Projeto Ponto de Cultura
Depoimento de Severino José de Albuquerque
Entrevistado por Thiago Majolo e Caroline Pitta
São Paulo, 11/03/2010
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: PC_MA_HV250
Revisado por Natália Ártico Tozo
P/1 – Severino, eu quero que você fale primeiro seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Severino José de Albuquerque, nasci em 23 de agosto de 1965.
P/1 – Onde?
R – Na cidade de Palmares, Pernambuco.
P/1 – Eu queria que a gente voltasse um pouco e falasse o nome dos seus pais e o que eles fazem ou faziam se são falecidos.
R – Meu pai é José Martiniano de Albuquerque, um trabalhador rural. Benta Maria da Conceição, minha mãe, do lar.
P/1 – Eles são falecidos ou vivos?
R – Falecidos.
P/1 – Você sabe a história deles? Como eles chegaram na terra... Eles eram de Palmares também?
R – Eram. A história deles eu não sei. Só de quando eu comecei a entender de gente, aí foi que eu comecei a ver em que ele trabalhava. Essas coisas assim.
P/1 – O que ele plantava?
R – Na roça mesmo, mandioca, essas coisas. Uns chamam de mandioca, outros chamam de macaxeira... Cana. Trabalhava no canavial, trabalhava com gado, com roça também, eram duas coisas que ele fazia.
P/1 – E era terra dele ou era terra...
R – Dos outros.
P/1 – E seus pais faleceram lá em Palmares ou eles vieram pra...
R – Faleceram lá. Com dezessete dias que a minha avó morreu, morreu minha mãe. Com cinco anos que morreu minha mãe, morreu meu pai. Depois de cinco anos que morreu meu pai, mataram um irmão meu. Aí, de lá pra cá, eu vim pra São Paulo.
P/1 – Eram quantos irmãos, Severino?
R – Eram quatro. Três do mesmo pai e um de pai diferente.
P/1 – O seu irmão falecido, foi por briga?
R – É. Briga normal entre ele e outra pessoa.
P/1 – Você sabe qual é a causa? Teve alguma causa específica?
R – Por mulher. Problema de mulher. Acabou...
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Depoimento de Severino José de Albuquerque
Entrevistado por Thiago Majolo e Caroline Pitta
São Paulo, 11/03/2010
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: PC_MA_HV250
Revisado por Natália Ártico Tozo
P/1 – Severino, eu quero que você fale primeiro seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Severino José de Albuquerque, nasci em 23 de agosto de 1965.
P/1 – Onde?
R – Na cidade de Palmares, Pernambuco.
P/1 – Eu queria que a gente voltasse um pouco e falasse o nome dos seus pais e o que eles fazem ou faziam se são falecidos.
R – Meu pai é José Martiniano de Albuquerque, um trabalhador rural. Benta Maria da Conceição, minha mãe, do lar.
P/1 – Eles são falecidos ou vivos?
R – Falecidos.
P/1 – Você sabe a história deles? Como eles chegaram na terra... Eles eram de Palmares também?
R – Eram. A história deles eu não sei. Só de quando eu comecei a entender de gente, aí foi que eu comecei a ver em que ele trabalhava. Essas coisas assim.
P/1 – O que ele plantava?
R – Na roça mesmo, mandioca, essas coisas. Uns chamam de mandioca, outros chamam de macaxeira... Cana. Trabalhava no canavial, trabalhava com gado, com roça também, eram duas coisas que ele fazia.
P/1 – E era terra dele ou era terra...
R – Dos outros.
P/1 – E seus pais faleceram lá em Palmares ou eles vieram pra...
R – Faleceram lá. Com dezessete dias que a minha avó morreu, morreu minha mãe. Com cinco anos que morreu minha mãe, morreu meu pai. Depois de cinco anos que morreu meu pai, mataram um irmão meu. Aí, de lá pra cá, eu vim pra São Paulo.
P/1 – Eram quantos irmãos, Severino?
R – Eram quatro. Três do mesmo pai e um de pai diferente.
P/1 – O seu irmão falecido, foi por briga?
R – É. Briga normal entre ele e outra pessoa.
P/1 – Você sabe qual é a causa? Teve alguma causa específica?
R – Por mulher. Problema de mulher. Acabou discutindo ele com outra pessoa e a pessoa acabou esfaqueando ele.
P/1 – Você tinha quantos anos, Severino?
R – Vinte anos.
P/1 – Então, vamos voltar um pouquinho lá na sua infância. Como era Palmares quando você era pequeno?
R – Palmares é uma cidade grande, eu não sei quantos mil habitantes, porque na época eu não estudava, mas lá mexe com canavial, comércio, tem aquelas usinas de cana, Catende, Santo André, Central Barreiros. Lá, a cada seis meses, sete meses, o pessoal vive bem, mas depois começa a situação difícil pelo fato de ser inverno, não tem serviço. Foi uma das coisas que me fez vir a São Paulo. Aí eu já tinha família, já comecei a namorar na época. Foi tempo que arrumei essa pessoa, gostei dessa pessoa e ficamos namorando. Eu falei pra ela que eu precisava dar uma vida melhor pra ela e um filho que ela tinha, que é esse Felipe, que é adotado. Vim aqui pra São Paulo, comecei a trabalhar e estamos aí na batalha.
P/1 – Só pra gente entender um pouco mais a sua infância: quando você era pequeno você ia pra roça com o seu pai, não ia? Como que era isso?
R – Ia. Ele plantava umas manivas, nós chamamos de maniva, que é de onde sai a mandioca. Ele fazia aquelas covas, plantava maniva ali, nasciam. Depois de um tempo, eles iam lavrar, limpar, arrumar mais a cova, quando era depois dela ter nascido, chega mais uma terrinha. Daí depois ia lá, arrancava, fazia farinha, carregava nos cavalos, os caçuás carregavam as mandiocas. Lá rapava a mandioca e colocava em uma prensa, depois jogava no forno e começava a espalhar e mexer com rodo até a farinha sair pronta. Foi o que eu alcancei dele. Depois ele mudou de profissão, foi trabalhar com gado, com carroça, tinha umas rodas... Inclusive, em alguns museus ainda tem umas rodas de madeira com umas talisquinhas no meio, de madeira, e dois bois puxavam essa carroça; ele trabalhava com aquilo e eu andava com ele na carroça. Isso eu ainda me lembro.
P/1 – O que você fazia? Qual era a sua funçãozinha quando você era pequeno?
R – Era ficar na frente dos bois. Ele saía carregando e eu com a vara chamando o boi e o boi me seguia, eu na frente. Quando ele mandava parar: “Para aí”, eu parava. Colocava a vara na frente do boi, colocava a mão, pequeno. Tanto é que depois de grande trabalhei na mesma função. Depois que eu cheguei aqui... Aí eu vim pra cá. Depois que eu vim aqui, eu comecei trabalhando de servente, eu já estava com os meus 22, 23 anos, por aí. Fui melhorando, melhorando, tomando informação com A, com B. Fui melhorando, fui melhorando. Aí trabalhei pela agência, não sabia o que era agência; depois o pessoal foi explicando pra mim o que era, como que funcionava, que o bom seria eu ser efetivado pela própria empresa, não por uma agência. Eu fui tomando informação. Deu muitas vezes vontade de voltar a estudar, mas o serviço não deixava, devido ao horário. Até que um dia coloquei na mente de trabalhar como segurança, devido à altura, eu tinha altura, estrutura. Falaram-me que eu tinha que fazer o curso; como eu tinha a quinta série e eles aceitavam até a quarta série, eu tinha a quinta e falei: “Então, eu vou arriscar”. Fui, fiz a prova, fiquei ansioso... Tudo com policial, delegado aposentado, que é instrutor. Eu fui tomando informação e mais informação como que era e cheguei a fazer essa prova; com cinco eu passava na prova e só uma eu tirei 6,5, as outras foram tudo 7,5, 8,5 e 9,5. Eu cheguei em casa feliz da vida porque tinha passado na prova, e saí com esse canhoto do diploma que eu ia receber e com esse canhoto eu arrumei emprego em quinze dias, eu arrumei emprego assim que eu cheguei a São Paulo. Aí comecei andando, fui à primeira empresa, não aceitou. A segunda, não aceitou; isso no mesmo bairro, lá na Barra Funda, embaixo da Água Branca. Quando fui chegando ao final do quarteirão, tinha uma empresa conhecida por Gold Serviços de Segurança; ficharam-me, eu trabalhei nela quase dez anos, aí ela faliu. Eu voltei pra outra empresa, fui procurar outra empresa, na qual estou trabalhando faz cinco anos. E estamos levando a vida aí. Continuo nela até hoje. Estou levando.
P/1 – Você falou que estudou até a quinta série, como é que era esse estudo lá em Palmares? Conta um pouco...
R – Bem, na verdade, quando eu falo de Palmares, porque eu nasci lá, mas aí, a cinco quilômetros, sete quilômetros, é onde fica uma cidade chamada Água Preta; cidade pequena, o começo da rua aqui, o final... Rua direto, só tem umas casinhas do lado. Você entra lá, sai cá, entra aqui, sai lá. Lá, no caso, eu mexia com cana, com automóvel das usinas; seis meses trabalhava, seis meses ficava parado, comendo o que você ganhou e economizou durante o período que você estava trabalhando registrado. Depois fiquei trabalhando de servente de pedreiro, quando aparecia um dia, dois, por ali naquelas parcelas. Com cana também, porque a cana que foi cortada no verão pra fazer o açúcar, no inverno precisava adubar aquela que foi cortada, porque saiam outras raízes, aí precisava adubar, precisava arar a terra, fazer toda a movimentação, preparar a terra pra outro plantio. E a minha vida era essa, trabalhar com gado, com animal, cambitando cana, não sei se vocês têm conhecimento disso; você coloca, o animal tá aqui, coloca uma cangalha, na cangalha são quatro cambitos, dois de um lado, dois de outro, você vai colocando a cana por toneladas e colocando pro caminhão vir pegar. Eu fazia essa... Uma hora eu estava em um, outra hora eu estava em outro. Se você quer ter ideia, eu trabalhei tanto, tanto, que hoje eu olho para as minhas mãos e só vejo calo, porque faz mesmo, mas lá, a cor do meu pé, do solado do pé era da cor do seu sapato, preto. Hoje, aqui não. Hoje eu encontrei uma melhora, mas em compensação as injustiças são demais. Mas trabalhei muito, enquanto o caminhão... Eu trabalhava com animal cambitando cana. Quando o caminhão chegava pra carregar, eu deixava o animal parado ali no local e ia carregar o caminhão. Eu ganhava dos dois lados pra manter a família, porque eu já estava casado. Eu já estou no segundo casamento. Aí fui levando, fui levando, e chegou a época de eu vir aqui pra São Paulo, que foi onde eu vi que era melhor pra mim.
P/1 – A escola era nessa Água o quê?
R – Água Preta.
P/1 – Água Preta ou era em...
R – A escola era em Água Preta. O colégio que eu estudava era Padre Francisco Geraedts.
P/1 – Vocês iam a pé?
R – A pé. Era pertinho, tudo pertinho do centro da cidade. Tinha até a oitava série, até a oitava série você estudava nesse colégio; depois, você ia pra faculdade, que aí a faculdade já ficava em Palmares.
P/1 – Mas você morava em Palmares e ia a pé até Água Preta?
R – Não. Eu morava em Água Preta. Eu nasci em Palmares e morei em Água Preta. Lá é negócio assim, de comércio, olaria, que faz tijolo, olaria que faz louça de barro, bloco de cimento também eles faziam, tudo ali no centro.
P/1 – Qual o nome dos seus irmãos?
R – Meus irmãos eram Amaro José de Albuquerque e José Martiniano de Albuquerque; esse está vivo, tem uma família aqui no Parque das Américas, criança deficiente, que o pessoal da assistência social é que cuida dos filhinhos dele. Ele tem três filhos, mas ele só come com... Quando ele abre a boca ou respira, aí a gente solta a comida na boca dele. Mas ele não consegue comer. Está trabalhando de servente de pedreiro, agora parou por motivo de ser pouco, não dá pra ele viver porque ele ganha 500 “conto” e paga 300 de aluguel. Às vezes eu vou e ajudo, ele vem aqui na associação, arrumo uma cesta básica pra ele. Às vezes algum vereador arruma 50 “contos”, 100 “conto” pra ele. É um caso à parte que é muito delicado. Pra tomar água, quando ele faz “Ah”, aí você solta a água. Quando ele fala “B” você solta a comida. E a própria mãe, que é esposa do meu irmão, não sabe cuidar dele, a própria mãe não sabe cuidar. Ela faz o básico, mas ele só se dá bem quando está com ele. Às vezes, ele tem que deixar de trabalhar pra ficar com o moleque e isso as empresas não aceitam, é uma situação muito delicada. O pessoal de Mauá, assistência social, já tem algumas informações, procura ele, médicos têm procurado ele. Ele está até melhorzinho, ultimamente você vê que o sorriso do menino está outro. Assim, quando meu irmão começa a brincar com ele, ele chega a rir, mas só sabe brincar de um jeito agressivo. Já está ficando bem melhor porque os médicos deram alguns remédios, aí acalma ele, o deixa bem calminho. Nós estamos levando aí.
P/1 – E os outros dois irmãos você não falou, tem mais dois. Eram quatro, né?
R – É. É verdade. Aparecida Maria de Albuquerque é minha irmã, também está aqui em São Paulo, está casada com o senhor Arlindo, tem três filhos, três netos. Essa era encostada a mim. Depois dela tem esse irmão que eu te falei e o que morreu, só.
P/1 – O mais velho é?
R – O mais velho sou eu.
P/1 – Você mesmo. E como era na infância a convivência entre irmãos, brincadeiras?
R – Ah, rapaz, essas brincadeiras aí eu vou te falar, é coisa séria. Não sei, eu acho que vocês não têm esse conhecimento, mas eu tenho. Pode falar tudo mesmo, então vou falar. Quando meu pai saía pra trabalhar, ele deixava a gente só em casa. Nessas alturas, minha mãe me deixava, minha mãe e minha avó, eu pequeno, em torno de quatro anos, já engatinhando. Ele saía pra trabalhar e a gente ficava lá sob a responsabilidade da minha mãe.
P/1 – Quer parar um pouco?
R – Dá pra levar. Aí foi tempo que a minha mãe morreu, minha avó, e meu pai até então ficou sozinho. Ele aconselhava a gente pra gente não sair de casa, buscava água naqueles poços – aqui a gente chama de fonte, lá a gente chama de cacimba. A gente tirava a água, levava pra casa... Hoje, aqui, a gente deixa na geladeira, lá era num pote feito de barro justamente nessas olarias. A gente colocava a água, tirava daquela cacimba, colocava um pano na boca do pote pra coar para aqueles bichinhos não caírem dentro da água. Minha mãe areava a vasilha de dar água para o povo; quando chegava na porta, ficava linda, doía a vista da pessoa, de tão limpo os canecos. Então, o pessoal gostava de tomar água lá em casa por causa disso. Foi tempo que eu fiquei observando meu pai, ele dando os conselhos pra gente não responder aos mais velhos, não falar palavrão, não fazer nada de errado de modo geral. Ele tinha um compadre e esse compadre, lá no Norte o compadre é muito respeitado, compadre Fogueira, costume da cidade eu acho. Hoje já tem como costume devido estar lendo, então sei o que se trata. Quando meu pai saía, se um compadre visse a gente no meio da rua – o terreiro de casa, lá não era rua, era terreiro no barro –, visse a gente brincando do lado de fora ou chegasse alguém estranho, era o mesmo que ser o meu pai, ele falava e a gente obedecia, e ai de mim se respondesse. Se eu respondesse e ele contasse para o meu pai, a coça ia pegar.
Fomos levando, meu pai foi trabalhando, nessa época ele estava viúvo. Eu, como era o mais danado – sempre tem um, né? –, eu começava a brincar com fogo, com fósforo, vinha pegando e começava a tacar fogo em algumas coisas. Uma vez eu incendiei um partido de cana, como se fosse aqui no interior, São Paulo tem aquelas canas todas lá naquele local. Eu passando ali: “Será que isso pega fogo?”, aí peguei o tição de fogo e coloquei na palha da cana seca e pegou fogo, saiu queimando tudo. Esse gentinha, um administrador, esse administrador era como se fosse hoje talvez um delegado que respondesse por aquela área ali, foi atrás do meu pai e outra pessoa já foi e disse: “Teu menino fez alguma coisa de errado lá no engenho, tacou fogo num partido de cana e a polícia vem aí pra te pegar”. Papai correu, saiu fora, hoje já usa essa expressão. Passou uns tempos fora da cidade até que amenizou a situação. Quando amenizou ele voltou, começou a adoecer, ter problema de saúde – porque trabalhava muito à noite, inclusive na mesma função que eu trabalhei com caminhão, como já antes eu falei. Aí começou a adoecer, parece pra mim que o problema dele era problema de baço. Lembro-me como se o médico tivesse dito isso hoje. Eu tinha ido visitá-lo no hospital junto com outra pessoa, a irmã dele, conhecida por Lu, já falecida. Eu fui visitá-lo e me lembro como se fosse hoje, ele pediu... Sabia que ia morrer, eu me lembro como se fosse hoje, ele disse: “Eu sei que eu vou morrer. Eu tô doente, sei que vou morrer e não quero morrer no hospital. Eu quero morrer na presença dos meus filhos”. Eu tinha em torno de cinco, seis anos, por aí. Quando meu pai morreu, eu tinha mais ou menos isso, quase sete anos. No Hospital Regional ele foi internado e pediu ao médico pra morrer em casa; o médico disse: “Tudo bem”, aí deu alta pra ele. Quando foi com uns vinte, trinta dias... Lá no Norte tem umas madeiras, umas camas chamadas cama de lona – são duas madeiras cumpridas, ela abre e fecha; aqui em cima eram feitos uns negócios de farinha, feito uma massa, você colocava o pano de canto a canto e fazia pra colocar o bebê, como se fosse um berço hoje, pra colocar o bebê. Então, ele dormia em uma cama daquela na casa da irmã dele, e eu pequeno. Se passaram uns vinte dias pra trinta dias, ele começou a ficar pior, pior, pior. Ele foi enfraquecendo, já não fazia mais xixi, fazia na cama ou pedia pra alguém pra tirar a roupa dele e ele fazer xixi. Quando foi certo dia, depois de muita luta, muito sofrimento, levamos ele no médico. Lembro-me que na época a irmã dele, que era essa Lu que eu te falei, chamou o padre pra ir rezar lá, ele foi. Depois chamaram os pastores também. No final da história ele morreu, mas foi com Cristo. Antes mesmo de ele morrer, eu me lembro que eu fui passando assim, perto da cama de lona, ele estirou a mão pra mim e falou, essa palavra eu tenho decorada até hoje: que aquela mulher que eu estava na casa dela, eu deveria respeitá-la, que ela era pra mim, a partir daquele momento, ela era mãe, pai, era tudo na minha vida; que eu não faltasse com respeito com ela e tivesse ela como minha mãe a partir daquele momento; que jamais eu desrespeitasse as pessoas mais velhas e procurasse sempre ouvir as pessoas mais velhas. Ele não tinha estudo. É capaz de eu estragar essa gravação, porque estou me segurando, mas quando eu começo a lembrar é de doer.
Hoje eu vim com a intenção, aqui pra São Paulo, primeiro de trabalhar, mas a minha intenção não era essa. A minha intenção era vir pra São Paulo, me preparar, deixar o cabelo crescer, deixar a barba crescer e voltar e vingar a morte do meu irmão. Essa era uma das intenções minhas. Aí comecei a estudar alguns livros, inclusive a Bíblia, comecei a ler algumas páginas da Bíblia e comecei a ver que eu não tenho o direito de matar ninguém. Comecei a ver que eu tenho que fazer o possível pra dar o melhor de mim pra que não venha acontecer isso com outras pessoas. Também, a esposa que eu convivi com ela, que é essa que eu namoro há vinte e poucos anos, me conheceu trabalhando na área rural, como já falei, e eu comecei ter esse menino, que eu gosto muito desse menino. Se me abrir você vai encontrar esse menino dentro. É um menino super educado, super... Tem hora que eu o admiro porque eu não tive esse privilégio. Muita gente diz que eu sou um cara educado; eu não sei, eu procuro me expressar da melhor maneira possível, foi o que eu aprendi. Mas ele, eu tenho aprendido muito com ele, o respeito pelas pessoas, onde ele vai, onde ele entra. Então, isso fez com que eu abrandasse mais, quebrasse um pouco aquela ignorância que eu tinha.
P/1 – Severino, essa casa dessa pessoa que você ficou, era irmã do seu pai?
R – Irmã do meu pai.
P/1 – Irmã do seu pai, que foi quem te criou?
R – Que foi quem me criou.
P/1 – E você tinha sete, oito anos mais ou menos.
R – Isso.
P/1 – Quando seu irmão faleceu, quantos anos você tinha? Vinte?
R – Vinte. Eu já estava com sete. Eu estava com sete anos, meu irmão estava bem mais novo, bem mais novo.
P/1 – Quando ele foi assassinado você tinha...
R – Ele tinha em torno de uns vinte... Vou colocar uns 24, 25 anos, por aí assim. Deduzo que foi isso. Essa mesma pessoa que eu estava na casa dela também faleceu. O nome dela era Amália, a gente a chamava de Lu. Conhecida por Amália. Eu não lembro mais do sobrenome. Morava com um senhor chamado Caetano Cândido de Lima, o famoso CCL. Ele usava essa expressão com o prefeito da cidade. A cidade era tão grande que ele era muito conhecido na cidade. CCL, Caetano Cândido de Lima. Ele faleceu, eu já estava aqui.
P/1 – Ele que cuidou de você na parte...
R – Com certeza. Foi quem me levou, até mesmo pelo evangelho, falava do evangelho muito pra mim.
P/1 – Você foi cuidado por várias pessoas, pelo seu pai, pela sua mãe, depois pela irmã do seu pai e por ele.
R – Isso. É que era um casal.
P/1 – Era um casal. Eu quero que você fale um pouco da sua mãe também, esse convívio com ela antes dela falecer, porque você falou bastante do seu pai. Como que era sua mãe? Descreva-a um pouco pra gente, a pessoa.
R – Minha mãe era uma pessoa que tinha, Benta Maria da Conceição, ela tinha... A vida dela era só em casa tomando conta dos filhos, ela não trabalhava. Tinha aproximadamente um metro e sessenta, setenta [centímetros] de altura, só lavava, passava para o meu pai. Só. Mais nada. Não fazia nada mais do que isso. Ir pra feira, meu pai ia com ela, vinha em cima de um caminhão. Chegava em casa na segunda-feira já ia trabalhar e ela continuava em casa. O que eu sei da minha mãe é isso.
P/1 – Ela cozinhava bem?
R – Cozinhava essas coisas. Fogão a lenha. O tempo de assoprar o fogo não tinha muito privilégio. Quando podia comprar um abano, um negócio feito de palha, fazia assim, aí abanava o fogo. Quando não, era na boca mesmo.
P/1 – Quais eram as comidas que tinham lá?
R – A comida era feijão normal, fubá, macaxeira, que aqui chama mandioca, cará, muitos chamam inhame, banana comprida, o pessoal chama também banana da terra, alguma coisa desse tipo. Algumas vezes, o cará, ele mesmo plantava em casa, perto dessas canas de engenho, do dono de engenho; sobrava sempre algum espaço e naquele espaço fazia uns “lerãos”, como se fosse “lerão” de coentro, umas covas. Comprava os carás na feira, a gente comia até certa parte, e a outra parte, de onde saía o olho dele, colocava na terra; ia aguando, aguando, até ele pegar, nascia outro cará ali e era do que a gente vivia. Tomate, cebola. A gente plantava a cebola, mas saía a palha, aquela cebola de palha, umas compridinhas bem verdinhas que a gente compra... Vem junto com o pé de coentro hoje. Era o que ele fazia, só. Tinha cavalo, meu pai tinha cavalo. Essa era a vida dele. Era a roça, caminhão, que ele trabalhava com mandioca, eu falei, caminhão que era cana, cana de açúcar e só. Meu pai era isso. Minha mãe também era isso, a mesma coisa. Ajudava ele assim, alguma coisa básica, mas o negócio dela mesmo era em casa, ele não deixava ela trabalhar, tanto é que hoje, eu hoje também não gostaria que a minha mulher trabalhasse, mas gostaria também de ganhar suficiente pra pegar o holerite no final do mês, que ainda hoje eu faço isso, entrego na mão dela. Eu pego o meu holerite e entrego na mão dela. Falo pra ela: “Olha, eu devo cem “conto” pro Thiago, devo sessenta pra fulana que eu comprei um perfume...”. Só, porque eu não fumo, não bebo, não jogo. Eu só cuido da minha família e trabalho.
P/1 – Essas duas pessoas, a irmã do seu pai e o CCL, como que era o seu relacionamento com eles?
R – O relacionamento foi muito bom, graças a Deus, foi muito bom. Ele trabalhava com foice, foice de cortar cana. Talvez, eu vou chutar assim, a terceira pessoa que era bem de vida da cidade, como era pequena, né? Ele trabalhava com esse negócio de ferreiro e esses ferreiros faziam foice, esmerilavam e vendiam pra ele por um preço; ele pegava e passava pra outra pessoa por determinado valor. Ele comprava a mola do caminhão, cortava os pedaços que desse pra fazer a foice; ia fazendo todo o desenho ali, o ferreiro ali no fogo, fazia essa foice e vendia pra ele. Os usineiros, dessas usinas que eu falei, tinham uma pessoa que se responsabilizava pela compra das foices; essa pessoa se dirigia a ele e levava duas mil foices. Imagina como esse homem era na cidade... Duas mil, três mil, 500, 300... Só deixava o cheque pra ele, já assinado no nome daquele usineiro. Nessas alturas, eu fui crescendo, fui crescendo e eu falava de dirigir. O meu negócio era dirigir. Pegava uma tampa de caçarola e começava dando uma de motorista. Fui crescendo, fui crescendo, aí comecei também a trabalhar com ele, vendendo essas foices. Ele colocava na feira e colocava outro local abaixo dele, negócio de uns trinta, quarenta metros, colocava eu também com um monte de foice na cidade, vendendo aquelas foices. Na hora de passar o troco, quando eu vendia uma, eu dava o toque pra ele, ele vinha e passava o troco, porque eu não sabia. E daí foi tempo que ele foi crescendo, ele foi evoluindo também, ganhava bem. Até então ele não bebia, aí começou a ganhar bem, começou bebendo, começou a querer até mesmo espancar a companheira, que era a Lu, que eu te falei. Depois se separaram, depois se juntaram novamente. Ele foi melhorando, foi melhorando, comprando casa na cidade, foi melhorando. Depois faliu de uma vez. Foi falindo, falindo. Só chegou a negociar talvez ali com cinquenta, sessenta foices por mês. Outras pessoas que ele tinha envolvimento, os famosos “amigos”, quando você tem, começaram a comprar o que ele tinha, tipo motor, foice de estoque que ele ainda tinha em algum local. Os próprios amigos, se é que eram amigos, iam comprando e chegaram até a comprar a casa dele. Ele ficou sem nada mesmo, ficou na rua mesmo.
Eu, que fui a pessoa que ele criou, tinha três irmãos, comigo quatro, e a mulher dele, eu era o mais velho, tinha que bancar. Aí eu cheguei nela, na esposa dele, e falei que eu já estava um rapazinho, na época com uns doze... Não, eu estava em torno dos nove, por aí, quase nove anos. Aí já comecei, como eu era muito danado na cidade, jogando bola, essas coisas todas, fiz muitas amizades. Acabei conhecendo um administrador de um famoso engenho, engenho chamado Palmeira, me lembro como se fosse hoje. Aí ele disse: “Eu gosto muito desse neguinho. Esse neguinho, tudo que manda fazer ele faz e faz com alegria”, que foi o que meu pai me ensinou, a respeitar as pessoas mais velhas e sempre fazer o que eles mandavam fazer. Aí ele foi arrumar um trabalho pra mim. Eu ganhava 12 “contos”, seis de manhã, seis à tarde, pra segurar essa família. Eu sei que no final de semana sobrariam pra mim 72 “contos”; eu pegava esses 72 “contos” e dava na mão da Amália, que ela estava separada, eu dava na mão dela. Ela pegava esse dinheiro, fazia despesa e me dava desses 72 “contos” que eu ganhava, ela me dava... Eu acho que era um “conto” e cinquenta. Eu ganhava 72 “contos”. Eu acho que era isso mesmo, um “conto” e cinquenta. Um “conto” e cinquenta, eu entrava no cinema, era um sorvete, na hora do intervalo era um sorvete só pra mim e meu amigo que não tinha, porque se eu tivesse um amigo, não tinha como pagar para o amigo, tinha que dividir o meu com ele.
Aí foi tempo que ele começou a falir, como eu tinha falado, começou o pessoal comprando as coisas dele todas e ele foi ficando sem dinheiro, foi ficando sem dinheiro. Mesmo assim, mais uma vez, a mulher voltou pra ele ainda, novamente. Aí ela começou a adoecer, a dona Amália começou a adoecer, acabou falecendo. Ele continuou na venda dele de foice, mas por pouco tempo, em torno de uns dois anos, três anos ele ainda continuou. Arrastando. Sem falir, mas também não estava tão legal. Aí conheceu outra pessoa e se casou com essa pessoa. Quando foi agora, está com uns dois anos mais ou menos, três anos, ele faleceu. A pessoa que ele casou ainda continua lá na cidade. Desde que eu vim pra São Paulo, em torno de uns vinte anos, depois que eu vim de lá, vinte, 21, eu não voltei mais. Posso até voltar agora, pelo fato da família da minha esposa que estão todos lá, apesar de que alguns já vieram pra cá, já voltaram, tudo. Mas que eu queria ir pra lá, eu queria ter algo pra eu negociar lá, pra não vir mais pra cá, devido ao meio de vida que é muito alto; tudo que você vai fazer tem que pagar, lá não. Se você tiver pelo menos algo pra você negociar, no meu caso seria algo que eu faço e faço muito bem que é dirigir; então seria um caminhão, um F-4000 assim, se eu tivesse condições, pra que eu fizesse a vida lá. A não ser isso, pra voltar lá não dá, não.
P/1 – Severino, naquela época de adolescente você tinha algum plano, algum sonho de vida?
R – Não, eu não tinha. A única coisa que eu sempre falava e fazia era com a tampa da caçarola, negócio de dirigir, era a única coisa que eu fazia. E outra que eu pensava, cheguei a pensar que os carros andavam, mas não tinha ninguém dirigindo, andavam sozinhos. Quando passavam aquelas carretas com aqueles carros em cima, chamada cegonha, eu desejaria que caísse um pra eu ficar pra mim. Essas eram as minhas ideias. Eu não focava a mente em alguma coisa pra fazer. Hoje as crianças já dizem: “Eu quero ser bombeiro”. Outros dizem: “Eu quero ser policial”. Mas a maioria está sempre falando de bombeiro. Mas eu não tinha, não. Eu só pensava ser ou o que meu pai era, ou dirigir. Sempre falava que dirigia. Tem coisa? Ah, tem muito sonho. Eu tenho muito sonho que eu gostaria de... E não é muito alto. São coisas que eu não tenho conhecimento, gostaria, como é que funcionava, como que é, mas infelizmente não tenho condições, então é melhor ficar quieto, ficar onde estou. Mas eu nunca tive, não. Hoje, hoje, o meu sonho seria dar para os meus filhos aquilo que eu não tive. Esse é o meu sonho, dar para os meus filhos aquilo que eu não tive. E outra, eu me preocupo muito, eu sou um cara muito preocupadíssimo. É que tem coisa, problema de doença, que está afetando comigo, está abalando, como eu já falei vocês já viram algumas coisas, está abalando muito o meu psicológico. Tanto é que uma psicóloga falou pra mim: “Você está mesmo com o psicológico abalado”. Mas isso que estou falando não é nada de psicológico, é coisa que é desejo meu. É ver meu filho em uma faculdade, ver minha filha em uma faculdade, o negócio dela já é pra ensinar criança. Tem um cursinho aí... Magistério. Um negócio assim, pra ser professor. Tem um curso aí que eu esqueci o nome. O negócio dela é ensinar e eu não tenho condições de pagar duas faculdades. No caso do meu menino, hoje ele está fazendo porque ele ganhou uma bolsa e ele não pode tirar menos do que 7,5 se não me escapa da memória, as notas. Tanto é que até grego, não sei se é grego, meu Deus, uma coisa assim mais ou menos, ele tirou nota dez, coisa que eu fiquei admirado. Essa é a minha preocupação de eu ter o filho que eu tenho e querer investir nele. A menina, no caso, professora, que também seria faculdade. Somente eu, a minha esposa, não tem estudo. Ela começou a aprender aqui na associação, aqui tem aquela escola de MOBRAL [Movimento Brasileiro de Alfabetização] que o pessoal ainda ia ao quadro, ensinava, você não sabia, levava você, pegava na sua mão, dizia: “Faça assim”. Entendeu? Então ela aprendeu a fazer algumas coisas ainda, lê algumas coisas, toma ônibus. Se você der um endereço pra ela, ela vai numa boa, mas eu ainda fico meio preocupado. No caso dos meus filhos, eu fico preocupado devido ao local, que eu moro hoje, porque eu fico por dentro da casa olhando quando ele vem de longe. Outra que ele durante esse tempo que estou aqui, ele está muito conhecido no bairro porque ele só anda lendo. Se for de dia eu vejo a hora de ele levar um tropicão, porque é assim no livro, cabeça baixa, lendo. Quando passa, dizem: “Aquele ali é o filho do negão lá”; “É o filho do Severino”; “É o filho do irmão”; “É filho do tal”, e assim vai. Mas eu me preocupo muito com aquilo que eu não tive. Hoje eu vejo as pessoas falarem bem, serem bem educadas, eu acho maior dez, mas desde que seja educado. Não a pessoa usar os seus estudos, que a gente vê muito isso aí fora, pra afetar as pessoas com palavras agressivas. Pelo pouco estudo que eu tenho eu percebo que quando ela fala agressiva com você, você, como não tem estudo, não tem estrutura, a sua tendência é expor agressivamente com a pessoa, violentamente, físico. Agredir a pessoa fisicamente. Mas eu acho muito bonito as pessoas saberem se expressar, falar bem. Eu não tive esse privilégio de... Assim mesmo ainda vejo alguém dentro do bairro dizendo que eu sei me expressar muito bem.
P/1 – Sabe mesmo.
R – É. Porque até na Câmara dos vereadores o pessoal já fala isso. Ensinaram-me o caminho das câmaras agora, pra reivindicar meus direitos, e eu comecei a aprender isso. Então, qualquer coisinha estou lá na Câmara: “Ô, me ajuda aí”. Estou sempre cobrando, tanto é que já me chamam “o pernambucano do Oratório”, porque eu começo a cobrar. Agora eu não vou lá brigar com ninguém, entendeu, vou tomar informação, como é que funciona, com quem é que fala. Algumas coisas deixam a gente triste por motivo de o nosso país ser muito corrupto. Infelizmente aí a gente fica muito triste com isso.
P/1 – Então vamos chegar na parte da sua história que você vai realmente vir pra São Paulo. Não sei se eu entendi errado, mas você veio pra São Paulo logo depois que o seu irmão foi assassinado.
R – Isso.
P/1 – Então, conta como é que foi essa história toda e como você veio pra São Paulo. Enfim, conta esse momento pra gente.
R – Tá jóia. Foi assim, quando o mataram, lá no Norte mesmo, já veio a ignorância lá mesmo: é matá-lo também. Eu fiquei calado, o pessoal: “Faz isso. Faz isso. O cara tá em tal lugar assim, assim”.
P/1 – Seu irmão namorava uma menina? Só pra entender a história.
R – Isso. Namorava.
P/1 – Tá.
R – Namorava essa pessoa que moro hoje e ela dizia: “Não. Não. Isso não compensa, não vale a pena”. Eu: “Não, mas eu tenho que vingar a morte do meu irmão. Isso não vai ficar assim. O cara passando no meu bigode pra lá e pra cá e eu não fazer nada, o pessoal me chamando de mole? Não. Isso não tá certo”. De tanto a mulher começar a falar que isso não dava certo, que eu tinha que esquecer isso, já aconteceu. “Você matando ele vai trazer o seu irmão de volta?”. Essa foi uma palavra que me pegou, falei: “Poxa, realmente. Vou me complicar mais ainda. Vou matar o cara, vou me complicar mais ainda”. Aí eu disse: “Então vamos embora pra São Paulo”. Mas a intenção era voltar. Quando cheguei aqui...
P/1 – Você veio como? Você se lembra da viagem?
R – Lembro.
P/1 – Como é que foi? Quanto tempo durou essa viagem?
R – Essa viagem durou três dias dentro de um “busão”. Cheguei aqui com as pernas inchadas, com os dedos inchados, mas cheguei; comendo frango assado, que foi logo nos primeiros dias o frango, depois a bolacha, refrigerante, os colegas cantando dentro do ônibus. Colega assim, que eu fiz amizade dentro do ônibus com as pessoas. Quando cheguei a certos locais que eu não conhecia, eu via o pessoal se despedindo na rodoviária, porque o ônibus sai pegando pessoas ali, as pessoas davam tchau para as mães, para os pais. Começavam a chorar e era aquele chororô terrível dentro do ônibus: “Tchau mãe. Eu vou, mas eu ainda volto”. É difícil, cara. O negócio é difícil.
P/1 – Você veio com ela?
R – Não. Eu vim só. Eu vim só e quando foi com dois meses, eu sem emprego aqui... Eu fiquei em Santo André.
P/1 – Tá. Morou onde?
R – Quando eu vim, eu vim direto para um alojamento onde tinha um monte de rapazes. Conversando com um e com outro, alguém falou: “Tem uma empresa ali que tá pegando”, aí eu fui pra essa empresa. Dei um esquenta na minha carteira lá no Norte, dei um esquenta na carteira pra poder entrar nessa empresa. Eu não lembro mais o nome, era de um japonês, mas tem o nome na minha profissional, se não me escapa da memória eu acho que é Nakano. Ou é Na ou é Ka. Aí estou lá na porta do canteiro, no canteiro, pra falar sobre o emprego, dou de cara com um primo meu. Conversa vai, conversa vem: “Você aqui, rapaz? Eu já trabalho aqui há tanto tempo, nessa empresa”; “É mesmo?”; “Vou arrumar um serviço pra você. Você tá aonde?”; “Eu tô alojado ali com uns caras num local ali”. Bairro Campestre, Santo André. Ele disse: “Ah, não. Eu vou arrumar um jeito de você vir pra cá”. Conversa vai, conversou com um encarregado e me trouxe, me deixou dentro de um alojamento dentro da empresa até aparecer uma vaga pra mim. Aí eu ficava comendo com ele, o marmitex com ele, no almoço ele saía, muitas vezes ele almoçava e o cara mandava duas, dizia: “Leva uma pro rapaz que tá lá no canteiro, o primo de Pernambuco”. Aí trazia marmita e eu comecei lá. Fiquei nessa brincadeira em torno de quase um mês até aparecer uma vaga. Apareceu uma vaga, eu fui trabalhar.
Eu trabalhava na intenção de buscar minha esposa e esse menino que era pequeno, que era o Felipe. Eu trabalhava de dia e à noite. Eu trabalhava de dia com martelete – o pessoal chama motoca de baiano – quebrando concreto. E à noite tinha uma vaga pra ficar como vigia em cima de uma máquina. Aí eu ficava ali em frente... Próximo ali da Prefeitura, onde o pessoal começa a fazer curso ETI [?]. Na ETI, debaixo daquele viaduto. Eu ficava ali a noite todinha, dava cochilo na máquina que era capaz de tacar a testa naqueles ferros ali. Quando era de manhã, mesmo com cara de sono, eu ia para o canteiro, tomava um cafezinho ali com pão, com manteiga e ia pra obra. Quando foi com dois meses eu já estava com dinheirinho, em dois meses ali eu tinha pegado quase, eu não lembro, mas acho que era dois mil, dois cruzeiros, dois cruzados, era uma coisa desse tipo. Comecei ouvindo umas músicas e essas músicas eu via a minha esposa e o meu filho. Quando eu ligava pra eles por telefone, na época tinha umas fichas, eu pegava as fichas, colocava as fichas, que eu ouvia a voz do moleque, desabava: “Eu vou te buscar”; “Você não vai vir mais”; “Vou. Vou te buscar, sim”. O moleque: “Você vai buscar eu?”. Me chamava de Bua pra chamar Bil. Todo Severino é Bil. Aí ele chamava de Bua, porque ele não falava direito. Quando foi com dois meses, eu peguei o troquinho, porque eu queria porque queria buscar ela, mas queria colocar em um determinado local. Através de um operador de máquina que tinha um amigo, descobri um barraco no Jardim Maracanã, em Santo André. Ele disse: “O cara vende esse barraco por 400 reais”. Já era real. 400 reais, 400 mil. 400 reais. Não. Acho que era 400 mil, um negócio assim. Era 400. Aí disse: “Na hora do almoço...”. Nós tínhamos uma hora de almoço: “Então, vou pegar você, vou colocar dentro desse carro e nós vamos lá”. Eu falei: “Tá bom”. Quando chego lá o cara diz: “Quanto você tem?”; “Eu tenho 300 reais”; “O barraco é seu”; “Tem documento?”; “Não. Chegou aqui, mora”. Aí eu, no morrão, as pessoas estranhas, diferentes, aí eu fui, fiquei nesse barraco. Agora vem o dinheirinho que eu tinha ganhado esses dois meses; só pra mostrar pra esposa que eu tinha ganhado esse dinheiro, eu queria entregar na mão dela, então disse: “Eu não vou comprar nada”. Até ela chegar, a minha cama foi um madeirite, o travesseiro era um bloco com um saco de cimento que eu pegava da obra. A parte de dentro do cimento era limpa, ela só estava quente, mas era limpa a parte do saco de cimento; logo, aonde você coloca o cimento é sujo, mas a outra parte era limpinha. Eu colocava no bloco, enrolava, cobria o lençol e fiquei dormindo lá. Eu já saí do canteiro. Fiquei trabalhando e vinha pra casa, já fiquei trabalhando e vinha pra casa. Aí peguei a conta da minha sogra lá no Norte e mandei o dinheiro da passagem dela vir com o menino. Ela se despediu dos meninos lá, dos familiares, e veio pra cá. Aí ficou nesse barraco.
Nesse barraco ela começou lavando roupa daquelas mulheres próximas que tinham muitos filhos. Ela começou lavando roupa pra ela mostrar um terreno melhor. Ela até vai fazer amizade, porque na época já apareceram pessoas que iam receber dinheiro da minha pessoa dizendo que o terreno tinha que pagar e eu não sabia pra quem pagava. Eu, ignorante, também fui tomar informação, porque aquelas pessoas queriam receber esse dinheiro. Aí o pessoal foi falar que era bandidagem, que era pessoa que tinha que tomar conta do povo, da área. Eles é que tomariam conta e eu teria que dar um dinheiro todo mês. Aí eu vi que era coisa errada e achei uma pessoa, outra, que comprasse o mesmo barraco. A pessoa disse: “Te dou 200”. Falei: “É seu o barraco”. A pessoa ficou com esse barraco e minha mulher continuou lavando roupa. Ela lavava sacos e mais sacos de roupa, do jeito que vocês estão vendo aqui. A pessoa foi e mostrou um terreno que era aqui em Mauá, é onde eu moro hoje. Na verdade, não é onde eu moro hoje, era por trás. Era tipo uma lagoa, só tinha rato, só rato. Ainda hoje tem. Aí eu comecei a fazer um barraco nesse local. Eu saía de lá, trabalhava até a sexta, e no sábado o encarregado me liberava, sábado e domingo. Eu vinha, tirava terra da frente daquela casa que eu moro hoje, lá pra trás no meio dos barracos da viela, carregando com carrinho de mão, até colocar no ponto de fazer o barraco. Enfiei uns “madeirões”, umas madeiras na lama e fiz. Com quinze dias deu enchente, derrubou o barraco. Eu fiz novamente. E fui fazendo, fui fazendo. Aí outras pessoas também foram fazendo barraco, foram fazendo barraco, foi crescendo, foi crescendo. Depois a Prefeitura entrou, colocou como palafitas porque tinha uns negócios lá, uns micróbios. Tiraram algumas pessoas, eu fiquei. Comprei um carrinho, fui pregando barraco, trocando em carro velho, essas coisas todas, consegui pegar esse terreno que eu moro hoje. E estou até hoje nesse local.
P/1 – E quando foi que você desistiu de voltar pra lá e falou: “Não, agora São Paulo vai ser minha vida”?
R – Quando eu comecei a trabalhar de segurança. Quando eu passei na prova, vi que abriu espaço pra eu trabalhar nos bancos, eu digo: “Lá eu não conseguiria”. Lá eu só conseguiria se eu fosse pra capital pernambucana, mas aí, até então, eu não tinha conhecimento, eu não conhecia ninguém. Aqui eu também não conhecia, mas eu comecei a fazer amizade com os próprios seguranças que trabalhavam em banco. Eu comecei a ganhar bem, comecei a ter confiança das empresas; as pessoas já começaram a soltar na minha mão cinquenta, sessenta mil reais pra eu fazer pagamento de outras pessoas em outras áreas como Santos, Bertioga. Davam-me carro pra eu ir e eu colocava esse dinheiro na mala do carro numa caixinha de ferramenta com os holerites com o valor das pessoas; eu contava aquele dinheiro, tirava, colocava o valor no nome das pessoas e pagava pra elas. Andava armado também. Eu vi que eu comecei a ganhar bem, já comecei a ganhar 300 e poucos reais na carteira. Depois foi pra 600 e pouco. Todo ano, quando tem greve dos vigilantes, essas coisas, meu salário também aumenta, a partir de hoje você fica sabendo que também aumenta. Hoje parece pra mim que está em 841, mais ou menos isso. Aí eu comecei a ganhar mil e pouco, comecei também a fazer hora extra. Se o vigilante não viesse, eu trabalhava das sete às sete. Até hoje o meu horário é esse, de sete a sete. Como eu passei pra banco, então são oito horas. Mas se tem um posto que tem doze, eu começo a conversar com o gerente, inspetor, supervisor, aí eles acabam fazendo amizade com auxiliar: “Coloca ele no posto de doze horas”. Aí você ganha mais. O meu salário passou a ser 1,4 mil, 1,3 mil, já comecei a ganhar bem. Já comecei a ver facilidade pra comprar as coisas, tanto é que eu comprei. Hoje perderam tudo, algumas coisas, mas antigamente eu tinha minha casinha arrumadinha. Comecei fazendo amizade com muitas pessoas, como eu já falei, educadas, pessoas que sabem se expressar, você aprende com elas também. Teve algumas coisas que já sabia até falar em inglês. Até alguma coisa eu já falava, pelo menos caneta, caderno, pelo menos isso eu já falava, já sabia. Aí já comecei a ver as coisas por outros... Já comecei a andar limpo, paletó, gravata. Pra trabalhar em banco você tem que estar no mínimo com barba feita, bigode aparado, tudo limpinho, unha feita e tal. Comecei a esquecer do Pernambuco. Só comecei querendo ir pra lá, ainda hoje dá vontade, por causa da violência aqui. A violência é demais, é demais. O que eu já presenciei aqui dentro desse Oratório, vou falar pra você, você não acredita, você vê e fica calado e não pode fazer nada. Apesar de que o cara vai se envolver com quem? Infelizmente não... Meu pai tinha um dizer: “Te ajunta com um bom que será bom que nem ele. Mas te ajunta com um ruim, será pior do que ele”. Então eu comecei a me envolver com essas pessoas. Gerente de banco fazia amizade comigo, quem sou eu? Diretor de empresa fazer amizade comigo, eu não sei por quê. Será que era porque eu prestava meu serviço correto? Tomar conta de filho, moça, rapazes, vamos dizer assim, de eu ser segurança deles. Apesar de que, com os jovens, está a força, mas com os velhos está a sabedoria. Aí eu comecei a fazer segurança em shopping. Até mesmo os próprios filhos sabiam que eu estava atrás deles. Eu só era... Eu tinha um limite. Qual é o limite? Trinta metros, quarenta, dentro do Shopping Ibirapuera, dentro do Shopping Cristal, parece-me que o nome é isso, Cristal, um negócio assim, porque na Avenida do Estado tem... Cristal, mais ou menos isso. Aqui no Tatuapé também prestei outro, também. Eu ficava em um carro particular pra acompanhar os filhos do senhor... Jesus amado, esqueci agora o nome do empresário, mas pelo menos um ou dois empresários eu lembro que o genro dele era doutor Paulo e, como eu andava com muito dinheiro deles, acabei fazendo amizades, os filhos, as filhas, uma amizade tremenda. Por isso que eu falei, eu aprendi muito com eles, são pessoas educadas, mas infelizmente ele faliu a empresa e me deixou na mão. Tanto é que até hoje está na justiça. Faz sete a oito anos. Antes de ele falir a empresa, pelo menos a consideração que ele tinha pela minha pessoa, dizer: “Vamos pelo menos dar uma força aqui pra ele, porque ele está sempre com os meus filhos”. E depois fechou a empresa. Mas não, eu fui um dos primeiros a ser afetado e até hoje está na justiça. Então, tem muito isso aqui em São Paulo. Eu não queria que os meus filhos vissem isso, mas infelizmente eles vão ver, tanto é que ele vê o mundo hoje, a vida, de uma forma diferente do que eu. Eu continuo dizendo que se envolver com política, essas coisas, você tem que se envolver, tem que ceder alguma coisa da sua parte. É aquela coisa, você faz isso pra mim que eu faço isso pra você. Eu não queria que meu filho chegasse a esse ponto. Então, eu sempre penso, ele já pensa talvez, eu acho que o sentido do jovem hoje é crescer, crescer, ele sempre tem um pensamento positivo, sabe o que quer. Ele até já desenhou a esposa dele, se você quer saber, já a desenhou, disse: “Vai ser essa. Essa é a mulher que eu vou amar. É ela”. Quer dizer, os jovens de hoje pensam assim, eu não. Eu preferia ficar no que estou. Agora, gostaria muito, voltando atrás, de dar algo melhor pra eles. E a minha vida foi assim, troquei tiro com bandido, levei tiro, tomei 23 tiros.
P/1 – Como que foi isso?
R – Em São Bernardo do Campo na Avenida Robert Kennedy, 747, no carro forte. O carro forte chegou... E essa é a minha história, a minha vida. O carro forte chegou e eu abria o portão quando o carro forte chega, eu e outro, o outro ficava na retaguarda. Nós abrimos o portão, não vimos ninguém e fechamos. Dentro da empresa tinha o banco. Quando o carro forte foi saindo, eu tinha deixado em cima do banco, assim no balcão, sessenta mil reais pra fazer o pagamento do povo. Quando ele chega lá embaixo no portão, que eu abro o portão, o carro forte saiu. Quando eu fui fechando, o cara saiu não sei de onde. Já saiu com uma 380 e botou na minha cara: “Tá armado?”. Eu falei: “Não”. Mas eu estava armado e o outro colega também, só que eu não usava coldre, eu usava a arma escondida e tinha uma minha particular, tenho seguro da empresa, tudo mais. Eu aprendi também isso na Academia, que não adianta reagir nem se mover, é colocar a mão no chão, deitar e esperar ver o que vai acontecer. Aí o cidadão colocou a arma em cima de mim, eu me rendi, mas o outro não se rendeu, o outro correu. Quando ele correu, ele atirou nele. De repente, me subiu um negócio que até hoje eu pergunto pra mim mesmo o que foi aquilo. Subiu-me assim, como lá no Norte tem esse negócio talvez, eu acho que é machismo, machão, não querer ceder, entendeu? Eu tinha chegado do Norte há pouco tempo. Aí eu disse: “Não”. A única palavra que saiu da minha boca foi essa: “Já que matou um, então mata o outro”. Aí saquei a arma. Saquei a arma e saquei o dedo pra cima também. Derrubei dois, apareceu outro não sei da onde, não me pergunte, quando viu que eu estava com a arma na mão o cara saiu, chegou escumando, escumava. Eu na frente dele, aí ele sentou o prego em mim com uma 380. Quando eu o vi apontar em cima de mim eu já tinha dado cinco tiros, eu só tinha uma munição, estava sem nada. Aí eu só no chão. Até hoje eu não tenho nem um furo de bala graças a Deus. Errou todos. Deu 23. Estava lá a marca pra quem quisesse ver os tiros. Aí a empresa veio e, junto com os sete gerentes, foram na Ericsson Telecomunicações, que hoje ela está em São José dos Campos, e eu continuo na mesma vida trabalhando de segurança, mas me aconteceu isso; as pessoas também que eu acertei não morreram, ficaram só baleadas, a polícia veio e levou. Levaram-me também pra delegacia, mas também me mandaram embora.
P/1 – E aquele que atirou em você fugiu?
R – Fugiu. Esse fugiu. Na verdade fugiu, mas o pegaram numa praia, segundo me falaram. Praia Grande. Falaram-me que pegaram em Praia Grande. Os outros dois foram presos porque já ficaram lá na hora. Saiu isso no jornal. Depois comecei a receber ameaças; me trocaram de posto. Outros colegas que tinham meu telefone, que descobriram onde eu estava, os próprios colegas começavam a dizer que iam me pegar. Eu começava, sabe, a trocar de carro, trocar de rua, aquelas coisas. Até hoje estou na função, mas graças a Deus não aconteceu nada comigo. Levei também uns tombos de carro, mas graças a Deus até hoje estou vivo. Cheguei a ir pra UTI [Unidade de Terapia Intensiva] por causa de batida de carro. Hoje melhorou, graças a Deus melhorou. Eu sou um cara revoltado, talvez eu seja uma pessoa revoltada por causa de injustiça. Você luta, luta pra ter; depois, pra destruir são dois palitos, por causa de injustiça do nosso país. Não dá pra acreditar mais em ninguém, essa é a grande realidade. Eu penso assim, entendeu? Dou um voto de confiança pra pessoa, mas só prevalece mesmo perjurar, matar, destruir. Isso é o que eu penso, mas procuro não fazer, procuro sempre fazer de uma maneira pra que meus filhos não venham a ter ou desanimar como eu. Eu não procuro mostrar isso pra eles, eu procuro mostrar pra eles que eles vão conseguir, que nada é impossível, entendeu? Você vai conseguir os seus objetivos. Tem também algumas coisas que eu proíbo, por exemplo, ele chegou na polícia e chegou a fazer o curso. Na prova foram feitas algumas perguntas pra ele, como se ele tivesse alguém lá dentro, ele passaria. No final da história, ele foi reprovado, mas que ele passou na prova, ele passou. O físico dele é bem magrinho mesmo, bem magrinho e chegaram a recusar. Agora ele tentou de novo, aí eu pedi pra ele: “Não, filho. Não entra nesse negócio, não. Porque você tem que estar lavando roupa escondido, tem um monte de coisas aí”. Eu comecei a ver também as injustiças numa fita do Rio de Janeiro, como que funciona lá dentro. Tem esse DVD aí nas ruas, você chega a qualquer esquina, você compra. Eu esqueço o nome. Fala sobre o Rio de Janeiro nesse DVD, então você vê as injustiças, aí você diz: “Mais cedo ou mais tarde meu filho tá lá dentro”. Então, eu não quero que isso aconteça com ele. Eu sempre peço pra ele fazer outra coisa, ele: “Tá”. Tá fazendo, graças a Deus.
P/1 – Severino, a gente vai voltar aqui pra história de Mauá pra gente conversar um pouco sobre essa história grande que temos pra contar aqui. Como que era Mauá quando você chegou? Eu queria que você contasse como que era aquela época.
R – Quando eu cheguei aqui foi no ano de 1994, eu acho que foi mais ou menos isso. Na verdade, eu acho que eu vim até antes, eu não lembro bem. Mas depois que eu comecei a ver as coisas de outro modo, comecei a trabalhar, então eu vivia mais fora, chegava em casa sempre mais tarde. Durante o dia estava sempre fazendo alguma coisa que seria da empresa. Mas Mauá era, pelo menos quando eu cheguei, já estava muito grande. Inclusive, eu fiquei sabendo que Mauá é uma das quarenta maiores cidades de São Paulo, eu fiquei sabendo isso da boca das outras pessoas. Mas eu conseguia ver muito, eu digo assim, muito devagar, não estava que nem hoje. Hoje está muito evoluído, pelo menos aqui no Oratório, as ruas... Ainda tem rua que não tem asfalto. Era o trem, naquela época eram uns trens mais... O pessoal abria a janela, passava de um vagão para o outro; hoje já não tem esse acesso, só o maquinista. Hoje está mais confortável também. A Prefeitura hoje está bem mais evoluída, não está como antes. Antes, pra pegar trem, você passava por umas catracas, fazia um barulho terrível ali, você comprava o bilhete. Foram reformando tudo, na verdade, era tudo coisa mais antiga, porque 25 anos que eu tenho aqui, mas eu, pra ser sincero, não conheço Mauá. Moro aqui há 25 anos, mas não conheço Mauá pelo fato de eu ser de casa para o serviço, do serviço pra casa e de casa pra Igreja. Nada mais, nada menos do que isso. Digo até pra minha esposa, falei pra ela que eu vou levá-la, antes de morrer, vou levá-la numa churrascaria, porque tenho muita vontade de ir, nunca fui. Meu menino já foi e tudo, com os colegas, eu libero pra ele ir, mas sempre com um celular ou um telefone de alguém, de alguma casa onde ele está, pra eu ficar sabendo, ter o controle onde eles estão. Mas não conheço muito Mauá, não. Estou começando talvez a conhecer agora, porque me mostraram o caminho da Câmara, que a Câmara é minha, que eu posso falar com as pessoas, posso marcar uma reunião, posso tomar um café. Eu não tinha esse conhecimento. Então, hoje eu já tenho, eu tenho liberdade de falar com o presidente da Câmara, eu tenho liberdade de falar com o secretário de habitação. Então, hoje estou mais tranquilo a respeito disso, mas continuo dizendo que eu gostaria de saber mais, mas pelo fato da minha família, e eu trabalhar, eu não tenho espaço pra estudar, pra ficar bem à vontade. Tem gente que fala: “Não, faz...”, tipo correspondência, essa coisas. Falo: “Não”. Eu sou de outro tempo, sou mais daquele tempo de professor, de você conversar com professor: “Ah, professor, o senhor errou essa letra aí. No lugar dessa letra é tal letra”. Aquele tempo, sabe? Então eu não conheço bem Mauá, só o Jardim Oratório. O Jardim Oratório eu conheço bem legal, mas não tinha quase nada aqui, não. Falando do Jardim Oratório, aqui só era matagal, lama e rato, que ainda tem hoje. Você viu na foto que eu ainda pego alguns de vez em quando. De repente, foi evoluindo, foi crescendo. O pessoal invadiu essa área, porque essa área foi comprada por 500, praticamente 500 reais ou foi 490 e pouco reais, quase 500, por certo cidadão; antes era do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] e, junto com a associação, foram legalizando os terrenos. Legalizaram uma parte: parte sim, parte não. Tanto é que ainda hoje nós estamos nessa briga pra receber os terrenos das casas que foram desapropriadas.
P/1 – Mas Severino, a sua casa, como que era pra construir? Você comprava o terreno, legalizava o terreno ou você construía e depois legalizava? Como é que funcionava? Como era mato ainda, talvez não fosse tão controlado como é hoje em dia...
R – Quem chegava, por exemplo, eu cheguei lá a mando de outra pessoa. Eu chegava e invadia ali numa boa, só que quando eu já estava na área, eu arrumava, deixava toda organizadinha, eu vinha na sociedade ou se eu comprasse de alguém, por exemplo, se o camarada estava aqui, você tinha um espaço que dava pra fazer cinco barracos, aí eu chegava a você e dizia: “Olha, você não quer me vender um pedacinho disso aqui, não? Pra eu fazer um barraquinho pra mim?”. Aí você dizia: “Você dá quanto nisso aí?”; “Eu dou 500 contos”; “Ah é?”; “É”. Aí eu vinha com você até a sociedade, dizia: “Eu comprei um terreninho dele ali”; “Ah é?”; “É”; “Você está sabendo que você não pode vender esse terreno, não é?”. A sociedade estava presente ali: “Você sabia que você não pode vender?”; “Não. Mas esse terreno é meu porque eu comprei de fulano e de sicrano”. Então, um já tinha vendido para o outro e por aí ia. Aí eu chegava a comprar da pessoa. No meu caso, eu dei um Passat 1977 e seis mil reais na época. Vim na sociedade com duas testemunhas de que eu paguei, que comprei desse cidadão. Paguei pra ele e estou até hoje, no meu caso. Os vizinhos, as mesmas coisas; um chamava o outro, se eu estava aqui e tinha um parente no Norte, então chamava o parente: “Olha, tem um terreninho aqui, dá pra você fazer alguma coisa”. O cara vinha e dali saía. Tanto é que você pode olhar, observar, que as casas são todas em cima uma da outra, tudo conjugadas. Ali onde a minha menina estava dormindo, se eu abrir aquela parede, eu caio dentro da casa do outro. Se o outro do lado... Às vezes, consegue até pegar uma água pelo vitrô, porque é tudo família, um chamou o outro. E estamos até hoje nessa luta pelo terreno.
P/1 – Então você veio, construiu a sua casa. Conta como é esse sentimento: “Construí. Tenho agora a minha casa”. Como é que foi esse momento pra você?
R – Pra mim foi muito legal, principalmente porque eu saí do barraco. Saí do barraco, a minha esposa subia nas minhas costas, eu colocava a madeira em um lugar mole, ela subia em cima e com o peso dela a madeira descia naquele local. Pra eu hoje estar numa casa de bloco seria ideal. E outra que a rua era movimentada; pra comprar alguma coisa, você mandava o menino, eu ficava olhando da porta de casa e lá atrás não. Lá era um barraco em cima do outro. Quando eu fiz essa troca, esse Passat e esses seis mil e eu ter registrado, acho que tá ali na minha prancheta, está lá seis mil, só que o Passat não tá, por motivo talvez de leis, parece pra mim que é isso que eu fiquei sabendo depois. A pessoa, na hora de passar no documento aqui, não podia colocar o carro, podia colocar o valor, mas o carro não. Aí estamos construindo, vamos construir, a minha esposa ficou alegre porque eram dois cômodos, daria pra fazer, ela sonhava com um banheiro arrumadinho, comprava jogo de banheiro, aquelas coisas, pra fazer bem bonitinho, no capricho. Fomos morar na frente. Depois que eu fiz, arrancamos tudo novo, foi ficando feio, nós tiramos aquele piso, tanto é que vocês veem na foto, veem outra cor pelas fotos, dá pra ver outra cor. Aí eu comecei fazendo devagarzinho com as minhas economias. Tanto é que eu fiz caracol, coloquei uma escada caracol pra fazer em cima. Comecei recebendo cartas de uma empresa, tem alguma coisa a ver com habitação, pra não fazer nada: “Você não pode fazer nada aí”. Não. Não. Eu tenho algumas cartas em casa ainda. “Por quê?”; “Porque essa é uma área pública, você não pode fazer nada”. Parei. Quem já tinha construído, construiu. Quem não construiu, não construía mais. Fomos fazendo assim mesmo algumas coisas ali nas escondidas, querendo colocar um bloco em um lugar, um bloco em outro. Chegou uma hora que eu consegui fazer aquele buraco que cabe a escada. O pessoal começou a dizer pra mim que não fizesse nada, aí eu fui, peguei a escada e vendi. Só está lá o local. Queria fazer o piso, de repente pegava as férias no final do ano: “Eu vou fazer o piso. Eu vou fazer o banheiro”. Nessa brincadeirinha, até hoje não fiz o banheiro. Fiz o piso duas vezes, do banheiro, e tornei a tirar por causa dessas informações que diziam que iam mexer ali. Tanto é que hoje deu no que deu.
P/1 – Você escolheu aquele lugar por qual motivo? É perto de um córrego, uma coisa assim?
R – Eu deduzo que sim, pelo pessoal de baixa renda. Nós ouvíamos muitas coisas. Chegava um e falava que ia ser uma coisa, chegava outro e falava que ia ser outra. Mas até então não se falava dessa obra. Falavam que ia acontecer alguma coisa, só que até então quem sabia seriam os prefeitos, esses sim sabiam. A associação não sabia. Tanto é que esse rapaz que estava fazendo barulho aqui é o presidente, ele tem algumas informações. Aí eu parei, começamos a morar, mas até então não teve nenhuma movimentação de obra.
P/1 – Desculpa interromper, mas como que era pra encanamento, pra luz, pra tudo... É interessante falar isso.
R – Opa. Falar um pouquinho sobre isso aí. Aí vem aquele vizinho que já tem luz, você ficava sem, pegava um candeeiro, tem outro nome também, quifó, fofó, [fifó] um negócio assim, que é um candeeiro, vela. Aí começamos, as pessoas viam que a gente tinha chegado do Norte, no meu caso as pessoas já viam a situação: “Você não tem lâmpada aqui, não?”; “Tenho não”; “Olha, eu posso te dar um bico de luz sem nenhum problema. Você ajuda a pagar a luz?”. Aqueles que já tinham, já tinham seu relógio. Você comprava três, quatro rolos de fio e puxava de lá daquela casa que estava lá no canto, você puxava por dentro dos matagais, daqueles matos. Tem até um nome dos matos, mas eu esqueci. Você passava naquelas... Colocava as madeiras e os fios enrolados pra passar rede até chegar na sua casa. Aí começava a ajudar o cara a pagar a luz. Depois vinha outro, pedia pra mim, pra eu ceder um bico de luz pra ele. Eu dizia: “Eu não posso ceder”; “Por quê?”; “Porque eu peguei com o Tiago. É do seu Tiago, eu não posso. Só se você falar com ele”. O cara ia falar com ele. Ele dizia: “Pode puxar da casa do Severino”. Aí o cara puxava. Depois chegava outro e assim foi crescendo, foi crescendo, foi crescendo. A Eletropaulo foi também se envolvendo. Colocando água, esgoto você vê que até hoje não tem. Foi colocando energia, foi colocando poste e foi crescendo, foi crescendo. Até hoje na minha rua não tem energia, tem dentro de casa, mas na rua não tem, de noite é uma escuridão total; é por essa razão que eu disse que eu fico nas casas observando quando meus filhos vêm.
P/1 – E o saneamento funciona como, então?
R – E o encanamento a mesma coisa. O João tem água, mas eu precisava de água. Como é que eu vou fazer? Vou pegar um balde na casa de fulano. Aí pegava um balde, dois, trazia pra cá, esquentava no fogo, tomava banho na época do frio, até que a pessoa ficava comovida com aquilo e dizia: “Já que você tem a luz, liga a minha água também. Pode ligar. Você ajuda a pagar”. A gente trabalhava, comprava os canos, colocava dentro de casa e ajudava a pagar a água, até que os órgãos da cidade foram entrando no meio e fazendo o seu relógio individual, outros faziam um tal de gato, outros gatos também na energia. Outros que tinham condições de comprar fio, já iam pessoalmente; ao invés de pedir pro rapaz, o vizinho do lado, ele sabia mexer, ia no poste, ele mesmo ligava e puxava trinta, quarenta metros de fio, dez, doze barras de cano pra chegar a água. Vinha fraquinha. Hoje você já liga a torneira vem bastante água. Era assim que a gente fazia na época.
P/1 – Você falou que esgoto não tem?
R – Até hoje não tem.
P/1 – E serve como córrego? Como é que funciona?
R – Como córrego. Tudo é jogado dentro. Toda coisa de banheiro, prato, tudo é jogado dentro do rio. Lá em casa mesmo, se entupir a pia, eu por debaixo daquela ponte mando alguém calçado com bota puxar os canos e nós desentupimos tudinho, ou a mulher coloca na pia aquele negócio que você coloca na pia pra juntar água, aí ela lava o prato ali e tira todo... Quando a gente almoça, essas coisas, ela já tira do lado a sujeira e só lava o prato pra não entupir, porque também já cai dentro do rio. Lixo vai tudo pra dentro do rio. No nosso caso, não; nós catamos o lixo, colocamos na bolsinha de mercado e colocamos num prego naquele portão de madeira, aí o rapaz passa – da empresa da Prefeitura – catando o lixo de alguns. Hoje já não vão mais. A maioria já joga até dentro do rio ou na obra, do jeito que ela está ali o pessoal joga naquela lagoa. Eu proibi, tirei alguns, tanto é que lá só tá mesmo a roupa que foi minha que eu deixei na porta pra ele jogar fora, aí pegaram e jogaram dentro da lagoa a camisa estragada, essas coisas. Mas começamos assim e até hoje está sem esgoto; pra prefeitura aquele rio está canalizado há 25 anos – se não me escapa da memória –, tem um documento dizendo que foi feita a encanação, só que comeram dinheiro e não canalizaram o rio até hoje. Agora veio a obra, pode ser que agora seja canalizado, que já começou a canalizar lá em cima. Esse rio ali na frente de casa, ele tá pra jogar ele pra cá mais, tipo aqui nesse meio onde nós fomos a pé. Passar por ali. Porque lá vai ser, dizem que vai ser parque, outro fala que vai ser posto de gasolina, outros falam que vai ser hotel, Carrefour, um monte de coisa vai ter aqui nessa área. Eu não sei ainda definitivamente.
P/1 – Quer dizer que os vizinhos sempre se deram bem.
R – Sempre. Graças a Deus nunca teve um intrigado, graças a Deus. Não tem nenhum intrigado, me dou bem com todos meus vizinhos, todos conhecem minha família. Um come na casa do outro, todas as famílias ali. Não tem nenhum tipo de problema, se você chega já sabem que é seu filho que vem. Tem pessoas também, no meu caso, no meio às vezes envolvido com outras coisas, mas quando avistam nossos filhos: “Ô, fica tranquilo aí e tal. O menino é aqui da área”. Tem nenhum problema. Também já aconteceram algumas mortes, pessoas que a gente conhecia; morreram talvez por causa de cinco reais, dez reais. É como eu falei, por causa de cinco reais você chega a perder a vida. Já vi muitos até perderem a cabeça. O cara diz assim: “Você vai fazer isso, isso e isso. Vai não?”; “Não”; “Então corta um dedo. Vai fazer, não?”; “Não”; “Corta o pé”; “Não. Eu vou fazer”; “Então faça. Você não vai fazer, não? Então tudo bem. Não vai fazer isso, não?”; “Não. Isso aqui não faço, não”; “Faz não?”; “Não”; “Então beba água do esgoto”. Bebe água do esgoto. “Tenho mais uma tarefa aqui pra você. Se você não fizer essa tarefa, hoje é seu dia”. Quando o cara não resolvia fazer, no outro dia você via o corpo em um lugar e a cabeça aqui dentro da favela pra todo mundo ver. Chega dando notícia aí. Uns ficam calados, não podem falar nada. Vi muito isso, mas graças a Deus, são 25 anos, não tenho um intrigado, nenhum intrigado. Se eu falar, pelo menos na rua que eu moro, no bairro que eu falar, se eu falar uma palavra, assim: “É pedra”. É pedra. Porque a pessoa já diz logo: “O cara mudou de vida. O cara hoje frequenta uma religião e tal. Ele é uma pessoa que fala a verdade mesmo”. E o pessoal acredita. Tem pessoas aqui que eu falo: “Olha, vai ter reunião em tal lugar, tal dia. Você traz umas dez pessoas?”. Quando eu chego tem cinquenta. Se eu tenho uma oportunidade pra falar as pessoas dizem: “É verdade. Eu acredito nele mesmo”, porque eu não ando com certos tipos de coisa, não, graças a Deus.
Posso ser pobre, hoje eu posso dizer que eu sou rico, graças a meu Deus, eu sou rico, mas porque eu coloco minha cabeça no travesseiro e durmo. Estou passando uma fase pelo fato que estou sendo prejudicado por um governo, essa é a grande realidade, desde que... Apesar de que o governo deu esse dinheiro suficiente, como eu já falei, pra tirar as famílias adequadamente, sem nenhum problema. Mas eu estou com um problema, que nem eu já falei, psicológico, não só eu como muitos velhinhos. Teve deles que não suportaram a pressão, já morreram. Eu conheço pelo menos uns dois ou três que morreram na cadeira quando receberam essa pressão, esse documento dessa empresa, do DERSA [Desenvolvimento Rodoviário S/A]. Morreu na sentado na cadeira; outros não tiveram o privilégio nem de entrar dentro da casa nova que comprou; outros pegaram dinheiro demais; outros, faz dois, três meses que não recebem, o psicológico deles tá abalado, agressivo. Eu ainda me controlo, mas confesso a vocês que não sou eu que me controlo, eu tento me controlar, mas não sou eu. Não é nada de mim não, porque se fosse depender de mim mesmo, só Deus na minha vida. A minha intenção era outra, mas eu tenho certo controle e graças a Deus está me deixando mais tranquilo. Por essa razão eu digo que eu coloco a cabeça no travesseiro e durmo, mas psicologicamente não, pelo fato de ter uma pressão que está me incomodando, eu não estou no meu lugar adequado. Começa a falar eu começo a ficar... Dependendo da situação eu começo a ficar, vai aumentando e eu fico falando mais rápido, mais: “Quero a verdade. Falo a verdade”. Não tenho medo de falar a verdade. Então, eu começo a falar muito rápido, começo a... Só não falo o que não deve, mas falo alto, não tenho controle pra falar muito calmo, entendeu? Até que estou falando bem ultimamente, mas devido a esse problema aí, estou chateado, revoltado, revoltado com as injustiças, revoltado de modo geral. Isso que está acontecendo não sabe onde envolve o dinheiro, você sabe que envolve muita coisa. Falando de dinheiro, a gente suspeita de muita coisa que está acontecendo no nosso país, que é o que a gente vê direto. Então, isso está me deixando muito triste ultimamente.
P/1 – Severino, na sua casa mora você, sua mulher, seu filho e a sua filha.
R – Isso.
P/1 – Quatro pessoas.
R – Quatro pessoas.
P/1 – Você contou antes da entrevista um monte de histórias, um monte de coisas. Eu acho importante registrar bastante disso. Então queria que essa história que começou do DERSA com vocês, que fosse registrada aqui desde o começo. Vou começar a perguntar um pouco pra gente contar essa história. Queria que você contasse o primeiro aviso, como é que foi a história, como é que recebeu o primeiro comunicado, o que falaram pra você, quem chegou pra falar com você. Como é que foi isso?
R – A respeito do DERSA, chegou um pessoal de repente dizendo que ia derrubar a sua casa.
P/1 – Que ano que foi isso? Agora?
R – É. Foi agora.
P/1 – 2010?
R – Isso. No meio do ano...
P/1 – 2009.
R – É. 2009. Olha, vou dar na sua casa “x”, você vai ter que sair.
P/1 – Quanto que era? Você se lembra?
R – Trinta mil, 25, dezesseis, doze. Se você for ver direitinho, a casa do cidadão não valia isso. Mas o problema não está no modo de ser bem pago, está no modo do governo ter pagado para aquela pessoa uma habitação no valor do mínimo de setenta mil reais, como a gente vê no jornal hoje. Então, casinha que era sete cômodos, oito cômodos na alvenaria, toda bonitinha, ele chegava e colocava 35 e ameaçava as pessoas. A pessoa saía ou o trator passava por cima. Tem pessoa hoje aqui que anda com uma boneca dentro do Jardim Oratório, com duas bonecas com uma chupetinha assim na boca da boneca, balançando a boneca, perdeu a bola, perdeu o juízo, pessoas que faziam faculdade, moça, estudiosa, dentro do Jardim Oratório. Esse pessoal chegava, tinha algumas pessoas, ofereciam um laudo que nem está o meu aí para as pessoas viverem. Ofereciam 25 mil, dezessete. Barraco de madeira e as pessoas, muitas queriam ir embora pra sua terra, pegaram esse dinheirinho e foram embora, outros ficaram por aqui e invadiram outros morros como Zaíra seis, sete, oito, invadiram esse local, outros estão em áreas de risco, outros morreram. Outros compraram em outra favela um barraquinho por dois “contos”, três “contos”, que quando foi agora nessa chuvada chegou a cair o barraco por cima de casas de outras pessoas. As pessoas queriam também que o camarada pagasse o prejuízo da casa que caiu por cima da casa de outras pessoas. Foram invadindo a nossa privacidade de uma maneira que não tinha pela gente aqui advogado, não tinha pela gente o prefeito, não tinha pela gente uma assistente social – a assistente social era do próprio DERSA, que chegava já te intimidando e muitas vezes ligando pra você, as famílias no hospital, porque estavam perdendo seus bens. No caso dessa menina, ela vinha chegando em casa e viu o camarada falando com a mãe, dizendo que ela ia perder a casa dela, se ela não saísse o trator passava por cima. Aí o problema afetou a menina. Quase todos os dias elas estão até mesmo aqui na sociedade.
P/1 – Como você reagiu na hora?
R – Eu na hora sabia que eu era o próximo. O que veio na minha mente foi isso: “Bem, se na casa dessa pessoa deu setenta mil, 75 mil reais mais um apartamento, a minha eles não querem dar porque a casa é menor do que a casa dessa pessoa. Se eu não sair, a máquina também vai passar por cima”. Aí começou o disse-me-disse dentro da favela. Uma mentira hoje aqui, se torna verdade, porque nós não temos informação, uma informação definitiva. Tanto é que agora parou; agora eles só negociam com quem eles querem e, devido à defensoria civil ter entrado com uma ação contra eles, deu uma maneirada. Eu comecei a estudar, ver livros, conhecer meus direitos, comecei a comprar livros sobre desapropriação de favelas; a menina da sociedade aqui começou a me ajudar também. Decreto da cidade, a lei da cidade. Tem mais outro aí que eu esqueci. Tem mais outro documento que fala do direito que eu tenho. Eu comecei a ler e comecei a bater de frente com os meus direitos, comecei a conhecer a área que eu moro, é uma área de interesse social, e comecei a ver que eu merecia algo melhor. Quando chegou no setor onde eu morava, ou moro até hoje, eu comecei a conversar com o pessoal, dizendo: “Olha, fica esperto, vê o que realmente você quer porque o pessoal está querendo enganar a gente”. Aí o pessoal começou a me acompanhar; começaram a ver que eu estava frequentando reunião, Ministério Público, Prefeitura, a Câmara dos vereadores. Eu cheguei a ir, eu não pensei de ir tão longe; cheguei a conversar com o Doutor José Augusto, se não me escapa da memória, o vice-presidente do DERSA, lá na Rua Iaiá. Eu não cheguei... Jamais eu imaginaria isso, de sentar à mesa, reunião, conversar com esses homens, entregar documentos da minha casa, falar com deputados como Donisete Braga, Vanessa Damo. Eu fiquei besta de me ver chegar a dialogar com essas pessoas. Meus vizinhos começaram a ver que eu estava correto. Eu comecei a mostrar para o povo os direitos que eles têm: “Olha, você mora numa área de ZEIS [Zonas Especiais de Interesse Social]. Você sabe o que é ZEIS?”; “Ah, não sei”. Eu digo: “Eu vou te explicar o que é. Essa zona aqui é de interesse público. É de interesse de pessoas abrir aqui posto de gasolina, fazer casa, fazer hotel. Então, nós temos que procurar nossos direitos”. E comecei a conversar com esse povo junto com a minha amiga, a Vânia, da associação.
P/1 – Mas você já tinha contato com a associação ou você não tinha muito contato?
R – Eu vinha, mas eu só obedecia. Até então eu passei a tomar posse daquilo ali, me alimentar daquele documento pra que eu pudesse expressar isso lá fora, com educação, é claro. O próprio DERSA que era, por exemplo, o gerente comercial e o consórcio, que eles são juntos, começaram a ver que eu estava batendo na tecla certa. Cheguei até mesmo a ouvir dentro do próprio DERSA que eu estava muito conhecido e que já estava na hora de fazer acordo e cair fora, tanto é que eles tiraram todos os meus vizinhos e eu estou só, todos. Eu estou sozinho e ameaçado a ir à justiça.
P/1 – Uma coisa que é difícil de explicar, mas eu gostaria que você tentasse explicar pra mim. Na hora que recebeu esse comunicado e na hora que você começou a lutar e viu que era uma coisa muito grande contra você, qual o sentimento, sabendo que você provavelmente ia perder a sua casa? Qual é o sentimento da sua família? Como é que foi isso daí?
R – Tudo aquilo que eu falei: revolta, porque eu não tinha a que me apegar, eu não tinha um advogado, eu não tinha uma assistente social pra me orientar, uma pessoa que falasse a verdade. O meu sentimento era de perda total, tanto é que a minha esposa chegou a falar: “Pega os 25 mil e vamos embora”. Nessas alturas, eu comecei a ler os livros, eu vi que eu tinha direito, eu tinha mais direito, eu merecia uma moradia digna. Quando eles viram que eu merecia uma moradia digna, que não estava errado, aí eu já vi na internet... Eu não sei mexer, mas outras pessoas, os colegas, mostraram pra mim no portal da Record, R7, que tinham sido depositados na conta do DERSA, Secretaria da Fazenda, para o DERSA retirar as famílias: 800 milhões de reais. Falei: “Será que isso é verdade?”. Eu não cheguei a ver, mas as pessoas me informavam dizendo que era verdade. Quando eles fizeram reunião aqui dentro, que era aquela história que eu falei, quando eu pensava que não, eu estava lá.
P/1 – Como é que era? Conta a história pra gente de novo...
R – “Alguém tem alguma pergunta?”, eles falavam isso, “alguém tem uma pergunta?”. Aí eu fazia feito Chaves: “Eu”; “Qual é a sua pergunta?”; “São quase duas mil pessoas, duas mil famílias que vocês estão desapropriando. 800 milhões de reais, que está no portal da Record, que vocês receberam. Não dá pra indenizar essas pessoas de uma forma digna? Será que o governo não deu dinheiro suficiente pra tirar essas pessoas? Porque, pelas minhas contas, dá pra vocês gastarem com as pessoas, parece que era 200 milhões, que não gastaria tudo isso e ainda sobraria 800 milhões. Então, daria pra vocês darem uma casa pra cada uma das pessoas. E vocês estão alegando nessa carta que eu recebi que eu tenho direito a escolha. Está escrito lá que eu tenho direito a escolha: um apartamento, uma unidade habitacional, uma casa ou indenizações. Então, eu não quero a casa, pelo fato de eu não gostar de apartamento e a casa, de eu não aceitar, eu posso aceitar, mas se eu escolher a casa que vocês façam pra mim uma casa do jeito que eu quero: três quartos, sala, cozinha, garagem e área de serviço, um quintalzinho pra eu criar um cachorro, alguma coisa. Essa é a casa que eu quero, mas vocês não estão respeitando esses direitos. Vocês estão...”. Aí, eu comecei a alegar: “Estão matando velhinhos, matando as famílias, destruindo pés de árvores, inclusive cedro que tem na frente da minha casa vocês estão destruindo. Vão destruindo, não têm coragem nem de cavar um buraco em outro local, outro espaço e replantar essa planta. Vocês têm muita, é uma madeira caríssima, têm máquinas, vocês podem fazer isso”; “Tudo bem. Então, faça logo a sua pergunta direta. O que é que o senhor quer?”. Aí eu: “Indenizações justas, que deem pra comprar uma moradia pra mim e colocar meus filhos. Não só eu, porque eu não estou só pensando em mim. São os outros também, cada um no seu devido local”. E comecei batendo nisso até o fim. Muitas pessoas não me acompanhavam. Uns acompanhavam, outros não. Aí começou entrando no meio político; um político vinha e ficava do lado de beltrano, outro vinha e ficava do lado do outro, o outro ficava do lado de outro. E, até hoje, ainda está assim. Comecei a frequentar as reuniões, pessoas da zona Leste que cheguei a conhecer, ter o cartão dessas pessoas. Televisão que vinha pra eu chamar essas pessoas pra ajudarem a gente; tanto é que veio a Globo, mas eu não falei, quem falou foi a Vânia, porque tinha que falar... Pra ser sincero, a Globo é marketing mesmo, pra atender pobre é difícil. Chamei a Record, passei um e-mail, até hoje não recebi a resposta, através do e-mail de outro colega. Comecei pedindo ajuda na Câmara, ajuda com o prefeito, o prefeito saiu fora disso, até hoje não apareceu mais no Jardim Oratório. Os vereadores tentaram me dar carro cheio de gasolina e motorista pra eu ir pra Câmara junto com outras pessoas pra participar de reunião, de movimentos ali no centro de São Paulo. Tinha muitas pessoas, muitas pessoas. Recebi essa resposta, no caso do laudo, que aumentou novamente pra 42. De 42, como eu já falei, já foi pra 65, pra 75. Já foi pra oitenta, já foi pra noventa e estou sempre falando: “Se vocês quiserem...”. Eu cheguei a falar dessa maneira, me expressei dessa maneira: “Eu não quero nem um real de vocês. Eu escolho a casa que deve ser digna pra um ser humano morar e vocês pagam, porque eu estou numa área...”, e dei as características da área que eu morava. Aí ele disse: “Eu sei que você mora numa área desse tipo e que você merece realmente uma moradia, mas sua moradia, que você mora hoje, eu não posso pagar nela mais do que isso”.
P/1 – Como é que eles pagam pra você isso? Como é que chega esse momento? É um momento complicado também.
R – Eu sei tudo de cor isso aí. Ele vem com um laudo com determinado valor, se você aceitar eles entram numa sala e batem palmas um para o outro. Valeu. Se você não aceitar, aí ele vê; ele te dá um valor bem baixo, bem baixo mesmo... Como é que eu posso dizer? Pra que você não pense que vai ser um determinado valor alto. Ele te coloca lá embaixo. Aí você reclama e recorre. Eles te dão uma chance pra você recorrer, mas também já dizem logo: “É só uma chance”. Aí você vai recorrer. Quando você recorre, ele dá esse segundo valor tentador, pra que você aceite, se você aceitar, eles batem palmas e fazem festa.
P/1 – E aí como é que é? Chega um caminhão?
R – Eles te levam até uma casa onde eles estiverem atendendo, que atendia aqui e agora já passou pra ali, agora não estão nem atendendo mais. O pessoal está tudo doido, louco da cabeça, não sabem pra onde vão, pra que direção vão. O bairro inteiro está com esse problema. Aí ele chega: “Você aceita a proposta?”; você leva o marido e a mulher, não pode ir um só, são os dois, e assina a proposta deles. Se o marido assinar e mulher não assinar, o negócio não está fechado. Eles começam, se a mulher assinar um documento, pelo menos um, e o marido não assinar, eles vêm mais duas ou três vezes forçando e tentando convencer aquela pessoa a assinar. Tanto é que eu tenho pessoas aqui assim, já tentaram na casa dessa pessoa duas vezes, ela disse: “Não. Eu assinei, mas meu marido não assinou ainda. E outra, agora não quero mais”. A casa dessa pessoa está por 57 mil ou é 53 e ela quer 60 pra ir embora, que não dá pra comprar uma casa mais hoje. Ele começa forçando, se você realmente não aceitar aquela, de vinte foi pra quarenta. Opa. Foi tentadora essa proposta. Se você não aceitar e começar reivindicando junto com alguém ou até mesmo contratando um advogado pra ir com você, quando chega lá no DERSA o tratamento é outro: ele coloca tapete vermelho pra você. O advogado sabe dos seus problemas, do tempo que você mora ali, acaba negociando por talvez cem mil, 120 mil; 30% é do advogado, o resto é seu. Por quê? Não deveria ele fazer diretamente com a pessoa? Como está no jornal, setenta mil reais no mínimo pra quem tem o barraco? Ele chega no barraco dá quinze mil. Tem barraco aqui que custou 2,5 mil reais. Aí ele falou: “Você fica batendo na tecla, batendo na tecla”. Aí corre uma multidão de gente e vai pra frente das máquinas. Param as máquinas. Quando param as máquinas, um engenheiro, um encarregado, bate um Nextel pra dentro do DERSA. O DERSA vem, a pessoa responsável, e diz: “Faça uma comissão de cinco pessoas”. Só cinco. Você leva pra dentro do DERSA. Quando chega dentro do DERSA, fica ali, resolve algumas coisinhas, aí diz: “A partir de amanhã, a perua vai levar de cinco em cinco pra negociar”. Se a sua casa tá por cinquenta, quando chega lá ele diz: “Eu dou 51”. As pessoas querem brigas, querem quebrar tudo. Outros que estão em 37 mil, colocam cinquenta. A pessoa acaba assinando, vai embora e sobe no morrão e compra uma casa por trinta, ou seja, está correndo risco do mesmo jeito. Perante a justiça esse pagamento é ilegal, perante as leis esse pagamento é ilegal, a não ser que fosse também uma indenização justa no valor dele comprar uma casa com dignidade. Então, muitos pegam o dinheiro e compram uma casa no barranco. Outros vão pra outra favela, vão comprar dois cômodos, três cômodos e assim vai gastar o dinheiro; outros compram carros, outros compram algumas coisas, ficam fazendo esse tipo de coisa. E no meu caso, eu bati de frente até hoje e a tendência é ir só aumentando, só aumentando. Não deveria ser uma coisa definitiva? Eu dou tanto e parou. O que foi que eu fiz? Eu desenhei a casa que eu queria, em torno de uns 120 mil, e falei pra ele: “Você me dá...”, depois que chegou em noventa eu cheguei a falar assim: “Eu aceito os noventa, mas eu aceito pra ontem”; “Não, mas pra ontem nós não podemos”; “Então, cinco dias, pode ser? Eu quero o cheque pra cinco dias e eu saio da casa com menos de 24 horas”. Isso não foi possível até hoje. Chamaram-me pra outra negociação. Eu fui e continuei dizendo: “Eu aceito a proposta, mas agora eu só aceito um apartamento, uma unidade habitacional e os 90 mil”; “Não, Severino, assim não dá porque é muito”; “Mas como que é muito? Se no meu vizinho...”, levei o nome do vizinho e o número do laudo, que eu tenho relação com 25 pessoas. Nesse intervalo eu comecei a conversar muito com eles por telefone, conheço secretária, conheço um monte de gente lá de dentro do DERSA. O que foi que eles fizeram? “Severino, você tem alguém que está desesperado, as pessoas que têm problema, que você possa mandar pra negociar com a gente?”. Eu falei: “Tenho”. Escolhi sete vizinhos meus. Esses sete vizinhos foram a mando da minha pessoa, negociaram muito bem e estão felizes, mas até agora não receberam o apartamento, não receberam o valor ainda, continuam no bairro. Vão sair, diz ele, até dia quinze, e do dia dezesseis até o dia 24 faz o balanço do que foi pago pra depois lá para o dia 25 começar a chamar outras pessoas pra negociar novamente. Já ontem também me ligaram... Resumindo: os vizinhos fecharam negócio, mas o meu não fechou negócio, por quê? Porque eu também pedi um apartamento, “porque vocês é que estão forçando eu a pedir um apartamento. Eu aceito os noventa mil desde que vocês tivessem negociado com as outras pessoas do mesmo jeito. Mas pessoa, mãe de família, que tem um filho e três cômodos, vocês deram um apartamento e 76 mil reais. Qual o motivo de dar pra mim também? O que é que está impedindo? O meu já não está noventa? Tá. Então eu aceito noventa mil e mais uma unidade habitacional, a que vocês têm pronta, ou eu estou mentindo?”; “Você está sabendo demais”; “Sei mesmo. Eu sei que vocês têm, ainda resta em torno de uns sete a dez apartamentos aqui no Paranavaí. É só dar a chave que eu vou morar e os noventa mil. E tem ainda 145 em São Bernardo do Campo prontinhos, porque o pessoal de São Bernardo não quis o apartamento de lá, eu quero, porque pelo menos meus filhos fazem faculdade lá”. Então, ficava melhor assim pra mim e até agora eles não quiseram negociação comigo.
P/1 – Então, Severino, queria que você contasse desse processo de mudança. Como é que funciona quando eles chegam pra você mudar, pra pessoa mudar?
R – Quando você aceita a proposta dele, aí começa mais pressão. Primeiro você vai sair atrás das casas. Marca o dia de receber, marca com o próprio DERSA. Chega o dia, o dinheiro não está na sua conta. Você acaba perdendo a casa que comprou ou o cidadão quer um dinheiro adiantado pra segurar até mais dias. Aí você acaba voltando, liga pro DERSA novamente e acaba marcando o dia de receber. Quando ele marca o dia de receber, alguns têm sorte e recebem, outros, há dois meses que não recebem e aí bate o desespero. Quando ele chega com o cheque, ainda diz mais alguma coisa como, por exemplo: “Olha, você pode receber até sexta-feira, até sexta ou quarta”. Se você não receber nesses dias, você só vai receber daqui a trinta dias, 35 dias, quarenta dias... Meu cunhado foi uma dessas pessoas. No dia que chega com o cheque, suas coisas têm que estar no meio da rua, no meio da rua sem... Você não tem nem argumento. As meninas que se dizem assistentes sociais chegam com a documentação e seu cheque, suas coisas têm que estar no meio da rua, que chova, que faça sol, se não o cheque volta. Quando o cheque volta, mais um mês, dois meses pra você receber. Por aí vai.
P/1 – Voltando um pouco... Você chegou a todo esse envolvimento, recebeu comunicado, negociou, mas aí as obras efetivamente começaram.
R – Começou de novo.
P/1 – Conta como é que transformou esse entorno, o que aconteceu com a sua casa, o que aconteceu com tudo.
R – Aí começaram de novo a trabalhar. O pessoal vai e para as máquinas de novo, porque eles chamam uns e não chamam outros. Quando para as máquinas, sempre tem uma mulher, que é assistente social do consórcio, que vem e ameniza a situação, entrega uma cesta básica pra um, traz colchão quando chove e molha a casa para outros, mandaram colchão pra mim também. Me ofereceram hotel, eu falei que não queria. Outras pessoas aceitaram hotel, outras estão aí largadas no meio da rua, sem a moradia. Quando as máquinas param, porque não chamaram as outras pessoas, aí eles mandam fazer uma comissão. Nós fazemos uma comissão novamente e vamos lá ao DERSA. Ele vem, coloca a perua à disposição e manda levar mais oito, nove, cinco, seis pessoas. Negocia. Fica todo mundo tranquilo, as máquinas voltam a trabalhar. Dez, quinze dias, não chamam ninguém, o pessoal vai pra frente da obra novamente e para as máquinas. Nessa brincadeirinha, foi feito isso aqui umas quatro ou cinco vezes, paralisação das máquinas. Eles trazem policial à paisana, segurança à paisana – me falaram que são policiais. Disse que agora ninguém para a obra. Fizeram uma reunião dentro do DERSA, disseram que agora a primeira quinzena é pra pagar o povo, mais uma semana pra fazer um balanço e dia 24 começa novamente a chamar o povo. O povo está querendo parar a obra no setor principal que é onde o governador está querendo inaugurar.
P/1 – Que é uma obra que liga a Ayrton Senna à Jacu-Pêssego.
R – Isso. Jacu-Pêssego, que é todo esse meio aqui. Se você chegar aqui na Papa João XXIII, no cadeião, onde é o cadeião aqui em Mauá, toda a obra está pronta pra inaugurar, mas esse trecho aqui, Jardim Oratório, está atrasado, e agora eles alegam que nós não vamos parar mais a obra e que ninguém consegue. Só que tem pessoas querendo parar a obra... Muita gente está com medo de morrer alguém, porque o negócio vai ser feito. Eles estão querendo fazer um negócio bem organizado. Tem pessoas que estão querendo dar uma força para o pessoal do Jardim Oratório, que o descaso está sendo terrível. O prefeito só anda de helicóptero junto com o Serra; ele não vem aqui dar uma satisfação para o pessoal. O secretário da habitação não quer negócio, não quer nem saber do Oratório. Eles não vêm aqui no Oratório nem pra limpar um bueiro, uma boca de lobo, que a gente tem que pagar trinta reais, como tem colega aqui que pagou pra limpar, porque eles não querem nem mais entrar, porque toda essa área aqui, agora, pertence ao DERSA. Eles estão fazendo isso com o pessoal.
P/1 – Você acha que tem chance de algum conflito daqui pra frente por causa dessa pressão crescente?
R – Tem. Se o DERSA não tomar uma providência, pode acontecer um conflito aqui no Jardim Oratório a qualquer momento, a qualquer momento. Está por um fio, o povo está por um fio de cabelo pra parar toda obra definitivamente; inclusive vir gente de São Paulo ajudar o pessoal do Jardim Oratório que está sendo injustiçado pela prefeitura e o DERSA. Tem muito dinheiro envolvido. Já mandaram 800 milhões, já mandaram mais 700 milhões. O presidente Lula deu mais 300 milhões do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento], segundo as informações. Eu não posso comprovar, porque eu não cheguei a ver pessoalmente, mas isso corre nos jornais, nas televisões, que foi liberado esse dinheiro. Eles continuam com esse dinheiro, demorando pra pagar o povo. Depois da indenização, depois que você aceita a proposta deles, ele demora de 35, 45 dias, dois meses pra te pagar e o pessoal já está colocando na mente, inclusive eu, que esse dinheiro deve estar sendo aplicado em algum local e estão pagando ao povo com juros, por isso que está demorando tanto. Já chegamos a pensar nisso. Não vamos aqui afirmar, não posso afirmar, mas muita gente já desconfia dessa situação.
P/1 – Severino, eu queria que você contasse o que efetivamente a obra causou de transtorno na sua casa.
R – Meu Deus.
P/1 – O que aconteceu?
R – O que essa obra causou foi um prejuízo de três guarda-roupas, uma geladeira, um tanquinho de lavar roupa, um centro de mesa, igual a gente coloca na sala. Roupa em torno de umas dez, quinze camisas de marca. Um aspirador de pó, um som que eu comprei por 1,2 mil reais nas Casas Bahia que eu tenho foto, que ainda hoje está na casa dos técnicos, nas eletrônicas. Eu arrumando trinta com um, vinte com outro pra poder arrumar o som. Está lá, até hoje não veio, está com quase três meses, mais de três meses no técnico pra resolver o problema. O motor do meu carro, toda parte elétrica do carro, contaminada. Pelo mecânico Carlão, se eu quiser mexer no carro vou ter um prejuízo enorme: eu tenho que energizar esse carro, fazer toda uma limpeza geral pra poder andar com esse carro, tirar todo o painel, fazer uma coisa bem feita pra poder mexer nele. Então, tudo isso é prejuízo que eu tive.
P/1 – O que aconteceu?
R – A lama, enchente na minha casa por causa da obra, eu tenho prova. A poeira nas roupas, a minha esposa não aguenta mais. Se você fala de uma roupa ou ela entra em casa, é motivo pra eu nem falar nada com ela, porque se você tem algo que você cuida, você quer sempre estar arrumadinho, suas coisas arrumadas e ela não tem essas condições. Primeiro, estou sem condição nenhuma, financeira, tanto é que até mesmo pra dar entrevista eu estava com dificuldade pelo dinheiro da passagem. Acabou tudo. Tudo da gente acabou dentro da nossa casa, tudo, de modo geral. Tudo que você imaginar acabou. Pra ser sincero, o que não acabou foi força de vontade de lutar pelo que eu tenho direito, isso não acabou ainda. O DERSA quer jogar um contra o outro, um vizinho contra o outro; os próprios vizinhos criam atrito entre eles, não se entendam. Tanto é que ele tirou a maioria das pessoas, ele tirou, então essas pessoas não estão no nosso meio. Eram pessoas que queriam queimar carro, eram pessoas que queriam... Pra ser sincero, tem pessoas andando com dois litros de gasolina na bolsa, que se você disser a ela: “Toca fogo naquele carro”, ela toca. Não a mando da minha pessoa. Toda vida eu lutei pra que fizesse um negócio bem feito, inclusive algumas pessoas me chamaram até, disseram que eu estava sendo cobaia. Eu ia ao DERSA, dizia os motivos pelos quais dava pra ele tirar o povo, se ele tivesse me ouvido, ainda hoje, se ele quisesse sentar aqui na sociedade em qualquer sala dessas e ele pedisse a minha ajuda pra tirar o povo, ele tiraria essas pessoas daqui com menos de 24 horas, porque eu sei até os valores que as pessoas saem. Tem pessoa que quer mil reais pra sair da sua casa e comprar outra em outro local. Tem pessoa que quer treze mil, porque pegou 27, pegou de 57, achou uma casa de setenta. Pra dar esses treze mil é a pior dificuldade da parte do DERSA. Então, eu sei como ele deve tirar essas pessoas. Tem pessoas que estão pedindo, por exemplo, cem mil reais, e o laudo delas está em oitenta. Pessoas que pediram 120 e o laudo delas já está em noventa. Se ele der cem, vai embora e não coloca nada em justiça, porque até os próprios advogados não querem pegar, porque o grosso você já recebeu.
No meu caso, quando eu vou conversar com alguns, eu procuro saber deles se eles querem pegar danos morais, danos materiais, constrangimento, que isso está acontecendo muito, e pressão. Pessoa na sua rua, diferente, que você nunca viu, procurando endereço de casa, procurando endereço de rua e você suspeita: “O que essa pessoa quer?”. Você às vezes encosta o cara na parede... Quando eu falo de encostar é com palavras, pra que ele diga de onde ele é, o que ele quer na área. Então, a gente fica meio assombrado, entendeu? Você não sabe. Comigo já teve esse tipo de coisa, as pessoas não procuraram saber do meu nome, mas procuraram saber de rua, que rua era aquela, com microfone na camisa, tomando algumas informações desse tipo. E hoje, pra tirar essas pessoas, ele tira com a maior facilidade. Se ele quisesse a minha ajuda, eu falei pra ele, cheguei a falar isso na reunião, tem gravado isso no bar de certo colega aqui, que eu disse assim: “Eu dou o melhor de mim pra ajudar você a tirar as famílias sem nenhum problema, se você quiser me ouvir, é só encostar um talão de cheque do lado e a documentação que eles têm que assinar. Eu coloco uma garrafa de café e uma Coca-Cola pra gente tomar e a gente negocia com o pessoal sem nenhum problema”. Agora o Doutor Carlos Loredo entrou com uma ação civil contra o DERSA, pra parar as obras, não sei o que vai ser feito daqui pra frente, mas eles alegam que ninguém consegue parar essa obra. Mas eu continuo dizendo, o prefeito da nossa cidade podia parar essa obra. O juiz pode embargar essa obra. Não fazem por quê? Eu posso até estar equivocado, mas eu só quero reagir de uma maneira dizendo que todo mundo está comprado, porque são muitos investimentos que estão vindo pra Mauá. Tem pessoas vendendo apartamento em Santos e querendo vir morar em Mauá, pelo fato de que vai ter acesso a aeroporto em quinze minutos, 25 minutos. Vai ter acesso a comércio muito próximo da cidade. Mauá está crescendo demais, demais mesmo. E é assim que eles estão tratando as pessoas, pessoas que não conhecem dinheiro.
Olha que história: conheci uma mulher com o nome de Vânia, ela não conhece dinheiro, ela só pega o ônibus porque alguém pega com ela. Chegaram a dar na casa dessa mulher dezesseis mil reais. Veja que situação, dezesseis mil. De dezesseis mil, ficou maltratando essa mulher, que não conhecia dinheiro, por três meses, até que chegou na casa dela... Olha a situação, 72 mil reais. Não seria melhor se tivesse dado os 72 mil reais antes? Na primeira investida? Deram dezesseis. Quando deram os 72, que ela aceitou a proposta do DERSA, ela foi procurar uma casa. Quando ela foi procurar a casa, a pessoa que estava vendendo a casa falou pra ela: “Eu dou a casa por trinta mil”. Ela disse: “Ah, senhora, o DERSA não me deu esse dinheiro, não”. Você entendeu? Tinha dado pra ela 72, ela perguntou o valor da casa, a mulher disse trinta, ela disse que o DERSA não tinha dado esse dinheiro pra ela. Resumindo: ela comprou a casa e levou o pai com problema de derrame, essas coisas e tal. Quando comprou a casa, que colocou o pai sentado na cadeira, o pai morreu. Outras aqui deram derrame quando receberam o laudo no valor de trinta mil. Derrame. Morreu na cadeira e o DERSA ainda disse assim: “Nós vamos ajudar o senhor no velório”. Mas a mulher morreu com o laudo na mão. O que me vem na mente é saber que, mais cedo ou mais tarde, pode ser eu. Eu cheguei a falar pra minha esposa: – pode acreditar o que estou falando, é a pura verdade, eu tenho testemunha – “Minha velha, quando eu sair daqui, me permita sair daqui com o dinheiro pra comprar uma casinha de eu ficar pelo menos um dia sozinho chorando, falando com alguém, mas sozinho, porque eu não aguento mais a pressão”. Estou estressado, ultimamente estou estressado, como já falei, as injustiças. É: eu posso, eu sou, eu quero, eu mando e pisando por cima das outras pessoas que não têm conhecimento dos seus direitos. Isso me deixa muito triste, governo saber que acontece isso com as pessoas menos favorecidas. Isso é o que eu penso do DERSA, o que eu tenho a dizer do DERSA.
P/1 – Severino, frente a tudo isso que está passando e você é uma pessoa que entende a realidade, claramente você tem conhecimento da realidade, foi atrás de entender isso, da maneira realista como você vê... O seu futuro, a sua família, como você vê agora, nesse momento?
R – Olha, agora mesmo eu estou sendo uma pessoa massacrada, humilhada no ponto de vista material. Humilhada, miserável por não ter um respaldo, não ter um órgão que ajude essa família do Jardim Oratório, inclusive a minha. Agora, no futuro, se tratando do futuro, eu costumo dizer que não pertence a mim, mas no modo que você está falando, eu já sei o que quer dizer, o que é que eu penso da minha vida no futuro, materialmente, no futuro. Eu acho que eu até já falei algumas coisas. Eu penso no meu filho estudando, a minha filha também, eu numa casa que eu creio que, se eu tiver condições de dar esse estudo pro meu filho, eu tenho certeza de que ele mais cedo ou mais tarde vai me dar essa casa. Eu tenho certeza de que ele me dá. Se eu estiver vivo, graças a Deus, se eu estiver morto, ele usufrui daquilo que ele conseguir. Mas eu não penso muita coisa, não. Eu penso talvez, talvez, aposentado, porque estou com um problema sério na coluna e, outra, a coluna não aposenta ninguém. Estou desde 2008 que eu não pego nem um real, a não ser quando as pessoas me dão; isso está me afetando muito, saber que eu tenho um direito adquirido, pago meus impostos, pago meus direitos, que a empresa me cobra, e hoje, se eu precisar do INSS ele faz uma sacanagem dessas comigo, dizer que eu não tenho direito. O juiz deu direito ao INSS de eu voltar a trabalhar; a empresa não me quer do jeito que estou, e estou com um problema muito sério. Isso, de um modo geral, está afetando até a minha vida íntima com a minha esposa. E você vê o médico dizer pra você: “Você não está bom pra trabalhar”. Por exemplo, eu estou aqui sentado, só eu sei como é que eu estou: dói a coluna, dói o ombro, dói o dente, dói a cabeça. A vista eu não consigo enxergar mais como enxergava antes, não tenho dinheiro pra fazer um óculos. Isso está me matando... Talvez esse seja o motivo, por isso que a psicóloga falou, eu já vou logo chorando porque eu não suporto. A revolta que dá você querer ter as coisas, você querer, e não é nada demais, pode ter certeza que não é nada demais, eu não penso muito alto. Eu penso assim, antes de eu poder comprar uma carreta, por que não uma bicicleta? Então, eu penso assim, eu penso como águia, visão de águia, mas primeiro eu penso na minha possibilidade. Até que ponto devo chegar? Então, eu penso no futuro, falando do meu futuro, eu penso em, se eu adoecer, ter dinheiro pra tomar o remédio e, de prioridade, ajudar os outros.
Se fosse falar de sonho, como a gente falou antigamente, há algumas horas, eu agora me lembrei, seria ajudar as pessoas. Tudo que eu aprendo eu gosto de passar para outras pessoas. Ter uma casinha pra eu morar. Esse é o meu, meus meninos estudando, e uma casinha pra eu morar. Isso já é o suficiente. E trabalhar até o meu último suspiro. Isso é o que eu penso. Agora, em termos de negócio, de eu não estar recebendo, não estar tendo o suficiente dentro de casa pra dar pra minha esposa, e saber que tem uma esposa que está comigo do meu lado dizendo: “Ele não tem hoje, mas amanhã nós podemos ter”. E você vê as injustiças vindo só ao contrário pra você. Por exemplo, eu tenho 3,5 mil reais dentro da empresa de férias, de décimo terceiro, que a empresa não me paga, e ela diz assim: “Eu só te pago quando você resolver sua situação com o INSS”. Aí eu vou ao INSS, o INSS diz: “Você tá bom de trabalhar”. O médico te dá o aval pra você trabalhar. Quando eu chego na empresa, a empresa diz: “Você não vai trabalhar desse jeito. Não dá pra trabalhar”. Vou ao meu médico, o meu médico diz: “Você não vai trabalhar desse jeito, Severino”. Agora já marquei uma perícia para dia 5 de abril; já estou pensando negativo. Por incrível que pareça, já estou pensando, porque eu já coloquei um advogado pra lutar no caso, estou vivendo porque as pessoas me dão cesta básica, que eu nunca precisei disso e peço a Deus de nunca precisar. Eu quero ter pra ajudar, mas nunca precisei disso. Infelizmente estou dependendo da ajuda das pessoas. Conta de água, de luz, que eu não paguei mais. Não cortaram a minha luz pelo fato dessa obra, eu deduzo que sim, porque se você não paga a luz, com três contas já corta; estou com oito, oito ou nove. E tem mais, ainda vem com um aumento de seis reais e vinte pouco. E você vê que na minha rua não tem luz. Água? Nem falo. Talvez, se você olhar na rua, é pela minha sinceridade e honestidade que eu acho que na luz só quem tem relógio sou eu, porque as outras águas todas são clandestinas. Pessoas que fazem gato. Eu não. Eu pago meus impostos, procuro pagar direitinho, compro, eu pago, compro em prestação, procuro pagar, não sou caloteiro, sou uma pessoa honesta. Aí, quando você olha pelo outro lado, você vê seu vizinho com gato na energia, com gato na água, compra e não paga, engana. Vai às Casas Bahia, compra dez, quinze mil reais de móveis, vai embora pra Pernambuco, pra Alagoas. Enganam e têm valor; você é honesto e não tem. Essas coisas me machucam muito. Pode ser sincero, como cidadão, me machuca muito isso.
P/1 – Severino, quero perguntar uma coisa pra gente começar a encerrar. Não sei se você não quer responder, mas se não quiser também não precisa responder.
R – Respondo. Desde que eu possa responder, porque eu não sei...
P/1 – É simples, na verdade. Talvez seja uma coisa que pra você seja difícil. Como você consegue imaginar esse local onde você mora daqui a um, dois anos, com essa obra? Imaginar onde foi sua casa por algum tempo, um bom tempo. Você consegue imaginar isso?
R – Consigo. Vai ser muito bom pra cidade, os recursos são muito bons pra cidade. Vai ser boa demais pra acesso aos órgãos públicos, pra nós mesmos. Vai ser bom pra nós, pra classe média alta, mas pra pobre, você vai entender muito bem, pra pobre não, porque a obra que estão fazendo aqui só favorece aos grandes. Só favorece as pessoas que têm, mas as que não têm... Eu não tenho nada em Santos, eu não sei ir pra praia, vai ser bom? Vai. Eu não tenho condições de montar um posto de gasolina, mas o prefeito tem, empresário tem, o microempresário tem. Então, pra essas pessoas vai ser bom demais. Pra mim, não vai ser. Vai ser bom termos de acesso pra ir pra alguns locais, mas em termos de conforto, pra mim não, porque todo Oratório vai ser derrubado. As informações que nós temos são que todo Oratório vai ser, não vai ficar uma casa no Oratório, só área industrial, como já falei, Carrefour, talvez hospital, posto de gasolina, parque, hotéis. Tem um negócio aqui no campo que eles já vieram olhar, uma empresa, pra fazer casas aqui no lago. Então, para mim, só vai favorecer pessoas como empresários mesmo, mas pra classe pobre... Vai ficar muito bonito e está bonito, eu assumo isso, está muito bonito. Se você for pegar a Papa XXIII aqui, você vai ter dor de cabeça, você vai sair com o carro zero e vai voltar com ele com o amortecedor estourado, mas quando chegar lá no cadeião, você vai ver que está lindo, maravilhoso. Mas, infelizmente, tirar as pessoas daqui, fazer uma obra dessas... Elas já vivem nesse local porque não têm condições de estarem em outro melhor, aí o governo vem e tira você daqui e te coloca em outra área pior do que essa. Às vezes, eu faço essa pergunta pra mim, sabe, Tiago? Eu faço essa pergunta pra mim, um cara que dedicou tanto a sua vida fazendo certo – não estou dizendo aqui que eu sou o dono da razão, mas procuro sempre falar a verdade, doa a quem doer, é melhor uma coisa que seja verdade do que uma mentira, costumo dizer que mentira tem perna curta –, que faz as suas coisas certinhas, procura fazer o certo e de repente vem o governo... Eu culpo também das pessoas não terem... Tem uma palavra aí que eu não estou conseguindo me lembrar dela, de ter preparado antes o povo pra que pudesse receber simpático essa obra. Tem uma palavra, mas eu não estou conseguindo me lembrar dela. O planejamento, se houvesse um planejamento com essa pessoa, pra poder tirar ela daqui, colocá-la em outro local; apartamento já deveria estar pronto, casa já deveria estar pronta, que nem aconteceu aqui em Capuava. O pessoal da assistência social ali dentro... Pegar os velhinhos de cadeiras de rodas, tratar deles com carinho, entendeu? Pegar essas pessoas e colocar num lugar adequado, não fazer como fizeram. Isso me machuca, isso está me matando dia e noite e eu não posso fazer nada. Isso é o que me preocupa. Primeiro lugar, minha família, segundo, a família do outro também. Eu, pelo menos, penso desse tipo, eu penso no meu caso... Minha mãe dizia assim: “Quem não quer pra si, não dá aos outros”. Então, antes de eu falar algo, eu penso no que eu vou falar: “Será que não vai afetar o meu vizinho? Como é que o meu vizinho vai reagir se eu falar isso pra ele?”. Então, antes de eu falar, eu me seguro para que eu não afete ou não machuque a outra pessoa. Eu procuro sempre falar isso, se a pessoa falar algo, talvez quando eu falo de estudo, por isso que eu peço pro meu menino estudar, se você não entendeu, não quer falar no meio de gente, chama a pessoa particular e conversa com ela particular, procura entender o que ela falou para que não haja atrito. Eu procuro hoje ver esse lado, mas infelizmente a gente só recebe bordoada, só bordoada. Isso está me revoltando muito, por isso que estou desse jeito, mas eu garanto, sou uma pessoa tranquila, sou uma pessoa consciente do que eu quero e não é muito.
O que eu gostaria que o governo tivesse feito também por essas pessoas é uma moradia digna, adequada pra essas pessoas, não estar fazendo o que está fazendo. Só aparecem as obras boas dele na televisão, tanto é que tudo que você vê que é bonito, você vê na televisão. Quando os olhos veem alguma coisa, todo negócio está na visão. Pode observar. Está na visão, no comércio... Como é que eu posso dizer? Naquele comercial lindo e maravilhoso. Por exemplo, eu comprei uma máquina no comercial e quando eu fui ver, o que o cidadão falava era outra coisa. Não aconselho que ninguém compre a máquina Tecnomania, não aconselho, pelo menos pra mim, tive dor de cabeça. Como eu comecei a ler os livros que eu te falei, peguei os livros e comecei a conhecer os meus direitos, o que foi que eu fiz? A nota fiscal é minha garantia. Peguei a nota fiscal. Comecei brigando verbal, por telefone, na hora do almoço. Na hora a empresa me mandou embora pra eu receber o problema da cama. Não resolvia, era agressivo comigo, até palavrão eu escutei. Falei: “Meu Deus, não é possível uma coisa dessas. Eu sou cliente, eu tenho direito, eu tenho razão”. Depois alguém falou: “Não. Tem um órgão do governo que resolve o seu problema”. Peguei a nota e fui até o PROCON [Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor]; dez dias o meu dinheiro estava na conta de volta. Está vendo? Então, isso eu procuro passar para as pessoas também, que eu aprendi, então passo para as outras pessoas. Isso é o que eu procuro fazer dentro do bairro, mas confesso também que estou muito revoltado com as coisas que estão acontecendo, estou muito revoltado. E pelo outro lado, que eu não vou entrar em detalhe, que eu creio que vocês já viram, já perceberam, que me conforta pelo fato de eu saber o que vai acontecer lá na frente. Deixa-me mais revoltado essa história de eu saber na prática como que funciona, isso me deixa muito revoltado, muito estressado, como já falei, psicológico abalado, muita coisa devido a essa situação do DERSA.
P/1 – A gente vai encerrando Severino, eu só quero que você responda uma pergunta, a última, que é o que você achou de contar um pouco da sua vida aqui pra gente?
R – Eu achei muito legal. Eu precisava falar. Eu precisava falar, eu precisava expor algo dentro de mim... Tanto é que eu me segurei muito, o máximo, se não eu ia ficar soluçando aqui na frente de vocês. Mas eu consegui pelo menos desabafar o que estava preso, que eu precisava falar e não encontrava alguém que me ouvisse. Então, eu achei muito legal isso aí, muito dez. Vocês estão de parabéns. Cumpri com o que foi combinado. Cumpriu. Veio. Que eu iria mesmo, mas estava naquela situação. Mas eu ia, ia chegar uma hora que eu ia. Mas eu achei muito legal vocês virem e cumprirem. Cumpriram até com o horário, mesmo com o problema do trânsito, mas cumpriram com o horário. Eu achei muito legal. Pessoa simpática, educado, e estou muito satisfeito com isso.
P/1 – Severino, obrigado mesmo.
R – Obrigado também.
P/1 – A gente agradece.
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