Hoje sou considerado mestre, mas se eu for falar dos meus mestres, a primeira é a minha mãe. Ela não te ensina a tocar um instrumento, mas te ensina a reverenciar as coisas, as pessoas, e quando você for tocar um instrumento você leva esse quê de casa, essa educação, um amor, um carinho, uma...Continuar leitura
Hoje sou considerado mestre, mas se eu for falar dos meus mestres, a primeira é a minha mãe. Ela não te ensina a tocar um instrumento, mas te ensina a reverenciar as coisas, as pessoas, e quando você for tocar um instrumento você leva esse quê de casa, essa educação, um amor, um carinho, uma segurança, uma verdade, que você leva pra vida e se reflete no instrumento. Por isso a grande mestra da minha vida é a minha mãe, ela não me ensinou nenhum instrumento, mas tudo que me foi ensinado está dentro dos instrumentos.
Quando eu era pequeno, a gente ia na roça e meus pais plantavam milho, arroz, feijão, melancia... Quando se ia plantar feijão, eles faziam a cova e um vinha com três caroços de feijão e pegava aqueles três caroços e ia jogando em cova em cova, o outro vinha e ia cobrindo a cova, botava ali e cobria. Eu também gostava muito de acompanhar meu pai, porque onde tinha música, onde tinha festa, lá estava ele. Era muito popular. Era cantor, cantava muito, compunha, um grande artista. E até eu gostava muito de andar com ele...Tinha uma lagoa muito perto da nossa casa, lagoas de água doce. Era um lugar meio mágico, encantado, aquelas águas doces, aqueles sons de mata tinham uma coisa de encantaria.
Eu tinha uma tia, a dona Edite, que virou uma segunda mãe também, ela ía de São Luis pra Cururupu. Ela me conheceu e eu tinha oito anos, e veio perguntando se eu quería ir pra cidade pra virar doutor, pra estudar? Eu na empolgação falei que queria e que queria, e o que era brincadeira acabou virando verdade. E a única vez que eu vi o meu pai chorar foi quando eu fui embora. E essa minha tia ela era empregada doméstica numa casa, eu lembro de uma situação de uma prima minha, quer dizer \"Prima\" eu era filho de criação do tio dela, era filho da empregada do tio, aí quando ela me viu, virou e falou: \"E aí cinzento?\" Nossa como eu fiquei triste com aquilo ali. Ou quando eu ía no armazém e o dono atendia todo mundo, e depois de todos falava e você neguinho o que você quer? Depois de atender todo mundo. Essas coisas a gente acha normal na hora, mas o tempo me fez elaborar melhor essas coisas.
Em São Luís demorei um pouco pra me aproximar da cultura, mas em 2 anos, 3 anos, eu via um grupo de Bumba-meu-Boi, via um grupo de tambor de criolla e comecei a achar aquilo meio parecido com minha terra, e escutando espalhados na cidade eu fui me aproximando. Eu morava no quarteirão, numa esquina assim e a escola era na outra esquina e passando por lá, eu escutava o som do berimbau, não sei o que, tinha uma brecha pela janela, eu olhava, via a capoeira, subia na janela pra ver, falava: \"Pô, que negócio interessante, caramba” e tal. Capoeira é isso. Esse meu mestre era um cara negro, chegando da Bahia no Maranhão, então ele não tinha tanto essa raiz maranhense. Então, de uma certa forma, eu também era um pouco essa relação de espelho pra ele. Então, a gente andava muito junto, aprendi muito com ele, andava muito junto. Me apresentou pra muita gente, muitas pessoas, artistas, músicos, diretores de teatro. Ele era mais velho, eu mais garoto, e aquilo e o que mudou os meus caminhos. A capoeira chamou muito a pro profissional. E aí na roda, o instrumento rodava, sobrava um, eu pegava e com isso ía aprendendo...
Essa versatilidade, essa coisa do se vira nos 30 é muito típica dos artistas nordestinos. Por exemplo tinha o cara que era bonequeiro, toca viola, canta, compõe, dança... Faz um monte de coisa ali o mesmo cara, ele é capoeira. Então, tem um pouco essa coisa. E eu trago um pouco essa herança aí, tocar cavaquinho. Isso tudo... foi meio problema pra mim quando eu trabalhei bastante com teatro, que eu fazia teatro e fazia música, então fazia teatro, só que aí tinham que aí quando eu não podía estar e tinham que me substituir, ficava um pouco complicado, porque em uma cena eu estava tocando cavaquinho, na outra estava com violão, na outra no pandeiro, na outra estava no berimbau e na seguinte no tambor, então encontrar alguém com esse perfil era algo um pouco difícil. Isso me levou a focar um pouco mais na música, mas foi pelo teatro que vim pro Rio de Janeiro, viajei pros Estados Unidos para acabar em São Paulo.
Um episódio que me aconteceu em São Paulo foi de um sonho com um amigo que tinha se suicidado e tinha sido uma das coisas que ninguém esperava, foi um choque pra todo mundo, e aí eu tenho um sonho que ele fala que precisava me apresentar uma amiga, uma mulher. Uma mulher negra, de cabelo liso, de azul e profundamente bonita e com um jeito charmoso, convidativo e ele queria muito me apresentar pra ela e eu na hora que olhei, resisti, sabia que não podería me deixar encantar por ela, pois ela era a morte. E se for pra encontrar a morte que seja pra fazê-la dançar.
Voltando as danças da vida, eu não sei como é que seria eu na cidade de São Paulo se eu não tivesse ido para o Morro do Querosene. Eu tinha visto um anúncio em jornal com o Paulo Freire um amigo violeiro e decidimos ir pra lá. As pessoas evitavam ir morar lá, buscavam outros cantos principalmente por conta da violência. Mas o violão e o cavaquinho são cartões de visita, e quando a gente chegou, fui falar com os mais velhos que eram os anciões, a malandragem, todo mundo, vai se envolvendo. E eu fui o primeiro maranhense a ir morar lá, por isso era conhecido com o cônsul do Maranhão, e logo começou a vir mais artistas. Não tem os Novos Baianos? Nós eramos os \"Novos Maranhenses\" Até que a gente começou a sair com a cultura pra rua, e no momento que a gente sai com a cultura pra rua, não tem jeito, a violência tem que sair. E essa festa é o bumba-meu-boi, que acontece até hoje, circula de boca em boca, quando fizeram matéria, espalha, fica muito oba oba, atrapalha o espírito a festa, por isso mantemos nisso dela acontecer tanto que é por isso que até hoje ela está viva.
E agora com décadas de treino, recebi o título de mestre de capoeira, o engraçado é que até tomei rasteira de uma menina na roda de capoeira, porque ela tava vindo pra cima, e eu não querendo acertar ela fui dar um giro e nesse momento ela me deu a rasteira. Quando acabou reconheci que se fosse um mestre jamais teria virado as costas, eu havia subestimado e reconhecendo ali publicamente, e todo mundo parou e os mestres me deram o título de mestre de capoeira nessa roda mesmo. O que eu tenho que fazer? Continuar estudando. Não muda nada, só a responsabilidade que aumentou
E a cultura popular é a promoção desse novo encontro, porque na nossa sociedade o negro encontra com o branco, o branco indo na universidade estudar e se formar doutor e muitas vezes o negro indo limpar banheiro, a cultura popular propõe um outro tipo de encontro, e é a partir do encontro que se transforma, que se quebra o racismo, que se abre os olhos. Pois foi isso minha vida toda, a violência está aí e eu vou deixar de sair com minha cultura?
Não. De forma nenhuma. Eu saío pra rua com minha cultura, e a violência que se retire.Recolher