Projeto Conte sua História
Entrevistado por Gustavo Ribeiro Sanchez
Depoimento de Maria Stela Fortes Barbiere
São Paulo, 18 de maio de 2011
Realização Museu da Pessoa
Depoimento PCSH_HV288
Transcrito por Melina de Moura Marchetti
Revisado por Joice Yumi Matsunaga
P/1 - Pra começar eu queria pedir para você me falar o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - O meu nome completo é Maria Stela Fortes Barbiere, eu nasci em Araraquara em 1965.
P/1 - Certo, e em Araraquara você teve contato com os seus avós? Eles são daqui?
R - Não, meus avós já tinham morrido. Eu tive três tias que eram solteiras e moravam em uma casa lá em Araraquara. Uma delas era bem como minha avó, eu a chamava de tia-avó. E ela foi uma mulher decisiva na minha vida, assim, com quem eu aprendi muito.
P/1 - Conta um pouco dessa sua tia-avó. Que lembranças você tem dela...
R - Essas, essas três tias eram muito divertidas porque as três eram professoras, a tia Conceição era professora de Educação Física teórica, nunca fez um abdominal, só orientava "Dobrem as pernas, levantem os braços", era assim, professora teórica. A tia Lilita era contadora de histórias e professora de Francês e era engraçado porque sempre que ela ia contar história, ela abria um guarda-chuva e cantava girando o guarda-chuva, era uma figura. E a minha avó Maria era professora de Arte, a única professora de Artes que existia em Araraquara, naquela época ela também tocava sanfona, piano e contava histórias da bíblia na hora de eu dormir, assim, que o mar se abria, as histórias do velho testamento. Então foi um universo muito fértil para minha infância conviver com essas três tias. E hoje eu sou artista plástica, contadora de histórias, então foi ali que eu me formei para ser o que eu sou hoje.
P/1 - E os seus pais são de Araraquara, eles são de onde?
R - São de Araraquara. Meu pai era arquiteto, era um homem também que gostava muito de Arte, então sabia muito da vida dos artistas, vivia me mostrando as obras de artistas. E ele queria muito ter sido maestro. Então conhecia muito música, ficava me contando a história das óperas. Era uma infância muito rica, assim, que era cidade do interior, tinha muita liberdade, andava de bicicleta o dia inteiro. E ao mesmo tempo eu tinha uma coisa de ter um mundo interno muito rico e minha mãe respeitava bastante isso. Eu balançava horas e horas numa cadeira de balanço e ficava com uns filmes mentais passando e as pessoas. E aí eu ficava horas e horas nessa cadeira de balanço e minha mãe não se incomodava porque ao mesmo tempo eu era uma criança que tinha muitos amigos, muita alegria. Então as pessoas falavam: "Você não acha estranho ela balançar tantas horas por dia?". E ela falava: "Não!". Então, foi uma infância muito animada, mas muito tranquila ao mesmo tempo e acho que foi muito decisiva na constituição do que eu faço agora na minha vida, das minhas escolhas profissionais.
P/1 - Você falou agora um pouquinho da sua mãe, conta pra gente também sobre a sua mãe.
R - A minha mãe, ela é viva ainda, né. Meu pai morreu já faz muitos anos. A minha mãe, ela é uma figura. Ela tem oitenta e três anos, é uma mulher muito animada que tem uma sabedoria incrível, cozinha muito bem, uma velhinha bem sacudida, dessas assim, que tem o cabelinho branquinho, magrinha, mas é bem animadinha, sabe? E ela morou em Araraquara muitos anos da vida dela, depois ela morou um período, na juventude, em São Paulo e quando casou com o meu pai voltou para Araraquara. Então, ela é uma mulher que viveu muito na fazenda, que tem uma relação com a natureza muito intensa e que cozinha muito. Então na minha infância a gente cozinhava muito, fazia fio de ovos, bolo, papo-de-anjo, vários doces e então, tinha uma riqueza, assim. Eu tenho vários irmãos, só que são mais velhos do que eu, mas nós somos cinco ao todo. Então minha casa era muito animada. Tinha lanche da tarde com mesa posta porque era uma animação, vinham todos os amigos. Era uma vida bem alegre, assim, bem... E Araraquara é uma cidade que tem muitas praças lindas, então, essa coisa de andar de bicicleta, é uma cidade plana, então dava para fazer tudo de bicicleta e tomar banho de enxurrada na praça… Tinha uma vida muito solta assim, sabe? Então acho que foi uma infância, uma adolescência bem legal.
P/1 – Conta pra gente mais, um pouquinho mais desse cotidiano da sua casa. Você falou que eram cinco. Como é que eram as brincadeiras?
R - Nós éramos cinco, minha irmã era a mais velha, a mais velha, estão todos vivos e a gente tem três irmãos entre nós. Quando eu tinha cinco anos, minha irmã já saiu de casa porque era um costume lá, né. A gente fazia o colégio em Araraquara e depois ia estudar fora porque as faculdades normalmente, ou você queria ser dentista, que não foi o caso de nenhum de nós, ou tinham poucas opções. Agora tem muitas, a UNESP tem muitos cursos, mas nessa época não tinha tanto. Você podia fazer Odontologia ou Engenharia e não tinha, por exemplo, Literatura, Letras, nada disso, nessa época. Agora tem, Pedagogia, Letras, tem uma monte de cursos, mas na época não tinha.
Dos meus irmãos, o mais novo é sete ano mais velho do que eu. Então, também com eles eu brincava bastante, com os dois mais velhos, mas logo eles saíram de casa também. Então eu tive um período de filha única. Hoje em dia eu tenho um irmão que é prefeito de Araraquara que mora lá e dois moram aqui, e um mora em Brasília, que faz vídeos e mora em Brasília. Então acho que eu tive uma infância muito rica assim, e esses meus irmãos também, eles moravam todos juntos aqui em São Paulo. Então tinha uma coisa de me levar música, me levar coisa, sabe? Livros que tinham acabado de lançar e me apresentavam um universo muito interessante.
Eu nunca quis morar em São Paulo na verdade. Eu gostava de morar no interior e depois eu me mudei para Campinas porque eu fui fazer Jornalismo, eu queria ser escritora nessa época. No fim eu comecei a fazer arte, comecei a pintar e aí larguei a faculdade de Jornalismo e comecei a fazer um estágio, assim que eu mudei para Campinas, comecei a fazer um estágio numa escola, num sítio que chamava Escola do Sítio, era um lugar muito legal. Era um sítio que tinha um monte de bichos, de árvores, era bem divertido. E eu gostava muito de criança.
Eu não contei uma coisa: eu fui babysitter, com quatorze anos eu era babysitter em Araraquara, era uma coisa que não existia. Um dos meus irmãos mais velhos fez uma cartãozinho para mim: “Deixe suas crianças comigo”. E eu ficava com muitas crianças direto, à tarde, depois da escola. Ganhava meu dinheiro e rebolava um pouco porque eu não sabia lidar com neném. Aí ligava para minha mãe: “Mamãe, o que eu faço? Tô desesperada!”. Mas depois, quando eu fui para Campinas, eu já tinha mais experiência, já tinha trabalhado com vários nenéns. Aí aconteceu uma coisa engraçada, triste, mas engraçada: Uma professora dessa escola na classe na qual eu estagiava. A gente foi levar as crianças no zoológico, eu fiquei tomando conta de uma classe e ela de outra e ela esqueceu uma criança no zoológico. E aí, coitada, ela foi mandada embora... Porque o zoológico era longe, no bosque que é bem distante e estava de noite, a mãe da criança ficou louca da vida, obviamente, foi uma coisa grave, né. E eu assumi a sala dela com dezessete anos e aí eu não tinha ideia do que era ser professora, eu nunca tinha dado aula. Mas eu adore! Foi uma coisa, é uma coisa que faz o maior sentido para minha vida, trabalhar com criança. Aí eu comecei a trabalhar no sítio e contava muito história, cantava, eu brincava na verdade. Aí eu fui conhecendo as professoras na escola da vila que davam assessoria lá. Larguei o Jornalismo porque, na verdade, talvez eu devesse ter entrado em Letras. Jornalismo não era bem o que eu queria. Eu já queria ser artista plástica, mas eu gostava muito de dar aula, aí eu resolvi fazer Pedagogia, mas foi terrível para mim! Eu fui fazer Pedagogia na Unicamp e eu não gostava porque as coisas que as pessoas falavam não correspondiam ao que eu acreditava em Educação. Aí eu cursei três anos de Jornalismo, três anos de Pedagogia e não acabei nenhuma. Não, e aí eu entrei na Pedagogia da Unicamp, mas eu fui ficando muito infeliz porque eu acreditava em uma escola experimental que era naquela época o que acontecia, eu tinha essas referências da Escola da Vila. E aí eu acabei largando a Pedagogia e expus bastante.
Eu fazia intervenção urbana na época, que não era uma coisa muito comum. Pintava poste, muro, tinha um grupo que chamava "Nós no espaço" e morava com umas amigas e tal. E aí um dia uma amiga que morava comigo, que era artista junto comigo desse grupo, me trouxe um artiguinho de jornal que dizia que a Fundação Bienal de São Paulo estava precisando de monitores. Eu não tinha nenhum pré-requisito que estava lá no jornal. Precisava falar uma língua estrangeira e eu não falava; precisava fazer uma faculdade de Arte e Arquitetura e eu não fazia, mas mesmo assim resolvi vir. E aí eu fiz uma entrevista com Tadeu Chiarelli que é um crítico de arte que agora dirige o MAC e ele falou: "Stela, você não tem nenhum pré-requisito, mas eu acho que eu vou te contratar". E aí ele me contratou e eu fiquei trabalhando na área educativa da Bienal e mudei para São Paulo por conta disso. Nessa época, a gente fazia um ano de curso de História da Arte e eu era artista, mas não conhecia tanto Arte Contemporânea, então para mim foi uma maravilha aquilo porque eu aprendi muito, conheci pessoas que até hoje são minhas amigas e se abriu um novo mundo para mim, né.
Aí mudei para São Paulo de repente, não era planejado, tranquei a faculdade pra tristeza da minha mãe que falou: "Minha filha, acaba uma faculdade!". E no fim não acabei nenhuma nunca. Foi uma coisa que ficou assim. Depois de mudar para São Paulo e trabalhar na Bienal, fui monitora da décima nona Bienal. Aí eu já comecei a trabalhar na escola Vera Cruz que é uma escola que tem aqui perto de Pinheiros. Eu fui fazer uma entrevista, também não era formada, mas eles me contrataram também porque eu tinha experiência na Escola do Sítio e tal. E eu estou lá há vinte e cinco anos porque eu sou assessora lá até hoje, eu amo a escola. É engraçado, né, você falar de um lugar, em que você está há vinte e cinco anos e você ama. Mas eu amo. E eu amo as pessoas, o porteiro, a mulher da cozinha, assim, tem uma coisa especial com esse lugar e lá é uma fonte para mim muito rica de contato com as crianças. Eu acho que as crianças e os artistas, eles têm uma relação muito profunda porque eles acreditam nesse território da imaginação, nesse território do impossível. Eles acreditam que possa se realizar e batalham para isso, eles tem urgências do tipo: preciso de um papel vermelho, preciso de uma lã branca. São urgências imponderáveis que só os artistas e as crianças têm. Então eu gosto muito disso, eu me alimento muito, me identifico muito com as crianças pequenas. Eu sempre gostei de trabalhar com as crianças pequenas. Já dei aula em Ensino Fundamental II, Ensino Fundamental I, eu continuo assessorando, né, esse primeiro ciclo. Eu já dei aula em Ensino Médio, mas eu não gosto. Eu gosto dos pequeninhos, de zero a sete, oito anos. E aí na escola eu aprendi muito, muito, eu aprendo muito na escola. Eu aprendo muito com as professoras, com as crianças, é dos lugares em que mais aprendo. É uma gente está sempre pensando e pensando na melhor maneira de fazer e transformando o trabalho, então é um lugar... Eu gosto muito de estar assim, tem uma coisa ética muito profunda. Eu estou lá há vinte e cinco anos, eu nunca tive problema com ninguém porque as pessoas todas estão pensando em fazer melhor seu trabalho. E tem uma coisa muito clara da ética, assim, que eu acho que é impagável, que eu acho que é uma coisa que existe em escola. Não em todas, mas acho que muitos professores têm isso como princípio, como estrutura.
P/1 – Stela, fala um pouco mais pra mim sobre sua vida como artista, porque você contou um pouco lá de Campinas, mas você não contou sobre o começo como artista plástica.
R - Bom, eu como já contei para vocês, eu tinha essa avó na infância que era muito engraçada porque ela era professora de Belas Artes, então ela tinha um jeitinho de ensinar bem caretinha, assim, de cópia da natureza, fidedigna, assim, e eu era péssima para isso. Eu não era aquela que pegava no lápis e saía desenhando, era tudo um pouco troncho, assim. Mas eu acho que eu aprendi muito como ela fazia o ambiente. A casa dela… era muito quintal caipira, assim, sabe? Que tem pé de chuchu com roseira, com jabuticabeira, tudo meio gastinho com parede meio mofada, mas ao mesmo tempo tinha uma coisa viva, sabe, tinha gato, tinha criança, tinha gente mais velha, era uma misturança. Sempre tinha uma bolachinha, um chá, tinha um calor, assim. E eu acho que eu trago muito essa questão do ambiente pra minha vida nos lugares onde eu trabalho, de ter uma atmosfera calorosa, das pessoas serem bem recebidas. Eu acho que eu aprendi muito com a minha avó disso. E lá eu pude fazer muitos experimentos apesar da pedagogia dela não ser essa, eu era supertransgressora e fazia minhas melecas e ela deixava. E a gente tinha uns primos que brincavam, eu acho que a arte nasceu ali. E acho que teve um outro momento que eu… quando eu tinha cinco anos, eu ganhei uma casa de boneca do meu pai que quem fez foi o Seu Joaquim, que era uma português, um homem incrível, era uma grande marceneiro que era muito amigo do meu pai. E era uma casinha mesmo, com janelas, porta, tudo. E aquilo para mim foi um sonho. Me lembro do momento que eu entrei na casinha, a luz laranja que estava no lugar, o cheiro da madeira, assim, é uma lembrança muito forte. E eu sinto que dentro daquela casinha eu vivi muitas experiências artísticas. Fazendo bolo de terra, essas alquimias que criança faz com folha, flor, sabe? E eu sinto que eu tinha prazer naquele momento como o que eu sinto agora fazendo arte. É uma coisa duma ordem parecida, assim. Então, eu sinto que ali surgiu a arte. Eu nunca mais parei de desenhar, pintar, foi uma coisa que sempre fez parte da minha vida. Ficava horas fazendo isso. Quando eu fui para Campinas, eu tive um professor de pintura que chamava Heitor Takahashi que era uma figura bem maluca que dava aula na beira da piscina. E a gente, às vezes, fazia aula de maiô, no sol, era uma coisa bem de outra época, assim. Mas esse grupo de intervenção urbana realmente fez coisas muito legais. Éramos eu, a Olga Guerra e a Fernanda Mendes. A Fernanda depois enveredou para o mundo da literatura e a Olga de certa maneira também, ela é contadora de histórias, mas a gente ainda tem muita afinidade, se vê menos. A Olga mora em Mococa, a Fê mora aqui, mas a gente se vê pouco, mas se gosta muito. E aí foi tendo um ambiente muito interessante porque a gente ia para a casa do Heitor… A Olga fazia Jornalismo, a Fê tinha feito Pedagogia e a gente passava as tardes pintando e depois ia para a rua. E a gente sempre ia para rua pintar quando, ou de madrugada, que não tinha polícia e não tinha ninguém na rua, ou numa hora assim, do jogo da Copa do Mundo, domingo de Páscoa, os horários mais improváveis de ter gente na rua. E a gente fez grandes painéis em fachadas. A gente tanto pintava direto no muro e no poste, como a gente fazia em papéis, impermeabilizava papel Craft e fazia uns painéis com uma beirada de madeira que durava meses e meses porque aquilo ficava impermeabilizado... Aquilo foi bem importante na minha vida. Depois nessa escola que eu trabalhei, na Escola do Sítio, tinha duas amigas da minha irmã que eram mais velhas do que eu e que me ajudaram muito, eram umas mãezonas assim, de vez em quando eu comia na casa delas. Elas eram grandes educadoras e uma delas, a Eveline Borges, que é cenógrafa fez vários cenários do Nóbrega e atualmente dirige a faculdade de design FACAMP. Ela nessa época conhecia vários artistas e eu um dia falei para ela, "olha" eu antes de pensar na Bienal e tudo, eu falei: "Ah! Eu queria ser artista. Eu queria… queria ter um outro professor...". O Heitor era um homem muito legal, mas às vezes, quando bebia, ficava bem doidão, né. Era uma pessoa adorável, mas não podia beber nada que ficava.... E o grupo já estava um pouco se desestruturando.. Aí ela falou assim: “Olha, eu conheço o Guto Lacaz que é um artista plástico, né, que mora aqui em São Paulo. Você quer o telefone dele?”. Eu falei: “Ah, eu quero. O que eu faço?” – perguntei para ela. Ela falou: "Ah, liga para ele, fala que você quer conhecê-lo". Eu liguei pro Guto e falei: "Olha, você dá aula?”. Ele falou: “Não, não dou". Eu falei: "Mas eu queria ter aula com você". Ele falou: "Mas por que comigo?". Eu falei: “Bom, porque você é o único artista que eu conheço em São Paulo". Aí ele resolveu, sei lá o que deu que ele resolveu me dar aula. Então eu fazia assim, eu vinha para São Paulo uma vez por semana, ele me passava uns exercícios, eu voltava para Campinas, fazia os exercícios e voltava na semana seguinte com o exercício pronto para ele me orientar e me passar outros. E nessa época ele foi me apresentando vários artistas contemporâneos que eu não conhecia e me falou: "Olha Stela, eu tenho um amigo que tem uma biblioteca aqui em cima, que é um cara incrível. Ele chama Carlos”. Aí eu falei: “Ai, eu gostaria muito de conhecer”. Ele falou: “Ah, então um dia nós vamos lá”. Aí a Fernanda que morava comigo falou: "Olha Stela, eu comecei essa semana, – Fernanda sempre vinha para São Paulo, ela já tinha morado aqui, enfim… – comecei a ter aula com um cara maravilhoso que chama Fajardo, você não quer ir lá?” Eu falei: “Quero”. Aí quando eu cheguei, era o amigo do Guto que tinha um ateliê em cima do Guto. Aí foi superengraçado porque daí eu fui lá, chamei o Guto, o Guto veio e aí eu comecei a fazer aula com o Fajardo. Então esse vai e vem ficou antes de eu vir ser monitora na Bienal. Aí quando eu vim ser, a coisa já estava muito andada. O Fajardo gostava muito do meu trabalho. Aí eu mandei um portfólio para o Centro Cultural São Paulo. Era o primeiro ano que tinha isso que tem no Centro Cultural São Paulo que são obras escolhidas, esse edital que tem lá, né. Aí eu passei no edital e minha carreira de artista começou. Aí eu comecei a expor em Salão, participei de um panorama do MAM, aí ganhei um prêmio, ganhei outro, e a vida de artista começou. Então eu fazia assim, eu dava, depois que a Bienal acabou, eu dava aula de manhã no Vera Cruz e de tarde eu ficava no ateliê. Eu aqui em São Paulo, em Campinas eu morava com amigas, sempre em república, assim. Aqui em São Paulo eu morava sozinha no apartamento que era da minha família e tinha um irmão que morava lá no começo e eu fazia muitos trabalhos pelo apartamento inteiro. Fazia umas instalações e esse meu irmão detestava, no fim ele saiu de lá e eu fiquei. E aí comecei a expor regularmente, expus fora do Brasil e continuei trabalhando no Vera Cruz.
Depois eu comecei a dar aula numas oficinas culturais do Estado. Então eu dava aula na oficina Oswald de Andrade que na época chamava Três Rios e depois passou a chamar Oswald de Andrade. Lá eu dei aula bastante tempo, fiz aula de formação para professores e aula para criança. Depois eu dei aula no Tatuapé, em Itaquera, no Belenzinho, todos os lugares em que tinha oficinas culturais eu fui trabalhar. E paralelamente a isso ia levando o meu trabalho, mas depois eu casei. Casei com um percussionista que fazia vídeos. Aí foi um momento superimportante para mim de aproximação com a música. Ele era do Bumba-meu-boi do Morro do Querosene. Eu frequentei muito o Bumba-meu-boi. No Vera Cruz, tanto em Campinas como no Vera Cruz, eu contava muitas histórias. Por causa dessa coisa da cadeira de balanço, eu tinha muita facilidade de amarrar os filmes que eu enxergava. Então as história que eu ia contando, não era o que eu tinha decorado dos livros, era dos filmes que eu via, era como se eu tivesse vivido aquilo. Então as professoras juntavam as crianças e eu ia contando história. E aí contar história também virou uma coisa forte porque aí eu podia contar e eu adorava cantar. Aí contei história muito tempo com o Tião do Morro do Querosene, contava história do bumba-meu-boi, entrava dentro do boi, depois saía do boi, contava história... Aí eu conheci a Regina Machado, que é uma grande contadora de histórias. Foi engraçado porque uma professora do Vera Cruz sabendo muito que eu gostava de contar histórias, me deu uma fitinha de alguém contando história, que eu adorei. Depois eu fui na casa da Pel que é uma grande educadora e que tem uma escola em Carapicuíba para assistir a Regina Machado contando história. E aí eu falei para ela que eu só tinha me emocionado daquele jeito com ela e com aquela fitinha. Ela falou: "Sou eu na fitinha". Aí eu comecei a ter aula com ela e comecei a contar história junto com ela. Depois gente montou um grupo que ela era coordenadora. Eu fiquei um tempo no começo desse grupo… E aí eu contava história em muitos lugares, no SESCs, no interior, em teatros, no Brincante, em vários lugares. E com a Regina eu entrei para trabalhar no CEDAC, que é uma ONG maravilhosa que funciona até hoje, que faz formação de professores em vários lugares do Brasil, num programa que se chama “Escola que vai”. Então fui pro interior do Pará, pro interior do Maranhão. Nessa época eu tinha já meus dois filhos, o Léo que é o meu filho mais velho, que hoje tem dezessete anos, e a Nina que é minha filha mais nova, que tem quinze. Mas foi muito importante para mim, viajar pelo Brasil, porque eu ia assim, para a Serra Pelada, para Marabá, para Açailândia no interior do Maranhão, interior o do Espírito Santo, interior de Minas. Foi importante conhecer o Brasil, né. Eu já conhecia bem São Paulo porque eu já tinha andado por São Miguel Paulista, por vários bairros de São Paulo.... e era muito diferente a realidade, eu estava acostumada com uma realidade… Eu dei aula na Vila Mazzei, na escola pública, tinha um experiência grande de escola particular e pública, oficina cultural e tudo. Mas o repertório das pessoas eram outros. Eu não podia adequar o que eu fazia aqui ao que as pessoas tinham de realidade lá. A experiência estética, por um lado, era retumbante porque era no meio da floresta. Às vezes, do lado da escola, tinha uma cachoeira gigantesca, maravilhosa, mas não tinha um museu, não tinha galeria, era outra referência. Claro que tinha experiência estética até mais rica que a nossa, mas de outra ordem.
Então no CEDAC que eu acho que eu aprendi muito a valorizar as potências locais, eu sempre perguntava para as pessoas quando eu chegava nas cidades o que era mais lindo na cidades delas e eu ia com a classe inteira lá. Então a gente desenhou no meio da floresta, fez piquenique, desenhamos na cachoeira, fizemos pinturas dentro da igreja. A gente sempre estudava aquela potência natural ou arquitetônica ou cultural da região. Por outro lado eu fui percebendo que o diálogo precisava ser com cada grupo, que eu precisava planejar a aula para cada realidade. Aí a gente percebeu também que, na verdade, os professores precisavam acreditar que aquilo que a gente estava falando era possível que eles fizessem com as crianças naquela sala de aula, com aquele número de crianças. Então eu dava aula para os alunos dessas professoras para elas verem que era possível com quarenta, quarenta e duas crianças na sala. Porque era mesmo possível, mas precisava de uma certa organização, de um planejamento e de propostas que fossem significativas para essas crianças, que eles gostassem, que eles se envolvessem, que fizesse sentido para eles. Eu fiquei sete anos nesse projeto. No meio desse caminho entre o Vera Cruz, oficinas culturais e CEDAC, eu fui trabalhar no Instituto Tomie Ohtake. E estou lá já vai fazer dez ano e o instituto tinha seis meses. Num sei se vocês sabem, o Instituto Tomie Ohtake é um Instituto de Arte Contemporânea, Arquitetura e Design, que na época tinha uma senhora voluntária que fazia um trabalho educativo, mas que era bem embrionário e não tinha um setor educativo. E aí eu fui, fiquei um pouco preocupada, eu nunca tinha trabalhado em museu assim, mas, eu tinha trabalhado em Campinas com a Malu Neves que é uma grande educadora no MAC, mas como estagiária dela, eu nunca tinha dirigido um museu, não sabia muito bem como fazer isso, por onde ir, como é que eu organizaria isso. Eu tinha bastante experiência de gestão de sala de aula, mas não de museu. Comecei a trabalhar lá, comecei o setor de educativo, num tinha nada, pia, mesa, nada. Era um lugar com carpete que não é adequado para ter aula de arte. Aí eu tirei o carpete, começamos a montar. No começo éramos eu e um assistente só. A gente tinha que implorar para as pessoas irem nas coisas que a gente fazia porque o Instituto era desconhecido, então você dava uma palestra, apareciam três pessoas. Aí você ligava para mãe, para avó, pro primo, pro amigo porque não tinha ninguém no começo. Aí o trabalho foi se estruturando, a gente foi criando uma rede de relações, de parcerias, de patrocínios. Uma rede com os artistas também. Atualmente o Instituto tem muita procura, a gente tem muitos cursos, tem uma outra densidade, né, no trabalho. Aí eu me separei do meu primeiro marido e a vida de artista ficou um pouco mais difícil porque eu tinha que sustentar meus filhos e realmente a biografia da gente também vai se costurando com a vida profissional. Então eu precisava dar conta de sustentar esses meninos e continuei sendo artista, mas não expunha tanto quanto expunha antes porque não era mais uma dedicação exclusiva. Mas continuei contando história, continuei viajando pelo CEDAC, mas era uma loucura porque eu viajava pelo CEDAC fim de semana, quando eu voltava não tinha fim de semana para descansar, já dava aula no Vera Cruz, ia pro Tomie Ohtake, almoçava no carro. Uma vida louca que está até hoje um pouco assim. E aí fui aprendendo muito com o Agnaldo Farias que é o curador que me convidou, que já tinha escrito sobre o meu trabalho e o Ricardo Ohtake que era o presidente do Instituto Tomie Ohtake. Eles foram me ajudando também a estruturar o educativo, eu tinha muita experiência de diversidade de vários públicos porque eu tinha trabalhado em vários lugares em São Paulo, em vários lugares do Brasil. Eu fiz um projeto que eu faço há muitos anos já, com espaço UNIBANCO de cinema junto com a Patrícia Durães que é uma das coordenadoras lá. A gente fazia o “Escola no Cinema”, que eu dava uma assessoria para criar projetos e oficinas que discutissem o assunto que um determinado filme estava tratando. Então a gente fazia oficinas para cinco mil crianças e grupos de cem que iam assistir os filmes com o saguão funcionando, com outros filmes passando… E era um negócio incrível porque era superorganizado, você não sentia que era aquela criançada toda. E superconcentrado. E isso também ajudou muito para o Instituto depois, porque eu tinha uma visão de logística muito boa por ter feito muita conta de quantos entram nessa sala, quantos entram naquela, que horas que sai para o saguão não ficar lotado, quem vai para aquela, quem vai para outra, quantos grupos, quantos educadores eu preciso para quantos nos grupos. Isso me deu muita experiência, assim, de logística mesmo, de dinâmica de guerra, assim, eu falo. Porque tinha umas coisas de um time acelerado e que as coisas precisam acontecer calmamente, não nessa aceleração… Então quando eu cheguei no Instituto eu tinha uma experiência bem diversa. Isso me ajudou bastante.
P/1 - É claro, assim, que não é a primeira vez que você pensa a sua história porque é muito fundo. Mas, para você, qual o espaço que ocupa trabalhar com isso? A importância do trabalho na sua vida?
R - Olha, é tão orgânico para mim. É engraçado que atualmente, depois eu casei de novo com um autor ilustrador que chama Fernando Vilela. E eu nunca tinha feito livro e ele falava: "Porque que você não faz livros das história que você conta? Eu falava: “Ai não”. Eu queria ser escritora desde a adolescência, né. E aí eu comecei a escrever os livros e ele falava assim: “Engraçado, você escreve tão fácil!”. E eu não escrevo fácil texto teórico, mas as histórias sim, porque as histórias são como, sabe quando você vai contar para um amigo seu algo que você viveu? Eu não conto a literatura, eu conto uma coisa que eu vivi, só que vivi internamente, eu não vivi de verdade, mas… Eu vou falar uma coisa que parece estranha, mas para mim é de verdade. As experiências que eu vivo internamente são tão fortes quanto as que eu vivo externamente. Então, por exemplo, eu não posso assistir um filme muito violento porque aquilo é como se eu tivesse vivido, aquilo fica murmurando dentro de mim uma semana. Eu não seguro a onda, é muito, muito violento para mim. Então essa lida com as imagens, acho que ela tem uma origem muito similar, tanto da conversa com a literatura porque eu acho que a conversa da literatura comigo e com a memória e com a história, ela não é uma conversa da palavra, a palavra é uma consequência. Ela é uma conversa da imagem. Então, eu tenho uma relação com a memória muito forte, né. O Aristóteles falava que a imaginação vem da mesma região da alma que a memória. E eu sinto totalmente isso, que vem exatamente do mesmo lugar porque para mim são coisas contíguas, assim, que ficam juntas, sabe, a imaginação e a memória. Então uma alimenta a outra. Essa coisa das histórias, é mais fácil para mim, muito mais fácil do que eu dar uma palestra, por exemplo, eu sofro para dar uma palestra. Claro, eu sofro também para contar uma história para um monte de gente na Sala São Paulo, por exemplo, mas para vocês aqui eu não sofro. Então eu acho que eu tenho essa facilidade de contar história porque eu te conto uma coisa que eu vivi, não é uma coisa que eu li. Porque daí já vai para a ordem da experiência, entendeu?
P/1 - Eu posso te pedir para contar uma história?
R - Que história que você quer?
P/1 - Ah!, não sei. Acho que vou pedir para você selecionar, mas uma que seja emblemática para você porque eu acho que faz muito sentido dentro da sua trajetória.
R - Ai meu Deus! Que história que vou contar? Ah, eu acho que vou contar uma que eu acho que é legal. Acho que vocês vão gostar.
Era uma vez um homem que ele tinha uma plantação de peras. E ele cuidava muito das peras. Era uma plantação que já tinha vindo da família, dos pais, dos avós e com aquela plantação de peras, ele sustentava o pai dele velhinho, a mãe dele que era cega e a mulher dele. A mulher dele ajudava, mas ele sustentava todo mundo com essa plantação de pera. Acontece que um dia teve uma tempestade e choveu pedra, as peras ficaram supermachucadas. Ele ficou mal, coitado. Então ele tinha que ir para o mercado para levar as peras, que todos os dias as pessoas que vendiam as peras dele ficavam esperando. E só deu três peras boas, que não se machucaram com a chuva de pedra. Aí, ele pegou as três peras, meio desanimado falou para a mulher dele:
– Olha, eu vou ver o que eu consigo com essas três peras. Aqui não tem nada!
– Tá bom, então vai, quem sabe você consegue alguma coisa.
Aí ele foi andando, foi andando numa estrada de terra que era a estrada que leva até a cidade. Quando ele olhou para trás, tinha um velhinho andando atrás dele. Um velhinho andando bem lento, arrastando o pé. Ele achou o velhinho com uma cara tão boa e sentou na sombra de uma árvore esperando o velhinho chegar, porque o velhinho estava bem longe. Aí demorou, o velhinho chegou. Aí ele falou:
– O senhor quer uma pera?
O velhinho falou:
– Quero.
Aí sentou na sombra da árvore com ele e os dois começaram a conversar. E eles eram bons de prosa. Contaram a vida inteira, contaram os detalhes da vida. O velhinho contou uma porção de coisas e foi comendo aquela pera devagar para render. Quando acabou aquela pera, ele falou assim:
– O senhor quer outra pera?
Ele falou:
– Quero.
E aí a conversa foi. Comeu outra pera e o dia foi passando. Eu sei que quando chegou já no fim da tarde, que ele olhou para o velhinho, falou assim:
– Olha, eu não vou poder fazer nada com essa pera. O senhor já comeu as outras duas, quer essa?
Aí o velhinho falou:
– Eu quero, mas eu vou te dizer uma coisa: eu sou um mago, e eu vou poder realizar um desejo seu. Porque você é um homem muito generoso. Você deu as únicas peras que você tinha. Eu gostei muito de você, eu vou realizar um desejo seu. Só que é um só, não é que nem os outros magos que são três. É um desejo só.
Ele ficou numa animação que ele já ia falar o desejo. Aí o velhinho falou:
– Opa lá! Não vai falar o desejo agora. Porque é um desejo só, você tem que pensar bastante. Você volta para a sua casa e daqui a sete dias eu vou lá.
Bom, ele voltou para casa, mas ele estava meio desconfiado, num sabia se aquilo era verdade. Ao mesmo tempo ele estava nervoso, estava feliz e ansioso, ele estava que não se aguentava. Quando ele chegou, a mulher dele falou assim:
– Ué, você veio sem nada?
– Ai mulher, eu preciso te contar um negócio…
E aí contou toda a história para ela. Primeiro ela ficou muito zangada e falou:
– Escuta! Você voltou para casa sem nada! Onde é que você está com a cabeça?
– Mas foi tão bom conhecer aquele homem. Quem sabe mesmo, ele vai realizar um desejo meu?
Aí ele falou:
– Ai, mas eu não sei o que eu peço…
A mulher que era louca para ter filho e não conseguia de jeito nenhum... Adivinha, né, o que que ela pediu. Ela falou assim:
– Ai meu amor, pede um filho! Um filho vai ser uma coisa maravilhosa!
Aí ele falou:
– Um filho? Será? É… pode ser bom um filho.
Aí depois ele foi andando, falou assim:
– Ai, mulher é muito sentimental. Vou perguntar para minha mãe, porque apesar de ser mulher, é mais velha. Quem sabe ela me fala um bom pedido.
Aí ele contou toda a história para a mãe. Aí falou:
– Mãe, o que você acha que eu peço, ein?
A mãe ficou pensando… Falou assim:
– Ai meu filho, pede minha vista de volta.
Aí ele falou assim:
– Nossa! É mesmo um bom pedido, mãe!
– Filho, se pedir a minha vista de volta, eu vou pode enrolar as peras com um papelzinho, nunca mais vais ter esse negócio de chuva de pedra. Vou ajudar sua mulher com o serviço da casa e você não vai mais ter que se preocupar... Vou fazer tudo, meu filho. Eu com a vista de volta vou ser uma beleza.
E ele foi falar com o pai porque o pai é um homem e velho, sábio, ele sabe das coisas. Ele vai saber fazer o melhor pedido. Ele chegou na varanda e o pai dele estava na cadeira de balanço. Aí ele falou:
– Pai!
O pai dele falou:
– Hã?
Pai, aconteceu isso, isso e isso e foi contando e o pai dele nem se mexia e só ia balançando, balançando de olho fechado, ouvindo, ouvindo, quieto. Ele acabou de falar e o pai continuou balançando de olho fechado, quieto. Depois de um tempo o pai deu um suspiro e falou:
– Pede ouro meu filho! Pede ouro! Porque o ouro resolve tudo. Ouro opera a vista da sua mãe, cura a sua mãe. Ouro faz um tratamento na sua mulher e ela tem filho. E ainda você contrata uma equipe para enrolar essa peraiada aqui. Pede ouro meu filho!
Bom, ele ficou para morrer, ele não sabia o que pedir. Achava que a mãe tinha razão, depois achava que a mulher que tinha razão, depois achava que o pai que tinha razão e ao mesmo tempo ele não sabia o que pedir porque era o desejo de cada um e o desejo dele. Ele ficou numa crise existencial. A mulher fez uma sopa rala, ele não tomou. No dia seguinte ele não conseguia trabalhar. Enfim, ele ficou transtornado. Eu sei que os sete dias passaram – para ele pareceu que foram anos – mas passaram rapidamente. E logo de manhã cedinho do sétimo dia bateram à porta. Quando ele abriu era o velhinho. Aí ele falou para o velhinho:
– O senhor senta aqui, toma um café.
Deu lá um cafezinho ralo para o velhinho. E começou a falar da plantação de pera e explicar que o bisavô comprou e que o tataravô tinha também uma plantação em não sei aonde. Falava feito um louco, uma metralhadora. E o velhinho uma hora se encheu e falou assim:
– Chega dessa falação! Você não vai me fazer o pedido?
Aí ele falou assim:
– Ai, eu não sei se eu estou preparado...
Ele falou:
–Ai não! Eu vim aqui hoje para resolver esse caso. Você me pede agora esse negócio porque se não sua vez passou.
Aí ele ficou pensando, pensando e falou assim:
– Tem que fazer agora mesmo?
Ele falou:
– Tem que fazer agora mesmo.
– Então tá bom: eu quero que minha mãe veja meu filho deitado num berço de ouro.
E aí o desejo dele foi realizado. E até hoje ele vive muito feliz com um filho, a mãe enxergando e muito ouro.
P/1 – (risos) Então só vou te fazer uma última pergunta e a gente marca uma outra oportunidade para você, tá, porque eu acho que a gente fez correndo. Mas acho que para encerrar, a gente tem uma última pergunta que normalmente a gente faz para a pessoa, que é: como é que foi para você refletir sobre a sua própria história?
R - Eu acho que não contei uma coisa só da minha vida que eu acho que talvez seja importante, que eu sou hoje curadora da Bienal. Então isso é uma coisa importante na minha história porque fecha um ciclo. Eu sou, eu comecei como curadora da vigésima nona e eu fui monitora da décima nona, então tem aí uma coisa simbólica para mim. É engraçado porque refletir sobre a minha vida como você está perguntando. Eu recentemente fiz uma palestra no Centro Universitário Maria Antônia, sobre a minha trajetória. Eu tive que preparar, então tive que vasculhar fotos, achar fotos da casa da minha avó. Era uma coisa da trajetória profissional, mas eu não tinha como falar da trajetória profissional sem falar dessa avó que foi uma referência como professora, como ambiente, como... Eu acho que a nossa biografia é fundante do que a gente é. O Benjamim fala que: "Em cada gesto nosso está contida toda a nossa biografia!”. Por mais que a gente negue, ela esta na nossa circulação, está no nosso gene, está no que a gente é. Então, eu acho que investigar a própria história é um manancial de possibilidades. Eu acho que é uma coisa muito rica para a gente retomar… aspectos da nossa identidade que ficaram esquecidos, porque eu acho que a identidade é algo mutante, né, a identidade não é estável. A identidade é algo que vai se transformando com a nossa vida, com as pessoas que a gente conhece, com os aprendizados que a gente tem, com as experiências que a gente vive. E eu sinto que revisitar a própria história é, é um deslocamento que é importante para a gente recolocar, às vezes, questões que para nós são essenciais que foram se perdendo com o tempo, ou para reconhecer o quanto que a gente se transformou no decorrer do tempo. Eu acho que a gente precisa procurar ser feliz todo dia para que a memória seja uma coisa boa, né? Fico vendo as rugas das pessoas que a gente encontra quando são bem velhinhas. Elas vão ficando com a marca das expressões que elas mais fizeram, né. Então se elas riram muito, elas têm a marca do riso. Se elas foram emburradas, elas têm uma marca sisuda. E eu acho que é com a vida também. Acho que a gente vai tendo uma trajetória do que a gente vai alimentando. E acho que se a gente alimenta o sonho, alimenta o imaginário, alimenta a alegria, a gargalhada, isso se espalha também. Então acho que de vez em quando a gente precisa revisitar a própria vida para retomar e rever em que lugar você está. Acho que é isso.
Recolher