foi fazer compras no mercado”, pra comprar peixe, né. E eu tinha uma fome tremenda porque mamãe me colocou comida, mas eu tinha vergonha de comer no trem da frente dos outros, tinha vergonha e não comi e eu comprei umas laranjas, umas laranjas ótimas, maravilhosas, que havia guerra na Espanha e não tem semente, são fantásticas, e comi aquelas laranjas com aquele parmesão, a glória, (risos). E chegou o José: “Hóstia, que fazes aqui?”, “Pois veja, vim aqui a buscar trabalho”, “Mas sabes algo, sabes de alguma coisa?”, digo: “Sei, sei que há uma fábrica de embutidos que nesta época do ano necessita gente”, “Ai, eu sei onde é, então à noite vamos lá”, ele conhecia aquele, não? Chegamos lá e me apresentou a eles, me perguntaram que idade eu tinha, eu ocultei um ano, falei que tinha menos porque sempre pensavam: “Você não fez serviço militar”, não tinha feito, não, então pra pouco tempo não me queriam e eu encurtei um ano e tudo bem, aquela noite ia dormir na fábrica, tinha quarto para dormir, jantei com o dono na mesa, na casa que vivia ali perto, um dos donos, eram dois sócios e os funcionários dormíamos nos quartos que tinha na fábrica e comíamos na casa dos donos, eu e um sobrinho dele comíamos na casa dele, os outros iam na outra casa. Tudo bem, mas até fazer o serviço militar, que chegou a hora de fazer serviço militar e eu acertei com eles, porque eu nunca perguntei quanto eu vou ganhar, quanto estou ganhando, não, nunca, se pergunta não te querem, o que me deram era bom, eu tinha roupa limpa, tinha comida e cama, algo, chegava domingo e pedia dez pesetas pra ir no cinema ou isto, me davam, eles marcavam e tu não sabes se marcavam de verdade ou não, tem um livro e marcavam meu nome. Quando acertamos a conta me pagaram e eu quis ir até o pueblo para ver os meu pais antes de ingressar no serviço militar, e fui, já era na primavera e meus pais, na volta meu pai foi levar minha maleta até a estação de trem como havia feito anteriormente e ao passar por um pueblo, ali na Ponte Rodrigo Flores, papai encontrou com um senhor e disse: “Oi, que lindos, onde vás”, “Vou levar esse filho a Madri, que vai pra Madri”, “Ah, me façam um grande favor, levem um saco de repolhos pra minha irmã” e papai me disse: “É um grande amigo”, disse: “Sim, pega-lo” e foi correndo e ponho no trem e eu fui levar aquele saco de repolho daquele senhor. Você sabe quem era aquele senhor? Era comandante capelão do exército, nossa, então, eu já, já me fez as perguntas: “O que você faz aqui?” e tal e expliquei, ele disse: “Se eu tivesse sabido antes você não saía de Madri, ficava pra fazer serviço militar aqui, agora quando você jurar bandeira, depois de três meses você me escreve pra ver se eu te trago pra aqui pra Madri”, ele me tocou pra Medina de Campo Artilharia. A coisa, eu considerava o exército perda de tempo, eu precisava trabalhar e sabes que eu não precisei dele porque chegou um pedido de voluntários para ir pra Escola Superior do Exército, mas tinha que fazer uma solicitação por escrito e eu a fiz e vim aprovado, eu e mais outros de Córdoba e fomos pra lá pra Madri, bilhete pago, tudo. E estou uns dias ali, todos os dias tinha serviço, era assim, tinha aqui, ora faxina lá ou descascar batatas, tudo isso, aí eu fui onde esse senhor, que ele estava, era da Escola de Estado Maior, e fui a ele e disse: “Olha, estou assim na Escola Superior do Exército, mas não estou satisfeito, tem muito, cada dia tem uma coisa pra fazer e eu precisava”, “Ah, tá bom”, naquela mesma semana o oficial de serviço do dia me chamou e disse: “O senhor vai de assistente de um oficial da Escola de Estado Maior”. Me trocaram de roupa, me deram roupa nova, porque, sabe, é igual com uma família, dizíamos nesse caso, do quartel de Medida de Campo para Madri também me deram toda roupa nova, pra ir elegante, você entendeu? Aparentar e deu tudo, a mesma coisa, e lá, caramba, de assistente, aí eu falei, porque tinha, eu não queria mais voltar na fábrica onde eu havia começado, ali eu estive dois ou três anos, não me lembro, mas tinha um atacadista do ramo de presuntos e tudo isso, jamón, né, que me esperavam pra trabalhar com eles e eu falei, disse, eu disse a ele: “Estão me esperando pra trabalhar e eu queria trabalhar, estou perdendo tempo aqui”, aí falou ele com o oficial que eu era assistente e o oficial me disse: “Olha, você me traz o pão e o leite em casa e me limpa as botas e o dia é teu”, e eu fazendo serviço militar sem uniforme nem nada, ó, eu era bem visto no quartel, eu entrava no quartel do Estado Maior porque todos me consideravam, até os oficiais porque aí era o comandante capelão daquele quartel, então havia um grande respeito.
P/1 – O senhor tava contando que o senhor veio de navio pro Brasil, é isso?
R – Sim.
P/1 – Como foi isso?
R – É muito fácil, filha, faz bem e às vezes mal, eu, o sobrinho desse, do dono da fábrica, que trabalhamos juntos e ali na, veio um dia e me disse que o meu irmão foi preso com três quilos de café que ele trazia de Portugal e preciso pagar a fiança, três mil pesetas e eu, eu fui, eu mesmo fiz um giro na direção que ele me deu e lhe dei as três mil pesetas, claro, ele saiu em liberdade, pagou a fiança, saiu e foi pra Madri. E aí o irmão, Fernando, ele se chamava Ferson, o irmão Fernando me disse: “Olha, pois”, eu já trabalhava por conta própria e havia tido um sócio que não deu certo, que era irmão do dono do atacadista e ele saiu, não se deu com o irmão, saiu e me chamou, queria que eu trabalhasse com ele, fui, mas eu vi que só trabalhava pra ele, então eu passei a, trabalhava por conta e atendia minha conta no banco e, enfim. Então veio um conhecido e disse: “Escuta, Paco”, meu nome de casa é Paco, familiar, não: “Quanto dinheiro te pede Sérgio para sair aos domingos?”, “De vez em quando dez pesetas”, disse: “Pois com dez pesetas não se vai para o campo de táxi, de merenda e passa o dia inteiro pagando um táxi no campo, toma cuidado porque te está roubando”, efetivamente. Foi uma desilusão tão grande, eu já tinha um local onde ia guardar a mercadoria, eu pagava aluguel, tinha uma bicicleta e eu mesmo entregava e eu cobrava e, enfim, fazia tudo, a bicicleta deixei de presente para o homem que me havia me alugado um quarto na garagem, um quarto não pra dormir, pra eu guardar a mercadoria, eu morava numa pensão. E me deu essa coisa, digo: “Me vou da Espanha”, estava aborrecido e eu ia tomar o metrô pra ir pra Salamanca, o bairro mais chique de Madri, que ali tinha eu clientela, e antes de pegar o bilhete do metrô dei a volta e fui na Puertadel Sol, que eu conhecia, uma agência de viagens tinha ali, e subi: “Buenos dias”, “Buenos dias”, “Que deseja?”, “Olhe, quero ir pra fora da Espanha”, “Pra onde?”, “Não sei, pra qualquer lugar”, disse: “Olhe, no Brasil estão pedindo muita mão de obra”.
P/1 – Que anos era isso, o senhor tem ideia?
R – Foi em 53, 54, pois eu cheguei aqui em 54, foi nesse ano, foi 1º de setembro, por aí, então pra Brasil: “E quanto custa essa viagem?”, “Três mil e cem pesetas”, “Toma já”, já me fez um papel, deu andamento aos documentos, no mês de novembro, novembro? Sim, ou foi em dezembro? Embarcar em Barcelona, era um barco francês que vinha de Nápoles, cheio de árabes, parou na África, em Dacar, era colônia francesa ainda, Senegal, ali eu me assustei, ver aquelas mulheres e aquela gente, aqueles homens altíssimos, todos de túnica, e as mulheres com a criança por de trás, amarrada nas costas. Mas, olha, foi, aí, ah, eu tinha um cliente na Rua Cartagena que tinha um açougue, eu vendia lingüiça pra ele, e eu comentei com o filho, disse: “Eu vou pro Brasil”, “Ah, eu também queria ir, eu lhe empresto o dinheiro, que tem comércio”, ele me pediu, que ele não tinha e seu pai seguramente que não lhe dava, e eu lhe emprestei as três mil pesetas para embarcar, para pegar o bilhete e viemos juntos e ao tomar o trem pra ir pra Barcelona em Madri conhecemos outro moço que foi junto, também vinha pra cá. E chegamos a Barcelona, vamos a uma pensão, ali estivemos dois dias, corri toda Barcelona, era linda, subi num monte de que chama Tibidabo, numa altura que se vê a cidade ali embaixo, o mar, tudo, e venho pra cá, chegamos aqui, era morar em, primeiro ele já foi, porque foi uma coisa boa, me custou caro porque ele realmente quase nunca terminou de pagar, ele se estabeleceu primeiro que eu, era estabelecido, era do açougue e eu, foi trabalhar num açougue, acabou comprando o açougue do dono e não me devolveu o dinheiro.
P/1 – Aqui em São Paulo?
R – Aqui em São Paulo, você viu, eu sempre apanhando, então eu comecei a trabalhar, ah, e passei um mês numa pensão na Mooca, na Rua da Mooca e a pessoa que eu dormia ao lado disse: “Olha, você se não quer amanhecer na rua se amarra porque à noite, de noite as pulgas te arrastam” (risos), é verdade.
P/1 – Muita pulga?
R – Nossa Senhora, levantava, aquela, era um inferno, foi um mês, tinha que pagar adiantado, né.
P/1 – Então o senhor ficou o que, numa pensão ou numa hospedaria?
R – Numa pensão, uma pensão na Rua da Mooca e tinha que pagar adiantado, bom, mas eu vinha com dinheiro ainda, não, eu ainda fiquei devendo pra uma pessoa cinco mil, que eu mandei desde aqui, acho que seria a única pessoa que faria uma coisa dessas, eu mandei cinco mil pesetas e eu tinha conta no banco, quando o tio e a tia depositaram, o tio que eu tinha emprestado, eu mandei um cheque, no cheque eu escrevi: “Este cheque só tem valor para depósito na conta de fulano de tal mediante apresentação de documento de identidade” e pronto.
P/1 – E aqui o senhor começou a trabalhar com o quê?
R – Não imagina, em uma indústria de máquinas de costura, tinha, aí eu mudei já pra uma pensão na Vinte e cinco de março, que era de uns árabes, dois casais, família, eram família, aí era mil e 50, mil cruzeiros, mil e 50 cruzeiros por mês, comida, roupa limpa, camas boas, excelente, e eu levava marmita, não cabia a comida na marmita, eu comia, eles me davam a marmita.
P/1 – Como era São Paulo nessa época?
R – Ah, nada do que é hoje, claro, era quatro, cinco prédios no centro, era Banco do Brasil e Banco Banespa e o Martinelli, o resto eram todos pequenos.
P/1 – E a sua família ficou toda lá?
R – Toda.
P/1 – Como é que o senhor se correspondia com, como é que o senhor se comunicava?
R – Não, você, se eu te falo eu vou chorar, eu pus uma mala, eu todos os anos mandava um bilhete de loteria de natal pros meus pais, torrão pra natal, porque é muito racional, eles comiam torrão quando eu só mandava e pus tudo numa mala, e roupa porque me falaram que o clima aqui era quente e eu pus roupa que eu não usaria aqui e enviei aquela mala cheia pros meus pais e chave da mala numa carta certificada, não podia ir junto com a mala, né, e mandei. E simplesmente, aí sem falar nada, em Barcelona eu ia escrevendo a carta e dizendo: “Estou embarcando pra América (risos), não quero ver meu irmão menor”, que ele faleceu, Antonio, disse que foi uma verdadeira, tremenda, quando abriram a mala (risos). E cheguei aqui e comecei, olha, fui na fábrica de máquina de costura, Fábrica Rossini, Vicente Rossini era o dono, filho de italianos, e o diretor era italiano, Doutor Farina, e ele me perguntou se eu tinha prática, digo: “Eu tenho prática, não tenho conhecimento, prática de trabalho tenho”, disse: “Podemos fazer uma experiência?”, digo: “Claro”, “O senhor quer começar hoje?”, e eu tava de gravata, um terno que eu havia comprado em Barcelona pra vir pra cá e: “Desta forma não vai ser possível, senhor”, “Então amanhã o senhor vem às oito da manhã”. E fui e me puseram a trabalhar na, no setor de retífica, onde as peças tem que sair prontinhas para a montagem das máquinas, retificado, e o chefe da seção era iugoslavo, Mario, excelente, foi excelente, eu nada conhecia nem uma chave de fenda, mas não importa, só querer, e o primeiro mês me pagaram um salário, era 45 por hora. E aí passou, e o diretor me chama, diz: “O senhor me perdoa que eu não vi a tempo, mas o senhor passa a ganhar 11 por hora”, o segundo mês já me pagaram 11 por hora, aos seis meses, dali a pouco, dois ou três meses depois passaram pra 14. Aos três meses, aos seis meses o Mario foi para o Canadá, que tinha um irmão lá e foi para o Canadá, então quem era o chefe da sessão? Eu, 20 por hora, e tamo muito bem e eu, claro, eu sou um individuo que cuido das coisas como se fosse minha, porque o individuo deve pensar isso: “Não estou trabalhando só pra ele, estou trabalhando pra mim também”, isso é um exemplo de vida, e o máximo cuidado, eu não, e eu via que os indivíduos deixavam a máquina ligada a toda e vão para o pátio conversar, fumar, e a máquina rodando à toda, e eu disse: “Eu não posso fazer, eu não faço”, eles deixando as coisas e dar refugo preparando as peças, na minha seção não saía nunca um refugo, perfeito. Mas passou um tempo, em 56, em 56 a fábrica entrou em concordata porque Juscelino Kubitscheck assumiu o governo e cortou todos os créditos bancários e então eles entraram em apuros e entraram em concordata, acabaram fechando e eu fui pra Elevadores Atlas. Me fizeram um teste lá, retificar 40 motores, 40 minutos pra cada um e o motor tinha três operações, cada motor, os eixos e o rotor, um eixo de cada lado e o rotor, e eu com uma máquina a retificar e que terminei logo e chamo ao chefe de seção: “Ó, está pronto”, “Ah, mas já acabou?”, “Já”, “Ah”, chamou o técnico que havia pra calibrar pra ver se estava bem, aí conversaram entre eles, veio mais outra pessoa, calibraram e fiz todo aquele trabalho ao invés de em 40 minutos 18 minutos cada peça, conforme os dados que eles me deram. Quer dizer que então isso já te dá um privilégio muito grande, é o primeiro teste que eles têm comigo, aí eu não estava satisfeito ainda, passaram dois meses e eu queria ir embora pra outra fábrica de máquinas de costura, Leonam, e falei para o chefe de seção que eu queria ir embora. O diretor me chamou e me disse: “Me disse fulano que o senhor quer ir embora, eu, se é possível, eu queria saber o motivo”, digo: “Pois é fácil, eu moro de pensão”, esse um argumento meu: “E lá tem crianças e eu de dia não durmo, não consigo dormir”, disse: “O senhor me garante que é só isso”, “Só”, “Amanhã o senhor começa às oito da manhã, muda o horário” e me mudaram de horário. Isto se passaram dois meses e eu recebi uma carta do senhor Vicente Rossini dizendo: “Estamos reabrindo a fábrica, contamos com o senhor, por favor se apresente no escritório na Rubino de Oliveira para receber um saldo que o senhor tem ao seu favor”, eu fui e claro, eu apresentei essa carta na Elevadores Atlas, disse: “Os senhores me perdoem, mas eu vou onde me chamam” e fui. Isto foi em abril de 57, em setembro o meu amigo Vicente Rossini vendeu a porta de portas fechadas e eu fiquei na rua plantado, mas como eu tinha um bom salário eu tinha um dinheiro no banco, eu havia aplicado 50 mil numa casa bancária na Florêncio de Abreu e me haviam dado uma carta de 56 por seis meses e resgatei aquele dinheiro e juntei com um outro que eu tinha na Caixa Econômica Estadual, que é no Anhangabaú, ao lado do teatro, naquela, do Teatro Municipal, e não queriam: “Não, você reaplica, reaplica”, eu digo: “Não, não, vou me estabelecer” . E eu queria buscar esse ramo que eu tenho hoje, mas o dinheiro não era suficiente porque eu tive que fazer a instalação de gás, e eu a buscar local e lugar, e lugar, aí não encontrava, um dia eu subi, saía da pensão da 25 de março e descia as escadas, Prestes Maia, Anhangabaú e na Nove de Julho pra cima, chego na Nove de Julho, tem uma escada que subia ali, que dá pra Frei Caneca, não sei se vocês conhecem, subo e Frei Caneca pra cima e quando chego na Antônia de Queirós com Pena Forte Mendes e vejo uma placa na, aí fui lá: “Ah, tá passando o ponto”, era assim um alemão, ele tinha parafusos, tal, mas eu gostei do local. Telefonei pra ele aquele dia, aquele dia de manhã, saí dali já com o telefone, telefonei pra ele e senhor, era Valter, e marcamos encontro naquele dia na porta da telefônica na Sete de Abril e fui lá, e ele me disse: “Eu vou estar com uma pasta assim, assim na mão” e eu fui e: “O senhor é Valter?”, “Sim”, “Eu sou Francisco”, “Então vamos subir que os donos da propriedade tem escritório aqui”, naquela mesma tarde eu fiz o contrato de locação, paguei 15 mil de fiança, dei um cheque pra ele de 15 mil de fiança (risos), hein, que coragem! E a luta, montar ali.
P/1 – Então qual foi, que negócio que o senhor abriu?
R – Frutaria, uma frutaria porque era o que o dinheiro me dava, eu tinha 86 mil, tira 15 mil, fica quanto? Setenta e tanto, 74, 75 e fazer instalações, tive que colocar azulejos nas paredes porque era obrigatório, alimentação tem que ter azulejo e coloquei, foi um colega da pensão que colocou e não me cobrou nada, só comprei o azulejo. O pai de Vicente Rossini tinha na Silva Teles, tinha uma casa de material de construção e eu fui comprar lá e me atenderam, eu era conhecido da família, então me levou as coisas ali, areia e azulejos, tudo, cimento e tudo, e eu namorava com a minha esposa.
P/1 – Ela é da onde, a sua esposa?
R – Ela é da Mooca.
P/1 – É brasileira?
R – Sim, pai de raça italiana e por parte da mãe portugueses, pois ela, eram muito pobres, viviam num quarto e cozinha numa vila daquelas, quarto e cozinha e banheiro lá fora pra toda, três, quatro, cinco casas que tem, mas isso não me importa a mim, não, isso não me importava, o importante é a pessoa, é isso que vale, a doçura da pessoa.
P/1 – O que a sua esposa fazia na época?
R – Ela trabalhava na Alpargatas Rodas, ela com sete, oito anos já começou a trabalhar, ela mentiu, a primeira irmã que nasceu faleceu e ela mentiu a idade para poder trabalhar (risos).
P/1 – Há quanto tempo o senhor tá casado?
R – Cinquenta e oito anos.
P/1 – Como foi o dia do seu casamento?
R – Lindo, maravilhoso, ó, graça, então te conto e aí nós já terminamos, abro a quitanda, que é quitanda, mas a instalação é bonita, você vai ver, não está em cores porque não havia fotografias em cores na época, mas aí tem a fotografia, primeiro mês foi regular, ruim, mas eu catei, porque o meu sistema de trabalho era da Espanha, é o correto, e o povo aqui queria chupar, queria chupar, levar vantagem, você entendeu? Eu falei pra minha senhora: “Olha, quando pesas o quilo de tomate, passa 50 gramas e fala pra ela: ‘Olha, passou 50, mas não cobro’”, é um troco que, os centavos perdoavam, é assim, porque eu falei pra minha esposa: “Você vai trabalhar comigo”, estávamos solteiros, falei com o meu sogro, disse: “Ela tem que trabalhar comigo porque eu não conheço nome de verduras nenhum” e ele falou não sei que palavras, digo: “Não se esqueça que eu sou espanhol” e acabou. E ela pois largou o emprego e às oito da manhã estava na porta da quitanda ou às sete, né, e eu ia todos os dias de madrugada muito cedo, morava na 25 de março ainda na pensão, a fazer as compras no mercadão porque não existia outro, o único lugar era o mercadão e eu comprava ali, tinha um italiano que tinha dois filhos e tinha um caminhão e ajustei com ele pra trazer a mercadoria e um ponto de referência também eu comprava e eu tinha um carregador que ele que pegava e eu marcava a minha marca FB, FB, onde ele via uma caixa FB com X era minha, levava para o caminhão e eu pagava pra ele por semana ou nem me lembro como era, enfim, e o caminhão pagava por mês. E abrimos, ela muito doce, muito diferente de mim com o cliente, muita paciência, mas fazendo isso, olha, quando, eu só percebi que eu estava entre dois competidores do mesmo ramo depois que abri, tinha um na Frei Caneca, um português, e os japoneses dando a volta na Rua Augusta, dando a volta da esquina na Rua Augusta, eu no meio e começamos vendo, olha, aos poucos meses eu tive que por empregado pra fazer entregas porque tinha, a loja tinha telefone, mas o telefone eu comprei do alemão porque ele ia pra Alemanha, naquela época quem tinha telefone? Era difícil, custava anos pra você conseguir um telefone e uniram, eu não lembro nada quanto paguei, mas eu tinha telefone, então eu nunca cheguei a fazer cartões do que era, não precisou, tive empregados aos poucos meses, eu tive que por empregados, depois veio o meu irmão da Espanha, o caçula, e tava trabalhando. Olha, em menos de, nós inauguramos no dia 1º de janeiro de 58, em setembro de 58 já nos casamos, e o Buffet João Freire, que era famoso na época, fez o casamento, era meu cliente, virou meu cliente, devo muito a vida porque comprava muito e eu servia ele, eles pediam pra mim: “Eu quero comprar de você, mas só que você tem que me dar 30 dias” e não era fácil, eu estava, ó, aí eu recorri, aquele açougueiro que eu emprestei pra viagem, fui onde ele, depois de nós fecharmos às oito da noite, minha esposa e eu, ainda solteiros, fui na casa dele: “Eu preciso do dinheiro, o senhor me deves” e me deu um pouco, não sei quanto, mas deu pra fazer a compra que o Freire tinha pedido, foi suficiente. Bom, pois nos casamos, aí o buffet fez a, olha, fez o casamento, tinha um espanhol que tinha uma pensão na Rua Augusta e nós fazíamos a comida na quitanda, eu abri um buraco por detrás da porta do banheiro, comprei um fogãozinho elétrico e ali fazíamos comida pros hóspedes, porque não podia fazer comida dentro da venda, abre a porta e não via nada, dentro do banheiro, entrava detrás. E esse galego, João, me disse: “Por que você não se casa, fica melhor, olha, eu te alugo um quarto”, ele tinha um pensionato ali na Rua Augusta, efetivamente, claro que sim, e a gente não teve tempo nem pra namorar, não tínhamos, ela saía, fechava às oito da noite, tomávamos o ônibus até a Praça Clóvis Bevilacqua, aí ela seguia com o ônibus pra Mooca e eu ia pra 25 de março, eu tinha que levantar às três, quatro horas da manhã, eu não podia acompanhar ela, ela ia sozinha pra casa, essa que é uma mulher de coragem, hein.
P/1 – Quantos filhos, vocês tiveram filhos?
R – Um casal, um casal que é uma glória, você viu a minha filha saiu na revista e meu filho é um coração
P/1 – Como foi pro senhor pro senhor ser pai?
R – Lindo, olha, eu não podia atender na maternidade, foi na Maternidade São Paulo, que não existe mais, mas uma cliente italiana acompanhou minha senhora no parto lá, olha só, pensa bem, e nasceu minha filha, aquela coisinha, nossa! Aí quando veio o meu irmão eu aluguei uma casa, porque eu morei os primeiros meses foi na pensão, comprei quarto, comprei o armário, a cama e todo o necessário e vivemos naquela pensão, quando chegou meu irmão, antes que ele chegasse eu aluguei uma casa na Frei Caneca e o dono do buffet foi meu fiador, o senhor João Freire, excelente. Ah, vou te falar uma coisa aí, resulta que antes de eu vir pra aqui, pro Brasil, eu recebi uma carta da minha mãe pedindo-me por favor arranjar um emprego pra um sobrinho e eu fui na fábrica onde eu tive o primeiro emprego e falei para o dono, disse: “Geraldo, tenho um sobrinho que precisa de um emprego, é possível?”, disse: “Se é teu primo manda ele vir”, assim: “Se é primo teu manda vir”, eu lhe pus um telegrama, se apresentou, com três, quatro dias tava lá, o fui esperar na estação de trem e o levei à fábrica onde eu havia começado a minha vida. E aí isso, ali ficou e no mês seguinte eu ia vindo pra cá, pro Brasil, enfim, mantinha, eu fui, depois, estando o meu irmão comigo, aí ele chegou da Espanha, né, no Brasil, cinco anos depois, por aí mais ou menos, e ele queria aceitar o trabalho que eu tinha, sim, que eu tinha comércio, que eu tinha uma casa, havia pagado meio milhão a dinheiro, enfim, que ia pra frente e ele queria por esse ramo e eu digo: “Não, eu não quero, eu já sofri bastante, que é um ramo muito escravo, tem que madrugar e é um risco” e eu ia a pé desde a Antônia de Queirós ao Mercado Central sempre, todos os dias, você já pensou, de noite. Era uma época que não havia o que há hoje, ladrões por todo lado, assaltantes, naquela época era difícil, era outro país, o pais ganhou muito, muita influência da imigração, um progresso grande, claro, aí resulta de que ele queria se estabelecer e eu não queria sociedade porque eu não precisava ter sócios. Mas vendia uma casa, uma mercearia que tinha ao lado que havia tinha sido minha, eu tinha comprado com a intenção de que meu irmão trabalhasse lá, mas ele não estava preparado, tive que vender, eu vendi ela outra vez, ainda não me tinham terminado de pagar e a vendi, e eu falei: “Olha, aqui ao lado meu, eu estou a teu lado, compra aqui: “Ah, mas eu sozinho não posso, eu só não posso”, “Não, eu não quero”. Aí minha senhora disse: “Dá uma mão, é teu primo, porque não ajudas”, aí ele me disse: “Só faço sociedade com você, com o teu irmão não”, o que aconteceu? Eu fui, por um lado a minha esposa me empurrando pra ajudar, compramos a mercearia os dois a partes iguais, mas meu irmão se aborreceu comigo e foi pra Argentina, me deixou, tava meu filho pra nascer e me deixou como dívidas pra abater, mas me deixou triste e aborrecido e foi pra Argentina e eu continuo nessa sociedade até hoje, foi em 60, em 60 ou 62, em 62 é que foi. E tando os dois, depois eu vendi a quitanda, pois precisava trabalhar na mercearia também e a esposa não podia me ajudar, ah, nessa época haviam vindo os meus pais, vinham aqui, estavam aqui comigo, mas eles foram depois atrás do filho, minha filhas estava, não é filha, minha irmã estava também na Argentina, em Mar Del Plata e foram pra lá e eu vendi a quitanda, quatro milhões daquela época, uma quitanda, calcula se era boa, se faturava, não tem nada, que era fruta do dia e legumes e toda essa história, mas como faturava bem quatro milhões.
P/1 – O senhor foi pra Espanha, o senhor chegou a voltar?
R – Sim, eu já voltei várias vezes, depois de fazer sociedade, isso é o benefício de uma certa maneira, ter uma sociedade pra você poder viajar. Aí um bom dia ele passou pela Luis Coelho e viu que estava reformando ali uma casa num prédio e perguntou: “O que vai ser aqui?”, “Ah, vai ser uma loja” e ele foi, claro, naquela época, foi e me falou: “Vi isto, você não quer ir lá ver o que te parece?” e eu fui e vi e eu gostei do lugar, gostei do lugar. E naquele mesmo dia, antes de voltar pra loja da Antônia de Queirós eu fui no escritório daquele empresa que vendia aquele local e comprei aquela tarde, 42 mil cruzeiros novos, 20 de entrada e outros 20 em um ano, e voltei, quando eu voltei pra mercearia disse: “Aquela casa já é nossa, eu já comprei” (risos).
P/1 – E a sua esposa, como ficou?
R – Ah, poxa, ela bem, ela sempre bem, ela, mas inauguramos aquela casa, ele ficou na mercearia e eu sozinho e a minha esposa na Luis Coelho, eu ordenei toda a montagem da casa, uma casa de frios ao estilo da Espanha. Em fevereiro de 68 inauguramos aí, e a minha esposa ali sempre, tive uma empregada que me roubou pra caramba, mas que eu a perdoei, em menos de, isso foi em fevereiro, 9 de fevereiro de 1968 abri ali, em junho abriu um pegue e pague na esquina da Haddock Lobo com a Luis Coelho, dos jesuítas, aqueles da igreja, entraram ali, isso foi em junho, em novembro abriu a CESP, começou a CESP ali e abriu o subterrâneo, a garagem e tudo onde são hoje um monte de lojas, era da, foi a Eletro Radiobraz que montou ali um mercado, eu fiquei no meio, no meio de dois chegantes e teve quem me disse: “Te deram pelo cú, hein” (risos), com perdão, e outro me disse, e uma senhora me disse, uma senhora alemã disse: “Ô, Francisco, agora você só mata mosquitos”. Não foi nada assim, acontece o Pão de Açúcar comprou o pegue e pague, fechou, comprou o Eletro Radiobraz, fechou e eu continuo ainda lá, e a casa hoje é excelente, é uma das melhores casas do ramo que se tem em São Paulo hoje.
P/1 – Hoje qual é?
R – Na Luis Coelho, 128, se você tomar, ó, todos os oitos me seguem na vida, o número oito, é 128, eu nasci no 28, eu moro no oitavo andar, apartamento 83, vou a tomar um avião eu, sempre me tocam um oito, sempre.
P/1 – Número da sorte?
R – Número da sorte, mas nunca ganhei na loteria.
P/1 – Seu Francisco, o que o senhor faz hoje?
R – Trabalho das sete da manhã, que abre as portas, das seis, às seis estou na loja, das seis da manhã até às oito da noite, hoje eu vou ver uma cara do sol que vai te contar.
P/1 – O senhor trabalha até que horas?
R – Até às oito na noite.
P/1 – O que o senhor faz?
R – Eu, tudo, tudo, eu faço patês, eu embalo a mercadoria, eu cuido de tudo, eu comecei a limpar presuntos e desossar presuntos porque isso deu a chance da gente ter a possibilidade de ter o convênio com o frigorífico e ser distribuidor de produtos deles, que a gente vende por todas essas lojas finas de São Paulo e mercados finos, a gente vende no atacado e a gente, passamos a ter, importar produtos também da Espanha, a casa é pequena, mas muito grande.
P/1 – E a sua esposa trabalha com o senhor?
R – Não, já não, não.
P/1 – O senhor tem netos?
R – Tenho só um, porque por parte do filho não, não tenho porque ele, o meu filho é um estudioso, sempre notas altas, estudou no Caetano de Campos, ganhou um prêmio na Assembleia Legislativa, não é assembleia, é onde, na prefeitura, ali na...
P/1 – Na Câmara?
R – Na Câmara dos Vereadores, um prêmio de primeira linha, de primeiro da classe, eu tive que ir ali na Câmara dos Vereadores receber o prêmio, não me lembro o que era, ele é estudioso, hoje tá estudando Engenharia na Escola Mauá, que dizem que é a melhor de toda a América, Engenharia Civil. Quando paguei o terceiro ano, a matrícula, ele não me falou nada, aí ele prestou pra Escola Superior de Marketing, também não me tinha falado nada, porque ele ia trabalhar, a minha filha sempre, desde pequena já começou a trabalhar, e quando ele passou na Escola Superior de Marketing ele falou: “Papai, não é o que eu quero Engenharia, eu optei por outra coisa”, digo: “E pois você não me avisa, eu já paguei a matrícula”, paciência, e ele fez a Escola Superior de Marketing, se formou. Aí ele tinha uma namorada, filha da, por parte da mãe alemã e eu lhe falei: “Olha, Rico, a rainha da Espanha, la reina de Espanha te paga um curso na Espanha, você vai na Brigadeiro Luis Antonio, na Iberoamericana, vai prestar um curso, uma entrevista pra ver como você está de espanhol” e passou, passou e foi pra lá e claro, aprovado por uma academia de Barcelona e foi pra lá fazer curso de pós-graduação e ainda recebendo do governo, da rainha, 500 dólares por mês de alimentação (risos), essa é grande, né, por ser filho de espanhol, claro, automaticamente passou a ser, tem as duas nacionalidades. E tiveram um, ele acabou levando, com certeza fui eu que paguei a passagem dele pra Espanha, ele trabalhava aqui com chineses, fazendo desenhos em camisetas, isso, né, foram pra lá e acabaram montando uma agência de publicidade, ficou muito grande, muito famosa, teve 40 e tantos prêmios internacionais, ganhou troféu de ouro em Nova Iorque, meu filho foi naquelas torres que caíram em 2011, em 2010 ele foi receber o troféu de ouro lá, no ano seguinte em Madri, tiveram grandes prêmios. Mas se separaram e ao separar-se ela ficou com a agência, ela falou pra ele que dali não saía: “Só morta eu saio daqui, só morta”, tá bom, ficou com a agência, com 20 e tantos funcionários, ficou com o apartamento, um apartamento de mais de um milhão de euros no coração de Barcelona e ele acabou comprando um castelo e tem um restaurante e um hotel, digamos, uma castelo na região dos vinhos da Catalunha, é lindo, lindo, lindo, tem um espaço de lazer grande com uma grande piscina no meio, já fui. Eu fui em maio passado, não este, do ano passado, fomos nós, fazia dez anos que eu não ia, devido a sociedade que é uma sociedade que vive pela minha paciência, senão não viveria mais, pois eu sou tão tolerante, tão tolerante, ele chegou a ir em Madri e falar que eu o roubava, falar pra uma prima, olha só, uma prima minha, irmã dele, que tinha um primo. Ó, eu fui ver essa prima e o resto da família que tenho lá, eu e minha esposa, em maio do ano passado, e tem um restaurante, vamos lá e infelizmente a irmã dele está com Alzheimer e ela não me conheceu, mas ela me falou, falou o seguinte, disse: “Meu irmão”, porque escutou falar do Brasil, disse: “Meu irmãozinho tá no Brasil, tem sociedade com um primo que o está roubando muito, um primo”, olha, que iludido a vida, e iludi a vida não uma vez, mais de uma vez, porque se tivesse ficado no pueblo onde ele nasceu já o haviam matado e se tivesse feito sociedade com qualquer que teria feito sociedade um dos dois morria. É uma pessoa muito difícil, muito difícil, desconfiado, sempre, ele teve ciúmes da esposa e eu lhe falei, disse: “Você está louco”, ele queria, inclusive me disse: “Queria passar o apartamento para o teu nome”, digo: “Você está louco”, tu sabe o que significa uma pessoa com ciúmes? Sonha, pensa, imagina coisas que não existem: “Não te martirizes a cabeça, por favor” e mudou, única vez que ele me deu a razão na vida foi essa, disse: “Sabe, você tinha razão, a gente vê coisas que não existem”.
P/1 – Hoje pro senhor, assim, Seu Francisco, quais são as coisas mais importantes da sua vida?
R – A minha família (risos), a minha família, meus filhos, todos, e toda a minha trajetória de vida porque foi sempre brilhante porque vou te dizer, quando eu terminei o serviço militar esse comandante capelão me disse: “O que você quer fazer agora?”, eu disse: “Vou continuar trabalhando”, disse: “Eu tenho 50 mil duros”, que é um quarto de milhão de pesetas, hein, cada duro é cinco pesetas, então era um quarto de milhão de pesetas, me dava-os à disposição e eu lhe disse: “Não, eu lhe agradeço infinitamente, mas eu não vou arriscar dinheiro que não é meu, tem que ser de meu próprio suor que tem que sair.
P/1 – O senhor tem sonhos ainda?
R – Não, sonhos não, de liberdade, eu tenho sonho de liberdade, de liberdade, quero vender o negócio, a minha parte.
P/1 – Quer vender o negócio?
R – Quero vender o negócio porque, olha, eu sou, o que diria eu, sócio tem seu valor também, não pensa que não tem seu valor, também tem, porque ele, como vendedor de rua, vender nos clientes da rua, não tem igual, ele vende, tem mais cara de pau que eu, eu não, eu sou mais frágil nesse ponto.
P/1 – De atender o público você diz?
R – Não, atender o público é outra coisa, ele fica no caixa, no caixa é bom, não deixa passar um tostão, e a minha parte é a apresentação da mercadoria, apresentação, a decoração, digamos assim, dar vista, você sabe, quando você ver a frutaria, que bonita, que naquela época não existia nada assim, os portugueses e japoneses era um tabuleiro no meio do estabelecimento e tinha tudo ali em cima de qualquer jeito, eu fiz uma coisa totalmente diferente. Me lembro que tinha um japonês que tinha uma quitanda na Brigadeiro Luis Antonio, vendia o triplo do que eu, e ao chegar na minha porta ele por duas vezes, ele falou: “Já chegamos no galinheiro”, como fazendo um desprezo, eu vi esse homem quase pedindo esmola porque ele, o dono não quis renovar o contrato da loja e ele fechou as portas, ele vendia o que ele queria, ele comprava 40 caixas de morango e vendia no dia, eu comprava quatro, cinco, era bem menos, assim. Mas você vê a situação da vida de cada um, eu o vi pobre, mal vestido, mal calçado, ele foi parar na Rua Maceió, ali pertinho da Angélica e nada, acabou fechando e não sei que fim mais, o fim dele, enfim, essas são as coisas da vida.
P/1 – Como foi pro senhor aqui, contar a sua história, Seu Francisco, o que significou pro senhor contar a sua história?
R – Ah, você, muita gente que me conhece, eu tenho amigos, naturalmente, de verdade e dizem: “Tu tens que escrever um livro”, mas eu não tenho capacidade pra escrever um livro nem tempo, né, então meu neto esteve aqui, parece que ele esteve aqui e conseguiu que vocês me atendessem e eu fico eternamente agradecido.
P/1 – Tem algum fato, alguma coisa que eu não perguntei ao senhor que o senhor acha importante contar pra deixar registrado?
R – Talvez, talvez hajam fatos, eu o que sei, o que diria eu? Inclusive na própria loja atual, primeiro onde eu comecei, que foi a raiz de tudo o que tenho hoje, triunfar porque, sabe, eu sou talvez uma pessoa, é uma doença, a inveja, infelizmente a inveja é uma verdadeira doença, essa origina ódio e é o que ele sente por mim. Quando eu me queixei com ele que abriram os mercados do lado, eu fiquei no meio: “To preocupado”, “Hahaha, vocês vão fechar a loja”, é de nós dois, isso não se faria, isso, vamos, é horrível você receber uma resposta dessa, que ânimo te dá? Não, desânimo, eu sofri muito, sofri e já chorei, eu já chorei, já cheguei em casa chorando e a minha filha pegou o telefone e: “Vá pra puta que pariu, fecha essa porcaria aí”, aí eu voltei na loja e digo: “Vamos vender?” porque ela, a minha filha disse: “Vender, vender” e: “Vamos vender?”, “Vamos, mas pelo amor de Deus não me traz vendedores aqui, corretores”, foi a resposta dele: “Pelo amor de Deus não me traz corretores aqui”, se não traz corretores não pode vender, você entendeu? É difícil, é um tormento na minha vida, eu podia ter outro comércio maior, teria sido muito diferente e hoje teria uma rede de mercados, teria, mas isto é, infelizmente te trava, uma pessoa assim te trava, você não tem vontade de seguir adiante, sustentar aquele que está, que te deu a vida, a ele e a mim e a seus filhos, dele, os dois também, tem dois, também formidavelmente e essa é sua vida. Faz bem e não olha a quem, isso que a minha mãe me falou a vida inteira e eu me sinto feliz por ter ajudado, não tenho desgosto em ajudar, eu ajudei tudo, levar-lo pra Madri, tirar-lo do pueblo, dar início a vida e participar comigo do negócio. Eu tenho um funcionário, hoje não tenho mais, já se aposentou, que ele tem casa onde morar porque eu lhe emprestei o dinheiro pra comprar o terreno pra construir, tenho outro que vai sete, oito anos que eu lhe emprestei 54 mil pra comprar um terreno, aí começou a construir, não acabou e perdeu tudo, então não vai me pagar nunca, também não vou lhe falar, é o nosso motorista hoje, atual, leva 25 anos com nós, de criança começou, era garoto ainda, são coisas que dá alegria na vida, te dá alegria, eu pude fazer bem.
P/1 – E é isso que vale, né?
R – E é isso que vale, que você brilha, brilha ajudando a quem pode, a quem você pode ajudar, sem pensar em retornos, o único retorno válido é reconhecimento, por uma vez a minha senhora tinha uma faxineira que vinha uma vez por semana, ou não sei quantas, e tinha um filho mudo porque não escutava, eu falei pra minha senhora: “Vai na 25 de abril e compra, com ele e compra um aparelho pra por nos ouvidos”, ele começou a trabalhar no Pão de Açúcar, começou a falar e aquela pretinha que era faxineira não deixou de agradecer mil vezes aquilo, isso são coisas que se faz na vida.
P/1 – É verdade, então é isso, muito obrigada pela sua história.
R – E eu agradeço a vocês infinitamente.
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