Entrevista de Arlindo Pereira Dias
Entrevistado por Luiza Gallo
São Paulo, 19/12/2023
Projeto: Acolher Histórias
Entrevista número: ACOH_HV007
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Então, primeiro de tudo quero te agradecer demais por estar aqui com a gente, por ter topado d...Continuar leitura
Entrevista de Arlindo Pereira Dias
Entrevistado por Luiza Gallo
São Paulo, 19/12/2023
Projeto: Acolher Histórias
Entrevista número: ACOH_HV007
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Então, primeiro de tudo quero te agradecer demais por estar aqui com a gente, por ter topado dividir um pouquinho da sua história, da sua atuação e estar aqui no finalzinho do ano. Eu te agradeço muito. E, para começar, gostaria que você se apresentasse, dizendo o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Então, eu também agradeço, é uma alegria poder contar a história, porque a história é participação de um processo de uma cidade, de um estado, de um país e da vida do planeta, não é? Cada pessoa é única e é importante. Então, eu sou Arlindo Pereira Dias, eu nasci na cidade de Cipotânea, Minas Gerais. É uma cidade próxima à Barbacena, São João Del Rei, essa região histórica ali, mas é uma pequena cidade, de mais ou menos seis mil habitantes atualmente. E nasci no dia dezesseis de janeiro de 1961. A primeira fase da minha vida é marcada pela vida no campo. Meus pais eram camponeses, assim como meus avós. Eu levo o nome do meu avô, porque antigamente era costume e tradição algum dos netos ter o nome do avô e assim tem um tio, já falecido, que era Arlindo Pereira Júnior, eu sou Arlindo Pereira Dias. Tem um primo-irmão, Arlindo Dias Pereira e outros quatro primos, que são Arlindos também. Então, é um jeito de a geração continuar também, até no nome. Eu levei uma infância simples, mas muito bonita. Era um lugar na roça, onde viviam três famílias, que eram três irmãs, duas tias minhas, irmãs da minha mãe e uma delas vivia na fazenda, onde esse meu avô Arlindo também viveu, com a minha avó Laurita e era uma fazenda onde a maioria das famílias dos filhos que casavam vinham primeiro viver com os avós e depois eles iam tomando independência. E aí essas duas famílias de uma irmã da minha mãe e a minha mãe ficaram próximas, assim, na mesma área, quinhentos metros de distância uma casa da outra e uma das tias mais jovens acabou herdando a fazenda do meu avô, onde tinha um grande engenho de cana e uma das tias tinha onze filhos, a outra tinha três e nós, na minha casa, éramos três. Então, esse ambiente marcou muito, porque era um ambiente familiar, onde não havia ainda tanta troca por dinheiro, mas era mais troca por produção. O pai produzia arroz, feijão, milho, porcos, galinha, então eles intercambiavam a produção, é claro que também vendiam um pouco, mas viviam daquela produção ali, que era o suficiente para viver e viver razoavelmente. E a nossa vida era, durante a semana, na escola pequena, que todos se conheciam, a professora havia sido professora do meu pai também, Dona Elzira se chamava, e final de semana, domingo, era o tempo dos primos e alguns vizinhos se reunirem no quintal da minha tia, que tinha muita fruta, pular corda, brincar de bola, ao redor dos pais também, que se juntavam. Enquanto eles conversavam, a gente se encontrava. E uma das marcas é que a cidade, muito pequena, mas era uma cidade marcadamente católica. Então, as famílias, obviamente no domingo, iam para a cidade, participavam da missa e depois da missa era tempo do encontro também. Um tio meu tinha um bar ao lado da igreja. Então, todo mundo ia tomar café, ou ia para a casa dos avós, de pai e de mãe que ficavam lá. Outras épocas, quando tinha uma grande festa, a gente se reunia quase por uma semana na cidade, a igreja era referência, mas sempre, depois da igreja, tinha quermesse, às vezes forró, outras coisas, que era o espaço cultural ali, mas ao mesmo tempo o espaço da família. Me lembro que na casa dos avós, às vezes, ficávamos trinta, quarenta pessoas, que vinham os filhos, genros e netos e cozinhavam junto, comiam juntos. Então, era um tempo assim também de muito encontro, de muita familiaridade. Então, os primeiros anos eu vivi nesse espaço, que era marcadamente religioso, que depois vai explicar por que eu também me tornei padre, mais tarde. Eu aos quatro anos, nasceu o terceiro irmão e ele tinha síndrome de Down. Então, aí meus pais, que eram camponeses e trabalhavam na agricultura, tomaram a decisão de ir para Barbacena, que fica a setenta quilômetros do lugar, porque também era uma cidade onde tinha escola para tratamento de crianças com síndrome de Down. Então, aí começou o primeiro passo da minha vida, aos seis anos, mais ou menos. Eu já estava na escola, já tinha feito o primeiro ano escolar, mudando para Barbacena, porque meus pais queriam proporcionar uma escola melhor, um espaço melhor para o meu irmão e aí nós nos mudamos nessa idade para a cidade de Barbacena, que talvez, na época, devia ter cinquenta, sessenta mil habitantes, aí nos anos sessenta. É conhecida também como a cidade dos loucos, mas a gente sempre dizia que os loucos vêm de fora, mas também tem uma parte um pouco trágica da cidade, que é o fato de ter tido hospitais que hoje tem até documentário, chamado Holocausto Brasileiro, onde o tratamento às pessoas que eram internadas não era feito de uma maneira digna e de respeito aos direitos humanos da pessoa. Então, nós nos mudamos, meu pai passou a trabalhar como pedreiro, era um homem bastante simples, mas de muito amor à família, amor aos filhos. E aí, pouco a pouco, ele comprou um terreno, ele mesmo fez uma casa e eu passei também a ser a referência para esse meu irmão, Adilson, porque ele só começou a andar e a falar aos quatro anos. Então, como eu já tinha cinco, seis anos, a minha mãe já começou a me fazer cuidar dele, estar junto e acompanhar. E aí, a partir dos sete, oito anos, que ele ainda não andava, eu ia para a igreja, eu o levava, eu o levava para a escola, eu o levava para os espaços onde eu brincava. E ali também o ambiente religioso marcava muito o bairro, marcava muito a cidade. Então, eu comecei a participar da igreja, comecei a colaborar nas coisas da igreja, no catecismo e também a gente chama de coroinha, que é aquele que ajuda o padre na missa e aí eu comecei a perceber um chamado, assim, especial, para um dia ser padre, já bastante cedo porque, com os colegas da rua, além dos brinquedos de gangorra, de brincar no final de semana, de jogar bola, a gente participava também da igreja, mas também era um ambiente muito... a maioria das pessoas do bairro vieram do campo, da roça, então era tudo meio família. Aí começaram, com a vinda do meu pai, a chamar um outro tio, um outro tio e vários tios da família também se instalaram mais ou menos na mesma região e no mesmo bairro, naquele esquema de colaboração, você vem, aquela tia que morava com a gente na roça acabou morando uns seis, oito meses debaixo da casa, improvisado, até que ela conseguisse também o outro espaço para ela e para a família e a gente foi crescendo um pouco naquele ambiente, tanto na escola como no bairro, de muita proximidade entre os vizinhos, entre os amigos, colaboração. E eu, aos dez anos, mais ou menos, me lembro que, participando da igreja, em casa, aos domingos, chamava os amigos, os vizinhos, para brincar de rezar missa também. Então, minha mãe tinha umas coisas interessantes, porque havia um... quando estávamos na roça, usava muito o cavalo para ir para a rua, que a gente falava. Vamos para Cipotânea: “Nós vamos para a rua hoje”. Então, meu pai tinha uma charrete, levava a gente, mas às vezes ia a cavalo e tinha um manto que punha sobre o cavalo, era chamado de coxinilho e a minha mãe passou a usar pro meu irmão dormir e às vezes ele fazia xixi, aí ela encostou aquele pano, era branco, bonito, mas ficou uma marca assim, do xixi. Então, eu fui lá e peguei, cortei e fiz aquela roupa de padre (risos) e pus nas minhas costas e eu comprava - tinha um doce na venda que parecia um cálice de plástico - e cortava banana e punha café ou suco Ki-Suco, que pobre, naquela época, tinha um pacotinho que chamava de suco de uva, laranja e você fazia aquele suco e punha e eu chamava todos os meninos e cantava e rezava e fazia procissão pela rua com aquela criatividade de, às vezes, estar fazendo aquilo. E, bom, a família eram os três, o meu irmão mais velho era fanático por futebol e eu me lembro que apareceu a primeira televisão no bairro, era o início dos anos setenta e era preto e branco e a gente considerava o vizinho mais rico, porque quem tinha televisão era alguém que conseguiu comprar e tal. Então, todo dia, ali, às oito da noite, a gente ia para a casa do vizinho, para assistir a novela Irmãos Coragem, que era a novela de sucesso, com Tarcísio Meira, Glória Menezes e tal. Então, chegou aquela hora, tinha trinta, quarenta crianças na sala do vizinho, sentado, assistindo. Às vezes o vizinho tinha que fazer calar a boca, não é? E aí, o dia que a gente aprontava, o pai e a mãe não deixavam a gente ir assistir a novela. (risos) Então, até era uma pressão que eles faziam, para a gente tentar estudar bem e fazer bem as coisas. Então, esse era um pouquinho o universo do bairro, da cidade, naquela época. Até que depois também meu pai comprou uma televisão e aí foi... aliás, comprou de uma tia, que morava em Juiz de Fora e que já tinha comprado um segundo aparelho e tal. E aí, para nós, foi o máximo também ter a televisão em casa, era aquelas televisões que tinham uma antena em cima, mas às vezes tinha que subir, o meu irmão subia, virava: “Está bom? Está pegando?” “Está, está” e às vezes punha um ‘bombril’ lá, pra poder (risos) ver se melhorava, virava na direção certa, porque pegava três, quatro canais no máximo, na época. Então, aí eu fui crescendo nesse ambiente, com meus pais, com meu irmão com a síndrome de Down, até que um dia de domingo estávamos no quintal, pai, mãe, alguns vizinhos, a criançada, ele estava sentado no chão e, de repente, ele se levantou e começou a andar. Aí foi uma festa, aplausos e gritos e tal. E aí, com o trabalho na ABAE, se chamava Associação Barbacenense dos Excepcionais, que foi uma iniciativa de uma senhora bastante rica, que teve também uma filha com síndrome de Down, então ela decidiu ampliar e abrir uma escola para todas as crianças que tivessem síndrome de Down. E hoje é APAE, já atende bastante mais o pessoal. Até que aos doze... aos onze anos, eu começava a pensar em ir para o seminário. Eu, com aquelas brincadeiras, com a participação da igreja, pensei em ir para o seminário e naquela época havia um padre que andava com um fusquinha e ele visitava, quando alguém manifestava o desejo, conhecia a família, conhecia o jovem que pleiteava entrar para o seminário e ele foi na minha casa e eu decidi ir, mesmo com onze anos. Meus pais um pouquinho reticentes com essa questão, mas eles falaram: “Bom, se vai ficar lá com os padres e com outros rapazes, a gente vai deixar vocês irem”. E aí eu fui, eu entrei nessa Ordem a qual eu pertenço hoje, que chama Verbo Divino, Sociedade do Verbo Divino, que é uma Ordem como os jesuítas e outras, de origem alemã e eu fiquei um ano ainda em casa, ia, estudava no prédio lá do seminário, chamava São Geraldo e voltava para casa todos os dias. Até que, aos doze anos, eles disseram: “Agora, você, se quiser continuar, tem que ir para a Borda, que é um castelo muito bonito, construído pelos alemães, há quase cem anos. Acho que agora, em 2028, vai fazer cem anos e fica próximo da fazenda onde nasceu Barbacena, porque a cidade de Barbacena nasceu em um local um pouco afastado, onde tem uma igreja muito antiga e uma grande fazenda da família Andrada, que é aquela família do tempo do Império e tal e nessa fazenda eles haviam doado um espaço de terra para construir o seminário e ele foi construído nos moldes daqueles prédios alemães, tipo um castelo. Eu fui para lá, nós éramos 120, entre doze e dezessete anos, mais ou menos e tinha acho que uns dez religiosos, padres e a gente chama de irmãos missionários, que não são padres, que eram os responsáveis por nós e alguns professores que vinham da cidade vizinha, que se chamava Antônio Carlos. E aí nesse lugar, eu fiquei quatro anos, era um lugar com uma disciplina muito grande, a gente tinha horário para levantar, horário para participar das orações, horário para trabalhar após o almoço, uma hora, uma hora e meia a gente ajudava a cuidar do jardim, dos pomares, dos animais, porcos, galinhas e tal e tinha o tempo do estudo e também a gente tinha, gostava muito do horário da uma e meia até às três, que era o horário da piscina. (risos) A gente podia jogar bola ou ir para a piscina e tal. E a gente, depois, tinha um café e tinha que voltar para os estudos e para momentos de oração. Quem gostava de futebol ia para o futebol também. E ali me marcou muito a presença de um padre alemão, chamava-se Aloisio (Ptchezan?), que tinha estado na guerra, na Primeira Guerra Mundial e ele gostava muito de teatro, de arte e tal, então ele tinha um grupo de teatro também e ele abria muito os horizontes da gente, ele animava a gente a ler As Aventuras de Karl Marx, que era um dos livros famosos da época, ele preparava a gente para o teatro e a gente ficava ensaiando três, quatro meses, porque depois vinha a visita dos pais e a gente apresentava o teatro, tanto para os outros colegas do seminário, como também para os pais, quando vinham visitar ou quando tinha tempos de festa, por exemplo. Às vezes tinha dois domingos por ano que o seminário era aberto, as pessoas podiam vir, podiam trazer o lanche, podiam participar das celebrações, do teatro e apreciar lá a área verde que hoje está sendo transformada em um centro ecológico, que chama-se Laudato Si, por causa do Papa Francisco, nessa defesa da ecologia e da natureza, então eles estão... não tem mais seminário, não tem mais jovens, acabou já há uns trinta anos, mas eles estão transformando em uma reserva ecológica, onde as pessoas interessadas em ecologia podem vir, estão reflorestando com árvores típicas do lugar e é uma casa que acolhe também para encontros, para lazer, para retiros e outras coisas. Então, ali eu fiquei doze anos, passei a minha adolescência e dali a etapa seguinte seria o colegial, em Belo Horizonte. Então, eu fui para Belo Horizonte. O número vai diminuindo, porque aqueles jovens que vão para lá, cinquenta, a cada ano iam, tinham, alguns, o interesse de ser padre, mas muitos eram enviados pela família pelo interesse em boa formação, boa educação. Então, muitos pais da região, que tinham um pouco mais de posse, queriam que o filho fosse para o seminário, também pelo nível de formação e educação que recebiam. Então ia diminuindo. Por exemplo: eu comecei com quarenta colegas na quinta série, na oitava série nós éramos nove. E aí, daqueles nove, acho que cinco fomos para Belo Horizonte e aí já era um outro estilo, era um grupo menor, a gente tinha mais autonomia, também era seminário, mas no mesmo seminário uma parte era escola, onde a gente podia conviver com as crianças, com os adolescentes de outra... do bairro e tal. E também tinha o mesmo estilo: vida de oração, tinha comida juntos, mas aí a gente estudava num colégio externo, que também pertencia à Ordem, que chama-se Colégio Arnaldo, ele ainda é bastante conhecido e reconhecido, lá em Belo Horizonte. A gente tomava o café da manhã, fazia oração e ia a pé até o colégio, que eram uns dois quilômetros, o máximo três, de distância da casa, participava das aulas, voltava para o almoço e também depois do almoço tinha quadra, tinha um quintal, jardim e a gente participava ali da vida da comunidade, da limpeza, de todos os trabalhos e tal. E nos finais de semana havia uma creche de crianças órfãs, onde a gente era convidado, quem quisesse, a ir ajudar, a dar aulas, a lazer com aquelas crianças, eram umas cinquenta crianças abandonadas, que eram dessa creche e aí eu tive o primeiro contato com favelas, porque no meu ambiente de Barbacena, do lugar onde eu nasci, não havia tanto esse ambiente mais de pobreza, como tem na cidade. Então, nós conhecemos uma freira que tinha um posto de saúde numa favela chamada São Lucas, que era um bairro lá, em um dos morros da cidade, não muito longe da escola e ela tinha já um ambulatório, ela morava no convento, mas todo dia subia para aquela favela e fazia atendimento de farmácia, visitava as famílias e eu tinha dezessete anos e ela nos convidou: “Por que domingo, sábado, vocês não vêm para me ajudar aqui, com os jovens, com os adolescentes e tal?” E aí nós conversamos com o padre responsável, ele falou: “Olha, vocês têm liberdade de ir, desde que isso não prejudique o estudo de vocês, vocês podem ir”. Aí, com um outro colega nós começamos a ir, a entrar nos espaços das famílias, a ajudar na catequese, ajudar na formação e formamos um grupo de jovens que já começava a discutir um pouco como melhorar a vida da favela, como melhorar a vida da comunidade. A comunidade passou a ser também um centro de promoção humana: tinha missa, tinha encontros de jovens, tinha encontros de lazer, a gente saía e começamos a ajudar naquela comunidade e aí eu diria que foi o meu primeiro contato de sensibilidade com a questão da rua. Era já os anos setenta, mas eu já, andando pelo centro de Belo Horizonte, visitando lugares, começava a perceber pessoas abrindo o lixão, o lixo, nas ruas da cidade e comendo do lixo. E aí começou a nascer dentro de mim uma certa pergunta, uma certa indignação também: “Por que num país tão rico como o nosso, as pessoas precisam remexer o lixo para encontrar comida?” Então, aquele apelo ficou assim dentro de mim e eu comecei a me interrogar se não deveria me aproximar e fazer alguma coisa para essas pessoas que estão na rua.
P/1 – Tinha dezessete anos?
R - É, dezessete para dezoito anos. Eu continuei na favela, continuei fazendo os trabalhos e aí eu tinha que fazer a próxima etapa depois de terminar o terceiro ano do colegial. Aliás no colégio Arnaldo também já existia grupos de jovens que também tentavam sensibilizar para essas questões sociais e a igreja já tinha começado o que a gente chama de Campanha da Fraternidade, dos anos sessenta, que era pra dizer: “Olha, a fé sem influenciar na mudança de vida, na mudança de transformação da sociedade, ela não é… é uma fé só pela metade, ela tem que transformar as pessoas, mas tem que transformar o ambiente que a gente vive”. Então, a Igreja tinha criado esse... durante a Quaresma, o que chama Campanha da Fraternidade, cada ano um tema para ser discutido nas comunidades e para provocar conversão, mudança de vida. Então, havia cantos relacionados àquilo, havia discussões, reflexões bíblicas, textos da Bíblia que provocassem. Por exemplo: tem um texto de Mateus, onde Jesus diz que, no julgamento final, a gente vai ser julgado por: “Eu tive fome, tive sede, estava nu, estava na cadeia e vocês me visitaram”. Se isso não acontece, a fé se torna vazia. E aí começaram temáticas da Igreja: um ano é uma temática do negro, outro ano a temática da terra, outro ano a temática da fome. Há muitos anos teve um Pão Para Quem Tem Fome, onde se provocava, para perceber as situações de fome e convidar as comunidades a se envolverem na superação da fome. Houve a questão do racismo, isso já foi mais tarde, em 1988, onde se discutiu muito a questão da negritude e de como os negros também têm que encontrar o seu espaço dentro da Igreja, para se expressar, se manifestar. Então, aquilo começou a despertar na gente, nos seminaristas, uma questão social e a olhar aspectos da sociedade e não só da Igreja, não só da religião. E aí eu fui para outra etapa, que era filosofia e naquela época era no Rio de Janeiro. Então, eu fui me tornando assim migrante, desde a infância, fui passando de etapa em etapa, conhecendo outros lugares. Aí eu já senti um pouco de medo, porque o Rio de Janeiro era a cidade que foi a capital do Brasil e falava-se muito de violência. Belo Horizonte era um pouco uma cidade meio roça, não é? A gente até brinca: “Eu saí da roça, mas a roça não saiu de mim”, não é? Era uma cidade já grande, mas ela tinha aspectos ainda do interior, que a gente vivia no bairro, vivia nos lugares. Então, eu fui fazer filosofia e naquela época era uma faculdade dos jesuítas, lá em Botafogo, só que nós morávamos numa zona bastante conflitiva, que era uma região chamada Santo Cristo, que era perto do cais ali, do porto, a zona, também e tinha um morro que era bastante... tinha tráfico, já bastante problemáticas que nós temos hoje, que ficava próximo do lugar onde a gente morava, mas também ali, no final de semana, sábado e domingo, a gente subia o morro para participar da comunidade, para acompanhar catequese, acompanhar alguns grupos. Aí a filosofia começa a questionar muito a gente, porque ela desmancha aquele universo simbólico, religioso que a gente tem, que é um pouco ingênuo e ela começa a desmanchar aquela visão de religião, aquela visão de Igreja, aquela visão da Bíblia mesmo, de fazer, questionar, perguntar e aí eu já estava vivendo a minha adolescência e tal e não falei antes, mas estando no seminário, na adolescência, a gente saía e aí eu tive a primeira crise também, eram os dezessete, dezoito anos que, num encontro com outros jovens, um encontro de igreja, eu acabei me apaixonando por uma jovem italiana, que foi uma questão meio platônica, porque eu estava no seminário, aí me perguntava: “Será que eu devo sair, será que eu devo tomar outra vida?”, mas aí acabou que ela mudou de Belo Horizonte, foi para outro lugar e as coisas se desencontraram. Eu vivi aquela paixão platônica, que é própria da idade e tal, mas aos poucos fui trabalhando e fui superando e fui dizendo: “Não, eu vou continuar ainda nesse caminho” e ficou uma amizade com ela, depois ela desapareceu, acabou voltando para a Itália e tal, mas no Rio acabei vivendo um ano curto, mas também aquele ambiente de cidade grande, de muitas diferenças, de convivência com outro ambiente, com outras pessoas, que você acaba abrindo seus horizontes para essas outras coisas, que é uma cidade grande. Fui, pouco a pouco, superando o medo também, convivendo com outros ambientes, até que depois desse ano a faculdade mudou, ela ia para Brasília e a minha Ordem decidiu que nós não iríamos para Brasília, mas iríamos voltar para Belo Horizonte, para terminar a filosofia na PUC, que tinha o campus de filosofia lá. Então, desse ano de vivência no Rio, que a gente viu mais essa cidade da praia, essa cidade do Carnaval, nós estávamos perto de onde estavam construindo, ou iam construir o Sambódromo também, mas era próximo de onde tinham os desfiles e tal. Então, houve uma convivência também com esse mundo mais livre, mais da alegria, da festa e de tudo. E aí eu fui para Belo Horizonte.
P/1 - E foi a primeira vez que você viu o mar?
R - Não.
P/1 - Não?
R - Eu não contei isso, mas é legal isso. A primeira vez foi nesse seminário que era o castelo, que esse padre também tinha um jeito muito interessante, porque a vida era muito controlada, no seminário e tal. Então, por exemplo: de vez em quando ele resolvia fazer uma festa com os atores. Aí ele levava guaraná, levava mortadela com pão, que naquela época, para nós, era o máximo. Eu me lembro que meu pai, quando construía casas e estava construindo a nossa, reunia os amigos para fazer um mutirão, para colocar laje, fazer cimento e fazer o trabalho. Então, a recompensa - ele não pagava - para quem vinha ajudar era pão com mortadela, uma comida assim e guaraná. E a mesma coisa fazia esse padre: chocolate, guaraná. A gente gostava de ir trabalhar com ele no jardim porque sempre, depois do trabalho, ele enfiava a mão nos bolsos grandes, era cheio de chocolate, então ele dava para cada um, um chocolate. Então, no primeiro ano que eu estava, no segundo, me parece, ele disse: “Nós vamos fazer um tour, para apresentar o teatro no Espírito Santo”. E aí, com uma Kombi, nós éramos uns doze, mais um carro, nós fomos fazer apresentação do teatro nas igrejas, nas paróquias lá do Espírito Santo. E aí, depois disso, nós fomos para a praia, em Guarapari. E aí foi a primeira vez que o mineiro (risos) foi na praia, faz lembrar aquela música: “Zé Matuto foi à praia, só pra ver como é que é”. E eu entrei, mas eu não conhecia (risos) o movimento das ondas, fui entrar debaixo de uma delas e ela me jogou na areia, engoli água e tal, mas foi o primeiro contato, é muito legal aquela turma de pré-adolescentes na praia e tal. Depois, no Rio, eu pude aproveitar mais e ir aos fins de semana, às vezes feriado e tal, a gente juntava a turma da comunidade e também ia, mas a primeira vez foi na praia dos mineiros, porque eles falam que Guarapari, em Espírito Santo, é a praia dos mineiros.
Bom, então aí a gente mudou outra vez para Belo Horizonte, aí em Belo Horizonte já havia um pouco a ideia, dentro da igreja, de ir para as periferias, de encontrar os pobres nas periferias, conviver com os pobres, participar das organizações, das lutas dos pobres. Foi em 1980, eu tinha dezenove anos e aí nós começamos uma comunidade bem na periferia de Belo Horizonte, que era bairro Serrano, próximo do zoológico, da Lagoa da Pampulha, que era um bairro bastante pobre, não era favela, mas era bastante pobre e nós começamos a morar nesse lugar, numa casa, não era mais seminário, era uma casa simples, normal, onde nós éramos uns cinco ou seis e morávamos junto com o padre e a gente levava uma vida mais ou menos normal, como as pessoas: a gente tinha a escola de manhã, que a gente pegava o ônibus, alguns de nós tinha bicicleta, ia de bicicleta e a gente tinha que trabalhar meio período. Então, além da escola, a gente voltava para casa, almoçava e aí, à tarde, a gente ia trabalhar quatro, cinco horas. À noite voltava para casa, tinha oração, tinha o jantar e aí a gente tinha tempo livre para estudar.
P/1 - Com o que você trabalhava?
R - Eu, por exemplo, participei do censo, fiz a inscrição e um ano eu participei, colaborei no censo demográfico. Depois, o outro ano, tinha uma das casas nossas que precisava de um secretário, que ajudasse no trabalho de secretaria, então eu fiquei mais dois anos nesse trabalho de secretaria e de manhã nós estávamos na universidade. Aí eu me lembro que era início dos anos oitenta e na universidade o movimento estudantil estava muito forte para as Diretas Já, para o trabalho de superação do regime militar. Então, na faculdade a gente lia muito e eu tinha muito interesse pela situação de São Paulo, porque havia muito envolvimento do cardeal daquela época, Dom Paulo Evaristo Arns, com a defesa dos operários, com a luta contra o regime militar. Então, a gente começava a ler, por exemplo: de repente, teve manifestação dos operários na frente da Catedral da Sé e aí a repressão militar veio e aí o cardeal abria as portas da catedral e mandava entrar os operários e tal. E ainda a gente lembra que ele mandava, quando entrava todo mundo: “Olha, atenção, olha o seu vizinho”, porque tinha espiões e tal. Então, além de abrir, ele chamava a atenção para o pessoal ficar atento e tal e aquilo começou a despertar muito a gente para engajamento com a comunidade, luta política, luta social e tal. E eu me lembro que uma coisa que marcou muito na nossa faculdade toda foi que um dia veio Dom Hélder Câmara e Dom Hélder Câmara era pequenininho, era miúdo, mas ele estava proibido de falar no Brasil. Ele viajava muito, saía fora, mas os militares tinham proibido de que ele pudesse falar no Brasil, mas uma vez ele veio na universidade e começou a falar e ele tinha esses discursos que entusiasmavam a gente. Por exemplo, lembro que ele repetia: “Se eu dou esmola a um pobre, eles me chamam de santo, mas se eu pergunto por que tem a fome, por que tem a pobreza, eles me chamam de comunista”. E ele falava de um jeito que a gente jovem, assim, ficava de boca aberta, encantado. Por exemplo: a gente está agora próximo do Natal, eu me lembro que... não lembro se era próximo, mas me lembro que ele contou uma história, ele falou assim: “Olha, depois eu conheci um casal. Ela chamava Maria, ele chamava José. Eles estavam para dar à luz a um filho e aí esse casal foi para Belém, mas chegou num hotel, não tinha lugar, chegou num outro hotel, não tinha lugar e com o filho para nascer, aí eles encontraram um pedaço de terra, uma gruta, animais e eles foram para lá e foi naquele lugar que nasceu o menino, que hoje nós chamamos, para os cristãos, o nosso Salvador. Naquele dia nasceu o primeiro casal de sem-terra. Eles ocuparam um lugar, para dar à luz ao filho deles”. Quer dizer, é legítima a luta do sem-terra, é legítima a luta dos favelados, é legítima a luta de todos os que querem uma vida mais digna, uma vida melhor. Então, aí a gente começou também, na periferia, a formar os grupos de Bíblia, que eram grupos que pegavam textos da Bíblia, estudavam os textos e aplicavam na realidade que eles estavam vivendo. Por exemplo: pegavam um texto de Moisés, que organizou o povo para ir para a Terra Prometida e aí naquele texto diz que Deus desceu, ouviu o clamor do povo e libertou o povo. Então, aí a gente também discutia: “Como é que a gente vai, se Deus está ouvindo o nosso clamor, que aqui tem desempregado, aqui tem gente passando fome, aqui tem favela, no meio de nós, o que a gente tem que fazer, se unir e se organizar para superar isso?” Então, foi naquela época que eu também comecei a me interessar pela Teologia da Libertação, que era uma teologia que já tinha nascido antes, nos anos sessenta, quando bispos como Dom Hélder, como vários outros da América Latina se reuniram lá em Medellín, na Colômbia e começaram a perguntar: “Olha, nós temos maioria católica,” - naquele tempo era maioria católica – “mas temos a maioria de pobre também. Então, as duas coisas não combinam. Se a religião cristã é maioria e professa uma igualdade entre as pessoas, igualdade de direitos, de luta por direitos e aqui tem gente rica que vai à missa, senta do lado do empregado, mas ele continua explorando, continua rico e o empregado continua dependente a vida inteira. Então, alguma coisa não combina com Jesus, não combina com o Evangelho essa estrutura” e aí começaram a perceber que tem que ter envolvimento político, envolvimento social, para mudar as estruturas que estão gerando pobreza, gerando fome e passa pela política e aí a gente começou a perceber isso. Eu vi, na favela que eu trabalhava, que ainda ia nascer os primeiros núcleos lá do Partido dos Trabalhadores, eles se organizando e naturalmente, naquela época, tinha ainda só o MDB e a Arena, que era obrigatório, mas já começou a resistência e começou a nascer outros partidos. Então nós, seminaristas, íamos para as passeatas, íamos para as manifestações, quando tinha na cidade, para exigir a abertura do governo militar e tal. Então ali eu comecei a criar um pouco uma consciência política e eu entendi que, como padre, eu não podia ser padre só na igreja e que a religião tinha que provocar mudanças, tanto nas pessoas, como na sociedade que a gente estava vivendo. E aí eu terminei e concluí a filosofia ali em Belo Horizonte e aí a gente tinha que fazer o noviciado, que aí era uma etapa decisiva na vida. É um ano que você não estuda, que você fica mais recolhido num espaço, você trabalha mais, vive a oração e faz alguma pastoral, algum encontro no final de semana, com as comunidades, com o povo. E o nosso noviciado era no interior de São Paulo, numa cidade chamada Miracatu, que fica descendo para Curitiba, na região do Vale do Ribeira. Então, eu tinha que decidir se eu queria ir para lá ou não e eu decidi que iria e lá nós nos encontrávamos com outros, que vinham de outros lugares.
P/1 - Como foi essa decisão? Tranquila, não tanto?
R - Foi mais ou menos tranquila. Com essas experiências de igreja, de comunidade, de ver um jeito de ser padre, que não era só rezar, rezar, eu decidi que era o meu caminho. Aliás, eu acho que, lendo depois e aí eu faço uma regressão na minha história, o meu pai me ajudou a ter mais clareza no que eu queria, porque quando eu tinha treze, quatorze anos, eu ainda estava nesse seminário, o castelo, lá na Borda, eu fui de férias, gostei muito das férias, ‘curti’ muito. Sempre, mais ou menos dezembro, janeiro e julho eram férias e eu estava voltando para o seminário, indo para a rodoviária da cidade, meu pai foi junto, com uma malinha, era uma mala muito simples, de papelão, naquela época, eram umas coisas assim, nossa vida era muito simples. Meu pai me levou à rodoviária e eu comecei a chorar. Quando eu comecei a chorar, meu pai tomou a mala e me disse assim: “Olha, se você não está feliz lá, a tua casa é aqui. Eu vou ficar feliz se você for padre, mas não tem nenhum problema se você voltar para casa, porque eu não quero você infeliz. Se você não está feliz lá, vamos voltar para casa”. Aí eu parei de chorar, falei: “Não, pai, eu estou contente, feliz, eu gosto do seminário, mas eu também gosto de vocês, sinto falta do Adilson”, que era aquele irmão com síndrome de Down, que marcou a minha vida e que ele era muito apegado a mim também. Então, ali foi um momento que mais ou menos eu tive uma opção, mas não quer dizer que depois eu não tive dúvidas. Esse ano do noviciado eu tive bastante dúvida, porque é um ano que você vive muito intenso as emoções. Você fica o dia inteiro lá, você faz as orações, você tem período de formação, vêm outros de fora, que falam do que é a vida de leigo, do que é a vida de padre, do que é a vida dos compromissos e tal, mas você está ali a semana inteira. Segunda-feira à sexta-feira é trabalho na roça, é cozinhar, limpar a casa e é ter momentos de silêncio durante o dia, sozinho. E às sextas-feiras, às vezes, à tarde ou sábado, aí a gente ia para as comunidades. Tinha bananais, comunidades pequenas no meio dos bananais, ligado à Igreja Católica. Lá era uma região que eu aprendi a amar os japoneses, porque tinha muitos japoneses, eles são muito silenciosos, mas você chegava na casa, eles já preparavam uma mesa, eles já te acolhiam e você se sentia muito em casa. Então, fim de semana a gente caminhava, fazia visitas nas casas, escutava as histórias das pessoas, às vezes encaminhava coisas, pessoas com problemas devido à pobreza e tal, para a paróquia, para ver se podia ajudar, mas era assim: sábado a gente ficava numa comunidade e visitava o dia inteiro. Depois, à noite dormia, outro dia visitava. Às vezes coordenava uma liturgia, porque às vezes o padre não vinha, não tinha missa, então tinha os líderes da comunidade e a gente fazia cantos, leitura bíblica e oração junto com quarenta, cinquenta, que se reuniam nos domingos. Tinha um lugar chamado Amoreira, que era a uns cinco quilômetros, aí a gente tinha que subir uma serra a pé e tal e depois, no final, o padre vinha com o carro e nos recolhia e nós voltávamos. Aí, nesse noviciado, na metade, você também tem que aprender a conviver, porque nós tínhamos gente que vinha do nordeste, nós vínhamos de Minas e tinha gente que vinha do Paraná, de Santa Catarina, que aparentemente era igual a cultura, mas a gente, aquela diferença que a gente sente hoje, quando chega de outros países, naquele tempo a migração não era tão grande. Então, tinha migração dos nordestinos para São Paulo e às vezes do sul, mas não era tão grande. Então, havia choques culturais no jeito de ser, no jeito de falar, eles tomavam chimarrão; a gente, mineiro, é mais do queijo, do pão de queijo e tal. Então, a gente tinha que aprender também a conviver com as diferenças culturais e às vezes a gente brigava, se desentendia, ou um queria fazer de um jeito, outro de outro e tal, até ir aprendendo a respeitar e a ver uma cultura diferente. E, no meio do noviciado, a gente chama... é o teste mesmo, um retiro de trinta dias. Aí nós fomos para Itaici, num convento grande dos jesuítas e aí sim, são trinta dias em silêncio, não conversa com ninguém, só participa das orações e tem uma conversa com o orientador todo dia, meia hora e uma vez, depois de oito dias, aí tem um dia de descanso, lazer e tal e nós fizemos junto com outras freiras, a gente rezava junto, comia junto, mas era tudo em silêncio. E aí ali vêm as crises, porque você entra numa crise existencial: quem é você, se essa é a tua opção, se é a melhor opção de vida e tal e aí a gente conversa com os acompanhantes sobre a crise, sobre o que a gente estava vivendo. Aí terminou esse retiro, mais ou menos a gente está decidido de continuar. Aí até alguns, já, às vezes, decidem, já saem: “Não é para mim, não vou continuar”. Aí nós continuamos até janeiro, ali naquele trabalho, naquele acompanhamento. Lá era uma diocese onde o bispo também tinha muitas comunidades eclesiais de base, que eram comunidades que ligavam fé e vida, Bíblia e tal e era todo mundo, todos os padres e as freiras que trabalhavam lá, os leigos, realmente tinham um compromisso. E ali teve muito problema também com os quilombolas, porque havia muito problema da crise, das represas, quererem fazer grandes represas, ou dos ‘grileiros’, que tomavam a terra dos índios, dos quilombolas. Então, havia muito compromisso de organização dos quilombolas. O pessoal ia para São Paulo fazer protesto, manifestação, por causa dos indígenas, por causa dos quilombolas. Então, havia muita participação da Igreja nessas lutas, dos indígenas, dos pobres, dos agricultores e dos quilombolas e a gente participava também das organizações. Aí a minha migração não para. Eu teria que ir para a teologia, que é em São Paulo. Mas aí sempre tinha uma tradição de convidar um que tivesse um pouquinho o jeito, a capacidade, para ir ajudar a acompanhar os seminaristas no Paraná, na cidade de Ponta Grossa e aí o mestre de novicio que a gente chama, me chamou e falou: “Nós pensamos de você ficar esse ano sem estudar e você ir lá para Ponta Grossa, onde nós temos um seminário de adolescentes” - que era igual aquele seminário que eu participei, dos doze aos dezoito anos – “e lá tem padres que acompanham, que ajudam, mas você seria um auxiliar dos padres, porque eles saem muito, aí você conviveria com os estudantes e daria aula para eles e seria uma espécie de companheiro deles e tal”. E aí eu fui, fiquei um ano e fiquei responsável também pelo teatro, de preparar o grupo para teatro, eram os mesmos moldes, tinha horta, piscina, campo de futebol e os estudantes vinham do Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande e tal, então eu passei a ajudar, assim, o prefeito lá, que a gente chama e eu acordava os meninos de manhã. Era uma luta, porque eu também tinha dificuldade de acordar. Eu tinha - deixa eu ver, foi em 1983, 1984 - 23 anos. E aí a gente preparava o grupo para teatro, a gente saía para apresentar teatro nas cidades vizinhas. A gente, de vez em quando, fazia acampamento com eles. Lá tinha a Vila Velha, que era um lugar turístico, muito legal e tal e a gente saía com um grupo de vinte, trinta, formava barraca na sexta-feira, fazia um churrasco, fazia caminhadas e tal e fazia o acompanhamento deles nos trabalhos e tal e tentava ter uma postura diferente, porque geralmente tem um respeito pelos padres que eram de mais idade e tal. Então, eu tentava criar um ambiente mais amigo com eles e tal. Eu tinha aulas de educação religiosa, aí às vezes eu introduzia temas de temática sexual, de conversar, porque o adolescente tem aquelas fases de descoberta do corpo, da masturbação e tal. Então, conversar sobre isso, conversar sobre a vida deles, de escutar as histórias, também as dificuldades que eles traziam, das famílias e tal. Às vezes eles se surpreendiam, porque eu falava: “Hoje nós vamos ter aula na quadra”. Então, sentava num círculo e, de maneira mais descontraída, fazia as conversas e tal. Às vezes tinha coisas que entravam em conflito com os padres responsáveis, porque eu ia comer com eles e tinha horários e às vezes as coisas estavam legais, assim, aí a gente ultrapassava. Me lembro uma noite que o padre responsável... dez horas era pra ir dormir e aí nós estávamos num ‘papo’ na sala, gostoso, aí eu fiquei e tal e aí o padre chegou assim, bravo, abriu a porta, já era quase onze horas, falou assim: “O que vocês estão fazendo aqui, essa hora, já não estão dormindo e tal?” Ele olhou: “Arlindo, você está aqui também?” (risos) Aí ele maneirou e saiu e foi embora. Mas foi um tempo também que eu aprendi muito, porque a responsabilidade de conviver, de acompanhar. Também a maioria daqueles não foram padres, eu acho que dos que eu acompanhei deve ter uns três, quatro só, mas era um tipo de educação, de formação, que ajudava, que alguns saíam de noite escondidos, iam namorar no bairro e a gente sabia disso, porque é a fase da adolescência e tal e também não precisava tomar decisão ainda, naquela época. E aí fiquei lá esse ano, foi uma convivência com outra cultura, com Paraná, Ponta Grossa é muito fria na temperatura, mas também encontrei gente muito boa de convivência, famílias no bairro e tal. A gente saía para acompanhar o bairro, era um bairro de periferia que estava se formando também e tudo, então um tempo também de aprendizado grande. Aí fui para São Paulo, iniciar teologia.
P/1 - Depois de um ano?
R – Depois de um ano. Já foi em 1900 e... deixa eu ver... oito, sete, seis, cinco... 1985, começo de 1985 e nós tínhamos um seminário, ali na Rua Verbo Divino e essa rua tem o nome por causa do meu... da minha Ordem, porque nós somos praticamente os primeiros moradores ali. Os padres vieram da Alemanha e de outros lugares do Brasil, queriam formar um seminário na região de Santo Amaro. Era uma região que já tinha alemães que vinham para lá, Granja Julieta, Chácara Santo Antônio. E esse seminário era também um estilo... ainda está lá, hoje é o Colégio Pueri Domus, eram aqueles conventos do estilo alemão, que fizeram ali e ali era o primeiro seminário de teologia. Antes era o noviciado também e a filosofia, tudo numa casa grande, mas depois a Ordem foi se expandindo, foi crescendo, aí passou para Belo Horizonte, para o Paraná, para Juiz de Fora e vários lugares e ali ficou só a teologia e os padres, que eram professores da faculdade, que era no Ipiranga, chama Itesp, Instituto Teológico São Paulo. Então, nós moraríamos ali e iríamos para a faculdade todos os dias, no bairro Ipiranga, também voltando no mesmo ritmo: tinha momentos de oração, tinha trabalhos da casa, momentos de lazer, de esporte e sábado e domingo nós íamos para a periferia, que era, no meu caso, eu acabei indo para a região do Valo Velho, que é próximo de Itapecerica da Serra, num grupo de mais ou menos uns trinta seminaristas, mas já também continuava essa questão toda da luta pelas Diretas Já. Aliás, eu estando em Ponta Grossa, participei da primeira manifestação das Diretas na Praça da Sé, que era, no começo, dez mil pessoas, depois foi crescendo, crescendo, aí teve uma segunda, de cem mil pessoas, na Praça da Sé. Aí depois teve outra, que já não era mais possível lá, no Anhangabaú, que eu acho que foi de quase um milhão. Então, nós também começamos a acompanhar, na arquidiocese, esse engajamento pela democracia, pelos direitos, pelo direito dos trabalhadores. Ali na região em que nós morávamos tinha sido assassinado o Santo Dias da Silva, que era um operário que estava participando de um... como é que chama aquilo que bloqueia as fábricas? Um piquete, né? E aí a polícia tinha assassinado-o na frente da... perto da Catedral de Santo Amaro ali, né? E aí até o cardeal veio e aí o cardeal pediu pra levar o corpo dele pra Praça da Sé, porque todo mundo tinha que ver o que estava acontecendo, o Brasil e o mundo precisavam ver a repressão que estavam sofrendo os trabalhadores e tudo. Então, começamos ali, mas dentro de nós tinha uma questão: naquele tempo a gente estava num bairro burguês e a gente achava que a gente tinha que estar no meio dos pobres, nos bairros da periferia e tal e a gente considerava aquele bairro um pouco classe alta e a gente queria viver junto e próximo dos mais pobres e aí começamos também a discutir isso dentro do seminário, com os padres, os responsáveis e a dizer: “Olha, nós não queremos mais morar aqui, não queremos ficar aqui, porque aqui a gente não conhece nem os vizinhos, a gente não convive e a gente aprende, lá na teologia, que o padre tem que estar no meio do povo, tem que conviver, tem que participar da vida da comunidade e tal” e aí nós conseguimos e naquele ano o primeiro grupo saiu e aí foram morar na região do Campo Limpo. Aí, mais naquele estilo parecido de Belo Horizonte, que era o estilo de uma casa normal, alugada, morando cinco, seis, com um padre responsável, indo para a faculdade e tendo o estilo de vida normal do povo ali do bairro onde a gente estava vivendo. Então, aí passei daquele sistema que ia sexta-feira, sábado e domingo para essa região do Valo Velho, que era bastante pobre, acompanhando as comunidades para essa de... nós fomos morar numa casa no Campo Limpo mesmo, também alugada, ao invés de ter, como era um grupo grande, um convento grande com vários, passamos a ter três casas: uma no Jardim Miriam; uma no Parque Fernanda, que é a região do Campo Limpo; e outra no Jardim Rosana. Aí a gente se encontrava também e uma vez por semana a gente encontrava todos que viviam nessas casas, para tomar uma cervejinha juntos, para jogar um futebol, para rezar juntos e para jogar sinuca, baralho. Aí era uma noite na semana, de lazer, que a gente, os sete de uma casa, sete de outra, se encontravam naquele convento grande, que ali tinha mais espaço e tal e ainda tinha um grupo de padres que morava lá e aí começamos a... fui fazer a teologia e durante a teologia a gente começa também a se questionar, aí também tive algumas crises: “Será que é isso? Será que eu não deveria me casar, não deveria sair, levar outro estilo de vida?”, porque a gente via também colegas da gente saindo e optando por outro estilo de vida e a teologia também questionava muitas coisas, ela continuava o ritmo da filosofia, mas a gente começou a olhar a Bíblia também de outro jeito, não era ao ‘pé da letra’, mas a Bíblia para hoje, aquilo que outros viveram de outro jeito, em uma outra época, tem que ser lido no nosso contexto, na nossa realidade. Então, o que Jesus fez, o que Jesus anunciou, como é que a gente vai anunciar para os pobres também se libertarem da situação de pobreza que eles vivem, situação de opressão e tudo? Aí a gente tinha vários mestres, que nos ajudavam muito. Na época tinha um frei carmelita, chamado Frei Carlos Mesters, que ajudava muito a olhar a Bíblia numa outra perspectiva e a também um olhar crítico, que tem muitas coisas no Antigo Testamento que não valem mais, que não servem mais, mas você não joga tudo fora, você aproveita também o que tem de histórico, o que tem de aprendizado, para ajudar quem tem fé a ‘olhar com outros olhos’ a própria vida, a própria situação que está vivendo e se libertar de tudo que escraviza, que domina a pessoa. Aí eu aprendi a me libertar também de muita coisa e a não ter medo de Deus, porque às vezes a religião pode provocar nas pessoas medo de Deus e ‘olhando com outro olho’ a Bíblia, a presença de Jesus, a gente passava a dizer: “Não, é bonito e a gente tem que amar sobretudo, viver o amor e o amor a Deus significa amor ao próximo. Se as duas coisas não caminham juntas, e se você tem medo de Deus, você se torna escravo também. Você tem que viver tranquilo, aceitar os teus limites e viver o dom de ser uma pessoa, de poder se colocar a serviço das outras pessoas, poder amar mais, poder servir mais”. Então, esse tempo de teologia foi confirmando, mas aí é que vem o link de novo, com a situação da rua, porque eu conservei aquele sonho de Belo Horizonte, de um dia eu poder trabalhar com as pessoas em situação de rua. E aí eu comecei, eu encontrei na faculdade um grande amigo, que era um curso depois de mim, ele se chama Alderon e hoje foi um dos fundadores da Rede Rua e é um dos coordenadores hoje, que ele era seminarista também, mas dedicava todo o tempo dele à rua. Ele havia encontrado umas freiras na região do Glicério, que haviam fundado uma comunidade de rua e ele vinha pra faculdade trazendo objetos das pessoas de rua, que eram produzidos pelas pessoas de rua, artesanato e tal e ele vinha muito simples, era... naquele tempo tinha isso: se você está num ambiente, você tem que viver de acordo com o ambiente. Ele vinha de chinelo, às vezes malvestido, igual o pessoal da rua, barbudo e tal e ele provocava a gente, porque dizia: “Olha, vocês não veem que tem uma realidade lá no centro de São Paulo que é gritante e já tem muita gente vivendo na rua?” Ele não provocava tanto falando, mas era com jeito e com os artesanatos e convidando a gente para ir, para conhecer a realidade de rua e tal e aí começou a despertar de novo aquela pergunta que eu fiz em Belo Horizonte, ao ver uma pessoa catando e comendo do lixo: “Por que um país tão grande, tão rico, continua tendo tantas pessoas vivendo nas ruas?” Se fosse por opção, tudo bem, mas a gente sabe que não é uma opção da maioria das pessoas viver na rua. Aí ‘caiu a ficha’ e eu comecei a dizer: “Não, eu vou batalhar para que a minha primeira tarefa como padre, primeira missão, seja com as pessoas em situação de rua”. Aí eu tinha um problema porque, bom, houve alguns elementos que marcaram esse ano também, que eu falei já da Campanha da Fraternidade e esse ano a Campanha da Fraternidade era ouvir o clamor desse povo e era justamente sobre a questão do povo negro e o Dom Hélder Câmara, Milton Nascimento, Dom Pedro Casaldáliga tinham feito a Missa dos Quilombos, que foi um espetáculo que marcou. Músicas feitas pelo Milton Nascimento, letra do Casaldáliga e uma fala muito forte do Dom Hélder Câmara sobre negro, sobre fabricação de armas. Eu agora, olhando a guerra, quando vejo aquela fala dele, parece que ele está falando para hoje, sabe? Ele diz assim: “O mundo precisa fabricar é paz, que se acabe a maldita fabricação de armas”. Está tudo dentro desse contexto da Missa dos Quilombos. E aí a gente ficou mais provocado ainda: como é que a gente vai ouvir o clamor desse povo? E que povo? Para mim, era o povo da rua. Então, tinha um problema interno da minha Ordem, porque eu já tinha feito os votos perpétuos, que antes de você ter a ordenação, que pro padre é a última etapa, a gente faz os votos perpétuos, só que - aqueles votos de pobreza, obediência e castidade - na minha Ordem era assim: como é uma Ordem internacional, eu tenho que estar disposto a ir para qualquer país onde precisarem de mim. Então, eu teria que fazer três pedidos de três países e lá em Roma eles decidem qual país está precisando mais e mandam e aí nós fizemos um acordo com... a gente chama de provincial, que é eleito a cada três anos, para coordenar aqui no Brasil, tentamos um acordo com ele de conversar com os líderes de Roma para permitir a gente ficar três anos aqui no Brasil, com um trabalho específico e o trabalho seria: nós seríamos três padres, morando na periferia, assalariados e um trabalharia com a questão dos direitos humanos na periferia; o outro com a questão do negro, também nas periferias; e eu ficaria com a questão da rua, no centro da cidade. Aí foi justamente aquela época que os bispos, em Puebla, tinham feito a opção preferencial pelos pobres e aí o Cardeal Evaristo Arns chamou freira, padre, para virem trabalhar com os mais pobres na cidade, com o povo da rua, prostituta, drogado, presídio no Carandiru, naquela época e tal. Ele falou: “Venham ajudar a fazer presença e opção pelos pobres, no centro de São Paulo”. E então o provincial dialogou com o superior geral, que a gente chama, eles falaram: “Está bom, nós vamos autorizar vocês a fazerem essa experiência”. E aí eu fui para Barbacena, com a minha família, onde teve a celebração da ordenação sacerdotal, numa comunidade muito querida, eles me apoiaram muito, me apoiam até hoje, então fizeram uma grande festa, procissão e depois da festa, que tinha umas mil e duzentas pessoas, mutirão... como é que chama isso? Não houve um jantar, cada um levou um prato e vários pratos e bebida e tal e todo mundo que veio participou e comeu, depois teve dança e tudo e aí eu vim para São Paulo e nós alugamos uma casa perto do Jardim
ngela, os três e aí veio um seminarista morar conosco também e eu passei a trabalhar na rua e os outros dois ficaram nesse trabalho de direitos humanos e da periferia. Eu era assalariado pelo projeto das Irmãs e eu ia todos os dias e voltava, para dormir em casa. Final de semana eu ajudava na igreja, na paróquia, nas igrejas perto de onde eu morava e às vezes também ia para a rua e aí eu fui trabalhar junto com o Alderon e com as Irmãs de uma comunidade, que é a primeira comunidade que nasceu da rua, que chamava-se Comunidade dos Sofredores da Rua. Naquele tempo a linguagem religiosa era muito marcante e discriminava muito, tanto a polícia, como a sociedade. Aí era uma maneira de dizer para eles: “Olha, você é uma vítima, você é um sofredor, que está na rua”. E eles criaram essa terminologia que vem da Bíblia, que Jesus seria o servo sofredor, que sofre para não haver mais sofrimento, para eliminar o sofrimento do meio de nós. E elas começaram, era um grupo de religiosas que não usam hábito, nada, vestem normal e elas tinham um monge que veio do Uruguai e foi para o Hospital São José do Brás e ele morava lá e começou a perceber muita gente da rua em volta do hospital, dormindo, pedindo comida e tal e aí ele teve uma ideia de formar um grupo de freiras, para dar atenção para as pessoas de rua. Como ele era uruguaio, ele chamou duas, três moças do Uruguai para vir ajudá-lo e aí outras do Brasil também começaram a se juntar com ele, ali na... começou na Baixada do Glicério, na Rua dos Estudantes tinham casas abandonadas e elas começaram a ocupar as casas com o pessoal da rua e como elas queriam ser... ter uma vida próxima deles e ficava difícil, elas começaram a fazer café e vender na rua, vendia baratinho e tal e aí elas começaram a se aproximar e a convidá-los a irem ali, na Rua dos Estudantes, para um lugar que elas tinham como centro comunitário e aí começou a formar um pequeno grupinho de rua, que reunia meio bêbado, meio com problemas, mas reunia com elas. Até que uma mulher de rua, chamada Cinira, disse assim: “Aqui na rua a gente faz comida junto, a gente cata comida do lixo e cata verdura e faz uma rodinha e faz comida junto. Por que a gente não faz um sopão aqui, debaixo do viaduto? A gente junta vocês, nós e uma vez por semana leva as panelas, leva tudo e faz uma grande sopa, para quem quiser comer”. E coincidia que tinha uma feira ali e a feira jogava muito alimento fora e às vezes tinha gente que doava também. Então, eles começaram a organizar uma sopa assim: juntava quinze da rua, juntava as três, quatro freiras que participavam, quando eu cheguei já tinha um pastor luterano, um pastor metodista, que gostou do trabalho e também se fizeram de voluntários e aí às dez horas se juntavam. Havia umas latas para buscar água, havia umas panelas grandes, as facas, os instrumentos para cortar os legumes e a carne e tudo que vinha e sentavam ali os voluntários, que vinham outros, entre eles estava esse Alderon também, juntavam o que a feira jogava fora e os moradores de rua então organizavam: uns iam catar madeira para colocar o fogo, outros iam buscar água, outros iam buscar verdura, se organizava assim e ficava até três horas, mais ou menos, fazendo aquela sopa. Alguns juntavam frutas, a gente comia ali também as frutas e às quatro, quatro e meia aparecia quinhentas pessoas, mais ou menos e tinha três panelões, tinha uns que gostavam de peixe, preparavam peixe e era com as doações dos feirantes e com o luxo que vira lixo e aí era uma convivência comunitária. Toda quarta-feira, era das dez até às cinco. Depois, o próprio pessoal da rua ajudava a lavar as panelas, a limpar e tal e eles eram convidados para o centro comunitário, que tinha a uns duzentos metros, daí quem queria, ia. Aí lá ainda fazia um cafezinho, fazia uma roda de conversa. Tinha sempre voluntário que tocava violão, tinha uma freira que era a violeira, ela faleceu com quase cem anos ano passado, no nordeste, Fortunata se chamava e ela reunia o povo da rua com o violão e aí fazia um texto bíblico, às vezes, fazia uma conversa com eles. Terminava, às vezes, num forrozinho, com eles. Eles mesmos, algum que tocava violão, tocava e aí foi criando uma comunidade, que foi essa Comunidade dos Sofredores de Rua. Aí elas começaram a perceber a necessidade de algum encontro no domingo, que domingo ficava tudo meio deserto e o povo ficava perdido na cidade. Aí elas conseguiram, com os franciscanos, um grande salão, onde era tipo um cinema, com um palco e tal e começou a fazer... era chamada Casa de Oração e nessa Casa de Oração eles eram convidados a rezar, a comer juntos e a brincar. Então era assim: às duas horas reunia essa equipe, que também estavam pastores, dois pastores, outros voluntários e freiras. Aí a primeira parte era lazer: brincadeira, jogos, dinâmicas de grupo, para eles descontraírem e tal e depois a segunda era uma celebração, aí era feita com eles também, eles participavam na preparação, participavam na escolha dos cantos e tudo e depois tinha um grande lanche, para quem quisesse. Chegou uma época em que nós ficamos desconfiados que eles ficavam mais para o lanche, que a gente estava meio forçando-os participarem da oração, mas aí invertemos e não houve mudança nenhuma: eles comiam e ficavam para a oração. E, além disso, tinha um evento anual, que era o mais esperado e mais preparado, que era a chamada Missão dos Sofredores de Rua. Essa missão acontecia no Sete de Setembro, só que ela começava no dia cinco, que era com os moradores de rua, ocupava-se uma praça da cidade e nessa praça ficava convivendo dia cinco e dia seis. Por exemplo: de manhã dormia lá, montava barraca, todo mundo dormia, os voluntários, as freiras, todo mundo. Preparava fogo lá, com lenha e tal, para fazer comida. De manhã, ao acordar, tinha alguém que fazia uma aeróbica, uma coisa de dança, sempre tinham voluntários dispostos a atividades diferenciadas e convivia lazer, brincadeira, almoço e ia preparando para manifestação, que seria no Sete de Setembro. E aí, com papelão, faziam cartazes, faziam enfeites, faziam pintura, tinha gente da rua com talento para pintar, gente da rua com talento para poesia, para várias coisas, sabe? E aí era a preparação desse dia sete e no dia sete era o grande protesto e aí sempre tinha um lema. Por exemplo: um lema que eu me lembro era Fazer Justiça Séria, Para Acabar Com a Miséria do Povo, Que é Sofredor. Aí se preparava uma música: “Fazer justiça séria, pra acabar com a miséria do povo, que é sofredor. Fazer justiça séria, pra acabar com a miséria do povo, que é sofredor”. E aí aquilo tinha uma canção, que virava o roteiro. Outro ano era Somos um Povo que Quer Viver. Eles mesmos participavam e escolhiam. Aí, ia uma faixa grande, iam os cartazes: Queremos Trabalho, Queremos Moradia, Queremos ser Respeitados, Queremos... que era preparado. Ia desfilando no centro da cidade, cantando. Aí terminava no Glicério, debaixo do grande viaduto, à noite, tinha o Show da Vida, que tinha comida, sopa, o que tinha preparado. E no Show da Vida eles se inscreviam para poesia. Por exemplo: tinha uma Elizabete, poetisa da rua, que depois fez um livro de poesia; samba; canção; piada e depois terminava num grande forró, lá debaixo do viaduto, que todo mundo entrava na dança, às vezes até meio sujo e tal, mas era grande coisa. Então, foi aí que eu entrei nessa comunidade, que já estava organizada e tudo e o Alderon era um dos dinamizadores e tal e ele tinha uma percepção diferenciada, que era da comunicação. Então ele resolveu fotografar a rua, mas não a rua na sua desgraça, mas nas coisas, nos valores que tinha a rua. E aí um dia ele também pegou a poesia do Manuel Bandeira, O Bicho e fez da poesia um slide, porque naquele tempo era o slide, aqueles pequenos, que você passava e ia passando as fotos e tal. Mas aí, quando eu cheguei, o Alderon teve um desentendimento com as freiras e aí ele se afastou e falou: “Eu estou saindo”. Falei: “Eu cheguei e você vai me deixar aqui?” “Eu estou saindo, não vai dar mais e tal, eu vou fazer outra experiência”.
P/1 - Que ano é isso?
R - Isso foi em 1989, no começo de 1989. O Alderon já estava acho que há uns oito, dez anos lá. E a primeira vez que eu tive também foi um medo danado, porque teve uma briga na feira e alguém esfaqueou um homem e eu vi o Alderon saindo com ele nos braços e levando, aí eu fiquei assustado. Eu falei: “Nossa, onde que eu vim me meter”, mas aí a convivência com o pessoal, a amizade, eu já encontrei uma que se tornou muito amiga minha, a Cinira, que vivia na rua e tinha trabalhado para uma família nobre, depois ela caiu na rua e começou a beber e tal, mas era muito sábia, muito... tinha uma - ela era de origem evangélica - sabedoria de olhar a vida, de enfrentar a vida, que era muito bonita e aí nós ficamos amigos e tal. Aí fui fazendo amizade com um, com o outro e passei a trabalhar e a mesma sopa acontecia no Parque Dom Pedro, ali onde hoje é o terminal, mais ou menos nos mesmos moldes e eu ia também, na quinta-feira, com uma outra Irmã, Irmã Isabel, que está agora com 94 anos e a gente também fazia a sopa, só que buscava no Mercadão as coisas e tinha um negócio engraçado porque, por exemplo: sal para comprar, a gente tinha que comprar pimenta, sal, aí fazia ‘vaquinha’ com o pessoal da rua, um dava cinquenta centavos, outro dez centavos, juntava e alguém deles ia comprar o sal, para a gente temperar e ali tinha um centro comunitário, também no Parque Dom Pedro e depois da sopa a gente convidava... e era uma maneira de aproximar. Me lembro que tinha uma senhora totalmente fora do normal, assim, meio doidinha, que não se aproximava de ninguém. Com a sopa, a gente pegava... aliás, não tínhamos prato, eles tinham que trazer a ‘cascuda’, ou um casco de refrigerante ou lata de leite Ninho, essas coisas. Eles traziam pra gente servi-los. A gente só oferecia a colherzinha de plástico. E essa senhora ficava lá longe. Aí a gente pegava, enchia a latinha e levava e punha perto dela. Sempre assim. Depois ela começou a se aproximar. Depois ela começou a dizer, vir com a latinha e falava: “Pai, pai, me dá mais, me dá mais”. E aí ela acabou se aproximando. Às vezes era um jeito de realmente se aproximar deles e deles se aproximarem da gente. A gente sentava, ouvia as histórias deles e tal, as fofocas da rua, o que estava acontecendo e tudo. Aí passaram-se dois anos e uma outra freira que estava lá, que não era desse grupo e eu tínhamos vontade de começar juntos um projeto e nós começamos a conversar com Alderon sobre a possibilidade dele retornar e começar com a gente um novo projeto e foi justamente a época em que a Luiza Erundina tinha assumido como prefeita. Nós morávamos na periferia, tínhamos feito muita campanha para ela e foi uma grande surpresa, naquela época, alguém do nordeste, alguém mulher, ser eleita prefeita. Nós já tínhamos contato porque, no Campo Limpo, quando havia despejo, a Erundina era deputada estadual e a gente ligava para ela diretamente e falava: “Estamos precisando”, ela falava: “Estou aqui”. Aí aquele grupo foi levado para o Brás, despejado lá, a gente chegava, Erundina estava lá, para acompanhar e os assessores dela. E aí, então, com a entrada dela, a Cleisa Maffei, que era da ação social da sub-sede, supervisora, nos chamou e fez uma proposta que ela queria ampliar a presença e o trabalho da rua. Aí chamou a gente para sentar junto e falar: “Eu quero que a gente comece uma Casa Rua, que é uma casa aberta para a população de rua. Seria uma primeira experiência. E nós temos já o lugar no Brás, nós podemos construir, mas nós queríamos ver se vocês não topam fazer um convênio e levar à frente esse trabalho”. Aí conversamos, o Alderon falou - ele estava trabalhando na USP, na área de fotografia - que podia combinar o tempo lá e o tempo com a gente, mas nós fizemos uma contraproposta, porque nós tínhamos um sonho, que era o seguinte: a grande mídia só falava mal da população de rua. A visão da grande mídia não era de uma escuta, mas era de uma interpretação marginal, mendigo, estereótipo muito forte. Então, nós tínhamos o sonho de criar um centro que documentasse a rua, que fotografasse e que pudesse ter vídeos que permitisse ao povo da rua falar e tudo e aí nós falamos: “Nós só fazemos se vocês aceitarem um centro de comunicação e documentação”, aí eles disseram sim e aí nós fizemos as duas propostas: o centro de documentação e a casa de convivência. Como não tinha espaço para casa de convivência, não estava construída, ali no Brás, uma paróquia, Paróquia São Vito Mártir, tinha um centro social e eles ofereceram, para a gente começar lá o trabalho e nós começamos. Depois eles precisaram do local, nós ficamos procurando local na cidade e não encontramos, mas ali no Viaduto Pedroso tem um prédio, entre a Rua Pedroso e a 23 de Maio, como um sanduíche, assim, era uma construção que acolhia, me parece, doentes de tuberculose que vinham do interior e aí a prefeitura usava para isso. Estava tudo sujo, tudo ‘coisa’, aí a Leontina, que nos acompanhava, da prefeitura, falou: “E se a gente limpar isso aqui e começar aqui o trabalho?” Aí ela falou: “Está bem, vamos fazer isso”. Aí nós limpamos o local e foi a primeira casa de convivência que nós tivemos. Era albergue, eles podiam dormir e já tinham grupos de rua ali, que viviam na região. Aí nós descobrimos uma senhora, a Dona Terezinha, que era uma senhora de um movimento católico, que morava num prédio e ela ia para a missa todo dia de manhã, no Carmelo, ali nos Carmelitas, só que ela tinha um compromisso com o povo da rua muito especial. Quando ela saía da missa, ela vinha para as malocas. Tinha três malocas ali que bebiam pinga e tal e ela conversava com eles e escutava e, se tinha algum problema, ela encaminhava. Então ela começou a ser nossa parceira. Por exemplo: quando morria alguém, ela vinha lá e falava: “Padre, tem que dar um enterro digno para esse pessoal”. Aí a gente organizava com a equipe o sepultamento e tal. Até era interessante, porque era uma festa o enterro. O pessoal ia cantando, às vezes bebendo pinga, mas eles queriam dar dignidade para a pessoa que morreu. E aí nós começamos e tinha problema de alguém que queria se internar, a gente encaminhava, ficamos quase um ano ali. Aí foi inaugurada a casa do Brás, era uma casa que tinha banho, lavagem de roupa, não era dormida, era durante o dia, bagageiro e as pessoas podiam entrar e sair, podiam se organizar, a gente também fazia manifestações com eles e tal. E, enquanto isso, uma outra equipe começou no Brás, na torre. O padre cedeu o único espaço que ele tinha, a torre da Igreja Bom Jesus, para a gente fazer o centro de comunicação dos... chamava-se Centro de Documentação e Comunicação dos Marginalizados. E aí tinha um pequeno estúdio, onde o Alderon trabalhava, tinha uma sala de atendimento e eu havia começado, no Glicério, um Jornal da Rua, que era por causa dessa missão e do que acontecia, a gente fazia uma folha de sulfite no mimeógrafo, naquele tempo e a gente fazia notícias da rua, mas aí começou a discussão: que nome, se permanecer Jornal da Rua, ou não, aí o Alderon falou: “Olha, o povo da rua se denomina trecheiro: ‘Ah, tô no trecho, eu sou trecheiro, tô no trecho’ ‘Onde você vai?’ ‘Ah, vou pro trecho’. Quando eles desaparecem diziam: ‘Ah, eu estava no trecho’. Vai pra Belo Horizonte, Juiz de Fora, Rio, São Paulo, afora aí” e aí decidimos colocar o nome do jornal de O Trecheiro. Aí, durante um ano foi impresso assim, de uma maneira muito manual. Depois nós encontramos a Paulus, que é uma editora da Igreja e eles aceitaram imprimir o jornal. Aí passou a ser impresso, preto e branco, depois passou a ser colorido e sempre trazendo não só as lutas da rua, mas outras lutas: dos sem-terra, das mulheres prostituídas, da cadeia, todas as problemáticas das crianças de rua e tal, a gente tentava focar isso.
P/1 - E a população de rua participava da produção?
R - No começo fomos nós, depois criou uma dinâmica de discutir pauta com eles, ali na torre. Eles começaram a escrever poesias, eles começaram a contar a própria vida. Por exemplo: teve uma sessão Vida no Trecho, que era onde eles contavam a própria vida. Aí falava-se das problemáticas sociais que eles viviam e aí vai aparecendo tudo: as mulheres marginalizadas, problemática trans, da discriminação e tudo isso e aí começamos a fazer vídeos também com essas temáticas, de moradia, da rua, carcerária, dos sem-terra e aí foi se estruturando, até que nós conseguimos alugar uma casa, onde passou a ser a sede da Rede Rua, aí passamos a ter um estúdio lá e tal. E começamos, nós propusemos aos grupos da rua um evento chamado... que era pensando na missão, mas já agora sem tanto cunho religioso, que era o Dia de Luta do Povo da Rua. E aí também foi organizado o primeiro Dia de Luta do Povo da Rua, que saiu do Brás e que hoje já faz mais de trinta anos que acontece e que hoje foi assumido pelo movimento. Antes a Rede Rua começou, juntou outros grupos da Pastoral de Rua, vieram essas Irmãs lá do Glicério e aí a ideia era denunciar a situação da rua, fazer uma grande caminhada pelo Centro, com faixas, cartazes, música e terminar na Câmara Municipal e, por nossa sorte, esse primeiro Dia de Luta era no tempo da Erundina e a gente foi acolhido por ela, ela deu todo o apoio e estava ampliando, aí já tinha nascido a Comunidade São Martinho de Lima, que era o Padre Julio Lancellotti, que era ali no Viaduto Guadalajara, que hoje já não está lá mais e tinha outros grupos aí trabalhando com a questão da rua, aí a prefeitura ampliou as casas de convivência, ampliou os albergues e também organizou o primeiro seminário da população de rua, que nós participamos também, que aconteceu no Centro Vergueiro e aí foi organizado pela prefeitura e pelas entidades sociais, essa Cleisa Maffei, que depois escreveu vários livros sobre a questão da rua, da população de rua. E esse seminário foi lá no Vergueiro, mas com a participação da população de rua. Eles expuseram poesias, fotos e várias coisas. Tinha palestras, falas sobre a rua, a Aldaiza Sposati eu acho que estava como secretária, que também organizou e tal e aí foi, depois, ampliando, houve seminário de rua nacional, houve várias coisas assim que foram acontecendo e o nosso trabalho foi ampliando. Da casa do Brás tinha a Irmã Leni, que era uma das coordenadoras, que começou a perceber a questão da comida como um problema, aí ela pensou e organizou um grupo de rua e mais alguns, um Cascudas Restaurante, ela chamava. Ali, debaixo do Viaduto Nove de Julho, também tinha um espaço vazio, que nós antes usávamos, no inverno, para as pessoas de rua dormirem, punha cobertores e colchões e durante o inverno a gente funcionava com a prefeitura. Ela pediu o espaço e organizou ali um restaurante que eu digo que é antes do Bom Prato. Era um grupo que fazia comida também nesses moldes: pedia, conseguia, mas eles cobravam um real pela comida. E com aquele um real cinquenta centavos eles usavam para pagar os que preparavam a comida, o que juntava e o outro para comprar mais comida, para produzir e funcionou ali uns dois anos. Depois, quando fechou, nós fizemos também uma parceria, abrimos o Refeitório Penaforte Mendes, que é ali na Nove de Julho, perto da Nove de Julho, mas mais para cima, acho que é perto do Teatro Maria Della Costa e ali era um refeitório que oferecia oitocentas refeições todo dia, mas que tinha também lugar para encontros, para formação, para o trabalho, assim e tal e a gente foi se ampliando, aí fomos para Santo Amaro, nós pedimos para começar um albergue e começou um albergue para cento e vinte pessoas, mas sempre tentando envolver a população e fazê-la participar desse processo. E aí, em Santo Amaro, foi pensado assim um projeto, que depois muda a administração, aí muda a filosofia e acabam atrapalhando o que poderia dar certo, que a ideia era essa: ter o albergue para cento e vinte, depois tinha um segundo espaço que funcionou, chamado Núcleo Santo Dias da Silva. Nós demos o nome de Santo Dias, porque era esse operário que foi assassinado pelos militares, ali na região e nesse núcleo já era para quem começava a trabalhar. Aí eles... era quarto de cinco, seis e eles podiam dormir no quarto, se alimentar de manhã, à tarde, quando voltavam, mas tinham que começar um trabalho. E depois uma moradia comunitária, que já era uma casa alugada, onde quando eles estavam já trabalhando, tinham que pagar uma quantia e poderiam começar um processo de mais autonomia, até eles conseguirem alugar um espaço. Isso funcionou vários anos, mas depois as outras prefeituras não acolheram e aí fechou o albergue, o núcleo passou a ser um albergue e fechou aquela moradia comunitária. Então, esses primeiros anos foram os anos, assim, até 1997, que eu participei diretamente da vida da rua e depois de três anos mudei para o Centro, porque a gente viu que morar lá e vir todos os dias era perder tempo com a rua, mas enquanto eu morava lá, aconteceram umas coisas muito interessantes, que tinham vários da rua, ali da região do Pedroso, depois tinha do Brás e como sexta-feira, sábado e domingo eu ia pra lá, eu morava com os outros três padres, eu levava sempre dois da rua pra ficar, eles dormiam, eles iam pras igrejas comigo, aí eles faziam amizade com a comunidade, com o pessoal da igreja pra poder pensar, era um pouco redução de danos. Não beber tanto, às vezes eles bebiam mesmo lá, mas... e fazer amizade para ter outro referencial com ‘coisa’. E aí fiz várias vezes. Uma vez, essa minha amiga Cinira, que era mulher de rua, foi comigo, mas nunca exigia que eles não bebessem, que eles iam, pediam para moderar e tal, para não fazer muito, mas aí ia criando vínculos e ia trazendo voluntários também. O pessoal de lá se interessava e começava a vir ser voluntário na casa, no projeto, nas outras coisas que a gente fazia. Lembro que essa Cinira, que morreu na rua, dizia: “Olha, a rua, pra mim, é liberdade. Eu não consigo viver numa casa, tendo que trancar janela, fechar a porta, olhar debaixo da cama se tem ladrão, ou não tem. É uma liberdade violenta, às vezes, mas aqui a gente reparte o que tem, aqui a gente tem amigos, aqui a gente brinca e aqui a gente não fica escravo dessa sociedade, onde o dinheiro é que manda em tudo”. Então, a gente vai também aprendendo com as pessoas de rua muito de uma sabedoria. E aí nós continuamos, depois essa casa de convivência foi passada para outro grupo e nós continuamos o trabalho de presença na rua. Começou uma parceria com o Movimento do Sem-terra, que chamava Da Terra para a Rua e aí é uma casa que nós temos ainda hoje, no Brás. Essa casa reunia as pessoas de rua e tentava prepará-las, para participar de alguma ocupação que estava acontecendo na cidade. Isso ficou por uns cinco, seis anos. Depois ficou mais difícil e parou, mas algumas pessoas foram para a terra, nem todas ficaram, mas aquilo criou também um ‘laço’ com o Movimento Sem Terra, que depois eles começaram a apoiar no Natal, a oferecer alimento para fazer o banquete. Até hoje tem o chamado Banquetaço, que é assumido por eles, que uma vez por ano, no Natal, fazem um grande banquete aí, para a população de rua. Então, talvez uma das observações interessantes é que essas ‘pontes’ foram muito interessantes e importantes. Por exemplo: às vezes eu ia para Minas, também levava alguém da rua comigo. Teve uma época que, em 1993, morreu meu irmão mais jovem, Ronaldo, que morreu afogado, justamente na cidade onde eu nasci, mas ele tinha nascido em Barbacena. Aí, aquele período mais difícil, eu acabei levando um rapaz da rua, que ficou lá uns meses, com meus pais. E, às vezes, eu fazia essas ‘pontes’, levava na missa, porque também as pessoas começam a ter outro referencial, a pessoa falava, dava o depoimento dela na missa, porque eu acho que o único jeito de humanizar é aproximar as pessoas, porque as pessoas começam a olhar e dizer: “Mas é gente igual a gente”. Parece que é um extraterrestre, quando você não se aproxima dessas realidades. Quando se aproxima, vai ver que tem bondade, tem maldade, é igual qualquer ser humano do planeta. Então, aí eu tive que mudar de novo, porque em 1997 fui chamado para trabalhar com os seminaristas. Nós temos uma casa de teologia, onde tinha doze seminaristas e aí eles me pediram, os responsáveis superiores, pra eu mudar pra Diadema, pra acompanhar os seminaristas, aí eu disse: “Eu vou, se me deixar continuar metade na rua”. Aí eu fui, passei a morar no Jardim Campanário e também comecei a convidar os jovens seminaristas a conhecerem, a visitarem a realidade da rua. Então, eu fiquei atuando, mas fiquei fazendo outras coisas em relação à formação dos seminaristas, a ajudar nas comunidades lá de Diadema e tal e aí também começou um intercâmbio das comunidades de lá com o trabalho feito na rua que, naquela época, já era mais o albergue, o refeitório e o trabalho de comunicação e fiquei três anos aí, mas aí, depois de três anos eles me elegeram, a gente chama de provincial, que é o coordenador dos padres da região de São Paulo e Rondônia. Nós temos um sistema onde, a cada três anos, elegemos um Conselho. Tem um provincial, vice e três conselheiros. Então, eu passei a morar de novo lá em Santo Amaro, naquele convento que eu tinha morado no começo, como seminarista. E nesse período também a gente contou muito com voluntários. Era uma experiência muito boa. Como a gente tem missionários na Áustria, em Portugal, na Alemanha, eles faziam ‘ponte’ com a gente e pediam para acolher jovens da Áustria, da Itália, da Alemanha e aí muitos vieram e ficaram um ano, dois anos, acompanhando, participando dos processos da rua. Não são seminaristas, nada, são pessoas que decidem dedicar um ano a essa realidade. E também foi muito positivo, porque isso acabou levando alguns a irem visitar os projetos lá da Alemanha, Portugal, outros lugares que a gente trabalhou. Eu tenho uma história interessante, porque me convidaram para ir à Espanha falar do projeto, em 1997. Também era um grupo que nos apoiava aqui e que queriam conhecer a realidade da rua. Antes disso, eu ajudava numa igreja lá em Diadema e eu fiz uma celebração, uma missa-despedida de uma família, que estava indo para Portugal, porque estava em crise econômica e tal, foi uns seis meses antes. E aí, ao ir para Espanha, eu fui para o casamento de um voluntário que tinha estado com a gente no Brás, lá em Portugal, numa cidade não muito longe de Lisboa. O que eu queria contar, que é muito interessante, é que eu nunca mais vi a família, ela tinha ido para Portugal e o irmão gêmeo desse meu amigo falou: “Hoje nós vamos no Shopping Colombo, que nós vamos comer um ‘prego’”, que é um pão com linguiça típico deles. Aí ele falou: “Está bom, vamos”. E o casamento era no outro dia. Aí ele foi no shopping, procurar onde era o melhor restaurante e falou: “Fica aqui, me esperando”. Eu fiquei, quando eu fiquei uma senhora saiu de um restaurante e falou: “Padre Arlindo, o que você está fazendo aqui?” Eu olhei e falei: “É você?” Era aquela senhora que eu tinha feito a celebração de despedida, que estava trabalhando naquele lugar. Aí no outro dia foi festa, fui para casa dela, encontrei a família e tal. Eu cada vez mais vejo que essa dimensão do mundo como uma casa comum, que ou a gente cuida dele ou a gente vai destruí-lo, está sempre diminuindo, porque eu olho a minha vida, eu saí de Cipotânea para Barbacena, de Barbacena a Belo Horizonte, Belo Horizonte/Rio, Rio/Paraná e os ‘laços’ estão muito presentes, de pessoa que conhece outra pessoa, ou pessoa que é tua parenta, que está lá nesses lugares mais distantes. E aí eu fui eleito, continuei acompanhando, não com o tempo necessário e tal, mas continuei indo na rua, acompanhando os projetos e depois fui reeleito, por mais três anos, mas aí, no meio desses três anos, em 2005, nós temos uma coordenação geral em Roma, porque são seis mil missionários, em mais ou menos 86 países do mundo. Então, lá fica essa coordenação geral e a cada seis anos a gente também elege uma coordenação geral, para cuidar da comunidade no mundo, nesses 86 países e a gente chama de Capítulo Geral, onde vão os que são provinciais e vão delegados de todo o mundo, dos 86 lugares, para eleger essa coordenação. Aí também me elegeram para esse Conselho, então eu tive que me transferir para Roma, em 2006 e aí mudou muito a minha vida porque, além da coordenação, você vai visitar os países onde tem trabalho, escolas, faculdades, hospitais, paróquias e tudo, tem um organograma que nos seis anos você tem que visitar e avaliar todas as missões e trabalhos. Então, aí eu fiquei até 2012, 2012 me reelegeram por mais um período, então eu fiquei até 2018, mas eu nunca perdi o link com a rua. Eu, sempre que visitava algum país, tentava linkar a visita com algum trabalho de rua que houvesse naquele país. Então, por exemplo: fui para os Estados Unidos, fazer visita, ou estudar inglês antes e lá eu encontrei uma freira, que era espanhola e trabalhou muitos anos nas Filipinas, veio para os Estados Unidos e ela descobriu também a rua como lugar de missão dela e ela estava vivendo, ela dormia nos albergues, ela não fazia nada, frequentava e fazia amizade com as pessoas de rua e visitei lá os projetos, tinha projetos de acolhida de imigrantes, catadores de material reciclado e tal. Aí, na Espanha fui visitar o Jornal de Rua, que tinha lá, Portugal também, em uma comunidade, o Jornal de Rua. Na Irlanda visitei também uma comunidade que acolhe pessoal de rua, depois na Índia, na África do Sul. Foi uma possibilidade de estar fazendo link com vários projetos. Nas Filipinas, em Manila, tinha um padre da minha Ordem, que também acolhia crianças e pessoas de rua e estava fazendo um trabalho. Cheguei num período muito difícil, porque tinha um presidente bastante, assim, na linha fascista. Cheguei lá e ele estava dizendo que ia matar cinco milhões de filipinos, porque ele queria eliminar os drogados e acabar com o tráfico, então tinha muita tensão e essa tensão também era sofrida com a população de rua e tudo. Então, aí foi um tempo que eu convivi mais. Também em Roma eu tinha algum tempo livre, então uma vez por semana tinha um albergue da Caritas que servia comida, aí eu ia como voluntário, ajudava a servir comida, fiz amizade com várias pessoas de rua, algumas até estrangeiras. Tenho uma amiga que veio da Argentina e está lá há muitos anos e ainda tem contato. Às vezes eu passava a noite no albergue, porque eles precisavam de voluntários para ajudar a cuidar e então percebi também a realidade de rua em outros lugares. Em Roma tem uma realidade bastante significativa também. A gente encontra, principalmente no Termini, que é a Estação Rodoviária da Cidade e é onde está perto esse albergue, encontrei lá. Encontrei várias experiências dessa revista de rua, que eu não falei, mas o Alderon e um grupo, acho que há uns 20 anos, começaram a Ocas, que é uma revista... deixa eu ver... Organização Civil de Ação Social. É abreviação, mas é alegoria da oca também, do lugar dos indígenas e tal e ela tem até hoje e um dos nossos projetos ainda apoia isso e ela é produzida por uma equipe e é vendida na rua, por pessoas de rua. Eu não sei o valor, eu acho que são dez reais e cinco fica para o vendedor e cinco fica para produzir outra revista. Ela funciona ainda, ali no Brás e às vezes entrevista atores, gente famosa, para facilitar a venda e tal e é uma outra iniciativa que aconteceu, com a revista. Bom, aí eu terminei o meu tempo lá em Roma. Lá também eu vivi uma coisa, só para mencionar essa distância, que vai sempre ficando cada vez menor: eu falei que eu sou de Barbacena, sou de Cipotânea, mas vivi alguns anos em Barbacena, mas uma das visitas que eu fiz foi na Rússia e lá nós temos uma comunidade, em Moscou, mas temos uma outra comunidade, que fica umas seis horas de avião, na fronteira com a China e tem o Rio Amur e nós temos uma pequena casa, porque lá a maioria é ortodoxa, os católicos são pequenos grupos, a igreja ortodoxa domina quase todo o país, mas tinha uma comunidade, onde tinha três padres: um da Indonésia, um da Polônia e um da Índia. Eu visitei, usando mais o inglês, porque a língua a gente não domina, eram umas trinta pessoas. Quando terminou a celebração, veio um jovem se apresentar e falou assim: “Eu me chamo Christoph e eu estive ano passado no Brasil”. Aí eu falei: “Olha, que legal! O que você foi fazer?” Ele falou: “Eu fui para a Jornada Mundial da Juventude e antes da Jornada Mundial eles nos mandaram por uma semana para o interior do Brasil, para fazer uma experiência numa comunidade, conviver e conhecer”. Aí eu falei: “Me diga onde você foi”. Ele falou: “Não vou falar, o Brasil é muito grande, você não vai conhecer” “Ah, fala, talvez eu conheça”. Aí ele falou: “Eu fui para Barbacena”. (risos) Aí eu dei uma risada, ele falou: “O que você está rindo?” Falei: “Você foi para a minha cidade”. Em Barbacena tem nove paróquias, não é uma cidade tão grande, mas tem divisões da igreja lá, da coisa, assim, são 130 mil habitantes agora, 140. Eu falei: “Qual paróquia você foi?” Ele falou: “Eu fui para a Paróquia São Sebastião”. Aí eu dei uma risada e ele falou: “O que você está rindo?” É aquela que eu contei para vocês que eu fui coroinha, que eu brincava, que eu participava e tal. Aí eu pus uma foto minha com ele no Facebook, no outro dia, todos os jovens que eu conhecia, meus familiares mandando abraço para o Cristoph. Abraço, abraço e tal. E essas experiências eu fiz, posso enumerar um monte de experiências, em vários países, que você está conectado com alguém que está conectado com você. Eu acho que esse crescimento vai ampliando, até chegar às gerações, talvez, dos netos de vocês, que vão para o planeta Júpiter, se a gente não acabar com a Terra antes. (risos) Mas eu achei muito bonitas essas experiências de estar conectado de alguma forma, em qualquer lugar do mundo. Seja na dor, no sofrimento, na dificuldade, mas também em gente fazendo coisa bonita para todo lado, sendo solidária e construindo ‘pontes’ também, em muitos lugares. Aí voltei em 2018, no final. Eu tinha feito uma experiência também, muito doída, na Itália, com um jovem que hoje eu digo que é meu filho e que eu já tenho netos e netas. Eu estava fazendo uma missa, tinha umas freiras que tinham um convento e elas queriam atrair as pessoas para o convento delas, então elas abriam a porta, na Via Sistina, que é bem... uma via lá, bem conhecida em Roma e aí elas abriam, faziam uma missa e quem quisesse participar e tal e as missas lá são muito formais, mas eu fazia no nosso estilo brasileiro, conversando e tal e tinha um casal italiano observando muito. Aí, ao observar, eles gostaram da missa e pediram para conversar. Aí tivemos uma conversa e tal e ele era de Israel, mas os pais eram italianos e ele tinha vindo estudar medicina. E ela era da Albania. Albania mesmo que fala, né? Não é Albânia não, né? Albânia. O italiano fala Albania. E aí eles se conheceram na faculdade, ela fez... tratar dos pés e aí eles falaram: “Olha, nós estamos com uma situação, sem muitas condições, mas ela está grávida e nós não estamos conseguindo levar a vida desse jeito”. Aí nós fizemos amizade com as Irmãs, começamos a apoiá-los e tal e aí eles passaram a alugar um apartamento e tal e eu criei uma afinidade muito grande com eles e tal e ele trouxe a história dele, que era perder o pai com câncer, a mãe, teve em Israel e tal. Aí, depois de um tempo entrou uma história de um... ele não contou, não quis me contar, mas ele tinha uma pendência jurídica de uns dez anos atrás e acabou sendo preso. Eu acho que uma situação de muita injustiça, que não precisava. E aí eu passei a entrar no mundo também da cadeia italiana. Nós fizemos de tudo para liberá-lo, porque já tinha nascido a filhinha, mas não houve jeito. Ele teve que ficar um ano, um ano e meio na cadeia e aí eu passei... eu era o único que podia entrar, para falar com ele. A família podia visitar, mas num único... num outro espaço, com todo mundo. Eu podia ficar, ouvi-lo e tal. Aí passei praticamente de quinze em quinze dias a visitar, mas também vi o drama da cadeia, sabe assim? O sofrimento, a angústia que ele passava. Ele só não cometeu suicídio, porque tinha essa conversa. Ainda mais quando você vê que é uma situação injusta que você está vivendo. Mas para mim também foi uma escola de humanidade, de acompanhar a mulher com a criança e às vezes ela sozinha, não tinha parente, não tinha ninguém. Mas aí as outras freiras também criaram uma rede de solidariedade, de apoiar, de acolher, de levar a menina pequena para casa e tal. Então, foi a última experiência, mas ainda saí de lá com uma dor, porque ele não tinha saído da cadeia ainda. Ele saiu só depois que eu voltei. Então, tem muitas oportunidades de experiências também de humanidade, assim, que vai fazendo a gente ficar mais humano também. Bom, aí em 2018 eu voltei. Nesse ínterim meu irmão morreu, aquele com síndrome de Down, ele já tinha 46 anos. Foi uma situação difícil para mim. Ele morreu, aliás, em 2011. Eu estava aqui, ele era meu xodó, sempre falava com ele por telefone. Cheguei em dezembro, no começo ele adoeceu, se internou e aí foi para UTI, eu fiquei acompanhando dezembro, janeiro. Aí eu já não podia mais ficar, porque ele não melhorava, não é? Aí eu saí dia quinze, dia dezesseis era o meu aniversário, cheguei em Roma, quando foi dia dezoito, meu irmão mais velho, que hoje é o vice-prefeito lá em Barbacena, me ligou e falou: “Ele faleceu”. Aí eu não pude voltar para o enterro, mas houve uma coisa muito bonita também: os meus amigos de Roma, que eu conhecia, vieram todos para minha casa. E o Alderon, que eu digo que é meu amigo e irmão, pôs uma tela na igreja, um telão, na hora do enterro e aí, através do telão eu pude ver tudo, pude deixar uma mensagem para a comunidade, para a minha mãe e aí nós fizemos uma missa lá em Roma, enquanto eles faziam a missa aqui, em Barbacena e faziam todo o funeral. Então, essas coisas também que vão marcando a vida. Aliás, me falhou uma outra experiência assim impactante, que eu tive também, foi em onze de março de 2011: eu estava visitando os meus irmãos lá no Japão, eu estava em Nagoya e falei: “Hoje eu vou sair para passear na cidade”, porque eles tinham uma agenda muito apertada de visitas e visitavam escolas, igrejas, projetos, tudo. E aí eu saí sozinho, não domino nada de japonês. Quando eu cheguei no centro de Nagoya, eu comecei a tremer, tremer. Eu pensei: “Eu estou com aquela...”, eu esqueci o nome da doença, mas que dá uns calafrios assim, né? Aí eu falei: “E agora, o que eu faço?” Aí eu parei, me encostei, falei: “Eu vou esperar uns minutos. Se eu melhorar, eu volto para casa, porque não dá”. Aí passou uns dois, três minutos, melhorou. Fiquei tranquilo, não tremia mais. Aí eu decidi entrar. Eu gosto muito de equipamentos eletrônicos, eu falei: “Vou dar uma olhada nos equipamentos: fotos, câmera fotográfica, televisores e tal”. Eu era fascinado com rádio porque, como eu viajava muito para o interior, eu gostava de escutar rádio, então Japão tem aqueles radinhos pequenos, tinha, e pegava longe. Aí olho na televisão, naqueles telões grandes e vejo água pra lá e um carro correndo, outro carro correndo e a água vai em cima e um navio vai pra lá e outro navio vem e aquele tsunami assim, enorme, né? Aí eu me dei conta, deve ter sido um terremoto. Aí voltei pra casa, era o dia do Fukushima, me parece, o nome. Estava acontecendo aquele grande terremoto, que provocou aquelas mortes todas e eu estava a oitocentos quilômetros de distância e eu senti no corpo todo o terremoto, toda a coisa. Aí ficava imaginando lá, com material nuclear, todo o terremoto acontecendo, lá no ‘olho do furacão’. No outro dia, eu estava com o meu amigo brasileiro, que é missionário lá, trabalha com os japoneses e o Japão tem mais de duzentos mil brasileiros. A maioria dos católicos no Japão é brasileira, não são japoneses, porque lá é um pouquinho só de gente. Eles ficam até... estranham um pouco, o japonês é tudo certinho, caladinho e vai uns com cara de brasileiro, mas cantam, dançam, faz festa e tal. E aí estava no segundo andar, com o meu colega, de repente treme tudo de novo. Aí ele tranquilo, eu falei: “Você está tranquilo assim?” “Ah, tranquilo, aqui de vez em quando é assim”. Mas a construção era adaptada e tudo. Mas foi muito chocante para mim, porque era o desespero dos carros, de tudo, tentando fugir e fugia para um lado e vinha, fugia para o outro e vinha. Depois nós vimos aí o... aliás, eu tenho sina com o onze também, porque no dia nove de setembro de 2001 eu estava no World Trade Center, eu voltei para o Brasil no dia nove à noite, cheguei aqui dia dez de manhã e aí no dia onze aconteceu aquela tragédia da... eu tinha ido para um encontro nos Estados Unidos e ficado para estudar inglês e estava (risos) voltando. Se eu tivesse ficado mais um dia, eu teria ficado preso lá uns trinta dias, pelo menos. Mas é parte da história (risos) da vida também. Bom, aí cheguei em 2018, falei: “Eu vou tomar um tempo com a minha família, minha mãe e meu irmão”, que já agora somos só dois irmãos e era minha mãe e aí voltei e aí o superior aqui me propôs de voltar para o trabalho de rua. Aí o pessoal da rua ficou muito contente, né? Já não tínhamos... estava fechando esse albergue que nós tínhamos, em Santo Amaro e nós só tínhamos um projeto, que chama Chapelaria Social, ali no Brás, que era para bagageiro, para lavagem de roupa, para banho, para várias coisas, documentos e tal. E eu me engajei nesse projeto, mas começamos a interessar de novo por Santo Amaro e a sair um grupo, semanalmente, para visitar as pessoas na rua, em Santo Amaro e também participando da comunicação com vídeo, com o jornal O Trecheiro, continuamos e tal. E a ideia era retomar o projeto em Santo Amaro, de alguma forma, se fosse possível um convênio, sim, senão de alguma outra forma. Só que aí logo veio a pandemia e aí nós ficamos numa ‘sinuca’. Eu morava numa casa com quatro... éramos dois... nós éramos cinco padres: dois brasileiros, dois poloneses, um da Indonésia e eu, mas eles fazem trabalho diferente, eles trabalham com uma... nós temos uma empresa de comunicação, que se chama Verbo Filmes e eles trabalham diretamente com isso. E eu e esse da Indonésia trabalhávamos na rua, a gente estava apoiando uma paróquia que leva lanche para a rua toda terça-feira à noite, da Vila das Belezas para o Largo Treze e estava acompanhando aqui no Brás e fazendo visitas, mas aí, chegando a pandemia, nós tivemos uma crise, porque nós dois trabalhávamos na rua, mas os outros não. Então nós não tínhamos opção. Se a gente ficasse morando com eles, a gente não poderia sair, por causa da pandemia. Aí, conversando com esse da Indonésia, ele falou: “Mas eu não queria sair”. Eu falei: “Eu também não”. Aí nós conversamos com o superior, falamos: “Olha, nós estamos com esse problema, mas nós temos uma casa no Brás, que é essa casa que acolhe voluntários que vêm da Europa e de vários lugares. Nós poderíamos, nesse tempo da pandemia, morar lá e aí a gente não precisa ficar totalmente excluído da rua”. Aí, tanto os que moravam com a gente, como ele, concordaram. Aí, nós decidimos morar nessa casa do Brás e com os trabalhadores, porque tinha alguns trabalhadores e outros voluntários lá na Chapelaria, nós pensamos um esquema de não expor demais todo mundo, de usar máscara e tal, mas de continuar saindo na rua e de continuar abrindo o projeto por menos tempo na Chapelaria e visitar na rua e organizar, para comprar barracas. Aí conseguimos apoio para umas duzentas barracas, para ir distribuindo na rua, porque tinha esse grande drama: “Fica em casa”, mas para quem está na rua não vai poder ficar em casa. Então, os restaurantes fechavam, eles ganhavam muita comida do restaurante. Pessoas generosas que, às vezes, do apartamento, do lugar, davam alguma coisa, já não podiam sair e organizamos ali, em Santo Amaro, uma associação, Corrente Libertadora, ofereceu um espaço, uma área vazia que eles tinham do lado, para a gente também poder acolher e poder fazer inscrição para... como é que chama?... auxílio emergencial, porque muitos não tinham documento, muitos tinham problema de documento. Então, a Nazaré, a Cláudia e o Joaquim, Cláudia era uma funcionária, a Nazaré uma voluntária que trabalhou muito tempo e o Joaquim, que depois também se tornou funcionário, foram com celular e com notebook e eles iam fazendo a inscrição do pessoal na rua, ou nesse espaço. Aí a gente aproveitava, fazia um lanche, fazia uma conversa sobre a prevenção, orientação, passava um vídeo, levava água e no Centro, ao redor da Chapelaria, também. Mas aí o Alderon participa do Fórum da Cidade e aí eles tinham muito contato com a quadra dos bancários, que eles sempre acolhiam, ali na quadra, no fim do ano o presidente Lula vinha visitar os catadores e moradores de rua e quem organizava eram as entidades e eram os movimentos e tudo isso. Então, eles tinham esse contato e aí surgiu a ideia de oferecer comida na quadra dos bancários para a população de rua, diariamente. E aí a prefeitura, através da Secretaria de Direitos Humanos, tinha um projeto chamado Cozinha Cidadão e esse projeto oferecia a marmita, mas só a marmita e aí eles passaram a oferecer mil marmitas, para ser distribuída na rua. Bom, aí, na verdade, aconteceu, no começo, uma parceria entre a quadra dos Bancários; a Rede Rua; o ‘seu’ Robson, que é o líder do Movimento Estadual da População de Rua, que tinha muito link com Alderon e aí, no começo, os primeiros meses, o ‘seu’ Robson cuidava da logística de distribuição com o pessoal dele, a equipe e nós com voluntários e com a infraestrutura da entidade que precisava e depois com a secretaria fornecendo as marmitas. Aí passou a ter uma fila enorme ali, na frente do sindicato, o sindicato teve um gesto muito bonito de instalar uma pia do lado de fora, com água disponível o tempo todo, para o pessoal de rua e nós começamos a participar como voluntários, apoiando, fim de semana, completando a equipe. Depois houve um problema com o ‘seu’ Robson, que ele saiu e saiu toda a equipe. Aí quase de um dia para o outro, nós ficamos assim, meio sem possibilidade, mas não queríamos terminar o trabalho. Então, nós praticamente tiramos toda a equipe da Chapelaria e levamos para a quadra, que era mais emergencial e conseguimos apoio de projetos ligados à minha Ordem, ao Verbo Divino, outros ligados à igreja na Alemanha, para reestruturar e para ter uma equipe de funcionários. Isso foi em março de 2020, será? Eu acho que foi por aí.
P/1 - Começou bem nessa época?
R - Não, aí então ainda era o ‘seu’ Robson. Foi lá para setembro de 2020 que nós assumimos e aí foi formando uma equipe com a Andrezza, que é uma das coordenadoras nossas, assistente social e aí passou a ser, até o fim da pandemia, todos os dias, mil alimentações, eles podiam se sentar, esperar. Aí outros grupos se juntaram, tinha grupo que vinha fazer corte de cabelo, começamos a distribuição de roupa, encaminhamento de documentos, encontros de reflexão e funcionava praticamente de oito da manhã até as duas da tarde, até no início desse ano, janeiro desse ano, que a gente tentou dialogar com a prefeitura e não houve possibilidade, então nós decidimos parar e a prefeitura continuou distribuindo na rua o alimento, ali nas imediações. Mas aí agora, no mês de maio, a prefeitura nos procurou, Secretaria do Meio Ambiente, que estava interessada - ... Meio Ambiente, de Direitos Humanos - em fazer um projeto emergencial conosco, na mesma linha, dando continuidade à distribuição de alimentos. Então, em junho nós iniciamos, na Rangel Pestana, o novo projeto, que chama Estação Cidadania, que também distribui comida diariamente, as mesmas refeições e que tem banho para duzentas pessoas, lavagem de roupa e também lazer, encontros formativos e tem um projeto que chama POT, que é de geração de trabalho para a população de rua, também é parceria com a prefeitura e nessa parceria a gente contrata 25 pessoas, eles recebem um salário e eles têm que participar dos trabalhos e de cursos de corte e costura, de culinária, de artesanato e tem vários outros lá. Então, nós estamos com dois grupos aí: um na Chapelaria, que continua, que faz atendimento diário e agora nesse Estação Cidadania, esses dois projetos e eu estou liberado para esse trabalho e às vezes também participo em Santo Amaro, acompanhando o trabalho. A gente vê que isso também despertou, em várias comunidades, o desejo de fazer alguma coisa. Depois disso surgiu um trabalho de rua na Vila das Belezas, no Jardim Miriam, na Paróquia Nossa Senhora Aparecida. Em Diadema, a Paróquia Santo Arnaldo. No IV Centenário São Paulo Apóstolo, São Marcos, lá na zona leste e vários outros grupos começam a se sensibilizar e o bonito realmente é o voluntariado, tem um grupo de voluntariado muito bom. E nós acabamos, através da Roseli, esse contato com ela também foi muito bom, porque a gente teve contato mais próximo com Santo Amaro e com a rua, ela e a Hare, filha dela, tendo esse link, por exemplo, com o Banho da Geral, com a Vanessa, com a equipe deles, essa ligação mais interreligiosa, que parte de uma ação comum, que todos nós fazemos e também de uma crença comum no mesmo Deus e que a gente pode, junto, contribuir para melhorar um pouco a vida das pessoas. E outro link que apareceu com a Vanessa, nós continuamos com o contato com o MST, às vezes vamos fazer visitas, às vezes quando tem a Romaria da Terra, a gente participa junto com eles, mas aí nós temos contato permanente com uma ocupação chamada Nova Jerusalém. Foram duzentas famílias que ocuparam uma área no Guarapiranga e estão lá, tentando garantir a posse da terra, para poderem viver essas famílias. E aí, em ocasiões especiais, a gente vai lá. Por exemplo: agora no Natal, Dia das Crianças, Páscoa e às vezes a gente também faz algum trabalho de colaboração com cesta básica, com alguns pequenos projetos também, que a gente tem. Eu vou continuar nesse trabalho, não sei até quando, estou feliz com o que estou fazendo. Ano passado eu fiquei muito dividido, porque a minha mãe ficou muito doente, então eu ia várias vezes para Barbacena, depois eu a acompanhei no último mês, que ela ficou direto na UTI, no hospital e acabou falecendo, no dia dez de outubro. Era uma mulher também de muita garra, saiu do campo, foi para a cidade, perdeu um filho, depois perdeu marido, depois perdeu outro filho, mas era um exemplo de fé, assim, de esperança e de resistência, resiliência, muito forte. Algumas coisas eu acho que eu até herdei dela. Um pouco do coração do pai, que era muito bom de coração e dela essa resistência, essa resiliência. E estamos com mais sonhos aí, para a rua e tal, para melhorar, mas o grande sonho que eu tenho, desde o começo, é de que um dia não tivesse ninguém na rua, que não quisesse estar. Quem quisesse estar, tudo bem, mas infelizmente, ao voltar de Roma eu tive um choque, que eu tinha sempre a sensação de lixo humano jogado por todos os cantos da cidade. E eu acho que a gente tem que se unir, juntar forças e criar políticas realmente para superar isso e acabar com essa situação, que é vergonhosa para quem tem fé, mas é vergonhosa para qualquer pessoa que humanamente tem coração e quer um planeta mais habitável para todo mundo. Eu tive a alegria de estar em Roma quando chegou o Papa Francisco e para quem estava lá foi um respiro, de alguém que trazia um pouco da América Latina, um pouco do jeito de ser e da sensibilidade da humanidade que tem a América Latina e continua sendo, para mim, uma pessoa de grande, grande inspiração. Semana passada, quando ele disse assim, que... do absurdo da guerra, ele disse que a guerra só traz lucro para quem produz armas e que com um ano sem guerra a gente podia eliminar a fome do mundo. É uma falta de senso, de lógica, de humanidade absurda, que homens aparecem assim e geram guerras aqui e ali e às vezes até para se auto protegerem, ou para defenderem o próprio poder e o próprio espaço. Eu acho que a gente não pode se conformar com isso e nem com a situação de rua. Durante a pandemia, quando saía as notícias de maior país exportador agro, um dos maiores, eu falava: “Que vergonha! A gente manda para fora e não consegue alimentar a nossa gente” e nem é tanto assim. Se fala agora de 56 mil, que antes da pandemia era menos de trinta mil na cidade de São Paulo, não? É uma cidade tão rica. Eu espero que juntos, aí e com boa vontade do poder público, escolhendo pessoas que realmente estejam interessadas numa mudança, a gente possa, eu possa, antes de morrer, ver São Paulo com menos gente na rua e mais gente morando na sua casa, tendo dignidade, tendo seu trabalho e tendo vida digna. Eu acho que, até a partir da fé, é nisso que eu acredito. A pergunta final é se a gente amou, se a gente foi sensível com quem tinha fome, com quem não tinha moradia, não tinha... estava na cadeia, porque esse ciclo vicioso, que tira a dignidade e aí, tirando a dignidade, gera criminalidade, da criminalidade volta para a rua, mas nunca restabelece a dignidade, tem que acabar, a gente tem que trabalhar por ele.
P/1 - Vou aproveitar e queria saber a sua percepção dos impactos da pandemia para essa população em situação de rua. Que histórias você pôde ouvir?
R - Pois é. Eu acho que o primeiro impacto para a população de rua foi a perda do que já não tinha: a perda da comida que recebia no restaurante, a perda da comida no hotel, em vários lugares, a perda do contato, porque você também cria ‘laços’ ali no território, cria contatos, então não podia mais encontrar. Então, o aumento da solidão, aumentou muito a solidão. E, de um outro modo, aumentou a sensibilidade e a proximidade com os voluntários, porque muita gente de igrejas, fora de igreja, se organizava e, com coragem, saía para a rua e levava comida e levava cobertor e tal. Agora, ao mesmo tempo, também criou mais vínculos entre eles, de dormir numa mesma barraca, que às vezes tinham medo também, não é? Eu acho que o medo entre eles, de contaminar um ao outro, o medo de quem passava, de ser contaminado, não é? Mas num primeiro momento eu senti um grande mutirão também. Você via grande fila ali no ‘seu’ Robson, que era perto da prefeitura; os franciscanos montaram na frente uma grande tenda, distribuindo comida; a quadra e tal, mas a gente passou a ouvir mais, a sentar mais, eles trazerem as histórias deles. A gente via muita gente idosa buscando comida, que às vezes estava vivendo ali no Centro, nem estava na rua, mas já não tinha mais condições de comer. Tinha uma senhora de noventa anos que vinha diariamente e no final ela vinha mais pela relação, pelo contato que ela tinha com a gente. Pessoas vindo da periferia, para poder buscar comida. Mas eu acho que aumentou muito mais os vínculos, os contatos e as conversas, a percepção da população. A gente via com mais clareza a população trans, que vinha e que se misturava, que ali você tinha que estar junto mesmo. Mas nós tivemos uma boa convivência com eles. O pessoal normalmente é bem-humorado, faz brincadeira da própria realidade, né? É bastante solidário, até porque você não pode guardar muito. Então, se tem comida, você reparte porque, se ficar pra depois, vai perder. As rodas de pinga também aumentaram, a droga porque, para você se livrar do problema, aí você acaba também usando mais, né? Os espaços mais fechados. Mas houve um aprendizado, nós aprendemos bastante. Embora ache que a gente podia ter aprendido mais em termos de querer mudar, querer transformar o mundo e transformar a realidade.
P/1 – E, a partir da sua experiência, o que é mais urgente para ser feito, ou refeito, em relação à população em situação de rua de São Paulo?
R - Eu acho que é uma proposta dos movimentos, das pastorais e eu estou convencido, é aquilo que já tem em vários lugares da Europa, tem a moradia primeiro, porque a dignidade chega com a moradia. É você poder chegar numa casa, ter o seu cantinho, ter os seus pertences, dormir, para poder colocar a mente em dia, refletir, poder acolher alguém na sua casa. É claro que pode parecer um pouco simplista, porque envolve muito mais coisa, envolve estrutura, a capacidade da pessoa de administrar, aqui na rua. Ela tem outra forma de administração, porque eu não falo que ela não tem capacidade de administrar. Uma pessoa que sabe fazer uma agenda de onde ela vai dormir, de onde ela vai procurar o café, onde ela vai almoçar e ela fica o dia inteiro em torno disso tem uma capacidade tremenda de se organizar, saber onde ela pode buscar a roupa, saber onde ela pode tomar o banho, saber onde ela faz isso ou aquilo, mas eu acho que começa pela moradia. Depois, estruturas de emprego. Eu acho que é a saúde mental, criar espaços onde a pessoa possa ir trabalhando também a saúde mental, porque é uma neurose. A gente vê, às vezes, no projeto, qualquer coisa, muita gente no espaço gera briga, gera tensão, porque você está disputando também espaço, uma fila de banho, uma fila de comida, que não é humano também, que não é digno. Então, acho que vai passando pelos direitos fundamentais, mas é moradia, depois trabalho, saúde mental, educação, saúde e uma ação mais integrada do poder público, porque fica setorizado: uma secretaria faz uma coisa; outra, outra, mas a pessoa não é setorizada, ela tem doenças, ela tem problemas de convivência, ela tem necessidade de moradia, de trabalho, de uma série de outras coisas. Então, nós achamos que é moradia, porque o albergue gera muito problema, gera conflitos, gera... as próprias entidades, nós mesmos somos uma entidade, mas às vezes a gente se pergunta se vale a pena ter uma entidade, ou se é melhor os fundos que estão sendo dirigidos a uma entidade serem diretamente usados para a população. Claro que sempre precisa de alguma intermediação, organização e tal, mas eu acredito que a autonomia das pessoas é muito importante. E eu acho, eu tenho acreditado que tem que fazer um... pôr um basta no processo que joga na rua. Enquanto a gente não fizer uma melhor distribuição de renda no país, a gente não resolve esse problema. Quando a gente escuta que os seis mais ricos do Brasil têm uma fortuna igual a 50% da população brasileira, a distribuição de renda seria mínima para dar dignidade, para permitir... não permitir que a família se ‘quebre’, que o marido, por falta de trabalho, brigue com a esposa, que as crianças vão para a rua, porque não têm cuidados, ou porque não têm uma escola em tempo integral. Quer dizer: eu acho que trabalhar a infraestrutura que cerceia o ir para a rua e que permita quem quiser. Eu vi na Europa que tem pessoas que optaram e dizem: “Eu gosto e é minha opção”. Tudo bem, tranquilo. Mas que vivam na rua também com dignidade e do jeito que ela quer e tal. Mas eu espero políticas públicas. Eu estou contente que agora, há uma semana, houve em Brasília, a partir do Ministério de Direitos Humanos, um plano, Rua Visível, é dar visibilidade mesmo à rua para, tendo visibilidade, encontrar soluções para o problema. E que a visibilidade seja quando a gente quer, né? E a invisibilidade, se a gente não quiser também. Agora eu estou me propondo a minha visibilidade, mas tem hora que a gente quer o cantinho da gente, quer viver o que a gente é também.
P/1 - E para você, quais são os maiores desafios de estar próximo a essa população?
R - Um dos desafios que aumenta sempre em mim é... deixa eu ver se consigo expressar... eu gosto de estar próximo, quero ter mais tempo para estar próximo, estou me planejando para isso, mas o primeiro desafio é a diferença entre mim e eles, que eu não posso superar. Os estudos que eu tive, as chances que eu tive, de aprender línguas, de viver em outros continentes e tal, mas é mais assim: eu vou lá e dou comida, mas a comida que eu tenho em casa é melhor, quando eu almoço em casa. Eu vou lá e atendo para dormir em algum lugar, mas às vezes eu o deixo dormindo lá na rua e está frio e está difícil e eu não consigo fazer isso. Eu diminuir também a distância entre mim e eles, embora eu acho que eles não olham isso. Para eles interessa o contato e o seu tratamento de igual para igual, o tratamento humano é muito importante. Eu não tenho medo da violência deles, eu não gosto da violência entre eles, ou a violência que fazem a outros. Já tive um pouco de medo de violência, de sofrer violência, mas a idade vai deixando a gente... fazendo superar isso. Eu gostaria que eles diminuíssem a violência entre eles. É por isso que a nossa filosofia é tentar fazer tudo com eles. E tentar fazer, por exemplo: se eu estou lá, eu não vou comer fora. A gente come a marmita que eles comem porque, se não servir pra eles, a primeira coisa que nós temos que fazer... inclusive tem um monitoramento das marmitas, da qualidade, do peso e que às vezes é insuficiente, às vezes a gente tem que reclamar com a secretaria, para que a secretaria reclame com quem produz, mas a minha experiência entre eles me fez não fazer distinção de classe. Para eles não interessa se eu sou padre, ou não. Interessa se eu sou Arlindo, um amigo, um companheiro que está junto. E, no fundo, é o que deveria interessar nas relações humanas, é a maneira como eu trato você, você me trata, como eu te respeito e você me respeita. Agora, um desafio que eu sinto é como organizá-los também, porque a gente tem o sonho de organizá-los quase por categoria. Se o problema é emprego, para alguns, poder discutir junto e tentar encontrar juntos uma saída. Se a moradia é um problema também, sentar junto. Se é dependência química, sentar junto e se querem um acompanhamento, uma internação, fazer. Mas essa neurose da busca do dia a dia, ou às vezes do consumo do álcool, da droga, dificulta, porque você tem que estar no mínimo ‘limpo’, bem, para poder conversar e tal. Então, isso também é outra dificuldade, a gente gostaria, mas dá uma alegria que, do tempo que eu fiquei em Roma e voltei, o sonho que a gente tinha de ter movimento de rua organizado, aconteceu. E eu digo que esse companheiro Alderon tem um papel muito importante nisso e com outros, normalmente, mas ele teve uma função muito importante, porque agora já tem o Movimento Nacional de Luta, tem o Movimento Estadual e tem o Movimento de Defesa da População de Rua, que se une muito em torno do Dia de Luta, que já ficou latino-americano. Outros países... o Alderon começou a fazer link com outros grupos, de outros países e tem movimentos organizados também, agora eles já têm encontros e eles já adotaram o dia dezenove de agosto como Dia Latino-americano de Luta, que partiu daquele massacre. Quando nós começamos era em maio, mas quando houve o massacre da polícia, que matou acho que sete ou nove moradores de rua na Sé, que até hoje não estão punidos, aí eles passaram a transferir para dezenove de agosto e praticamente agora são os movimentos. Antes tinha muito peso da Pastoral, dos grupos ligados à Igreja, agora os movimentos sociais estão assumindo e eu sonharia com isso. Mas tem também movimento de moradia, que faz ocupação e que envolve pessoas de rua. Então, acho que a organização é um grande desafio também. Eu gosto muito de ouvi-los, porque têm histórias de vida muito fortes e muito sábias.
P/1 - Tem alguma que você... foi bem marcante?
R - Agora eu tenho que... uma era do Orlando, que já faz muitos anos, ele morreu na rua. E do Manuel Jorge. O Manuel Jorge era um homossexual. Ele era da turma do Pedroso. Mas ele era a primeira pessoa, em qualquer coisa que você fazia, a se dispor. E era a primeira pessoa mais sensível. Alguém está morrendo na rua, ele corria para a gente. E ele acho que tinha uma história também, na Bahia. Ele veio da Bahia, acho que lá ele já era homossexual, ele assassinou um amante dele e aí ele teve que fugir. E, ao fugir, ele ficou aqui nas ruas, mas era uma das pessoas... e arrependidíssimo do que tinha feito, mas ele... a comunidade precisava dele para algum trabalho, ele estava lá; morria alguém na rua, ele vinha avisar e ele ajudava a organizar o funeral; alguém estava doente, ele começava a cuidar. Ele veio pro Brás, a mesma coisa. Então, assim: tem muita gente muito sensível e eles vão criando muitos ‘laços’. Orlando era quase um filho. Ele era alcoólatra, negro. Aí ele tentou com a família, tentou lá em Limeira, mas aí depois de um tempo não conseguia largar o álcool, ele tinha uns problemas. Aí também foi, encontrou a gente no Brás, aí eles logo se oferecem para ajudar. Aí oferecendo para ajudar, vai criando ‘laço’, vai criando afinidade e tal. E esse também, infelizmente, depois foi morto por outro, lá no Brás, mas era o companheiro mais fiel que a gente tinha. Tudo que a gente precisava, ele estava junto. Mesmo bêbado aparecia, queria ajudar e tal. Essa Cinira, que era uma conselheira da rua, bebia, mas ela organizava grupinhos. Ela fazia uma maloquinha, que eles falavam, fazia comida e chamava o pessoal para comer. Ela, quando falava, a gente ficava atento, porque era de uma sabedoria muito grande. Então, tem muitos nomes que vão aparecendo, que talvez agora eu não lembre tanto, mas tem uma sessão no O Trecheiro, que chama Vida no Trecho, que de vez em quando tem alguém contando a própria história e são essas histórias que nos ajudam também a querer continuar e a querer ir em frente, na presença e no projeto.
P/1 - Eu te perguntei os desafios. E os aprendizados dessa proximidade?
R - É. Acho que o primeiro aprendizado é aquilo que eu já falei: o que vai salvar a gente é a relação humana, é a capacidade de empatia e de entrar no sofrimento do outro. A outra coisa é sair desse sistema capitalista, que tudo é dinheiro e que a gente não vive sem dinheiro. As pessoas da rua, infelizmente, mereceriam mais dinheiro, mas elas não se agarram à questão do dinheiro. E, se tem o dinheiro: “Vamos usar hoje, vou tomar cerveja, vou ‘curtir’, vou aproveitar”. Elas ‘curtem’ a vida, porque sabem que às vezes o momento é curto, às vezes vem a violência, às vezes vem a agressão da polícia, que eu acho que é outra coisa que precisa ser muito trabalhada, é a questão policial, de que a polícia seja preparada para tratar essas pessoas. Em um mês, agora, nós já tivemos dois embates, um com a Guarda Municipal e outro com a polícia, porque eles estavam na frente do projeto, abordando uma pessoa - cinco policiais - sem arma, sem nada, um jovem, depois apareceram mais três camburões da polícia e aí um dos nossos agentes foi filmar e já vieram, soltaram gás e o agarraram pelo colarinho. E agora, a última semana também vieram, estavam abordando alguém, ela estava documentando, aí vieram nela, tomaram o crachá, pediram identidade, ela falou que estava dentro e não podia pegar e depois tomaram o crachá e o vale-transporte: “A gente te entrega no fim do expediente, hoje”. Foi preciso dela acionar uma deputada estadual... federal, Luciana, amiga dela e ir lá buscar o material. Mas eu acho que, pra mim, tem um aprendizado de levar a vida numa boa, com simplicidade, na alegria e na solidariedade. Aquela percepção de que eu não estou sozinho nesse mundo, eu vivo de relações e à medida que eu construo relações boas, humanas, todo o ambiente também vai melhorando. E eu acho que nós temos que lutar politicamente, tem que haver engajamento político para mudar essa situação. É preciso criar políticas públicas que conduzam a verba primeiro para essas populações. Eu acho que esse governo está tendo mais essa sensibilidade, de conduzir a verba para questões de rua, questões de moradia e tem que pôr mais verba, investir mais nisso. Eu aprendi que não dá para separar fé e vida e não dá para separar assistencialismo e luta pela transformação da sociedade. Aí eu volto no que eu quero muito, no Dom Hélder Câmara, que dizia assim: “Reparte o pão, porque há irmãos famintos que não podem esperar, mas reparta a justiça, porque há irmãos oprimidos, cansados de tanto esperar”. Esse pessoal que está na rua está cansado de esperar. E olha que tem gente que eu conheço há trinta anos, que às vezes até saíram da rua e depois voltaram. Uma história bonita, eu tenho um único caso que eu conto, que eu vi sair da rua. Pode ser outros que já saíram da rua e tal, mas é o Reinaldo. Reinaldo me tem agora como pai, já tem uns trinta anos. Ele saiu da rua e ele é do nordeste e ele também cometeu, por acidente, um crime e aí ele veio para São Paulo e ele bebia, bebia, bebia, bebia, mas aí ele se aproximou da gente e ele era acompanhado por aquela Dona Terezinha que eu falei, que hoje ela está com 95 anos, que ela saía da igreja e ia visitá-los. Como ela conversava muito com eles, ele começou a contar a história e aí ela começou a me colocar na história e dizer: “Olha, isso você tem que contar para o padre, porque ele pode te ouvir”. E ele começou a contar. Ele ficava menos bêbado. Eu o levei para Minas, eu o levei para periferia, não é? E aí ele começou a olhar que tinha outras referências de família, de coisas assim, que estavam e essa senhora começou a acompanhá-lo, ele ficava na turminha, ele era amigo de todo mundo, ele é querido por todo mundo. Depois eu saí, acho que foi no tempo que eu fui para Roma. Aí ele falou: “Olha, eu saí da rua, parei de beber”. Isso lá pelo ano 2006, 2007. E aí ele passou... alugou, arrumou um trabalho, afastou da rua, porque é muito difícil se ele fica com os amigos, mas ele não perdeu a referência nem com a Dona Terezinha, nem comigo. Mesmo em Roma ele mandava uma mensagenzinha. E agora ele está muito orgulhoso, porque ele é bonitão, assim. Eu não sei como é que chama, mas ele faz aquela... tem aquele baile para as senhoras já mais idosas e ele é o...
P/1 – Cavalheiro?
R - ... o cavalheiro, que dança com elas e tal. Aí, de vez em quando, toda semana quase, me manda um WhatsApp: “Benção, padre, tudo bem? Sou o Reinaldo. Um abraço”, ou às vezes: “Gosto muito do senhor. Ó, está tudo bem aqui”. Mas nunca me cobrou também que eu não respondo, que eu não dou retorno e tal. Eu tento responder, mas... deve ter outros, mas tem alguns que nunca mais vi, ou tem casos que às vezes a pessoa volta só para dizer: “Olha, obrigado, consegui aquilo, deu certo, hoje estou bem e tal”. Mas eu sinto que isso de assistencialismo, se ele não leva a uma promoção de políticas públicas, é inútil. Tem que haver, porque as pessoas têm necessidades, mas ele tem que dar um passo a mais também.
P/1 - E, Arlindo, você conheceu o seu avô, que o seu nome...
R – O vô Arlindo?
P/1 – ... está em homenagem? É.
R - Ele é chamado Lindinho. (risos) Conheci. Era uma pessoa muito querida, silenciosa, carpinteiro. Trabalhava na carpintaria, viveu lá com a minha avó e era uma referência muito grande para a família. Acho que por isso que todo mundo gostava dele. Algumas vezes eu acho que ele era muito submisso à minha avó. E, às vezes, fazia... minha avó era aquele jeito forte, temperamento e tal e às vezes ele se submetia a ela e não tomava muita posição, mas era um homem de muita fé. Ele foi candidato a vice-prefeito da cidade e ele foi o primeiro que levou luz para a cidade. Ele tinha, acho, passado pelo seminário também. E isso eu me lembro, que eu tinha seis anos e ele levou a luz para aquela fazenda que era dele e tinha uma... não é usina que fala, é um lugar que a água cai e produzia energia e eu acho que é aí que comecei a gostar de línguas, porque tinha um rádio velho em casa e, quando tinha luz elétrica, eu ligava o rádio e tinha uma... hoje eu acho que é alemão. Eu ficava escutando aquela coisa, aquela língua, eu ficava encantado, fascinado. Eu até ficava pensando: “Será que um dia eu vou aprender uma língua dessa, pra eu falar e tal?” E depois vai acontecendo coisas que você não imagina. Quando eu fiquei apaixonado por aquela italiana, eu comecei a estudar italiano, mas nunca passou na minha cabeça que um dia eu ia morar na Itália. Agora, era aquele avô que criava a família, ele queria sempre a família junto. E do avô pai de pai, que chamava José Dias Lopes, a lembrança que eu tenho só é que ele era meu padrinho e eu nunca tinha comido bolacha e um dia ele subiu a escada da casa da minha avó e um pacote de bolacha, assim. Eu falei: “É hoje, hoje”. Porque lá o que faziam era a mãe, tinha o costume de fazer bolo, biscoito, mas fazia não era todo dia. Fazia, juntava numa... tinha umas latas grandes, punha dentro e a gente ia usando e comendo. Você fez lembrar algumas histórias da minha mãe, que ela contava da avó. Ela dizia, por exemplo, que a casa da minha avó era chamada de convento, (risos) porque eram seis ou sete filhas, mas depois das cinco horas da tarde fechava tudo, ninguém podia sair e elas ficavam doidas para sair. Podiam ir na praça aos domingos, conhecer as coisas e tal, mas fora disso nada. Então, é aquela cidade pequena do interior, com aquelas histórias assim, bem daquele tempo. Por exemplo: ela contava que estava na escola... isso era o meu pai, estava na escola e eles nunca sabiam, nunca tinham visto um avião. Ele disse que a primeira vez que passou um avião, a professora juntou os alunos e levou tudo para a igreja e falou: “Vamos rezar, que o Nosso Senhor está descendo na cruz”. (risos) Porque era o formato lá, assim, de tanto medo que ficaram quando passou e teve aquele barulho lá do avião, passando por cima da cidade. Minha mãe contava, eu gostava de ouvir do meu pai, que como elas não podiam ficar muito tempo na praça, nem namorar, tinham medo, tinham que se ajeitar entre elas para arrumar namorado, para fazer as coisas. Então, ela disse que ela tinha uma prima que gostava muito dela, chamava Geralda e que elas sempre iam na praça, procurar os namorados e tal. E essa Geralda estava apaixonada pelo meu pai, porque meu pai também girava ali, na praça e tal. E aí a Geralda teve a ideia de pedir à minha mãe para falar com meu pai, para namorar com ela. Aí foi, toda santinha, parou na frente do meu pai e falou: “Olha, eu vim aqui porque minha prima Geralda está gostando muito de você e mandou perguntar se você não quer namorar com ela”. Meu pai olhou para ela e falou assim: “Com ela não, mas com você eu quero”. E estou eu aqui.
P/1 - Foi assim?
R - Foi. (risos) Aí a partir daí eles começaram a namorar e depois se casaram. (risos)
P/1 - E você gostava de ouvir histórias?
R - Gostava. Da minha mãe mesmo, ultimamente, antes dela falecer, eu comecei a recuperar muita coisa dela, que eu sentava e ouvia. Eles tinham uma vida muito dura, muito simples. Eu também. As roupas que a gente tinha eram dos primos ricos da cidade, que vinham e a gente passava a usar, porque não tinha tantas condições. Eu, ouvindo-a contar uma história dela. Iam para a igreja, às vezes iam descalços, porque nem sempre tinha sapato e tal. Então, ela contou, a última vez, que ela era bem pequena e estava vindo para casa e viu mil réis no chão. Aí ela olhou e falou: “E se eu pegar? Não, minha mãe é muito brava. Se eu pegar, ela vai brigar comigo e ela até vai me bater, lá em casa”. Aí foi embora. Chegou em casa e ela falou pra vó: “Mãe, eu vi mil reais lá no chão” “Boba, por que você não pegou?” Ela falou assim: “Eu não, eu fiquei com medo da senhora, a senhora podia brigar comigo. Então eu vou lá, ver se eu acho de novo o dinheiro”. Aí foi, ainda estava lá. Ela pegou o dinheiro, disse que foi e comprou um vestidinho novo, um sapatinho novo e que aquele dia ela não ficou atrás da porta, lá na igreja, igual ela ficava, porque ela ficava meio assim, com medo e escondia. Aquele dia ela foi lá pro meio de todo mundo e ficou exibindo aí a roupa nova e o sapato novo que ela conseguiu através da vó. Eu me lembro muito das festas. As festas eram muito bonitas, porque nessa casa dela, ela era... como chama?... enérgica, mas também tinha os gestos dela de carinho. Por exemplo: ela gostava de ter todo mundo lá e tal. Eram os dias mais bonitos, porque a criançada dormia debaixo da mesa, brincava, era quatro, cinco famílias juntas, sabe? Eu acho que hoje o celular vai tirando essa capacidade do contato, da relação, de contar histórias, de ouvir histórias, ouvir como era o medo de assombração na roça. Essa minha tia que morava na fazenda, às vezes o marido dela saía muito, gostava de jogar baralho, ou sair para pescar, ficava fora. Ela ficava sozinha com as crianças. Ela tinha um funcionário que gostava de sair para outra tia, jogar com os meus primos, baralho e a deixava sozinha. Aí um dia tinha uma subida, em um barranco grande, ela arrumou alguém, fez uma roupa de assombração, branca, bem ‘coisa’ assim e pediu um outro homem para ficar lá em cima a hora que ele voltasse, que era depois da meia-noite, meio escuro. Ele voltou e aquilo começou a fazer assim, fazer assim, mas o empregado nunca mais (risos) saiu depois das oito da noite (risos) de casa. Então, essas histórias também a gente sentava, escutava, né? Claro que algumas coisas eram fantasia, mas era uma vida muito criativa. Por exemplo: me lembro de fazer mamão, limpá-lo por dentro e fazer cara, olhos e tal, pôr uma vela dentro e, numa noite escura, deixar numa encruzilhada, numa coisa assim. Você ia, pra vida não ficar tão monótona, o pessoal criava, inventava. Tinha noite de reza que um dia: “Hoje vai ser na tua casa”. Aí juntava vinte, trinta, fazia a reza, depois o dono da casa tinha que preparar leitoa, comida e tal e depois o forró, todo mundo na sala. Eu me lembro deitado, assim, com cinco anos, eu dormia no banco e meu pai, minha mãe e o pessoal a noite inteira dançando o forró. Então, eram coisas que marcavam muito a vida da gente.
P/1 - E, Arlindo, tinha algum costume, ou alguma história, ou alguma lembrança que, de certa forma, te acompanhava nessas suas andanças pelo mundo? Sei lá, algum momento de saudade, de nervosismo, de medo e você recorria a essas lembranças da sua família, que te tranquilizava?
R - Eu tenho que lembrar. É, os maiores... eu não diria medo, medo, medo, eu nunca tive, mas tinha um certo temor, por exemplo, quando eu tinha que, às vezes, falar inglês, no começo, porque você fica inseguro, fica com medo de, sei lá, da própria língua e tal, aí você recorre um pouco: “Não, eu tenho que honrar minha família, eu tenho que fazer da melhor forma possível, vou perder o medo e tal”. E às vezes eu acho que a gente recorria muito encontrar alguém da mesma terra, no outro país. Em Roma, por exemplo, nós tínhamos um grupo de padres e freiras, que a gente se reunia mensalmente e a gente... festa junina a gente fazia, que era uma forma de ‘matar’ saudade. Chegava Páscoa, a gente se encontrava, chegava outros momentos. Então, parece que a gente queria encontrar, no outro país, algum ‘laço’. Quando eu fui a primeira vez para Washington, eu descobri que tinha uma senhora da minha cidade, que tinha casado com um norte-americano e morava lá. A primeira coisa que eu fiz foi ir à casa dela, ela preparou pão de queijo, ela preparou um doce de aletria, que é um doce que eu gostava muito e tal. Então, tem momentos que você recorre a algumas lembranças, para te dar força. Por exemplo: eu estava visitando Zâmbia, na África. Aí tem lá também uns missionários brasileiros, foi um tempo bonito e tal, mas tinha um padre polonês que adorava jacaré. E ele ia, enfrentava isso, chegava lá e você via os jacarés à distância e ele queria que a gente entrasse dentro d'água com os jacarés. Não, não, não, mas ele entrava e não acontecia nada com ele. Mas o que me deu medo depois, foi que eu não tenho medo de avião, mas avião pequeno eu tinha muito medo. Um colega meu queria me fazer andar de helicóptero e não conseguiu. Aí eu estava viajando de Zâmbia para a Botswana, que ia visitar outra comunidade e eles falaram: “Olha, não tem estradas, vai ter que ir de avião e é um avião pequeno, mas não é muito pequeno”. (risos) Aí eu já fiquei com medo, medo mesmo. Eu falei... e suava um pouquinho. Aí quando cheguei no avião, eram aqueles com seis lugares e só estava a mulher que era pilota e eu, aí falaram: “Você senta aqui, pra dar equilíbrio”, porque ela estava lá e eu tinha que sentar aqui. Aí eu entrei e ele falou: “Não, não tenha medo”. E eu tremendo de medo. Aí levantou voo, eu comecei a refletir, refletir, refletir: “Arlindo, se você morrer, você vai morrer mesmo. Lá embaixo deve ter um monte de coisa bonita. É melhor você ir perdendo o medo, (risos) deixando aqui”. Quando eu comecei a olhar rinoceronte, girafa, jacaré, zebra, aqueles animais todos e o avião ia passando. Aquelas árvores, eles têm umas árvores que se chamam baobá, que tem árvore que precisa de vinte pessoas, para abraçá-la. Depois eu cheguei a conhecer uma que tinha oitocentos anos, lá em Botswana. Aí perdi o medo. Aí desceu uma vez, aí já entrou um indiano com a mulher e a criança, aí já começamos a conversar, aí foi a coisa assim. Mas era mais esse temor de não ‘dar conta do recado’, de às vezes ‘dar um fora’ e tal, que devo ter dado também, mas você só aprende também fazendo essas coisas.
P/1 - E agora, caminhando para o fim, queria saber quais são as coisas mais importantes para você.
R – Ai, ai, ai. (risos) Nesse momento da minha vida, eu acho que - sabe que eu não tinha pensado isso? - é viver bem, ser feliz, fazer os outros felizes, amar, ter consciência da minha limitação. Eu tenho muito mais consciência de que eu sou limitado, de que eu não preciso fazer tudo, de que eu sou o Arlindo e o Arlindo tem essas e essas qualidades, mas tem esses e esses limites e de que eu posso viver agora e ser feliz agora. Esse momento é o mais importante para mim. O outro vai vir, pode vir, mas é... e essa coisa de olhar nos olhos do outro. O trabalho que eu fiz durante os doze anos, eu visitei milhares de pessoas, no mundo inteiro, eu não conseguia me comunicar sempre com pessoas. Por exemplo: Papua-Nova Guiné, eu cheguei, tinha uma fila de quinhentas pessoas de um lado, quinhentas do outro, com flores e sorrindo para mim. Eu sempre me eduquei para olhar nos olhos. Eu perdia quarenta minutos, mas eu olhava de um lado e do outro, no olho da outra pessoa. E até hoje eu tenho isso, porque eu acho que olhar nos olhos é entrar na outra pessoa e permitir que ela entre na nossa, mas aí você não pode ser hipócrita, você não pode... ali eu sabia que, para eles, era uma pessoa importante, que eu vinha de Roma e que vinha visitá-los. Então, o meu tempo era para eles e eu não era a pessoa importante que vinha de Roma, eu era o Arlindo, que nasceu na roça, lá em Cipotânea, que era filho de um pedreiro, de uma doméstica e que viveu também dificuldades, que passou por sofrimentos, igual eles e aí eu me soltava. Aí, mesmo não sabendo bem o inglês, eles não sabiam, que eles falam o _______, que é uma língua de mistura inglês e indonesiano. Eu dançava com eles na igreja. Eu aprendi muitas músicas aqui, de gesto, de canto e tal. Então, eu tentava traduzir para o inglês e fazia para eles. O dia que eu vi na igreja, entrar lá na Papua-Nova Guiné, o pessoal vestido de indígena, mas bem indígena mesmo, todo mundo pintado, com aquelas roupas, as mulheres e vi assim mil pessoas numa igreja, sentado no chão, porque não tem banco, aquelas mulheres, aquelas crianças, aquelas cores, eles dançando e cantando e gritando, era a minha alegria. Então, talvez isso também, ver a alegria do outro e tratar o outro como a mim mesmo. Eu tento, na rua, não deixar nenhuma margem de que eu sou superior ou melhor do que ele. Eu sou um ele do lado de cá, uma outra pessoa. E aí a gente vai descobrindo a beleza da outra pessoa. A liberdade também que eu tenho. Eu já posso dizer que eu não tenho quase nenhum preconceito. Eu não vou dizer que não tenha nenhum, porque a gente sempre tem, em alguns momentos eles afloram. Mas eu aprendi a ver as pessoas como ser humano e tentar tratá-las como ser humano. E a rua me ensinou muito isso, porque ali você tem um velho, você tem um católico, você tem um budista, você tem um evangélico, você tem um espírita, você tem uma trans, você tem um gay, é tudo misturado. E eu acho que essa mistura é que tem que acontecer na sociedade e no meio de nós. A gente se respeitar e se amar e se amar do jeito que cada um é. Mas cada um podendo oferecer. Tem tanto talento na rua, que a gente não... por exemplo: aparece um lá que pinta você, assim, numa boa e não vai te cobrar nada. Ou que faz uma poesia, que faz um canto, uma coisa assim. E é talento que está desperdiçado aí, que o país não valoriza. Então, eu acho que o importante é a relação humana, é a relação que constrói, que faz a pessoa ser um pouco divina. Uma frase que me orienta desde o começo é: “Quanto mais humano, mais divino”. E como cristão, eu acredito que Deus se fez humano para a gente descobrir o divino que somos nós, ou que está dentro de nós. E à medida que a gente se desumaniza, a gente se desdiviniza também. Uma guerra é um absurdo total, mas a fome também. A gente poder comer é a coisa mais gostosa do mundo. Quando a gente começa a ter restrições, a gente valoriza mais ainda, como eu tenho agora, para o refluxo e para a lactose.
P/1 - E o que você gostaria de deixar como legado, para o futuro?
R - Eu até que não tenho tanta pretensão, não, mas eu gostaria que todo mundo sonhasse esse sonho, que eu sonho, que a dignidade humana, o direito e o respeito cheguem a todos os seres humanos e não só aos seres humanos, à natureza também. Eu me considero parte da natureza, eu vou voltar para ela daqui a alguns anos e acho que aprender a relação mútua de respeito, de que não é só respeito entre nós, mas respeito pela natureza, pelo fluxo da natureza e juntos construir esse respeito. Que a solidariedade, a fraternidade pudesse ser um princípio que rege todo mundo e a alegria pudesse chegar em cada pessoa, em cada criança, nas tribos indígenas, nos quilombolas. Eu me machuco muito pelo que nós fizemos com os indígenas, no Brasil, eu acho que é um profundo desrespeito e continuamos. Eu acho que essa relação humana e natureza, nós podemos aprender muito deles. Então, que a gente também pudesse aprender uns com os outros na partilha, na escuta, no ‘curtir’ juntos, no comer juntos, no dançar juntos, no celebrar juntos, no chorar juntos. Tudo isso faz parte do humano. Então, o meu sonho é que aconteça, através da gente, um novo céu e uma nova terra, que não acontece sem a gente e ele não é do lado de cá. Ele começa aqui, para quem tem fé e ele deve estar presente para quem tem outras crenças também.
P/1 - Você gostaria de acrescentar mais alguma história, alguma coisa, um comentário, uma mensagem que eu não tenha te perguntado?
R - Eu queria agradecer a vocês por essa oportunidade. O Museu da Pessoa está me ajudando a olhar para mim e talvez eu recordaria centenas de outras histórias depois, mas ela me faz um link com pessoas que eu respeito e admiro, que são pessoas da minha família, que são pessoas que marcaram a minha história e que são muitas pessoas que me ajudaram a olhar o mundo diferente. Eu tenho, por exemplo, admiração por Mahatma Gandhi, Luther King, mas posso contar outras pessoas com quem convivi: a Irmã Alberta, que agora nós vamos homenagear um dos projetos com ela, uma italiana que viveu com sem-terra, que viveu com a rua e que tinha duas roupas no corpo, mas mostrava um caminho. Então, acho que agradecer a paciência de vocês e vocês me remetem a pessoas de uma política que eu acredito. Eu tenho profundo respeito por Luiza Erundina, por Eduardo Suplicy e por vários outros políticos, que querem transformar essa sociedade para que todos tenham dignidade e vivam com dignidade. Então, eu agradeço demais aqueles que, na originalidade deles, porque eu acho que a originalidade é que faz a diferença e todos somos originais, ajudam a construir um país, um mundo mais justo, mais humano e mais fraterno e agradeço a oportunidade de poder estar falando de mim e a paciência de vocês também, de ‘viajarem’ comigo nesses 63 anos de vida. E termino, talvez, lembrando aí que eu estava falando que a memória da mãe faz recordar outras memórias. Ela me disse, eu não sabia, que quando eu estava na mão do meu pai, bem pequeno, meu pai teria dito: “O Arlindo vai ser padre, um dia”. Mas isso eu soube ano passado. Então, foi bom que eu soube o ano passado, senão eu ia pensar que eu estava condicionado por aquilo que o meu pai teria dito há sessenta e tantos anos atrás. Eu brinco que, se eu não fosse padre, eu seria palhaço. São duas coisas que eu gosto. Às vezes eu tento ser padre e palhaço também.
P/1 - Para a gente encerrar, qual é a sua primeira lembrança da vida?
R - Primeira lembrança da vida. Aí eu tenho que pensar, porque foi lá na roça mesmo. Eu acho que uma lembrança bonita foi essa do meu avô me dando pacote de bolacha, mas eu tenho lembranças lindíssimas brincando com os meus primos, no pé de manga e tem uma marca aqui na perna, até hoje, porque eu era o menorzinho e eu queria subir no pé de manga e o pé de manga tinha muitos galhos e eu tentei subir pelo tronco, eu escorregava e caía. Eles me davam a mão e eu caía. Aí tinha o pé de manga, um galho, um barranco e uma cerca de arame. E aí, nessa cerca de arame, alguém teve a ideia brilhante: “Você sobe no barranquinho, pisa no primeiro arame e aí você sobe no galho e nós te seguramos”. E eu fui. Só que quando eu pisei no primeiro arame, o arame entrou na minha perna, na segunda fila de arame e eu caí de cabeça para baixo. E aí eu chorava, chorava, mas não era de dor. Era porque, com o meu irmão, nós tínhamos fugido de casa (risos) e eu fiquei com medo da minha mãe. Aí vem a imagem bonita dessa minha avó. Essa minha avó era um pouco farmacêutica, não de ‘coisa’, era de intuição. Meu primo, que estava no seminário, correu e me pegou, ele estava de férias, levou na minha avó e eu chorava: “Minha mãe vai me bater, minha mãe vai me bater” “Sua mãe não vai te bater”. Aí ela preparou assa-peixe, que é uma coisa verde, com sal, com outro ramo. Aí ela fez aquele emplastro, amarrou na minha perna e falou: “Você vai ficar aqui até de tarde, deita lá na cama, depois alguém vai com você lá, pra tua mãe não ficar brava com você”. Eu fiquei, nunca fui ao médico e nunca aconteceu nada. Isso me puxa uma outra lembrança da minha avó ‘farmacêutica’: ela contava, eu achei fabuloso isso que, na cidade, o meu tio, filho dela, teve uma doença aqui, que deu um pus e ficou tudo branco aqui. Eu esqueci como é que chama, mas aquelas coisas que quase tapam o olho e fica aquele pus. E ela disse... foi no farmacêutico, o farmacêutico olhou e falou assim: “Dona Laurita, eu não posso mexer. Isso vai inflamar e vai dar um problema e pode fazer mal para ele. A senhora vai ter que, depois, ir na cidade, em Barbacena e fazer lá, porque precisa de uma cirurgia”. Ela disse que foi para casa, chamou meu avô, o Arlindo: “Lindinho, vai no quintal, traz para mim uma formiga cabeçuda”. Aí ela pegou uma tampinha de garrafa, desinfetou e pôs álcool e aí pegou a formiga cabeçuda, colocou dentro do álcool. Quando a formiga estava tonta, ela pôs a formiga lá. A formiga deu uma ferroada e no outro dia meu tio estava bem, (risos) já estava curado. Então, essas lembranças são de histórias da infância também. Mas eu me lembro mais é da roça, essa lembrança, por exemplo, da usina. Noite de lua cheia, eu adoro noite de lua cheia porque, quando não tinha eletricidade, nós íamos para a casa dos tios e aí eu enxergava tudo, eu olhava. Eu até brinco que, quando eu morrer, eu vou sentar na lua e ficar olhando cá para baixo, tudo que eu quiser. (risos)Recolher